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Folha de S. Paulo: Maioria isenta Bolsonaro por mortes na pandemia, aponta Datafolha

Para 42% dos brasileiros, no entanto, condução da pandemia pelo presidente é ruim ou péssima

Thiago Amâncio, Folha de S. Paulo

As mais de 181 mil mortes registradas no Brasil pela Covid-19 não podem ser colocadas na conta do presidente da República, Jair Bolsonaro, na avaliação da maioria dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha.

Para 52% dos entrevistados, Bolsonaro não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pelo novo coronavírus no Brasil. Outros 38% disseram crer que o presidente é um dos culpados, mas não o principal, e 8% afirmaram que ele é o principal culpado pelas mortes.

Em diversas ocasiões o presidente da República menosprezou a gravidade da pandemia da Covid-19, que já matou mais de 1,6 milhão de pessoas em todo o mundo.

A declaração mais famosa foi de que a doença seria apenas uma “gripezinha”, mas Bolsonaro acumulou outras pérolas, ao dizer, por exemplo, “e daí?” ou “eu não sou coveiro”, ao ser questionado sobre número de mortes.

Mais recentemente, chegou a dizer que o Brasil deveria “deixar de ser um país de maricas” e, apesar da nova alta de número de casos, disse que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”.

Mesmo assim, cresceu a parcela da população que isenta o presidente: eram 47% os que diziam que ele não tinha culpa nenhuma em pesquisa feita pelo Datafolha em agosto.

Embora a maioria da população isente Bolsonaro da responsabilidade pelas mortes, isso não quer dizer que o desempenho do chefe do Executivo é bem avaliado pela população brasileira.

Dos entrevistados, 42% avaliam como ruim ou péssima a atuação de Bolsonaro em relação à pandemia. Já 27% veem as ações do presidente como regulares, e 30% avaliam como ótimas ou boas.

Mulheres tendem a avaliar o desempenho do presidente na pandemia pior do que homens (47% delas consideram ruim ou péssimo, contra 35% deles), e há diferença grande entre mais ricos (55% avaliam mal) e escolarizados (57%), além de quem vive nas grandes cidades (onde 49% avaliam mal as ações do presidente, contra 36% no interior).

A maior parte dos entrevistados (53%) disse acreditar que o Brasil não fez o que era preciso para evitar as mais de 181 mil mortes pela Covid-19, enquanto se dividem igualmente o restante que pensa que nada que o país fizesse evitaria esse número (22%) e os que pensam que o Brasil tomou as atitudes necessárias para evitá-lo (22%).

A pesquisa Datafolha mostra também que está em baixa a avaliação do desempenho do Ministério da Saúde na condução da pandemia.

Hoje, 35% consideram o desempenho da pasta como ótimo ou bom. Esse número chegou a 76% em 3 de abril, quando o ministério era chefiado por Luiz Henrique Mandetta (DEM), médico e deputado federal que se contrapunha ao presidente ao defender medidas de distanciamento social e concedia entrevistas diariamente para divulgar dados e ações do governo.

Após uma série de atritos com Bolsonaro, que negava a gravidade da doença e que fez aparições públicas que provocavam aglomerações, Mandetta foi demitido em 16 de abril.

Assumiu, em seu lugar, outro médico, Nelson Teich. Datafolha de 27 de abril mostrava que 55% das pessoas avaliavam como bom ou ótimo o desempenho do Ministério da Saúde na época.

Menos de um mês após assumir o cargo, no meio de maio, Teich também deixou a pasta, após embates com o presidente, que queria incluir a recomendação da cloroquina para pacientes infectados com o vírus mesmo sem evidência científica da eficácia do medicamento.

Em seu lugar ficou, a princípio interinamente e depois efetivado, o secretário executivo da pasta, o general Eduardo Pazuello, sem formação médica e muito próximo do presidente. Sob a gestão do militar, a avaliação do desempenho do ministério da Saúde continuou em queda.

Pazuello tem protagonizado uma disputa com o governo de São Paulo, que anunciou importaçãoprodução e administração de vacinas contra a Covid-19 de forma independente do governo federal.

O ministro tem se contraposto ao governador João Doria (PSDB), que antagoniza com Bolsonaro e usa o plano de vacinação como principal arma política para uma candidatura à Presidência em 2022.

Pazuello ainda não apresentou à população um plano de vacinação, embora a imunização já tenha começado no Reino Unido e esteja prestes a iniciar nos Estados Unidos.

Em resposta a ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal cobrando um plano federal, Pazuello encaminhou um documento à corte que não prevê data e estima vacinar apenas um terço do necessário. Enquanto o tribunal tornava público o documento, no sábado (12), o ministro tirou parte do dia para almoçar com o cantor sertanejo Zezé Di Camargo.

Após a divulgação do documento, pesquisadores que constam como autores do plano afirmaram que nem sequer chegaram a ver o texto.

O Datafolha mostra ainda que a avaliação que a população faz da atuação dos governadores é melhor que a do presidente —41% dos entrevistados considera o desempenho frente a pandemia como bom ou ótimo, e 30% considera ruim ou péssimo.

É no Sudeste onde a população avalia pior o governante —35% considera o desempenho do mandatário estadual durante a pandemia ótimo ou bom, enquanto 36% o considera ruim ou péssimo, e 29% diz ser regular. Já na região Sul, 52% consideram o desempenho do governador bom ou ótimo, enquanto apenas 19% o avaliam mal.

Por fim, o Datafolha também perguntou aos entrevistados sobre como veem o desempenho dos prefeitos de suas cidades na condução da pandemia: aprovados por 42% e reprovados por 30%.

A pesquisa Datafolha foi feita entre 8 e 10 de dezembro com 2.016 brasileiros adultos em todas as regiões e estados do país, por telefone, com ligações para aparelhos celulares (usados por 90% da população). A margem de erro é de dois pontos percentuais.


Elio Gaspari: A Chernobyl pessoal de Bolsonaro

A pandemia já matou no Brasil três vezes mais gente que a radiação liberada pela explosão do reator nuclear de Chernobyl, da União Soviética, desde 1986. Segundo um artigo do “International Journal of Cancer”, as mortes ficaram entre 30 mil e 60 mil

Em abril, o general Luiz Eduardo Ramos disse o seguinte:

“No jornal da manhã, é caixão, corpo; na hora do almoço, é caixão novamente. No jornal da noite, é caixão, corpo e número de mortos. (…) Não tá ajudando. Ninguém aqui está dizendo que tem que esconder. Os senhores (jornalistas) têm que também… Eu conclamo e peço encarecidamente, tem tanta coisa positiva acontecendo”.

Naquele dia, a Covid havia matado 165 pessoas, e o total dos caixões já passava de 20 mil. Notícia boa, se houvesse, deveria ser procurada na patética reunião ministerial daquele mesmo dia, durante a qual Jair Bolsonaro emparedou Sergio Moro, o ministro da Educação propôs a prisão dos “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal, e o da Economia sugeriu o retorno da jogatina de grife.

Ramos falou com a alma. Ele realmente acreditava que as sepulturas incomodavam, mas acreditava também que com menos imagens de caixões mudava-se a natureza do problema. Passaram-se oito meses, e as imagens são outras. Pessoas sendo vacinadas na Inglaterra, e governos anunciando o início de programas de imunização para as próximas semanas. No Brasil, só caixões, brigas e o general-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, atarantado.

A pandemia já matou no Brasil três vezes mais gente que a radiação liberada pela explosão do reator nuclear de Chernobyl, da União Soviética, desde 1986. Segundo um artigo do “International Journal of Cancer”, as mortes ficaram entre 30 mil e 60 mil.

Apesar das enormes diferenças entre as duas tragédias, a conduta pessoal do capitão Bolsonaro e dos generais Ramos e Pazuello diante do coronavírus guarda uma triste semelhança com a reação dos comissários soviéticos em Chernobyl.

A explosão ocorreu na madrugada de 26 de abril de 1986. Quando o chefe da Defesa Civil da usina mostrou ao diretor que a radiação chegara a níveis intoleráveis, o burocrata expulsou-o da sala: “Seu medidor está quebrado”. Pela manhã, o vice-presidente do conselho de ministros disse que religaria o reator, e o ministro da energia da Ucrânia explicou-lhe:

— Não existe mais reator.

— Você é um alarmista — respondeu o comissário.

“Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”, disse Bolsonaro, em março, quando 165 pessoas já haviam morrido. Dias antes, ele dissera que a pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde “não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.

O negacionismo seguiu cursos diferentes na fase seguinte, ambos estimulando a inércia. Em Chernobyl, quando o chefe da Defesa Civil mencionou a necessidade de evacuar a população da cidade, um comissário da região foi breve: “Sente-se. Isso não é da sua conta”. O Ministério da Saúde concordava com ele.

Em Pindorama, Bolsonaro chamou os governadores que defendiam o isolamento social de “destruidores de empregos”, e o general Pazuello ainda acha que não se deve falar nisso.

A cidade próxima ao reator Chernobyl só foi evacuada no dia seguinte. Trinta e seis horas depois da explosão não haviam sido disparadas as medidas previstas nos protocolos da Defesa Civil. Vídeos mostram cenas de um casamento e de vida normal em vários lugares.

Quando Bolsonaro falava em gripezinha, o presidente mexicano, Manuel López Obrador, dizia que a Covid “não equivalia a uma gripe”, e o primeiro ministro inglês, Boris Johnson, desdenhava o perigo. Johnson foi parar numa UTI, abandonou o negacionismo e pediu desculpas por ter dado informações erradas. Obrador orgulhosamente anunciou seu plano de imunização dos mexicanos, começando neste mês pelos profissionais de saúde.

Como os burocratas soviéticos, Johnson e Obrador pensavam que mandavam e disseram besteiras, mas corrigiram-se. Bolsonaro ainda não entendeu o que está acontecendo e continua brincando com os diminutivos.

No dia em que o número de mortos pela “gripezinha” havia chegado a 179 mil, com a média móvel em alta, ele disse que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”.

Seu governinho tem uma dificuldadezinha com a realidade.

Temer no aquecimento

O nome de Michel Temer entrou na roda dos possíveis convidados para um ministério modificado. Ele iria para o Itamaraty, substituindo o cataclísmico Ernesto Araújo.

Um retorno de Temer a Brasília como chanceler seria êxito garantido, porque depois de Araújo qualquer coisa serve. O ex-presidente nunca se meteu em fantasias diplomáticas, teve uma boa relação com Joe Biden e o chinês Xi Jinping. Ambos sabem que o doutor não é pancada.

Biden esteve no Brasil em 2016, como vice-presidente, e reuniu-se com Dilma Rousseff por duas horas. Temer, então vice, foi deixado de fora e, a convite de Biden, visitou os EUA meses depois.

Temer é um pajé do centrão e vem ajudando nas costuras para a presidência do Senado. Quando o governo de Dilma Rousseff começou a fazer água, ela o colocou na coordenação política do Planalto. Temer costurou acordos e foi fritado pelo comissariado petista. Deu no que deu.

À época, ele se queixava de que fazia combinações usando seu crédito e foi deixado ao sol. A prudência recomenda que corte seu cartão caso retorne a Brasília.

BRETAS E NYTHALMAR

Só o juiz Marcelo Bretas sabe quão próximas eram suas relações com o advogado Nythalmar Dias Ferreira. Surfando a onda da Lava-Jato, esse doutor formou um plantel de clientes que foi do ex-deputado Eduardo Cunha ao empresário Fernando Cavendish.

Dependendo da proximidade, Bretas precisará de um bom advogado. Nythalmar é investigado pela Polícia Federal e poderá achar conveniente colaborar com a Viúva.

Não seria desejável que o magistrado deixasse a narrativa em mãos alheias.

FUX NA VACINA

Se Bolsonaro continuar encrencando com a CoronaVac, em janeiro a questão da vacina acabará chegando ao Supremo Tribunal Federal, e os litígios cairão no colo do ministro Luiz Fux, plantonista da Corte durante o recesso.

Fux e sua assessoria já estão estudando o assunto.

CÂMARA

A qualidade da preferência do Planalto na disputa pela presidência da Câmara pode ser avaliada por um fato singelo.

Podendo sinalizar interesse pela candidatura da deputada Tereza Cristina, atual ministra da Agricultura, Bolsonaro deixou a bola passar.

Os De Gaulle e os Kennedy

É excelente a biografia do general Charles De Gaulle (1890-1970) escrita por Julian Jackson.

Ele governou a França por dez anos, até 1969. Tinha uma filha e um filho longe da política.

Outra filha, Anne, nasceu em 1928 com síndrome de Down. Mal enxergava e não falava. De Gaulle nunca se afastou dela, e os dois brincavam por horas.

Já o milionário americano Joseph Kennedy mandou sua filha Rosemary, uma adolescente com distúrbios nervosos, para ser submetida a uma lobotomia. Deu tudo errado.

Anne De Gaulle morreu em 1948. “Agora ela ficou como as outras”, disse De Gaulle. Um ano depois, Rosemary Kennedy foi escondida numa casa de religiosas. Ela sobreviveu aos pais e aos irmãos John e Robert. Morreu em 2005, aos 86 anos.


Bernardo Mello Franco: Um presidente no diminutivo

Em 20 de março, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não estava preocupado com a Covid. O Brasil ainda registrava uma dezena de mortes, mas ele já havia sido alertado sobre a gravidade da doença. “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, tá ok?”, desdenhou.

Nesta quinta-feira, o Capitão Corona disse que o país vive “um finalzinho de pandemia”. Os números oficiais contam outra história. Das 27 unidades da federação, 22 registram alta nas mortes. Mais de 30 mil pessoas estão internadas com o vírus, e ao menos seis capitais já ultrapassam os 90% de lotação nas UTIs.

Entre as duas declarações presidenciais, passaram-se 265 dias e morreram mais de 179 mil brasileiros pela Covid. Confirmou-se o pior cenário projetado no início do ano pelo ministro Luiz Henrique Mandetta. Ele tentou convencer Bolsonaro a levar a pandemia a sério, mas foi demitido porque não se curvou ao negacionismo do chefe.

Bolsonaro escolheu ficar sem ministro da Saúde na maior crise sanitária em um século. Depois da breve passagem de Nelson Teich, entregou a pasta a Eduardo Pazuello, aquele que “nem sabia o que era o SUS”. O general admitiu sua falta de autonomia com a sutileza de um mamute: “Um manda e o outro obedece”. Agora ficou claro que ele ainda não faz ideia de onde pisa.

Na terça-feira, Pazuello disse que a Anvisa levaria 60 dias para autorizar uma vacina. Na quinta, passou a falar em liberação até o fim de dezembro. Na sexta, ameaçou confiscar o imunizante do Instituto Butantan, ligado ao governo paulista. O porta-voz da bravata foi o governador bolsonarista de Goiás, Ronaldo Caiado.

O vaivém mostrou o general como um soldado perdido, à espera de ordens que não chegam. O Planalto não tem um plano contra a Covid. Sua única obsessão é impedir que o tucano João Doria se apresente como vencedor da guerra das vacinas. Se isso resultar em mais mortes, paciência. O presidente só se importa com a própria reeleição.

Desde o início da crise sanitária, o capitão aposta na desinformação para esconder sua incompetência. Ele mentiu ao esconder o potencial do vírus. Agora volta a mentir ao dizer que o perigo passou. As declarações sobre “gripezinha” e “finalzinho de pandemia” expõem Bolsonaro como ele é: um político no diminutivo, que nunca esteve à altura da Presidência.


Marcus Pestana: Bússola, anestesia e imobilismo

Já são 180 mil vidas perdidas para a COVID-19 em terras brasileiras. 2020, o ano que quase não existiu, aproxima-se do final. A genial divisão gregoriana do calendário tem o condão de industrializar a esperança, como decifrou Drummond. Miramos o futuro, enxergamos um novo ano: certamente será melhor. A esperança é o motor do desenvolvimento humano. Mas sabemos que o destino não é roteiro de teatro previamente estabelecido. As circunstâncias históricas impõem limites, mas não somos seres passivos, escravos dos desígnios do inevitável. O futuro depende de nossas escolhas, da bússola que nos orienta, da capacidade de agir e transformar a realidade.

No Brasil, vivemos a segunda onda da pandemia. O número de casos e mortes voltou a crescer. A sólida articulação interfederativa, ponto forte do SUS, foi perdida. O Ministério da Saúde renunciou à coordenação nacional do sistema. O embate com estados e municípios virou uma constante. Até hoje não temos um protocolo clínico nacional. O plano nacional de imunização não veio à tona. A polêmica sobre as vacinas seria cômica se não fosse trágica. E, ao invés de agilizar a importação de seringas, refrigeradores de alta potência e vacinas, o governo zera a alíquota do imposto de importação de pistolas e revólveres.

Além do desafio sanitário, resta o nebuloso cenário social e econômico para 2021. O desemprego bateu acima dos 14% envolvendo 13,5 milhões de brasileiros. Sem falar nos milhões de desalentados. A retomada não será fácil dados o recuo do cenário internacional derivado da segunda onda da pandemia, a fragilidade fiscal brasileira e a volta da ameaça inflacionária.

Também neste front, parece que estamos sem rumo e bússola. A ação da política econômica é errática. Nunca o Ministro Paulo Guedes esteve tão distante do Congresso. O Palácio do Planalto não compra a agenda de mudanças, reformas e ajustes necessários. O Congresso tem produzido importantes mudanças microeconômicas como as votações recentes dos novos marcos regulatórios dos setores de saneamento, gás e petróleo, navegação de cabotagem e da independência do Banco Central. Mas, do ponto de vista das reformas estruturais macroeconômicas estamos devagar quase parando. As reformas tributária, administrativa e a PEC emergencial foram empurradas para 2021, com viés de baixa no grau de mobilização em seu favor. As privatizações descansam em berço esplêndido, paradas. Sequer o Orçamento Geral da União, mais do que nunca necessário para dar transparência no tocante à responsabilidade fiscal, será votado. Estamos qual um pescador tranquilo, otimista e alienado, deitado dormindo em sua jangada em meio a um maremoto.

Boa parte do imobilismo presente se deve ao efeito anestésico do pacote de ampliação de gastos excepcionais para combater os efeitos da pandemia. Ninguém duvida que era necessário. O mundo inteiro fez. Foi hora de todo liberal neoclássico vestir o jaleco keynesiano. Mas a bolha de consumo gerada em 2020 e o aumento de despesas públicas são insustentáveis. Foram bancados com um extraordinário aumento da dívida. Bilhões de reais de despesas presentes a serem pagas pelas gerações futuras.

Tudo o que não precisamos é de uma bússola quebrada, uma anestesia alienante e um imobilismo paquidérmico. Precisamos de clareza, rumo, liderança e ação.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Bolívar Lamounier: Presença do blefe na atualidade política brasileira

O coquetel covid + crise fiscal + desgoverno pode levar o País a um grave retrocesso

Nas condições em que se travou a disputa no segundo turno da eleição presidencial de 2018, era mesmo difícil imaginar que chegaríamos a 2020 com um governo sério e competente.

Agora, porém, somos forçados a admitir que a situação é bem pior que a inicialmente prevista, e não só por causa da pandemia. Os desafios, tanto na área econômica como na sanitária, são aterradores, e não há como conceber um alívio substancial nos próximos meses.

A vitória de Jair Bolsonaro foi a consumação de um blefe meticulosamente construído. Seu programa era um amontoado de metas altissonantes – como convém a um bom blefe –, grudadas entre si pelo visgo da malícia. Naquele amontoado desconexo e irrealista destacava-se a erradicação da “velha” política, ponto que retomarei adiante. Mas o que realmente interessava, naquele momento, era apresentar-se como o polo antipetista, o resto era recheio.

O blefe tem uma longa história na vida política brasileira. Seu marco cronológico clássico foi a eleição de Jânio Quadros em 1960 e sua renúncia em agosto de 1961. A vassoura, marca registrada do personagem que criou, já sugeria a intenção de combater a corrupção e a “velha” política – podendo nesse aspecto ser vista como uma avant-première do bolsonarismo. Mas o melhor estava por vir. Seria a renúncia, em agosto de 1961, comunicada em carta ao Congresso. Jânio imaginou que os parlamentares passariam vários dias discutindo a carta, engalfinhando-se enquanto o País entrava em convulsão. Dessa forma, ele voltaria ao Planalto nos braços do povo, com poderes ampliados. Mas o Congresso não foi na conversa e o homem da vassoura ficou a ver navios.

Em 1963, fazendo das tripas coração para exercer de fato a Presidência, João Goulart oferecia ao Brasil o banquete das “reformas de base”, uma promessa de reformar o Brasil de alto a baixo. Enquanto isso, Leonel Brizola ameaçava o Congresso (“reforma agrária na lei ou na marra”) e fazia soar seu estribilho: “Cunhado não é parente, Brizola para presidente”. Vinte e poucos anos depois seria a vez de José Sarney. Seu Plano Cruzado elevou-o aos píncaros da popularidade e ele optou por ficar lá, em vez de desfazer as ilusões subjacentes ao congelamento de preços e salários. A queda, como se sabe, sempre equivale à altura do galho.

Quem hoje monitora o drama político brasileiro logo percebe que a Bolsonaro só o que interessa é a reeleição em 2022. Seu ministro da Saúde parece um aprendiz de ventríloquo, o da Educação ainda não disse a que veio e o das Relações Exteriores tornou-se um órfão de Donald Trump. Nesse quadro, a pandemia não deixa de ser útil ao presidente, pois disfarça o vazio de seu governo e lhe fornece os adereços de que necessita para se manter visível na cena pública.

Seria tudo muito engraçado se não fosse trágico – a “gripezinha” já se aproxima de 200 mil óbitos – e perigoso, porque o coquetel covid + crise fiscal + desgoverno pode levar o País a um grave retrocesso.

Retrocesso: peço licença para inserir aqui algumas breves considerações sobre essa palavra. O apolitismo brasileiro é de tal ordem que muitos, quiçá a maioria de nossos compatriotas imagina que o regime democrático existe num estado estacionário. Que não vai para a frente nem para trás. Não vai para a frente, segundo o discurso mais batido, porque nenhum político presta. Vai para trás? Talvez, mas, e daí? Para alguns a questão nem faz sentido, pois estão convencidos de que não temos, nunca tivemos e nunca teremos uma “verdadeira” democracia. Outros, só para exercitar um discurso bilioso, e outros falando a sério, apregoam que um retrocesso total seria na verdade a solução, pois qualquer ditadura seria melhor que a contrafação democrática que nos rege. Curiosamente, essa conversa é por sua vez um blefe, pois quem aí se detém nunca dedica sequer meia hora a uma reflexão séria sobre o que está dizendo. A ascensão de Hitler e o massacre de milhões foram a solução para os problemas (cuja gravidade ninguém desconhece) da Alemanha do entreguerras? Sem ir tão longe, Hugo Chávez e Nicolás Maduro livraram a Venezuela de seus difíceis problemas?

De fato, aqueles que não dispõem de meia hora para refletir sobre essas questões não precisam se preocupar com um possível retrocesso. Permito-me, porém, lembrar-lhes que a ditadura benigna com que sonham, ou que se dispõem a tolerar, não pode ser obra de amadores. O antigo molde latino-americano, aquele que conhecemos tão bem, já não basta. Somos um país de 220 milhões de habitantes, com um potencial de conflito gigantesco e até com bandos de cangaceiros high-tech, como os que dias atrás atacaram e aterrorizaram cidades em Santa Catarina, em São Paulo e no Pará. Um regime ferreamente totalitário como o da China? Há quem aprecie.

Seja como for, convençam-se de que nenhuma varinha de condão nos vai tirar do angu em que nos encontramos. Nenhum passe de mágica, nenhum estalar de dedos vai oportunamente nos transportar para o Primeiro Mundo.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Monica de Bolle: As vacinas da desigualdade

Os vulneráveis, os trabalhadores essenciais, as cuidadoras, as pessoas que precisam sair para trabalhar assistirão não apenas ao resto do mundo recebendo os imunizantes, como também a seus conterrâneos abastados sendo inoculados

Desde que soubemos os resultados dos ensaios clínicos em fase III da Pfizer/BioNTech e da Moderna, tenho refletido sobre como as estratégias de imunização em diferentes países podem interagir com as desigualdades existentes, multiplicando-as. São muitos os canais, mas esboçarei aqui os que mais me preocupam.

O primeiro deles é óbvio: as vacinas de última geração, as que utilizam o RNA mensageiro para induzir uma resposta imune, são vacinas relativamente caras, o que significa que países mais pobres dificilmente terão acesso a elas — isso sem considerar os desafios de armazenamento e distribuição associados a essas vacinas. Portanto, é bastante provável, quase certo na verdade, que a população dos países mais ricos tenha mais proteção para a Covid-19 do que a população dos países mais pobres.

Raciocínio semelhante se aplica ao Brasil. O país fez acordo para a produção e distribuição de duas vacinas: a da AstraZeneca/Oxford, em associação com a Fiocruz, e a CoronaVac, parceria da Sinovac com o Butantan. Essas vacinas, entretanto, ainda não têm resultados claros sobre sua eficácia, isto é, sobre o grau de proteção que conferem. A CoronaVac não publicou tais resultados provenientes do ensaio clínico, enquanto a AstraZeneca teve problemas significativos de transparência nos dados e de dosagem durante os ensaios conduzidos no Reino Unido. Os dados de eficácia que juntaram as informações obtidas dos ensaios no Brasil com as do Reino Unido não foram conclusivos a ponto de dar uma boa margem de confiança sobre o grau de proteção.

Diante desses problemas e da constatação de que as campanhas de imunização com as vacinas de última geração estão começando em vários países, o governo brasileiro anunciou a compra de 70 milhões de doses da vacina da Pfizer, que requer cadeias de ultrarrefrigeração para armazenamento. Contudo, apenas 8,5 milhões de doses estarão disponíveis no primeiro semestre, pois o planejamento do Ministério da Saúde foi falho. Como a vacina é dada em duas doses, apenas 4,3 milhões de pessoas receberão a vacina cuja eficácia já é conhecida no primeiro semestre de 2021. Haverá, portanto, racionamento. E não é difícil imaginar que aqueles que receberão as vacinas de ponta serão os mais ricos, não os mais pobres desproporcionalmente afetados pela doença.

Há mais. No dia 1º de dezembro, o governo brasileiro anunciou um “plano” para a campanha de vacinação prevendo tão somente o uso da vacina da AstraZeneca. Como sabemos, a politização da CoronaVac, ou da “vacina chinesa”, chegou às raias do absurdo.

Bolsonaro chegou a dizer que não compraria a CoronaVac, deixando o país praticamente à deriva com apenas uma opção de vacina.

Em nota recente, o Observatório Covid-19, rede da qual faço parte, avaliou o plano do governo brasileiro como um “esboço rudimentar” repleto de falhas e lacunas. Diz a nota: “São marcantes a falta de ambição, de senso de urgência e de comprometimento em oferecer à população brasileira um plano de vacinação competente, factível, que contemple as diversas vacinas em teste no Brasil, com transparência e em articulação com estados e municípios”.

Diante desse quadro, é razoável imaginar que, em algum momento, clínicas e redes privadas façam acordos com os laboratórios responsáveis pelas vacinas de última geração, disponibilizando-as para a população que pode pagar por elas. O restante da população brasileira, os vulneráveis, os trabalhadores essenciais, as cuidadoras, as pessoas que precisam sair para trabalhar, ficarão a ver navios. Essa é a mesma população que hoje não poderá contar com o auxílio emergencial a partir de 1º de janeiro de 2021 e é também a população que depende do SUS. O SUS, por sua vez, ficará sem os recursos de que necessita, porque no dia 1º de janeiro voltará a valer a camisa de força do teto de gastos, já que o Decreto de Calamidade que o suspende também haverá de expirar.

Essas são as pessoas que assistirão não apenas ao resto do mundo recebendo as vacinas, como também a seus conterrâneos abastados sendo inoculados. Nesse cenário, não é difícil imaginar um quadro de convulsão social, aquele que talvez tenhamos conseguido evitar em 2020 a despeito do governo: afinal, não foi Bolsoguedes quem apoiou e fez acontecer o auxílio emergencial.

Vejo poucas pessoas preocupadas com a possibilidade de que a falta de estratégia em relação às vacinas possa ser um multiplicador de desigualdades. É hora de pensar nisso com a devida urgência.

Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Míriam Leitão: Onze pessoas e um destino

Onze integrantes da equipe econômica se reuniram com o presidente da República e tiraram uma foto. Dias atrás. Todos eles sem máscara no meio de uma pandemia. É o retrato de uma equipe que se rendeu ao presidente. Aos seus erros. Economistas sabem ler as curvas de tendências e elas mostram aumento dos casos e das mortes. Economistas também sabem o que é hedge, seguro contra o risco. Os equipamentos de proteção individual têm esse papel. Equipe econômica que acerta é aquela que defende suas convicções contra as conveniências políticas ou os equívocos do chefe do governo.

Os gestos de pessoas públicas induzem comportamentos. O não uso de máscara estimula uma atitude perigosa que tem feito vítimas. Render-se a essa imposição do presidente pode parecer apenas um detalhe, mas representa muito mais. Resume o principal erro desta equipe econômica, que é a rendição incondicional ao presidente. Mesmo quando ele está completamente errado.

Até agora, a equipe não entregou o programa que prometeu e não o fez exatamente pelo mesmo motivo que a leva a não usar a máscara para agradar o presidente. O ministro Paulo Guedes não tem sido capaz de convencer Bolsonaro das etapas indispensáveis do seu programa. Não há nada de liberal no atual governo. Guedes não fez a abertura do comércio, mas aceitou estimular a importação de armas. Não livros, não computadores, nenhum outro bem ficou dispensado de impostos. O comércio livre de tributos ficou apenas para revólveres e pistolas.

Um momento importante que salvou o projeto de consolidação do Plano Real foi quando todos os integrantes da equipe econômica, em 1995, foram ao Palácio do Alvorada à noite avisar que pediriam demissão coletiva caso o presidente Fernando Henrique cedesse no meio da crise bancária. Havia pressão política contra a intervenção no Banco Econômico, vinda de um aliado do presidente, o poderoso Antônio Carlos Magalhães. A bancada da Bahia era grande e havia propostas econômicas importantes dependendo de aprovação. A reunião terminou de madrugada, mas a equipe garantiu a autonomia para fechar o banco e continuar enfrentando a crise.

Bolsonaro já demitiu secretário da Receita, presidente do BNDES, mandou arquivar ideias, desidratou reformas. O país está há nove meses em uma pandemia e a equipe não formulou uma proposta sustentável de ampliação da rede de proteção social, nem uma proposta crível para o futuro das contas públicas. As ideias são bombardeadas pelo presidente, e o ministro as recolhe.

A PEC emergencial atropelou uma proposta maior e melhor feita no legislativo, a do deputado Pedro Paulo. Teve uma tramitação confusa e foi perdendo consistência. Foi misturada a outras duas medidas e o que economizaria bilhões vai na verdade poupar alguns milhões. Se for aprovada. A reforma administrativa foi engavetada por um tempo e depois esvaziada por Bolsonaro. Quando chegou no Congresso era uma sombra da que havia sido concebida.

O ministro Paulo Guedes com uma frequência monótona defende ideias abstratas, em vez de formular propostas concretas. Desiste de projetos, diante da primeira cara feia do presidente. E vive no mesmo estado de negação de Bolsonaro. Primeiro achava que o Brasil não seria atingido pela pandemia, um equívoco de avaliação que atrasou a adoção de medidas. Agora diz que não haverá a segunda onda, quando as curvas de mortes e contaminações já estão subindo. Os bons gestores trabalham com o princípio da precaução. Economistas fazem cenário e se preparam para as contingências.

Essa foto do ministro e seus assessores ao lado de Jair Bolsonaro sem máscaras é um detalhe eloquente. Eles sorriem num país que vive uma tragédia sanitária, que está de novo se agravando, e que não tem um plano de vacinação. É fundamental que o Ministério da Economia se prepare para esse novo agravamento da Covid-19 e que faça tudo o que for da sua alçada para garantir o melhor cenário na economia, que só acontecerá com a vacinação em massa da população brasileira.


Eliane Cantanhêde: 'Finalzinho da pandemia'

São absurdos demais, provocações demais… Alguma Bolsonaro está aprontando

Lá atrás, no início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro tinha um ministro da Saúde competente, informações privilegiadas e todas as condições do mundo para fazer a coisa certa, combater a contaminação do coronavírus e evitar milhões de doentes e milhares de mortes. Bolsonaro, porém, optou por entrar para a história como o presidente que, entre a vida e a morte, ficou com a morte. E, em nenhum momento, reviu, tentou acertar. Começou errado e vai errado até o fim. À custa de vidas.

Entre hoje e amanhã, a realidade confirma a previsão desesperada do então ministro Luiz Henrique Mandetta de 180 mil mortes. E vai aumentar. O número volta ao patamar de 800 a 900 em 24 horas, 21 Estados e DF registram aumento de vítimas e os leitos vão se esgotando na rede pública e privada por toda a parte. Se você for contaminado, o risco é não ter onde cair morto – nem vivo. E vem aí Natal, Ano Novo, festas e viagens.

O erro de Mandetta foi ser realista, transparente, formar uma bela equipe e manter a população bem informada e alerta o tempo todo. Bolsonaro não suportou o sucesso e a popularidade (maior que a dele) do subordinado. Em vez de premiá-lo, demitiu-o. O ciúme e a inveja foram maiores do que a responsabilidade com a população brasileira.

Em vez de Mandetta, Bolsonaro preferiu ouvir ignorantes, negacionistas, terraplanistas, lunáticos que previam no máximo 2.500 mortes, empinavam o nariz para dizer que a covid mataria menos do que a gripe e condenavam isolamento social, máscaras, qualquer cuidado reconhecido pelo mundo inteiro. Mesmo com a confirmação da tragédia, o presidente continuou sempre dobrando a aposta. “E daí?”

Tal qual um tenente abilolado capaz de fazer planos e croquis para explodir quartéis, Jair Bolsonaro não sossegou até nomear um general da ativa sem qualquer brio para fazer tudo o que seu mestre mandar. É para explodir quartel? Exploda-se. Impor cloroquina? Imponha-se. Politizar a vacina? Politize-se. Permitir a morte de milhares? Permita-se. Afinal, “um manda, o outro obedece”.

O Brasil chega ao final de 2020 doente, irritado, estupefato e sem perspectiva, chocando o mundo, enquanto o general-ministro Eduardo Pazuello fala em vacina para março, ou janeiro, ou fevereiro, ou dezembro… E ninguém acredita numa palavra do que ele diz. E que tal ouvir o presidente falar em “finalzinho da pandemia”? Um soco no estômago.

Era uma “gripezinha”, “histeria da mídia”, “e daí?”, “eu não sou coveiro”. Virou aglomeração, manifestação golpista e cloroquina. Enfim, a guerra pessoal contra a “vacina do Dória”, ou “da China”, e agora o delírio de que a pandemia está no “finalzinho” quando o vírus explode por toda a parte e os brasileiros assistem, aterrorizados, à vacinação na Inglaterra e nos países que têm presidente, ministro da Saúde e juízo.

O presidente vive de testar limites, irritar, chocar e o que ainda surpreende é seis ministros fazerem claque para a exposição de trajes do “rei” e da “rainha” e que, enquanto a sociedade só pensa em vacina, o presidente passe sua “boiada” e derrube as alíquotas de importação de armas para comprar a fidelidade de sua base eleitoral e da “bancada da bala”, que só pensam em tiro. A população quer vida, o presidente promove a morte.

Bolsonaro não percebe que ameaça tanto a vida dos brasileiros quanto o próprio mandato. Ou acha que pagar “um preço nunca visto antes na história” (segundo o então ministro do Turismo) basta para evitar o impeachment. Ou… pensa em convocar milicianos e armamentistas para guerrear a favor dele e contra a democracia. O fato é que ele só pode estar aprontando alguma. É erro demais, absurdos demais, provocações demais para ser normal. E ainda faltam dois anos, uma eternidade.


Reinaldo Azevedo: O país não precisa dos milicos de pijama da Anvisa

Prestem atenção a quem está ocupado em combater a pandemia

O Instituto Butantan começou a produzir a Coronavac no Brasil, em parceria com a Sinovac. Onze estados negociam a compra da vacina. É assim que se faz. Devemos dar uma solene banana para a Anvisa, hoje abrigo de milicos de pijama, agarrados a uma boquinha. Ignorância gera subserviência.

Precisamos de uma Agência Nacional de Vigilância Sanitária que bata continência à saúde dos brasileiros, não a um general da ativa, subordinado a um capitão da reserva, chutado do Exército por alimentar delírios terroristas. É subversão demais para parágrafo tão curto.

A agência publicou um documento autorizando o uso emergencial, mas nem tanto, das vacinas. O texto teria ficado mais claro, a alguns ao menos, se escrito em grego antigo. Querem saber? Não sofram —não por isso! Ignorem o que diz a Anvisa. Prestem atenção a quem está ocupado em combater a pandemia.

Com a doença em expansão e um caso confirmado de reinfecção no país, Jair Bolsonaro decreta que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”. Até seus diminutivos são ofensivos e negacionistas. Nem o governo federal nem a Anvisa decidirão o destino dos brasileiros nesse particular.

A palavra final sobre a imunização, se necessário, será do Supremo, não de bananas de pijama ou de uniforme. Leiam os artigos 6º e 196 a 198 da Constituição. O inciso VIII do artigo 3º da lei 13.979 dispensa o registro da vacina na Anvisa para que se possa proceder à imunização mesmo em larga escala. Basta a certificação de uma de suas respectivas congêneres nos EUA, União Europeia, Japão ou China —país que é sede da Sinovac.

A propósito: o Supremo tem de dar celeridade às ações que lá estão e que dizem respeito à obrigatoriedade ou não da vacinação e aos deveres do governo federal. Nesta quinta (10), no Rio Grande do Sul, Bolsonaro voltou a assegurar a eficácia da cloroquina no que chamou de tratamento precoce da doença.

É preciso, senhores ministros, pôr alguma ordem no hospício, ainda que o presidente do tribunal, Luiz Fux, esteja ocupado em exaltar as glórias de Sergio Moro, o defunto moral da Lava Jato, e em encaixar a palavra “orgia” num discurso fescenino sobre o Estado de Direito. Se os pilotos sumiram, assumam a aeronave os que devem.

Foi, aliás, o que fez João Doria ao anunciar para janeiro o início da vacinação e ao estabelecer um calendário. “Ah, ele está tentando pavimentar a sua candidatura para a Presidência, e a vacina virou um caça-votos”, reagiram alguns. Não descarto e pergunto o que há de errado nisso. Prefiro um político que tente ganhar eleitores com uma droga que salva vidas a outro que faz da morte o seu palanque.

Como brinquei no programa de rádio “O É da Coisa”, não pertenço à mesma enfermaria ideológica do tucano. Nem mesmo votei nele em 2018. Iria fazê-lo no segundo turno. Quando pegou carona na campanha de ódio do bolsonarismo, aparecendo em péssimas companhias, desisti. Também não escolhi o seu adversário. O voto obrigatório oferece alternativas.

No caso da vacina? Aí, não! Há uma compulsão, em certos nichos da própria imprensa, de simular independência decretando um solene “ninguém presta” e narrando um permanente empate moral entre os litigantes. Às vezes, é assim mesmo. Mas há casos em que a postura traduz irresponsabilidade.

Na batalha da vacina, trata-se de fazer uma escolha entre a psicopatia política, festivamente homicida —já “que todo mundo morre um dia, e eu não sou coveiro”—, e o esforço de quem mobilizou recursos para investir na ciência. A história deu a Doria e a Bolsonaro uma pandemia. Um deles produziu negacionismo, obscurantismo, truculência, cloroquina e uma quantidade assombrosa de frases pusilânimes. O outro apostou numa vacina. Poderia ter dado errado, mas tudo indica que deu certo.

Se render votos, terá valido a aposta na civilização, não na barbárie, para voltar a uma antítese antiga, que hoje povoa os cemitérios. Reconheça-se: sem o ativismo de Doria nessa área, continuaríamos, 2021 afora, a contar os mortos em companhia do general patético e trapalhão e seus milicos de pijama.Reinaldo Azevedo

*Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.


Fernando Gabeira: Um país fora de foco

Enfim, tornamo-nos reféns de um governo obscurantista. Mas isso tem um preço…

Desde o início da pandemia de covid-19 ficou evidente que a saída estratégica para o problema é a descoberta da vacina e imunização em massa. Qualquer governo mais informado certamente estaria se preparando para esse momento. Não foi o que fez Bolsonaro e pagaremos um preço por isso, não só na economia, mas em vidas humanas.

Infelizmente, na cabeça de Bolsonaro convergem dois movimentos fatais. O primeiro é a negação da covid como doença destruidora; o segundo, uma visão obscurantista da vacina manifestada na ênfase em seus perigos e efeitos colaterais, assim como no pavor da obrigatoriedade, uma discussão inútil.

Bolsonaro já declarou que achava melhor investir em remédios contra a covid-19 do que em vacinas. De fato, destinou pouco mais de R$ 1 milhão para a pesquisa e gastou 15 vezes mais do que isso comprando hidroxicloroquina da Índia ou financiando pesquisas com um vermífugo chamado Anitta.

O ministro da Ciência, o astronauta Marcos Pontes, afirmou que as possibilidades eram animadoras. Vive no espaço, assim como Bolsonaro vive numa realidade alternativa.

Antes de definir seus planos sobre a vacina, Bolsonaro levantou a questão da obrigatoriedade. Ninguém, exceto o cachorro Faísca, receberia a vacina contra a vontade.

O Brasil e quase todos os países talvez levem um ano para vacinar todo mundo. Como exigir obrigatoriedade de algo que ainda nem está disponível?

No campo das negociações, o governo teve uma posição rígida: concentrou sua compra numa só marca, a da Oxford/ AstraZeneca. Inicialmente, recusou a da Pfizer e quando instado a comprar a Coronavac também a rejeitou, por ser chinesa e “do Doria”, alegações absolutamente anticientíficas para analisar uma vacina.

A recusa inicial da vacina da Pfizer, que esta semana foi usada na Inglaterra, teve como argumento o fator logístico. A vacina precisa ser mantida a 70 graus negativos. A própria Pfizer já anunciou uma embalagem com gelo seco que conserva a temperatura da vacina.

Observando atentamente as manifestações de bolsonaristas na rede, creio que têm uma objeção singular à vacina da Pfizer. Uma deputada afirmou que certas vacinas podem alterar o DNA da pessoa. Um jornalista que apoia o governo afirmou que aceitaria as vacinas tradicionais que usam o vírus neutralizado, mas não recomendava a experiência com as outras. As outras, e aí está um argumento bolsonarista, são produto do avanço genético e usam a técnica de RNA mensageiro. Pode ter sido a objeção inicial à vacina da Pfizer.

Creio, entretanto, que Pazuello está negociando um pouco sem noção de detalhes, trabalhando com números. Ele mesmo disse na reunião com governadores que vai comprar todas as vacinas necessárias, se houver demanda. No universo bolsonarista, a demanda pela vacina ainda é uma dúvida, pois acham que os próprios preconceitos contra a ciência são generalizados.

O governo participou do consórcio mundial para garantir a vacina, poderia vacinar 50% da população, mas preferiu uma cota de 10%. Sempre calculando por baixo.

A única realidade com que se pode trabalhar hoje é a vacina comprada por São Paulo, que está pronta para distribuir. Nesse caso houve cálculo estratégico, preparação adequada. No entanto, o plano do governo de São Paulo esbarra na Anvisa, hoje um órgão dirigido por bolsonarista que frequenta manifestações antidemocráticas.

São Paulo marcou data, mas esta depende da Anvisa. O governo do Maranhão já percebeu o obstáculo e entrou no STF esperando dispensar a aprovação da Anvisa, desde, é claro, que a vacina seja aprovada por uma das quatro agências internacionais mencionadas numa lei específica. Ainda assim, se o governo der um cavalo de pau na sua visão obscurantista, talvez seja um pouco tarde para acompanhar o ritmo dos outros países.

Outros aspectos da logística também atrasaram. Seringas e agulhas não foram encomendadas a tempo e, segundo os produtores, não há como garantir a quantidade necessária de uma hora para outra.

Cedo ou tarde o Brasil conseguirá vencer o bloqueio mental de Bolsonaro e a consequente paralisia de seu ministro da Saúde. Mas alguns meses de pandemia significam vidas perdidas, casos de doença e internação. Significam paralisar projetos econômicos, bloqueio de avanços pessoais e congelamento de gestos de afeto, abraços e beijos, pela distância imposta pela pandemia.

Enfim, tornamo-nos reféns de um governo obscurantista. Um fotógrafo foi visto com lágrimas nos olhos no Palácio do Planalto. Ele acabara de cobrir uma solenidade, cheia de sorridentes ministros, em que Bolsonaro e a mulher, Michelle, abriam uma exposição do terno e do vestido que usaram na posse, em janeiro de 2019. O fotógrafo chorou porque conhece a situação do Brasil e, simultaneamente, é testemunha ocular do cotidiano de um governo de outro mundo.

Não há de ser nada. O Brasil agitou-se em 1904 numa revolta contra a vacina. É possível que se agite de novo numa nova revolta, desta vez a favor da vacina. A negação da covid-19, os embates contra a ciência, a desconfiança diante de vacinas que nos podem libertar da quarentena, tudo isso tem um preço para o governo, embora ainda não se possa quantificá-lo com precisão nem determinar a data exata do pagamento.


Mariliz Pereira Jorge: Bolsonaro, um genocida

Ninguém mais deve ter dúvida de que Bolsonaro é um maldito genocida

Quanto mais demorarmos a vacinar a população contra a Covid-19, mais gente morrerá. Se antes a responsabilidade de Jair Bolsonaro era subjetiva, no momento em que vários países começam a imunizar seus cidadãos, não resta dúvida: a incompetência, o desdém e a demora do governo, na figura do presidente, serão culpados por cada morte que poderia ser evitada com uma vacina.

Para alguém que tinha tanta pressa de que o país voltasse "à normalidade", um dirigente que se preocupava tanto com a economia, é curioso que Bolsonaro não tenha sido um dos primeiros líderes a garantir a compra de vacina. Senão por causa da vida das pessoas, que fosse pela saúde da economia.

Bem, seria curioso, se fosse alguém razoável e não um idiota, que resolve inaugurar um brechó no Palácio do Planalto quando o mundo vive um acontecimento histórico. Enquanto Jair e a dona "por que Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle?" usavam a estrutura palaciana para seu momento "memorável", eu chorava ao ver gente sendo vacinada no Reino Unido.

Bolsonaro completa dois anos na Presidência e continua sem a menor ideia do que faz lá. E quem se ferra de verde e amarelo somos nós. Sua campanha não teve proposta, além de baboseiras, como acabar com a ideologia de gênero, com o comunismo, com o PT, liberar armas, "rasgar e jogar na latrina" o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ele não sabia o que fazer quando a pandemia chegou a não ser negar sua existência e gravidade, assim como não consegue organizar a claque de incompetentes do seu governo. Nesta quarta (9), o Ministério da Saúde anunciou que o plano de vacinação deve ser apresentado na semana que vem. Alguém me explica, como se eu fosse uma criança de cinco anos: não era para estar pronto? Se alguém tinha alguma dúvida de que Bolsonaro é um maldito genocida, não precisa mais ter.

*Jornalista e roteirista de TV.


Míriam Leitão: General não sabe preparar a guerra

O general está errando na estratégia de guerra e falhando na execução de sua missão. Ao ministro general Eduardo Pazuello foi entregue a tarefa de proteger a saúde dos brasileiros em plena pandemia. Isso é uma guerra. O inimigo é altamente letal, já foram 179 mil os brasileiros mortos. Pazuello deveria usar toda a munição e todas as armas disponíveis, mas escolheu apenas algumas. Ele nos desarma diante de inimigo perigoso ao desprezar a vacina do Instituto Butantan e demonstra ter dúvidas se haverá demanda por proteção entre as potenciais vítimas do coronavírus.

Ontem Pazuello tentou consertar o que havia dito na véspera, mas os últimos dias foram esclarecedores para quem tinha alguma dúvida de que o governo escolheu mal o general desta guerra. E escolheu mal porque o próprio presidente demonstra não se importar com os efeitos da pandemia, desde o começo.

Na reunião com os governadores na terça-feira ficaram claros os erros de estratégia, de avaliação, de planejamento e de logística do ministro da Saúde. Diante de um inimigo perigoso e desconhecido, um bom comandante não faz o que ele fez. Até agora ele escolheu uma única vacina, a Oxford AstraZeneca, e admitiu comprar a da Pfizer. Só que ele mesmo disse que as quantidades de vacinas que os laboratórios podem oferecer são “pífias”. Nesse contexto de escassez de oferta, fica ainda mais difícil entender por que ele desfez o acordo que havia firmado em outubro com a vacina Coronavac. Na briga com o governador de São Paulo, João Dória, Pazuello disse que o Instituto Butantan não é de São Paulo, e sim brasileiro. A verdade é que ele é administrativamente paulista porque há um século foi fundado pelo governo de São Paulo. Ao mesmo tempo, é de todo o país pela confiança que a população brasileira tem no nosso maior fabricante de vacinas. Mas, diante da afirmação de Pazuello, ficou mais claro que o governador João Dória fez a pergunta certa. Por que discriminar a vacina na qual trabalha o Instituto Butantan?

Todo general sabe, por dever de ofício e longo treinamento, que é preciso, numa guerra, manter a união. Pazuello até falou que não devemos nos dividir. Perfeito. Mas quem tem dividido o país desde o começo é o presidente. Ou é preciso lembrar as vezes em que ele atacou governadores? A demora de tomada de decisão do governo federal está provocando essa divisão, com cidades e estados indo procurar diretamente a forma de proteger sua população. O prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, procurou o governo de São Paulo. Vários governos estaduais, também. O governador Flávio Dino foi ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Se o ministro tivesse desde o começo assumido o papel de liderança que o governo federal sempre teve em programas de imunização, se mantivesse diálogo contínuo com os governadores, se tivesse mostrado senso de urgência e discernimento, não precisaria pedir por unidade. Ela aconteceria naturalmente e sob o comando do Ministério da Saúde. Quando os governadores pedem uma reunião com o ministro para discutir o programa nacional contra o coronavírus é a prova de falha da liderança. O ministro já deveria ter transformado esses encontros em rotina, deveria ter apresentado seu programa, deveria ter adotado a estratégia comum em todos os países de apostar em várias vacinas viáveis. Ou seja, seu dever no cumprimento da missão era usar a melhor estratégia da guerra, manter todos unidos contra o inimigo comum e usar todas as armas e munições.

A referência bélica é em sentido figurado. Armas e munições são as vacinas que nos garantirão a vida e o funcionamento normal da economia. Não apenas o imunizante, mas as seringas, agulhas, cronograma, planejamento, capacidade de estocagem e de transporte. A logística da imunização, enfim. Mas a prioridade de Bolsonaro é literal. Ontem o governo levou a zero as alíquotas de importação de revólveres e pistolas.

O governo atende ao desejo dos clubes de tiros, mas o general da Saúde tem dúvida se há interesse da população em se defender do vírus. “Se houver demanda”, disse e repetiu Pazuello. Ele assim o fez para mais uma vez demonstrar que segue na tropa do presidente da República que sempre negou a gravidade da pandemia e a necessidade de proteção contra o inimigo. O general está perdido no tiroteio.