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Merval Pereira: Doria venceu
Foi uma vitória política do governador de São Paulo João Doria a admissão do ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, de que o início da vacinação nacional pode se dar ainda em dezembro, mais certamente em janeiro.
Embora o governador Doria garanta que não haveria falta de doses para todos que procurassem, mesmo não morando no Estado, São Paulo se livrou de problemas como a superpopulação das cidades com pessoas de outros estados procurando por vacinas, e poderá promover a vacinação de maneira tranquila e rápida.
Pode ser até que sobrem vacinas para doação a outros estados, sem prejuízo da população local, que se sentiria prejudicada pelo afluxo de pessoas de outros estados. A antecipação da vacinação nacional é um anúncio que só confirma que o governo brasileiro, se tivesse se organizado com antecedência, poderia estar começando a vacinação nacional, sem polêmicas, ao mesmo tempo que vários países.
A compra da vacina da Pfizer, que já está sendo utilizada na Inglaterra e em outros países, foi atrasada por uma decisão equivocada do ministério da Saúde, que a descartou pela dificuldade de armazenamento a temperaturas muito baixas. A solução foi dada pela própria farmacêutica, que criou embalagens com gelo seco que conservam a vacina por pelo menos um mês.
Agindo sempre com rancor, e sem nunca objetivar a proteção da vida humana, o presidente Bolsonaro foi obrigado a antecipar o calendário de vacinação para não deixar o governador paulista ser o pioneiro no país, enquanto a Saúde permaneceria em estado de paralisia burocrática.
A vacinação pode começar em janeiro, e com a vacina da Pfizer, descartada por Pazuello dias antes. Poderia ser com a vacina chinesa da Sinovac, que está sendo produzida no Instituto Butantan em São Paulo, mas a idiossincrasia de Bolsonaro em relação à China e a Doria, seu provável adversário em 2022 na disputa pela presidência da República, fez com que o governo brasileiro não levasse em consideração os avanços da vacina chinesa, que até hoje não está incluída na lista oficial das vacinas negociadas.
O que sempre foi óbvio, que a vacinação dos brasileiros atrasada em relação a muitos outros países pelo mundo provocaria uma forte reação da opinião pública, somente agora parece ter ficado claro para nossos governantes, que correm atrás do prejuízo improvisadamente.
A antecipação do calendário de vacinação nacional, que aliás ainda não foi divulgado de maneira oficial, vai ser feita não para salvar vidas, mas para salvar a pele do próprio presidente, que nega os benefícios da vacina, mas quer impedir que o governador de São Paulo tenha a dianteira nesse processo, o mais importante procedimento diante da pandemia da COVID-19.
Com a notícia de que a vacina da Pfizer pode causar efeitos colaterais nas pessoas alérgicas em alto grau, o presidente Bolsonaro é capaz de alegar que tem razão quando não recomenda a vacinação. A vacina em que o governo joga suas fichas é a da AztraZeneca, da Universidade de Oxford, que está sendo feita no Rio na Fiocruz.
Mas há problemas a serem superados, como a possibilidade de essa vacina não ser eficaz para idosos. Essa possibilidade surgiu nos estudos publicados na revista Lancet, que confirmou que a eficácia da imunização, que é de 60%, aumenta para 90% quando se dá uma meia dose na primeira vez, e depois completa-se com uma dose inteira.
Porém, não há explicação científica ainda para essa disparidade, e também o número de voluntários idosos foi insuficiente, segundo pesquisadores independentes, para se afirmar que a vacina de Oxford é eficaz para esse grupo de risco. Esses atropelos são naturais, pois foi um esforço internacional de emergência que permitiu que vários tipos de vacinas fossem produzidas em cerca de 1 ano de pandemia, o que é excepcional.
Míriam Leitão: Inflação em alta complica a vida
Os juros não vão subir nesta reunião do Copom, mas a inflação em alta está pondo todos no mesmo córner: o Tesouro, o Banco Central, as contas públicas e as famílias brasileiras. O INPC pode passar de 5% e esse é o índice que corrige várias despesas do Orçamento da União. Os gastos, portanto, subirão mais do que o calculado no projeto enviado ao Congresso, porque a inflação acelerou no segundo semestre. O Banco Central não elevará os juros nesta quarta-feira, mas esse fator novo, a taxa de inflação, tira o Copom da zona de conforto. Quando ele tiver que subir a Selic, a dívida fica mais cara.
Para as famílias, a alta da inflação atinge um nervo exposto. O IPCA subiu 0,89% em novembro. As maiores altas são dos preços de alimentos e de alguns serviços que não podemos deixar de consumir. Para o professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, o que mais pesou nos índices divulgados ontem, depois dos alimentos, foi a luz. E ele calcula que dezembro deve trazer uma taxa de 1%:
— Com 1% em dezembro, o IPCA vai a 4,16%, mas pode ser um pouco mais. O INPC iria para mais de 5%, porque no ano o INPC acumula 3,93%, e o IPCA, 3,13%.
A inflação de alimentos e bebidas teve alta de 12,14% no ano e 15,94% em 12 meses. Quando se mede a alta só dos alimentos no domicílio a taxa chega a 21,13% em 12 meses. Ou seja, ela é maior nos itens que pesam mais no bolso. As famílias estão chegando ao fim do ano num país em que o desemprego subiu, a renda caiu, o auxílio deixará de ser transferido aos mais pobres, e a comida está mais cara. Visivelmente mais cara. E existem aumentos à espreita para o começo de 2021. Muito reajuste foi adiado porque a ideia é que a esta altura estaríamos livres da pandemia. Mas não. Estamos numa segunda onda de aceleração da doença. Planos de saúde, tarifas de serviços públicos, remédios subiram menos ou não foram reajustados em 2020. E essa conta chegará em 2021.
O projeto de orçamento que está no Congresso previa que as despesas indexadas — salário mínimo, benefícios previdenciários e assistenciais —seriam corrigidas por 2,09%. Se o INPC, que indexa, terminar o ano acima de 5%, teremos um aumento muito grande das despesas, como já alertamos aqui neste espaço na semana passada. Talvez R$ 17 bi ou mais. O teto de gastos é corrigido também, mas pelo IPCA em 12 meses até junho, que deu 2,13%. O teto subirá menos que a despesa fixa. Haverá, portanto, mais dificuldade para ajustar o orçamento. E há um problema extra: ainda não temos nem a LDO aprovada.
O Tesouro terá um vencimento de R$ 600 bilhões de dívida nos quatro primeiros meses do ano. O governo tem que estar bem atento a isso, exatamente porque a dívida deu um salto forte com a pandemia. É por isso que o Ministério da Economia está querendo deixar bem claro que pelo menos metade desses recursos de refinanciamento da dívida já está garantida.
— Teremos R$ 100 bilhões de pagamento do BNDES da dívida que o banco tem com o Tesouro, e vamos ficar com R$ 190 bilhões do lucro contábil do Banco Central — diz uma fonte da equipe econômica.
O Tesouro do Brasil tem uma dívida alta, e com muitos vencimentos no curto prazo. A grande vantagem é a Selic estar em 2%. Mas por quanto tempo mais a Selic ficará nesse patamar com a inflação subindo além do previsto? Um dos poucos pontos de alívio dos últimos tempos é a reversão da alta do dólar. O câmbio vinha pressionando muito os preços, mas nas últimas semanas o real se valorizou frente à moeda americana.
A inflação quando sobe de forma rápida sempre desorganiza tudo. Não era previsível que ela subisse, já que o país está em um contexto recessivo. A taxa não está em níveis tão altos quanto, por exemplo, em 2015, mas o que já subiu teve efeito de tornar mais apertado o orçamento das famílias, elevar o gasto público e alimentar a dúvida sobre quanto tempo mais o BC pode permanecer sem elevar a taxa de juros.
Pior do que a inflação de agora é a sensação de que outros preços vão subir quando o país ainda não se recuperou. De que eles estão à espreita, como eu disse. A vida de todo mundo fica mais difícil: do governo e das famílias. Até porque essa é uma inflação que tem muitas origens: a alta de alimentos, a falta de insumos na cadeia produtiva, os adiamentos de reajustes de preços administrados, a subida do dólar. A vida não ficará fácil tão cedo. Em todos os sentidos, mas hoje falo da inflação, aquela velha senhora.
Hélio Schwartsman: A guerra das vacinas
Para Bolsonaro, é melhor atrapalhar Doria do que imunizar a população do país
A "vacina inglesa do Bolsonaro" (Oxford/AstraZeneca) não é nenhuma maravilha. Registrou só 70% de eficácia na melhor interpretação dos dados do estudo de fase 3. Já os resultados da "vacina chinesa do Doria" (Coronavac) devem ser divulgados nos próximos dias.
Por não ter chutado um pênalti para fora, João Doria está na frente de Jair Bolsonaro na disputa, mas não há nenhuma certeza de que sua vacina será certeira. O padrão-ouro em imunização contra a Covid-19 é, por ora, o das vacinas da Pfizer e da Moderna, que conferiram em torno de 95% de proteção nos ensaios clínicos.
O governo federal, que apostara todas as fichas no imunizante da Oxford, não adquiriu nenhuma dose do produto da Moderna e tenta agora um acordo de última hora com a Pfizer, mas dificilmente conseguiremos um lote para logo. Outros países foram mais rápidos. O Canadá, por exemplo, fez tantos acordos que já computa dez doses de imunizantes para cada habitante.
O Brasil também deixou de fazer a lição de casa num item muito mais básico, que é a compra de seringas, agulhas etc., coisas que sabíamos serem necessárias qualquer que fosse o imunizante a utilizar, mas que o ministro da Saúde especializado em logística preferiu ignorar.
E esse é o ponto a que eu queria chegar. O Brasil, que até há pouco era um país conhecido pela excelência de seu programa de imunizações, corre o risco de ficar sem vacinas e sem insumos para aplicá-las.
Um dos principais motivos para a decadência é Jair Bolsonaro. Além da ignorância militante da qual parece orgulhar-se, o presidente trabalhou incansavelmente para minar a estrutura de órgãos como o Ministério da Saúde, que agora faz falta.
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
Rosângela Bittar: Os prazos e o desespero
O trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite com a indefinição sobre a vacina
Começando pelo fim: os prazos costumam definir a tolerância que a sociedade concede aos governos e líderes. Ao se esgotarem, alteram o humor das mais passivas e indiferentes criaturas. Então, o desespero, que parecia contido, transborda, como um aviso aos governantes. Sinalizou-se, no caso da negligência homicida com a imunização contra o coronavírus, que algo precisa ser feito. É imperativa uma intervenção no ritmo da insensatez do presidente Jair Bolsonaro.
Não se propõe impeachment, esclareça-se. Até os eleitores frustrados o desprezam. Mas os poderes Legislativo e Judiciário, os Estados e municípios, as instituições de Estado, os movimentos sociais, dispõem de meios e métodos menos agudos e mais eficientes.
Ontem, em Brasília, empreendeu-se uma dessas batalhas. Em reunião com o ministro da Saúde, os governadores pretenderam mover o governo Bolsonaro em alguma direção. Apesar do mundo civilizado estar celebrando o início da imunização no Reino Unido, pediam o básico do óbvio. O tenso encontro produziu as promessas de sempre, mas apressou o anúncio de intenções negociadas de véspera.
No primeiro encontro, há um mês, Eduardo Pazuello anunciou que iria adquirir a vacina do Instituto Butantã, desenvolvida com o laboratório chinês Sinovac. No dia seguinte recuou, sob vara, com advertência pública do presidente. Ontem, fez nova promessa, de compra da vacina da Pfizer, que o sistema não tem nem condições de armazenar a 70 graus negativos. Mas desta não deve recuar. A vacina é americana e o protocolo de intenções para adquiri-la foi assinado ontem mesmo.
Já esperado, a reunião produziu mais um lance na disputa política de Bolsonaro com João Doria. Ao condenar planos estaduais de vacinação, como o de São Paulo, que contrapôs ao plano nacional, inexistente, o ministro não deu transparência ao que fará com a vacina do Butantã.
A série histórica de afirmações e recuos de Pazuello e Bolsonaro não animam expectativas positivas.
No caos que se delineia, os governadores devem esperar um desfecho carregando pedras, pois têm novo obstáculo imediato, o descaso culposo da Anvisa. O órgão regulador assumiu o critério político para a questão sanitária. E produziu uma pérola de bula administrativa: “Para a solicitação do uso emergencial é esperado que sejam apresentados minimamente os dados descritos do guia sobre os requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária…” Ainda tirou da sacola um prazo novo: depois de receber a papelada final, vai precisar de 60 dias para ruminá-la.
A loucura federal deixou sem sentido a escalada de fortes adjetivos com que cidadãos e críticos se referem ao governo Bolsonaro. Demência. Fascismo. Obscurantismo. Ignorância. Ao se completarem, amanhã, nove meses de devastação e isolamento social, o trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite.
O governo, com seus tanques movidos a ódio, insulta a população, acuada, tentando exercer discretamente seu direito à sobrevivência. E a ataca, de um lado, com a bandeira do Ministério da Saúde, o campeão da morte. De outro, com a bandeira do Ministério da Educação, o vice-campeão. Repartição que se atribui a tarefa de manter sob tensão e risco 53 milhões de estudantes, 2,6 milhões de professores e outros tantos milhões de servidores das escolas. E suas famílias.
Em nove meses de pandemia, o terceiro ministro da Saúde do governo Bolsonaro foi incapaz de negociar para o País uma única dose de vacina. O quarto ministro da Educação foi incapaz de organizar a reabertura de uma única escola. Bolsonaro segue na sua fixação: a campanha eleitoral de 2022. É de reeleição que trata ao se empenhar no domínio do Poder Legislativo. É de reeleição que se ocupa ao providenciar reforma ministerial para ampliar o cofre do Centrão. Sem ilusões: não estaria a vacina sendo usada também na barganha dos interesses eleitorais?
Bernardo Mello Franco: Pazuello quer vencer o vírus com autoajuda
Ao assumir o Ministério da Saúde, o general Eduardo Pazuello foi apresentado como um especialista em logística. Pelos resultados da sua gestão, seria arriscado nomeá-lo para administrar uma barraca de feira.
Sob as botas do militar, a pasta permitiu o encalhe de quase sete milhões de testes de Covid. O material ficou esquecido num depósito no aeroporto de Guarulhos. Depois que o caso veio à tona, o ministro ofereceu uma solução mambembe: estender o prazo de validade dos kits, que começa a expirar neste mês.
Até hoje Pazuello não foi capaz de apresentar um cronograma de imunização para o Brasil. Nem a compra de seringas e agulhas está definida. O apagão logístico vai além do combate ao coronavírus. Pacientes com HIV e hepatite C estão sem exames de genotipagem porque o ministério deixou o contrato vencer.
Ontem o general deu novas provas de que é o homem errado no lugar errado. De manhã, ele se envolveu num bate-boca com o governador de São Paulo, João Doria, que reclamou de boicote federal à vacina do Butantan.
O ministro já havia anunciado a compra de 46 milhões de doses. No dia seguinte, foi desautorizado pelo chefe e sumiu de cena. Agora ele diz que a Anvisa levará 60 dias para liberar a vacina. Isso melaria a promessa do tucano de iniciar a imunização em janeiro.
À tarde, Pazuello fez um pronunciamento no Planalto. Ele repetiu generalidades e se recusou a responder perguntas. Limitou-se a recitar frases motivacionais como “não podemos desanimar” e “erguer a cabeça e dar a volta por cima é o padrão brasileiro”.
Sem ações concretas, o general indica que pretende vencer o vírus com chavões patrióticos e discurso de autoajuda. “Temos que acreditar que nós podemos vencer. Vamos ter fé. Tudo isso vai passar”, enrolou.
A conversa lembrou uma entrevista de Luiz Felipe Scolari na Copa de 2014. Antes da semifinal, o professor disse que a seleção estava “dando o seu melhor” e jogaria “pelo país”. Ele acrescentou que já havia estudado as táticas da Alemanha. “As observações me deram confiança de que estamos fazendo a coisa certa”, garantiu. A embromação de Pazuello parece anteceder um novo 7 a 1.
Jamil Chade: As veias abertas do mundo
Três décadas depois do ápice da crise da Aids, o planeta comete os mesmos erros e ameaça deixar bilhões de pessoas sem acesso a tratamentos e vacinas contra a covid-19
Em meados dos anos noventa, um tratamento contra o vírus HIV já existia, permitindo ampliar a sobrevivência daqueles que tinham sido infectados. Mas esse benefício da ciência praticamente só era uma realidade para aqueles que viviam em países ricos. O tratamento custava em média 10.000 dólares por ano e, assim, um paciente na África precisaria do equivalente a 20 anos de salários para pagar por apenas alguns meses do coquetel de remédios que deveria tomar para o resto de sua vida.
Na prática, o tratamento não existia para uma enorme porção da população mundial.
- Lições do HIV para a covid-19
- Britânica de 90 anos é a primeira pessoa do Reino Unido a receber vacina contra covid-19 após testes
- Wanderson de Oliveira: “Não é possível uma grande campanha de vacinação no Brasil já a partir do primeiro semestre”
De acordo com a entidade Médicos Sem Fronteiras, até que os remédios fossem disponibilizados em sua versão genérica e sem patentes para essas populações mais pobres a um custo de 1 dólar por dia, 11 milhões de pessoas morreram apenas no continente africano.
Nem todos eles teriam sido salvos se os remédios chegassem antes. Mas certamente milhões de famílias poderiam ter evitado o pior e prolongado a vida —inclusive produtiva— de seus entes queridos.
Trinta anos depois, o mundo caminha para repetir uma história similar e revelar que a humanidade sofre de uma amnésia aguda quando o tema é salvar vidas.
Diante da pandemia da covid-19, vacinas começam a chegar ao mercado e a ciência revela todo seu esplendor em promover um resultado em tempo recorde. No Reino Unido, uma senhora de 90 anos, Margaret Keenan, entrará para a história como a primeira a receber a vacina num país ocidental, nesta terça. Para muitos, a esperança é de que aquela dose represente o começo do fim de um pesadelo.
Mas nem essa ciência é para todos nem esse recorde é universal. Como já foi dito antes, se na primeira vez a história ocorreu como uma tragédia, ela se repete como uma farsa.
Atualmente, mais de 50% da capacidade de produção de vacinas no mundo já está reservada ou compradapor um grupo pequeno de países que, juntos, representam apenas 13% da população mundial. Levantamentos da Universidade Duke, nos EUA, revelam que Canadá, EUA e UE já garantiram doses que seriam suficientes para vacinar várias vezes toda sua população. Já dezenas de Governos simplesmente não contam com nem sequer uma dose.
Na esperança de garantir maior acesso e um melhor equilíbrio na distribuição, cem países em desenvolvimento apresentaram um projeto ambicioso: suspender patentes de produtos relacionados com a covid-19 e, assim, garantir sua produção genérica para permitir uma queda acentuada de preços e uma maior fabricação pelo mundo. Mas nem todos estão de acordo.
Nesta quinta-feira, uma reunião na Organização Mundial do Comércio (OMC) pode começar a definir qual o caminho que será tomado. Fundamental para a inovação, as patentes também são monopólios estabelecidos para recompensar o inventor pelos riscos que assumiu. Mas a qual preço para a humanidade?
Em salas elegantes em Genebra, negociadores de países desenvolvidos e detentores dessas patentes circulam na OMC com argumentos eloquentes, aparentemente sofisticados e repletos de diplomacia para justificar uma recusa ao projeto.
Para esse grupo, basta seguir a lei internacional de propriedade intelectual para assegurar um abastecimento. Por essas normas, um país pode solicitar a importação de um produto genérico caso uma situação de emergência exija. Na teoria, isso pode fazer sentido. Mas a realidade é que, em alguns casos, tal autorização poderia levar até três anos para ser concedida. Quantos morrerão até lá?
Alguns desses negociadores usam ainda de argumentos reais: de que vale quebrar uma patente para um remédio, tratamento ou vacina se a estrada até chegar a um certo povoado não existe?
Ao mencionar fragilidades dos países pobres, eles parecem ignorar como, no caso da Aids, os remédios genéricos transformaram a realidade de dezenas de países.
Eles tampouco citam dados da ONU que revelam que, durante a atual pandemia, a importação per capita de produtos médicos destinados a mitigar o impacto da covid-19 foi 100 vezes maior nos países ricos, em comparação às economias mais pobres do mundo.
Tampouco é mencionado como, na Itália, dois engenheiros resolveram usar uma impressora 3D para fabricar válvulas para respiradores de um hospital foram processados por violar regras de patentes. Quantas vidas aquela impressora teria salvo?
Uma vez mais, a crise sanitária de 2020 escancara a falácia de que o avanço da ciência funciona para todos. Por décadas, empresas abandonaram pesquisas sobre doenças que afetavam os mais pobres e que, portanto, não renderiam dividendo aos investidores. Elas foram chamadas de “doenças negligenciadas”, um nome hipócrita para falar, no fundo, de povos negligenciados.
Outro argumento que se desfaz na atual pandemia é de que empresas privadas precisam ser devidamente recompensadas por suas apostas na pesquisa de uma nova vacina, que poderia não funcionar. Elas têm razão. Mas, antes, precisariam revelar como, apenas no caso da covid-19, receberam o equivalente a 12 bilhões de dólares em recursos públicos de Governos para garantir suas inovações.
A equação é clara: o risco é coletivo. Se uma aposta numa vacina não funcionar, a empresa tem a segurança de ser resgatada por dinheiro público. Mas, em caso de vitória, a patente é sua recompensa e o lucro, obviamente, é privado.
A longo da atual pandemia, empresas têm alegado que precisam de 1 bilhão de dólares para desenvolver uma vacina e, portanto, querem a proteção de suas invenções. Esse mesmo setor privado, porém, não revela quanto recebem em isenções fiscais, em apoio de instituições públicas de inovação e nem qual será a margem de lucro de seu novo produto.
Na atual crise, há ainda um casamento silencioso sendo estabelecido. Nas negociações internacionais, Governos de países ricos garantem a proteção a suas multinacionais e indicam que não vão aceitar a ideia da quebra de patentes de produtos relacionados com a covid-19 na OMC. Em troca, recebem garantias de que serão os primeiros a serem abastecidos pelas vacinas.
Para preencher o vácuo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se apressou para criar um sistema que permita que uma parcela dessa inovação chegue aos países mais pobres e que essas populações não sejam pisoteadas na corrida pela salvação. Assim, a aliança mundial de vacinas —a Covax— foi estabelecida.
Mas a iniciativa vive uma falta crônica de recursos e simplesmente, com o que tem em caixa, não conseguirá atingir seu objetivo de chegar a 1 bilhão de pessoas até o final de 2021 em mais de 90 países.
Em eventos na ONU, na OMS, no G20 ou em outros fóruns internacionais, não são poucos os líderes que fazem discursos garantindo que a vacina precisa ser um bem público internacional.
Mas não aceitam a quebra de patentes nem abrem seus bolsos para garantir que a inovação chegue aos países mais pobres. Promessas vazias e uma fraude à humanidade.
Uma vez mais, os ricos vão ser os primeiros a serem imunizados. Enquanto isso, o restante —frequentemente mais escuro, mais exausto, mais distante de seus sonhos e mais desprotegido— faz uma fila interminável de esperança na forma de uma dose da vacina.
Em 2020, existe a cura para muitas doenças que matam. Existem alimentos para abastecer três planetas. E existem pessoas dispostas a ir ao socorro dessas populações. O que nem sempre existe é o compromisso politico para que isso se transforme em realidade.
O que existe hoje no mundo é um sistema que serve para estancar o sangue de uma ferida mais profunda, sem que a estrutura de poder seja modificada e sem que o monopólio seja desfeito. Para as veias abertas do mundo, o que temos no momento são curativos improvisados e insuficientes, prestes a definhar.
Assim como nos anos noventa, fica mais uma vez claro em 2020 que a vida ou a morte não dependem apenas do avanço da ciência. Mas de quem você é e onde, por acidente, nasceu.
Joel Pinheiro da Fonseca: Bolsonaro prefere prolongar a pandemia a beneficiar Doria
Esperar uma conduta digna e racional do presidente virou utopia
Imagine um país no qual a descoberta de uma vacina salvadora para a pior epidemia do século contasse com o apoio do presidente, e não com a sabotagem ativa de seu governo e da rede de bajuladores profissionais. Sim, estou ousado na utopia.
Lá atrás, no início da pandemia, Jair Bolsonaro e João Doria fizeram cada um a sua aposta de vacina: um no consórcio da Fiocruz com a AstraZeneca, o outro no do Butantan com a Sinovac.
Não tinha como saber qual ficaria pronta antes; era questão de sorte. Calhou de ser a vacina de SP, que está mais avançada no processo de testagem.
Era natural de se esperar que aquela que ficasse pronta antes traria algum ganho ao político que nela apostou. Isso é do jogo. O governo Bolsonaro tinha, ademais, a faca e o queijo na mão para partilhar com Doria os louros dessa vitória. O ministro da Saúde até tentou fazer seu trabalho: negociou a compra de doses da Coronavac pelo governo federal (desde que ela fosse devidamente testada e aprovada) e já apontava a direção: ela seria a vacina do Brasil, não de um estado específico.
Bolsonaro não gostou. Para negar qualquer holofote a um possível futuro rival, ele prefere deixar a pandemia correr solta.
Apoiadores de Bolsonaro atacam o governo de São Paulo por não ter aguardado a autorização da Anvisa antes de colocar prazos em seu plano de vacinação.
Ora, se se pautasse pela lerdeza proposta pelos críticos —fizesse, em suma, como o governo federal— o governo de São Paulo estaria traindo a população. É preciso que tudo já esteja pronto e planejado para quando a Anvisa finalmente liberar a aplicação. Se deixar as providências para depois, aí é que não teremos vacina tão cedo.
Em um texto particularmente alucinado, o assessor internacional de Bolsonaro, Filipe Martins, disse que os atos de Doria o alinham à "tirania global". Ter um plano para vacinar a população (inclusive pessoas de outros estados) e comprar doses da vacina. Que tirania terrível!
Só não é tão terrível quanto a omissão criminosa de Bolsonaro. Não tem plano de vacinação estruturado, não comprou os insumos para vacinar a população, não tem doses de vacina em quantidade.
Segundo informações da BBC, as compras de seringas, algodão e outros insumos já estão atrasadas. Mesmo que a licitação seja concluída ainda em dezembro, serão de 60 a 90 dias até que a compra seja entregue. Ou seja, perder-se-ão dias valiosos.
Todo mundo é político: Doria não menos que Bolsonaro. O grande teste é até onde se está disposto a sacrificar outros valores em nome do ganho político. Para um líder comprometido com o bem comum, haverá certas coisas que ele não estará disposto a fazer para ganhar mais poder. Para um projeto tirânico, não há limite: vale tudo para abocanhar uma fatia maior ou para prejudicar um adversário, o que dá no mesmo.
Agora a bola está com a Anvisa. Não acredito que ela seria capaz do crime de atrasar propositalmente a certificação de uma vacina apenas para agradar ao chefe do Executivo.
Graças a legislação aprovada pelo próprio Bolsonaro no início da pandemia, no entanto, já existem caminhos legais para aplicar a vacina em caráter emergencial caso a Anvisa demore.
Para os torcedores do presidente, cabe indagar: vale a pena —até mesmo do ponto de vista político— comprar essa briga e tentar barrar na Justiça uma vacina que pode salvar milhões? Eu já não duvido de nada. Esperar conduta digna e racional virou utopia.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Marco Aurélio Nogueira: O Supremo, o Congresso, a vacina
A politização da vacinação é criminosa, porque afeta a saúde da população e compromete o futuro
Passada uma semana do encerramento das eleições municipais, quando ainda se faz o balanço dos recados das urnas, a agenda política ficou concentrada na possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A questão, devidamente “judicializada”, foi resolvido pelos ministros togados do STF, que por 6 votos a 5 mantiveram a cláusula constitucional e afastaram de si o cálice do casuísmo.
Abriu-se então, a todo vapor, as negociações congressuais para definir quem substituirá Rodrigo Maria e Davi Alcolumbre.
Este foi o cenário que flutuou na superfície, importante mas não tão decisivo. Por sobre ele, afirmou-se questão mais grave, de claro caráter estratégico e enorme dramaticidade, dado que afeta diretamente a saúde da população e terminará por envolver tanto o Supremo quanto o Congresso, além dos governos estaduais e de seu relacionamento institucional com Brasília.
A vacina e a vacinação contra o COVID-19 saiu das sombras da politização para ganhar extrema visibilidade, expondo, à luz do dia, o despreparo nacional para enfrentar a pandemia. Ao passo que muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento cuidaram de comprar doses das vacinas já aprovadas (Pfizer e Moderna), o Brasil ficou a ver navios, pendurado na cegueira do Ministério da Saúde e de seu ministro, que pouco faz além de obedecer ao presidente. O risco, agora, é que entremos em 2021 sem vacinas em tempo hábil para o conjunto da população. Há notícias, também, de que faltam insumos para a vacinação, como seringas, freezer e algodão. Ou seja, o básico.
Não há logística que possa resolver isso no curto prazo. O tempo perdido será um tempo de mais vidas perdidas. O cenário que se anuncia é da adoção plena da descentralização (federativa?): cada estado da União resolve o problema do seu jeito e conforme suas possibilidades, ou apelando para os russos da Sputnik, ou adquirindo algumas doses da produção da Coronavac em produção no Instituto Butantã, ou mesmo buscando quem a tenha para vender no mercado internacional.
O governador de São Paulo, João Doria, está atento a tudo isso. Ao mesmo tempo em que negocia politicamente o recurso de valor que detém, procura fazer o que se espera e batalha para começar a vacinação em 25 de janeiro, caso tudo seja aprovado pela ANVISA – o órgão regulador que entrou de gaiato no navio e se deixou capturar pelos conflitos políticos.
O desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 é uma batalha tecnocientífica. O circuito organizado por cientistas de vários países conseguiu a proeza de produzir alguns imunizantes que estão a indicar alto grau de eficácia e segurança. Grandes farmacêuticas disputam entre si para ver quem venderá mais e melhor seus produtos, mas todas trabalham com critério e foco na saúde pública. Seguem parâmetros médicos rigorosos, como sempre ocorreu com toda tentativa de imunização. Dada a agressividade da pandemia, a pesquisa se acelerou extraordinariamente e tudo indica que no início do próximo ano haja boa oferta de vacinas confiáveis e eficientes.
O problema é que o mundo está contaminado por negacionistas, pessoas que recusam a ciência e desconfiam da medicina. No Brasil, o próprio governo federal se mostra hostil à imunização, seja porque rejeita a gravidade da doença, seja porque a associa a planos “imperialistas” da China, seja porque não aceita que a primazia pela “vacina nacional” seja de João Doria. Manipula a dimensão sanitária do problema, gerando com isso reações em cadeia de governadores estaduais e da opinião pública.
A politização das vacinas foi posta na mesa. Vergonhosamente. Ela é criminosa, porque afeta a saúde da população e dificulta ainda mais a imunização. Uma de suas faces mais trágicas diz respeito a definir se a vacinação será ou não “obrigatória”. Os negacionistas alegam que ninguém pode ser obrigado a tomar um remédio e não consideram que, numa pandemia, cada indivíduo se converte em um vetor de transmissão viral: a imunização de um beneficia a todos. As besteiras que vem sendo espalhadas nas redes – que vão da convicção de que as vacinas são ineficazes à afirmação de que agem para modificar a estrutura genética e o DNA das pessoas – fazem corar de vergonha qualquer bom estudante do ensino médio e qualquer cidadão de bom senso.
Com tamanha falta de coordenação, duas coisas poderão acontecer. Uma é a desmoralização do presidente da República. Outra, o relaxamento ainda maior da população quando souber da disponibilidade da vacina e achar que depois dela nenhum outro cuidado sanitário precisará ser tomado.
A disputa para saber qual vacina será mais eficaz – se a “chinesa” patrocinada pelo governador de São Paulo, se a que está sendo endossada pelo Ministério da Saúde e pelos organismos federais, se alguma outra que será comprada a toque de caixa – é mesquinha e patética. Ela expressa a falta que fazem um bom planejamento, o respeito aos especialistas, a valorização do SUS, a capacidade política de articulação e comunicação do governo federal.
Não temos nada disso no País. O despreparo governamental é acachapante, desastroso. O resultado é que a população não sabe para onde caminhar e a quem seguir, se haverá ou não vacinas disponíveis, se elas serão efetivamente distribuídas e disponibilizadas, se as informações em circulação são ou não confiáveis.
Menos mal que São Paulo parece disposto a seguir em frente, convencido da eficácia e da segurança da vacina “chinesa”.
Pesquisadores do mundo todo, incluídos os brasileiros, têm insistido na ideia de que não há vacinas “nacionais”, mas vacinas que funcionam. Quanto mais variantes delas existirem, melhor.
É uma mensagem importante, que, no entanto, não chega à população brasileira com a velocidade e o rigor que seriam necessários.
Eliane Catanhêde: Seringas vazias?
Risco de aparelhamento de Saúde e Anvisa é o Brasil e você, brasileiro, ficarem sem vacina
Depois de duas semanas de férias, a coluna volta com uma dúvida: os generais Mourão, Fernando, Heleno, Braga Netto, Ramos e Pujol vão permitir que o presidente Jair Bolsonaro aparelhe a Anvisa e deixe o Brasil ser pego de calças curtas e seringas vazias? E que você, brasileiro, não seja vacinado?
Mesmo bolsonaristas renitentes, que negam a realidade e se recusam a ver o que está acontecendo, começam a se preocupar. Bolsonaro chegaria a tanto? Como ele ultrapassa todos os limites, o tempo todo, a resposta é preocupante: sim, e ele já se mostrou capaz de priorizar suas guerrinhas políticas em detrimento da vacina.
Uma coisa é dar de ombros para parceiros internacionais, Amazônia, Cultura, Meio Ambiente, Educação e até mesmo, por incrível que pareça, Saúde. Isso tudo pode parecer “abstrato” e “distante”, acionando o “não tenho nada a ver com isso”. Mas quando se trata de vacinas, é algo objetivo, direto, nem bolsonarista resiste.
É como se Bolsonaro tivesse um prazer mórbido de confrontar, chocar, sempre testando limites. Como tudo na vida tem limite, ele precisa desesperadamente manter o apoio do Centrão e tirar do deputado Rodrigo Maia (DEM) o controle da Câmara e, particularmente, das dezenas de pedidos de abertura de impeachment. De tanto esticar a corda, um dia ela arrebenta. E a vacina contra a covid-19 pode ser o “turning point”.
Até por isso as instituições precisam estar devidamente sólidas, confiáveis, e foi um erro imperdoável do Supremo aventurar-se pelo terreno pantanoso da reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Que Davi Alcolumbre se prestasse a esse papel, tudo bem, está do tamanho dele. Mas Rodrigo Maia lavar as mãos? E ministros do Supremo taparem os olhos (e o nariz) para jogar no lixo o texto constitucional?
O Supremo tem sido fundamental na defesa da democracia e contra golpistas de Executivo, Legislativo, empresariado, blogosfera. Foi graças à firmeza pessoal e jurídica de um Celso de Mello, um Alexandre de Moraes, que essa gente se recolheu. Ninguém mais vê manifestações contra Congresso e STF, muito menos o presidente atiçando a turba com o Quartel General do Exército ao fundo ou sobrevoando essas aglomerações com o ministro da Defesa, de helicóptero.
Logo, os 11 ministros do Supremo têm que se preservar, de manter a credibilidade da instituição garantidora, por excelência, do Estado Democrático de Direito. Não podem repetir Bolsonaro e priorizar seus próprios achismos e fingir que a Constituição (secundada pelos regimentos internos) não diz o que diz: que é vedada a reeleição para as presidências do Congresso na mesma Legislatura. É grosseiro, não faz jus à inteligência, à responsabilidade e ao compromisso do nosso Supremo com o nosso País.
Sim, Rodrigo Maia cumpre um papel importante, em alguns momentos decisivo, ao botar o pé na porta e estabelecer limites às insanidades e arroubos do presidente, mas não é recorrendo a expedientes também golpistas para lhe dar um novo mandato ilegal que Judiciário e Legislativo terão legitimidade para manter a democracia e o equilíbrio institucional.
O Brasil precisa de Supremo e Congresso fortes, para exigir democracia e defender princípios, avanços, leis e, agora, o acesso da população às vacinas, com planejamento e campanha impecáveis de imunização. Mas, se as instituições aderem a jeitinhos mequetrefes, acabam se embolando com Bolsonaro. Não sobra nada. Ainda mais se as Forças Armadas fecharem bocas, olhos e ouvidos e se tornarem coniventes com ameaças à independência da Anvisa e à segurança dos milhões de brasileiros. Calma, gente! Há que manter a compostura.
Ruy Castro: Os médicos sobre Bolsonaro
Ninguém mais autorizado a julgar o papel dele na pandemia
Dos 57,8 milhões de votos despejados em Jair Bolsonaro em 2018 pelos brasileiros que queriam se livrar do PT, milhares terão sido de médicos, dos estudantes de medicina e de toda espécie de profissionais da saúde, de cientistas recordistas em Ph.D ao mais humilde servente de um hospital. Ninguém, claro, poderia adivinhar que, em um ano e meio, o mundo seria varrido por uma pandemia. Mas, sendo médicos, nenhum terá suspeitado de que estavam elegendo um demente?
Eu me pergunto se, hoje, heróis da linha de frente contra a Covid-19, algum deles tem dúvida. Mais do que todos, eles sabem que, no governo, está alguém que, entre o vírus e o povo, escolheu ficar a favor da morte.
Bolsonaro negou a gravidade do problema, insultou os coveiros, promoveu aglomerações e espalhou desinformação sobre o distanciamento, a higienização e o uso da máscara. Jogou com a vida dos que acreditaram num remédio inócuo, a cloroquina, e nisso comprometeu o Exército e o SUS. Desmoralizou os médicos ministros da Saúde e trocou-os por um general da ativa incapaz de distinguir entre um vírus e um piolho, mas disposto a cuspir na própria farda para servi-lo.
O dito general da passiva mentiu sobre o número de casos, ignorou medidas que permitiriam seguir a evolução da doença e deixou mofar milhões de testes que ajudariam a salvar vidas. Quanto a Bolsonaro, depois de chamar nossos mortos de maricas e atribuir poderes políticos às vacinas, dedica-se agora, negando uma cultura de 100 anos, a minar a confiança nelas. Por ele, a pandemia nunca será superada.
Seria urgente saber o que a comunidade médica, por seus conselhos, institutos e organizações, tem a dizer sobre Bolsonaro nessa tragédia. Ninguém mais autorizado do que ela a calcular quantos, entre os até agora mais de 175 mil brasileiros mortos pela Covid, caíram pela ação ou inação do homem que vários de seus membros ajudaram a eleger.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Janio de Freitas: Mais do que notícias da traição
Bolsonaro e seus generais seguiram o ídolo Trump na pandemia do coronavírus
Os mortos por Covid-19 nos Estados Unidos de Trump já equivalem aos americanos mortos em cinco guerras do Vietnã.
Os 58 mil do número oficial de americanos mortos na guerra iniciada pelo democrata John Kennedy multiplicam-se por cinco com a recusa de Donald Trump a combater a contaminação. A “America great again”, que o impulsionou à Casa Branca, a cada dia fica menor também em vidas.
Mas nada acontecerá a esse genocida, como nada aconteceu aos genocidas das bombas de napalm, com gelatinas em chamas pegajosas nos corpos, lançadas sobre as populações civis: um milhão de mortos, na estimativa autocomplacente dos americanos, e perto de três milhões para centros de estudo da guerra.
Jair Bolsonaro e seus generais seguiram o ídolo, com primarismo ainda maior. Até hoje inexiste um plano de orientação nacional, ficando os estados entregues às ações e inações, precariedades e perplexidades de cada um.
Repete-se o descaso deliberado quando o novo ataque do vírus alcança proporções alarmantes, seja ou não uma segunda onda, discussão ociosa.
Os jornais se deram um prêmio, pelo empenho noticioso apesar dos riscos e grandes dificuldades operacionais dos jornalistas sob a pandemia. Ali atrás, a expressão “empenho noticioso” não pôde acompanhar-se de alusão a outra responsabilidade que os leitores e espectadores tinham o direito de esperar. Aquela que consiste na função social de que os próprios órgãos de comunicação se declaram portadores.
O governo foi noticiado na traição às suas obrigações constitucionais, morais e humanitárias, mas não cobrado à altura, nem mesmo incomodado, para cumpri-las por necessidade vital da população.
Os brasileiros têm o direito e a premência de não estarem sujeitos à incompetência e ao servilismo de alguém que passa por ministro da Saúde ou por presidente. Mas que, na verdade, é uma ameaça idêntica ao vírus.
Sem transbordar do jornalismo, antes pelos meios legais de que dispõem, aos órgãos de comunicação cabia agir para compelir o governo a sanar sua traição aos deveres que, como princípio, o justificam.
A ferocidade do vírus e a traição do governo confraternizam-se outra vez. Noticiadas, só.
NAS SOMBRAS
A perda crescente de representatividade de quase todos os partidos leva muito eleitor a decidir o voto sem se importar com a sigla. Isso reduz o poder sinalizador das eleições municipais com vista à presidencial. A abstenção muito alta, não só por efeito da pandemia, impôs redução ainda maior da capacidade sugestiva das eleições recentes.
Afora o óbvio, o que sobrou nos resultados para as análises não provocou extravagâncias nem captações com maior ossatura. Toda a situação é muito instável. A pandemia e sua vacina, as consequências possíveis da vitória de Biden, o esperado agravamento da situação econômica brasileira em 2021, a suspensão ou redução da ajuda em massa —qualquer desses fatores pode influir muito mais, e já em futuro próximo, do que as perspectivas atribuídas ao resultado eleitoral recente.
DE IGUAL VALOR
A empresa de que Sergio Moro se torna sócio e diretor, não por acaso, é americana. O que é um dado interessante. Essas chamadas consultorias internacionais são grandes repositórios de informação captada em empresas nacionais importantes, as quais têm a vida ligada às circunstâncias e propensões políticas, como de relações externas.
Associar-se a uma empresa internacional de porte exige, em condições normais de ambas as partes, investimento relevante. É um aspecto obscuro, mas atraente, na condição desse ex-juiz se ligar à defesa dos interesses das empreiteiras e empresário de que foi, a um só tempo, algoz negociador de benefícios.
Sergio Moro fez bem em deixar a magistratura. Como disse sua mulher, Rosangela Moro, quando soltava rojões para festejar “o mito”, “Sergio Moro e Jair Bolsonaro são uma coisa só”.
Ascânio Seleme: Crime sem perdão contra os brasileiros
Muitas das dezenas de milhares de mortes que vão ocorrer nos primeiros meses do ano que vem devem ser atribuídas às estúpidas diretrizes políticas de Bolsonaro
Morrerão 44.545 brasileiros de Covid nos meses de janeiro e fevereiro do ano que vem, mantida a média atual de 775 óbitos registrados em 24 horas. Muitas destas pessoas poderiam ser salvas se o governo de Jair Bolsonaro não fosse negacionista e, por consequência, deliberadamente ineficiente. O Ministério da Saúde anunciou que vai iniciar a vacinação no Brasil apenas em março, acrescentando que somente um terço dos brasileiros serão imunizados em 2021. Além disso, descartou três das quatro vacinas que foram testadas no Brasil.
Difícil dizer quantas exatamente, mas muitas das dezenas de milhares de mortes que vão ocorrer nos primeiros meses do ano que vem devem ser atribuídas às estúpidas diretrizes políticas de Bolsonaro, obedecidas cegamente pelo imprevidente ministro Eduardo Pazuello. Se a vacinação começar na verdade somente no final de março ou no início de abril, como informam fontes do Ministério da Saúde, o número de mortos até que se comece o processo de imunização vai passar dos 65 mil. O lamentável é que o mais provável seja mesmo o pior cenário, dada a estupenda inoperância governamental.
A Inglaterra começa a vacinação muito provavelmente antes do Natal. Outros países europeus iniciam o processo massivo de imunização na primeira semana de janeiro. Na Argentina, do “inimigo” Alberto Fernández, a vacinação começa na primeira quinzena de janeiro. Também México, Chile, Peru e Costa Rica, para ficar apenas aqui na nossa região, começam a vacinar suas populações entre o fim de dezembro e o início de janeiro de 2021. Todos estes países compraram a vacina do laboratório Pfizer, que o governo brasileiro se recusa a considerar alegando que a estocagem a temperaturas muito baixas é complicada. No Equador deve ser mais complicado que aqui, mas lá também as vacinas da Pfizer começarão a ser administradas em janeiro.
Além do negacionismo declarado de Jair Bolsonaro, seus subalternos dobram-se à sua orientação ou são demitidos, como foram Luiz Mandetta e Nelson Teich. Por isso, o ministro Pazuello, um general que temporariamente tirou a farda mas jamais conseguirá vestir um avental, fala e faz apenas o que seu chefe mandar. “Obedece quem tem juízo”, disse o desajuizado general que, indo pela cabeça do presidente, trabalha contra os interesses do seu ministério, contra a saúde pública, o que é crime. Na Anvisa, o presidente é outro militar, o almirante Antônio Barra Torres, que também bate continência para qualquer barbaridade que o capitão lhe disser.
Não foi por outra razão que a Anvisa tentou atrasar os testes da CoronaVac em São Paulo, em novembro. Jamais se justificaria a paralisação dos trabalhos em razão do suicídio cometido por uma das pessoas que estavam sendo testadas pelo Instituto Butantan. Mas foi o que a Anvisa fez. No final, foi um vexame protagonizado por um militar e dois subalternos curvados como ele. Na ocasião, o governador de São Paulo identificou corretamente o movimento como uma ação política do Planalto. Mas João Doria tinha desde então o antídoto para o caso de a má vontade da Anvisa perseverar e mais adiante ela se recusar a certificar a vacina, que já está em sua última fase de testes.
Desde meados de novembro, o governador já informava que se três agências estrangeiras do porte da Anvisa liberarem a vacina, ela pode ser usada em qualquer outro país por acordo global aprovado pela OMS. Medicamentos testados pela FDA americana, por exemplo, são importados pelo Brasil com prévia anuência da Anvisa, mesmo sem testagens ou estudos adicionais. Por isso, São Paulo vai ignorar a orientação do governo e iniciar a vacinação com a CoronaVac no estado ainda em janeiro, desafiou Doria na quinta-feira.
O problema é que Bolsonaro é um estorvo. Ele fará o que for preciso para sabotar a vacina de São Paulo, que terá 40 milhões de doses prontas para serem administradas até o dia 15 de janeiro. Evitar que São Paulo saia na frente é tudo o que o presidente negacionista mais deseja. Não estranhem se ele mandar a Polícia Federal ocupar o Instituto Butantan para impedir a produção ou a distribuição das vacinas. Seria um absurdo, claro. Bolsonaro não deve ser tão alucinado assim. O resultado seria catastrófico, e o crime imperdoável já cometido se agravaria e se tornaria doloso.
Seringas
Fabricantes dizem que vão precisar de sete meses para entregar as 200 milhões de seringas necessárias para imunizar os brasileiros. Fala sério. Aumentem a linha de produção em quatro turnos, façam novas fábricas, adaptem outras. Estamos em guerra. Logo depois do ataque japonês a Pearl Harbor, o presidente Franklin Roosevelt mandou que a indústria americana produzisse, em dois anos, 185 mil aviões, 120 mil tanques, 55 milhões de canhões antiaéreos e 18 milhões de toneladas de navios. Tudo foi produzido no prazo dado. Agora, claro, no caso das seringas é preciso haver a ordem, que até agora não foi dada pelo inoperante governo brasileiro.
Revalidando remédios
Um trabalho publicado em 2003 pela Escola de Medicina de Harvard informa que 90% dos remédios continuam sendo eficientes mesmo 15 anos depois de expiradas suas datas de validade. A questão virou assunto no Brasil quando descobriu-se que seis milhões de doses do teste para coronavírus, que foram abandonadas pelo ineficiente Ministério da Saúde em um galpão de São Paulo, têm data de validade até janeiro do ano que vem. Segundo a FDA, a seríssima similar da Anvisa nos EUA, excluídos o trinitrato de glicerina, a insulina e os antibióticos líquidos, a maioria dos medicamentos duram muito, mas muito mais do que estabelecido pelos laboratórios fabricantes.
Simplíssimo
O inacreditável presidente do Brasil produziu outra de suas costumeiras asneiras esta semana. Numa entrevista na terça explicou por que ainda não cumprimentou o presidente eleito dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden. “Teve muita fraude lá”, explicou o simplíssimo do alto da sabedoria que subtraiu do extraordinário ministro Ernesto Araújo.
Campeão de rachadinhas
O candidato de Bolsonaro para presidir a Câmara, deputado Arthur Lira, é um velho conhecido da Justiça. O indigitado é réu em processos por desvios de recursos públicos e enriquecimento ilícito, foi denunciado por lavagem de dinheiro na Lava-Jato e responde a ação no Supremo por violência doméstica. Não bastasse isso, o “Estadão” publicou na quinta-feira matéria do repórter Breno Pires relatando desvios de mais de R$ 1 milhão dos contracheques de funcionários do gabinete de Lira em Alagoas. Trata-se de um campeão de falcatruas no estado, o que não é pouca coisa em se tratando da terra de Fernando Collor e Renan Calheiros. Mas o deputado pode ficar tranquilo, Bolsonaro já mandou avisar que sua família considera que denúncias de rachadinha são sacanagem da imprensa. Sua excelência anunciou ainda que vai criar ministérios para trocar por votos em favor de Lira.
FLA incompetente
Era mito, era miragem, a famosa competência da diretoria do Flamengo. Em 2019, ao ganhar quase tudo, criou-se uma aura de infalibilidade em torno dos cartolas rubro-negros. Mas, bastou Jesus, Rafinha e Mari saírem para a verdade vir à tona. As contratações dos substitutos e reforços foram todas erradas. Na área administrativa, o novo departamento médico do clube fracassou. Além disso, os dirigentes do Flamengo flertaram com Bolsonaro e fizeram pouco caso do coronavírus. Foi um horror. Mas antes da casa cair, um deles acabou eleito vereador. Se depender do torcedor, terá um mandato só.
26 dias
Este é o prazo que falta para a gente não precisar mais falar ou pensar no bispo Marcelo Crivella. O carioca deve se sentir aliviado, como se acordasse de um pesadelo. Ou como se estivesse se levantando da cadeira do dentista depois de um demorado tratamento de canal. Isso não quer dizer que o Rio agora vai automaticamente voltar a dar certo. O voto de confiança que o carioca deu a Eduardo Paes foi carregado de cobranças. O prefeito eleito terá de comprovar sua capacidade de gerir situações emergenciais. O jovem secretariado indicado tem tudo para funcionar bem, mas não custa lembrar que 2021 não vem com a dinheirama pré-olímpica. De todo modo, só não precisar mais ouvir aquela vozinha de pastor de Crivella já é um ganho.
Banalidade
São cada vez mais corriqueiros os ataques armados em pequenas cidades brasileiras, como os de Criciúma e Cametá. Nenhuma dúvida, a violência no interior não tem mais medida, embora não surpreenda tanto os moradores das grandes cidades. No Rio, aqueles ataques foram comparados aos que sofremos cotidianamente por aqui. Foi Antonio Tabet quem notou primeiro: “A madrugada em Criciúma foi o que os cariocas chamam carinhosamente de quarta-feira à tarde na Tijuca”.
Herança
Na cidade maravilhosa, aliás, o tráfico segue os passos da milícia e do bicho e também começa a se transformar em capitanias hereditárias. Julia Fernandes, a filha do traficante Elias Maluco, foi presa quarta-feira pela Polícia Civil no estouro de uma boca de fumo. Outro filho do traficante, Diego Pereira da Silva, o Maluquinho, comandava o tráfico na favela do Dique, em Vigário Geral, até ser preso em fevereiro deste ano. Parece que outros filhotes do assassino de Tim Lopes já assumiram o lugar dos irmãos presos.