coronavirus
Bruno Boghossian: Sabotagem de Bolsonaro à vacina atrapalha também a retomada da economia
Fica claro que o presidente não liga nem para a recuperação das atividades nem para a saúde da população
Dias depois de chamar a Covid-19 de gripezinha, em março, Jair Bolsonaro usou um argumento econômico para justificar sua indiferença diante da pandemia. “Não é apenas a questão de vida. É a questão da economia também”, declarou.
Bolsonaro fez uma escolha e defendeu por meses o retorno forçado a uma normalidade impossível. Agora, quando a chegada da vacinação abre o primeiro caminho para a redução do distanciamento e para uma retomada segura, a sabotagem presidencial permanece na equação.
As sirenes tocam alto na área econômica. O presidente do Banco Central declarou nos últimos dias que um atraso na vacinação “obviamente vai ter impacto na atividade”.
Já o número dois do Ministério da Economia precisou lembrar que a recuperação de vários setores está ligada à imunização. “Com a vacina, a população vai se sentir segura e, com isso, a economia vai se recuperar mais rapidamente”, disse o secretário-executivo Marcelo Guaranys.
O ministério de Paulo Guedes tem feito propaganda da destinação de R$ 20 bilhões para a compra e a distribuição de imunizantes. Mas o Palácio do Planalto se recusa a entender que não adianta despejar dinheiro no programa se o presidente continuar estimulando a população a recusar a vacina contra o coronavírus.
Os perigos são mais do que evidentes na cúpula da equipe econômica. O secretário Adolfo Sachsida disse ao SBT que a estimativa do governo para 2021 pressupõe “que a vacina está aí”, que os brasileiros seguem recomendações dos órgãos de saúde e que, aos poucos, “a pandemia vai diminuindo”. Sem essas condições, portanto, economia tem mais chances de continuar no buraco.
Pensando na própria sobrevivência política, Bolsonaro atacou as medidas de distanciamento que provocaram uma redução das atividades. Ele afirmava que “economia e saúde têm que andar de mãos dadas”. Primeiro, parecia que o presidente só queria saber do primeiro item, mas já está claro que ele não liga para uma coisa nem outra.
Helena Chagas: A resiliência não tão resiliente de Bolsonaro
É falta de honestidade intelectual acreditar nas pesquisas quando seus resultados nos agradam e contestá-las quando trazem dados adversos. É o que muita gente está fazendo hoje, decepcionada com os números do Datafolha que mostram certa resiliência na popularidade de Jair Bolsonaro, que segue com o seu nível mais alto de aprovação, na casa dos 37% de ótimo e bom. Vamos e convenhamos, não é lá essa Brastemp. É um resultado medíocre, o pior, com um ano de 11 meses de mandato, entre os presidentes eleitos diretamente na redemocratização — com a exceção de Fernando Collor, que a esta altura do campeonato já estava entrando pelo cano do impeachment.
Mas pesquisa é assim mesmo: temos a pesquisa e a narrativa da pesquisa, e ganha quem conseguir torcer melhor os números para comprovar sua tese. No caso de Bolsonaro, é forçoso reconhecer que o número dos que o avaliam como ruim ou péssimo (32%) está menor do que os que o aprovam, enquanto o regular está estável em 29%.
Só que é o próprio Datafolha que traz em si os germes do que pode representar a destruição da popularidade estável do presidente. As pesquisas vem mostrando há meses a relação direta entre o crescimento da aprovação de Bolsonaro junto aos setores de menor renda – teve uma alta de 11 pontos percentuais na faixa até dois mínimos – e a injeção de recursos do auxílio emergencial e outros benefícios dados durante a pandemia.
PANDEMIA
Esse auxílio, porém, foi reduzido à metade e acaba a partir de 31 de dezembro. É razoável supor que, junto com fatores como o desemprego e a segunda onda da pandemia, essa situação se reflita na aprovacão de Bolsonaro. E de forma ainda mais forte do que no primeiro semestre de 2020, início da pandemia, quando houve uma queda na popularidade presidencial, revertida em agosto.
A segunda onda da Covid-19 está sendo tratada pelo governo com o mesmo desleixo mostrado na primeira, mas com o agravante de que, desta vez, outros países do mundo começam a ter acesso à vacinação, enquanto as autoridades brasileiras continuam no bate-cabeças.
Sem vacina disponível, como estará a população daqui a alguns meses?. O Planalto deve estar festejando que 52% dos entrevistados não atribuam ao presidente da República a culpa pelas 181 mil mortes registradas. Mas 46% acham que ele tem responsabilidade por elas.
O resiliente Bolsonaro, a mais de dois anos da sonhada reeleição, pode até comemorar a popularidade medíocre que registra hoje nas pesquisas telefônicas. Mas a realidade é que sua posição é frágil e o horizonte cheio de previsões negativas.
Elena Landau: Ho, ho, ho
Mesmo que o calendário de fim de ano seja uma ficção, ele deixa a gente sonhar
Antes de mais nada, boas-festas para todos. Parece um desejo quase impossível neste ano terrível de 2020. Mais de 180 mil brasileiros não estarão nem nas mesas com suas famílias, nem via zoom, nem em grupos de zap. A vacina é o principal pedido para Papai Noel, juntando adultos e crianças na esperança de um milagre de Natal. Só que, do mundo imaginário ao real, um longo caminho nos espera. Os imunizantes apareceram em tempo recorde no mundo, mas por aqui a politização da saúde, a negligência, a incompetência, reflexo do pouco caso oficial, tornam o acesso dos brasileiros à vacinação um sonho duvidoso e incerto.
No jornal, o Bonequinho me recomenda uma ida ao cinema para ver a nova versão de Poderoso Chefão e a declaração de amor a Babenco. Junto com as ofertas de viagem e hotéis que chegam, me soa como bullying. Parece que há uma realidade paralela. E há; está refletida na imagem de um Bolsonaro possuído, discursando na Ceagesp. Nem Joaquin Phoenix faria melhor.
A saudade do beijo e do abraço é enorme. Até da turbulência de um voo de verão, para ver amigos na cidade de São Paulo, eu sinto falta. É a volta da normalidade, com seus perigos e delícias. São meus sonhos mesquinhos, mas não posso fingir que não é o que quero para 2021. Fazer planos. Enquanto isso, vou atravessando este momento, seguindo Guimarães Rosa: “A felicidade se acha em horinhas de descuido”. É procurar.
Com a chegada do fim do pior ano da minha vida, há um natural alívio gerado pela mística ideia de que a virada da meia-noite nos trará um mundo novo. Estava nesse espírito até que recebi um meme “Antes de entrar 2021, eu quero ver o trailer”. De fato, com esse governo, tudo sempre pode piorar. Para quem tem alguma dúvida, recomendo assistir o documentário Cercados, na Globoplay. Em duas horas, o resumo da atuação do Capitão Morte. O deboche e o desprezo pelos brasileiros sendo revivido dia a dia.
Nove meses se passaram desde os primeiros sinais da pandemia e o documentário mostra a escalada das mortes. Impressionante. Fiquei pensando como ainda estamos, passivamente, como sociedade, aceitando a permanência na Presidência da República de uma pessoa que comete crimes contra a saúde de seu povo de forma tão consciente e premeditada. Quantos mais precisarão morrer? Aí vejo o resultado das pesquisas de opinião e a perplexidade aumenta. De volta à Idade das Trevas.
Se o presidente é um irresponsável, para dizer o mínimo, o que dizer das nossas instituições? Uma agência reguladora, capturada pelo mais mesquinho critério político, se junta no desrespeito aos brasileiros a um Ministério da Saúde, que obedece a qualquer ordem porque (acha) que tem juízo.
A vida vai seguindo como se fosse natural encher três Maracanãs com vítimas da covid-19. E Pazuello nos pergunta por que tanta ansiedade, tanta angústia? Diz que podemos confiar nele, o rei da logística, que deixou testes perderem validade esquecidos em um canto qualquer.
Negociações para presidência da Câmara e do Senado continuam com base nas mesmas pautas comezinhas, tratando a responsabilidade de Bolsonaro na tragédia da pandemia como questão menor.
E a vacina é só o primeiro passo. Ano que vem ainda serão sentidos os graves efeitos da pandemia, que escancarou a realidade da desigualdade social. Os tais invisíveis. Habitação insalubre, falta de saneamento e acesso a itens básicos de higiene, desigualdades na educação e transporte público de péssima qualidade foram estampados nos jornais. Não dá mais para varrer para debaixo do tapete.
Apesar disso, não há nenhuma iniciativa do governo. Representante supremo do mundo da fantasia, o ministro da Economia foi abduzido de vez pela realidade paralela. Sumiu, junto com as reformas prometidas. E enquanto isso, no apagar das luzes, a diretriz orçamentária é votada a toque de caixa, com seus puxadinhos e sem obedecer os ritos tradicionais. Em fato inédito, Orçamento mesmo, só em fevereiro. Pelo jeito, já vamos começar 2021 devendo 2023.
Não há perspectiva de crescimento sustentado. Nem há na agenda nenhuma política social de qualidade. O único alento é que não ficamos parados esperando as novidades da semana que vem e uma Lei de Responsabilidade Social foi proposta.
Para sorte de muitos, a sociedade civil se mobilizou; cestas básicas foram distribuídas, vizinhos se cuidaram e doações de todo tipo apareceram. Tem quem pense ser esse um novo normal, mais humano, que veio para ficar. Não acredito nisso. As aglomerações e o abandono dos cuidados mostram como é fácil tudo isso se desmanchar no ar. São necessárias políticas públicas bem desenhadas e permanentes que possam, ao menos, reduzir a segregação da população e salvar vidas.
Este dezembro está sendo um teste para meu lado Pollyanna, peço desculpas pelo pessimismo. Afinal, é hora de festejar. Mesmo que o calendário de fim de ano seja uma ficção, ele deixa a gente sonhar. Então vamos lá, são só mais 13 dias. Feliz 2021.
Mas se a tristeza baixar em você, cante Belchior, como faz Emicida: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro”.
*ECONOMISTA E ADVOGADA
Juan Arias: Brasil reage com iniciativas de vida aos instintos de morte de Bolsonaro
Sobre os ombros do presidente cairá a dor de que o o país tenha um Natal de luto e de dor por tantas vidas perdidas pela covid-19
Os dois maiores crimes do presidente Jair Bolsonaro em seus dois anos de Governo foram o negacionismo da pandemia, chamando-a de “gripezinha” e depois qualificando de “covardes e maricas” aqueles que se esforçam em tomar as medidas ditadas pela medicina e pela ciência para se proteger do contágio. Para dar o exemplo, Bolsonaro desprezou publicamente todas as medidas de prevenção.
Junto com o desprezo pela epidemia que fez mais de 180.000 vítimas, o que lhe valeu o qualificativo de genocida, Bolsonaro entrará tristemente na história também por seu desprezo pelo meio ambiente e sua destruição da Amazônia, uma das maiores riquezas do país e do mundo.
Diante desses crimes com instintos de morte e destruição, o Brasil começa a reagir com uma iniciativa de vida fortemente simbólica: a de plantar uma árvore para cada vítima da epidemia que terá gravados seus nomes. Dois desafios de vida contra os instintos de destruição do presidente.
O Brasil está, efetivamente, perdendo sua imagem no mundo com as atitudes de morte e destruição de seu Governo. O The New York Times, considerado um dos jornais mais sérios do mundo, acaba de publicar que o Brasil é o país que travou da pior maneira a luta contra o vírus, talvez junto com os Estados Unidos de Trump, o ídolo de Bolsonaro. Não por acaso são os dois países do mundo com mais óbitos.
A pastora evangélica Damares Alves, ministra da Mulher e dos Direitos Humanos que quer que os meninos usem azul e as meninas, rosa, nas escolas, teve o sarcasmo de afirmar que o Brasil finalmente tem o presidente que necessitava: um presidente “macho”. Talvez tenha querido dizer um presidente que odeia as mulheres, as pessoas frágeis, os diferentes, a quem chama de covardes. Um presidente sem empatia pelos que vivem à margem da sociedade, sofrendo o flagelo das terríveis desigualdades sociais e que está destruindo a economia e a convivência nacional. Um presidente com o qual o Brasil perdeu cinco posições no ranking de desenvolvimento humano, como a ONU acaba de anunciar.
Não, o Brasil não precisa de um presidente “macho”. Está precisando de um estadista com projetos de vida e de reconstrução de um país em crise. Um estadista que aposte em projetos de vida e não de morte. Que tenha um sentimento de empatia pelas pessoas, que saiba sofrer com suas dores e suas tristezas. Que seja solidário com as famílias das vítimas, que apresente programas capazes de fazer o país crescer e lhe devolva o amor pela vida e não pela morte. Um presidente que acredite no melhor deste país, que é seu amor pela vida em vez de semear ódios e instintos de morte.
Dizer que o que este país precisa é de um presidente “macho” é ofender as mulheres em um país que mais as mata e onde elas ainda não ocupam o lugar que lhes corresponde na sociedade. É a melhor forma de dizer que o Brasil deve ser governado por machistas, autoritários, amantes das armas, do autoritarismo, que despreza tudo o que é frágil e marginal. É ir na contramão de uma luta universal contra o desprezo pelo feminino e onde, com muito sofrimento e lutas, o mundo da mulher começa a abrir espaço.
Machismo é o que o mundo tem de sobra. Chegou a hora de abrir novos espaços e horizontes para combater definitivamente o preconceito em relação aos valores femininos. Com a presença de Bolsonaro, o presidente macho, o Brasil continuará indo ladeira abaixo em suas lutas para construir uma sociedade mais humanitária, menos classista e desigual. Enquanto isso o Brasil afunda, brincando com o caos, brincando com a vida. O Natal se aproxima, e o presidente macho, que coloca em seu emblema “Deus acima de tudo”, continua apostando na morte em vez de na vida.
Sobre seus ombros cairá a dor de que o Brasil tenha um Natal de luto e de dor por tantas vidas perdidas. Na boca de Bolsonaro, com o nome de Deus que evoca amor por todos e principalmente pelos abandonados e marginalizados, a vida soa mais como uma blasfêmia.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Mariliz Pereira Jorge: 'Para que essa ansiedade?', pergunta Pazuello, o tranquilão
Ministro da Saúde questionou angústia pela chegada da vacina contra Covid-19
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que não entende xongas de saúde, não deve fazer ideia de que quatro em cada dez brasileiros tem experimentado algum nível de ansiedade por causa da pandemia. Entre 16 países, somos o que mais sofre, segundo pesquisa da Ipsos.
Talvez esses dados iluminem o titular da pasta que, ao ser questionado sobre detalhes do “plano de imunização” do governo, minimizou a complexidade de proteger 200 milhões de pessoas. “Para que essa ansiedade, essa angústia?” Segundo Pazuello, temos o maior programa de imunização do mundo e somos os maiores fabricantes de vacina da América Latina. Ok, conte agora uma novidade. Que dia começa a vacinação?
Ele diz que pode começar em dezembro. Muda para janeiro. Março. A última notícia é de que será em fevereiro. Depois da divulgação do “plano” ficou claro que o único projeto que o governo tem é de extermínio. Não tem plano. O brasileiro que não entrou em negação, se não morrer de Covid, sucumbe ao pânico. Mas o ministro tranquilão não entende por que estamos ansiosos.
Temos mais de 180 mil mortes pela Covid-19. O Brasil está perto de voltar a enterrar mil pessoas todos os dias. Os hospitais estão lotados. Os casos estão explodindo em cidades sem UTI. Para que angústia?
E ainda tem Jair Bolsonaro. Ele tem dado declarações com sinal trocado. No lançamento do “plano” falou sobre a importância de “união para buscar a solução de algo que nos aflige há meses”, um dia depois de ter conspirado sobre a segurança da vacina e de ter dito que não vai tomá-la. O resultado é o aumento da desconfiança na população. Mas pra que ficar ansioso?
Milhares de pessoas passarão as festas de dezembro, assim como já ficaram o ano todo, longe dos seus. Perdemos familiares, amigos, emprego, esperança, mas Pazuello não sabe por que estamos ansiosos por uma bendita vacina.
Ricardo Noblat: Doria derrota Bolsonaro, e o Brasil só tem a ganhar com isso
Presidente rende-se à vacina chinesa e à pressa do governador
Quando se vê em apuros depois de esticar a corda e ela dá sinais de que se romperá do seu lado, o presidente Jair Bolsonaro costuma recuar e falar manso. Foi o que fez mais uma vez – desta, no anúncio do que chamou de “plano de vacinação contra a Covid-19”, ao pregar “a união” para combater “algo que nos aflige há meses”.
O “algo”, tratado por ele como “gripezinha” incapaz de matar 8 mil pessoas, matou até ontem quase 184 mil e infectou mais de 7 milhões. A média móvel de casos chegou a 44.654. O país não atingia esse nível de contaminação desde 4 de agosto. Já a média móvel de mortes foi de 684, a maior desde 2 de outubro.
O recuo de Bolsonaro deve-se à iminente aprovação da vacina CoronaVac pela agência de vigilância sanitária da China, uma das quatro referências globais para a avaliação de novos medicamentos. Pela lei brasileira, tão logo isso aconteça, o uso da CoronaVac em território nacional torna-se imediatamente possível.
Daí porque o Ministério da Saúde anunciou que a CoronaVac será uma das vacinas a ser compradas, no caso ao Instituto Butantã, de São Paulo, encarregado de produzi-la. Vitória do governador João Doria (PSDB) que saiu na frente. Doria poderá se dar ao luxo de deixar por conta do ministério a aplicação da vacina.
Eduardo Pazuello, doublé de general especialista em logística e ministro da Saúde, disse não ver motivo para tanta “angústia” e “ansiedade”. Bolsonaro, que havia falado que o Brasil vive “o finalzinho da pandemia”, completou que o país vive agora uma “situação de quase normalidade”. Negacionismo na veia!
Não haverá normalidade até que todos ou quase todos os brasileiros sejam vacinados. Isso se dará só ali pelo final do próximo ano ou início de 2022 por culpa de um governo que não levou a pandemia a sério, não preparou-se para enfrentá-la e até aqui sequer dispõe de seringas e agulhas para aplicar as vacinas.
Edital do Ministério da Saúde publicado ontem prevê a aquisição de 300 milhões de kits de seringas e agulhas. A entrega será permitida até 31 de dezembro de 2021. O ministério ignora há 6 meses um pedido do Ministério da Economia para que diga se tem interesse ou não na importação de seringas da China.
“Com o desastre que é o ministro da Saúde, os militares vão perder o que ganharam de imagem nos últimos anos após a redemocratização”, afirmou Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. “Pazuello é um ótimo general para fazer a logística do Exército, mas, para fazer a logística da Saúde, é um desastre”.
Desastre maior é quem o escolheu para a tarefa.
Cristiano Romero: Não há dinheiro para o auxílio emergencial?
Subsídios a grupos consumiram 21,37% da receita em 2019
O país se aproxima de mais uma tragédia anunciada _ o fim do pagamento do auxílio emergencial _ e o que mais se ouve em Brasília é que faltam recursos para bancar a despesa. Diante da pandemia, cujo número de casos e mortes voltou a crescer, trata-se de viabilizar ajuda humanitária a pelo menos 23 milhões de pessoas que, daqui a duas semanas, não terão mais direito a receber um centavo do governo federal.
O governo federal, com a ajuda do Congresso Nacional, reagiu rapidamente à primeira onda da pandemia. O Banco Central foi célere na garantia de liquidez para o sistema financeiro e as grandes empresas. Já centenas de milhares de pequenas e médias firmas sucumbiram, principalmente no setor de serviços, porque a ajuda _ modesta _ demorou a chegar e beneficiou a poucos. Dentro e fora do governo isso foi visto _ e defendido _ como algo inevitável.
Na economia informal, onde atua cerca de metade da força de trabalho do país, a ajuda poderia ter evitado o que se vê neste momento nos grandes centros urbanos: o aumento exponencial dos moradores de rua, cidadãos que se afastam de suas família por vergonha (de não ter emprego) e que não depositam mais nenhuma esperança na própria vida nem no país onde nasceram. Chegar até os informais teria sido muito mais fácil se o Ministério da Economia tivesse acolhido proposta do BC de alcançar esse público por meio das empresas de maquininha.
Trabalhadores que atuam na informalidade correm enorme de risco de mergulhar na miséria absoluta quando sobrevêm crises como a atual. Eles se tornam vulneráveis de forma muito rápida, justamente, por não gozarem dos benefícios assegurados aos trabalhadores regidos pela CLT. A pandemia paralisou subitamente o comércio em geral e colocou nas ruas milhões de pessoas. Estas sequer conhecem seus direitos porque, em geral, morrem antes de completar 65 anos, idade que assegura a brasileiros em situação de indigência requerer do Estado um salário mínimo mensal por meio do programa Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Os cidadãos que fazem das ruas sua morada em momentos como este são, aos olhos não das leis mas sim dos governantes, os invisíveis. Em São Paulo, os moradores de rua fazem parte da paisagem, para a maioria dos transeuntes, como se isso fosse obrigatório, uma espécie de lei da natureza que escolhe os mais fortes entre nós e almadiçoa os fracos, uma predestinação "social" de seres que, por "livre arbítrio", optaram por não estudar e, por essa razão, merecem estar ali, mais vulneráveis do qualquer um de nós à ação implacável do tempo e à violência que campeia nos grandes centros urbanos.
O titular desta coluna conversou com um mendigo que, empurrando uma carroça e acompanhado obedientemente por nove cachorros (a maioria, abandonada à própria sorte nas ruas, como seu "dono"), esperava na porta de uma restaurante caixas de papelão que asseguravam parte de seu sustento. Ele contou que seu destino mudou radicalmente após o advento do Plano Collor, em 1990. A indústria onde trabalhava, fabricante de tintas, não sobreviveu à recessão provocada pelo confisco.
Desempregado aos 26 anos, o rapaz, originário de Minas Gerais, tentou se recolocar no mercado de trabalho nos quatro anos seguintes. O que mais ouviu foi que não havia vagas e que ele já estava "velho" para ser contratado. Em 1994, o ano de lançamento do Plano Real, ele desistiu de procurar emprego e de morar de favor na casa de amigos e conhecidos. Tornou-se, então, habitante das ruas da então 3ª metrópole do mundo. Não deu mais notícia à família, afastou-se dos amigos, porque, para ele e a maioria dos trabalhadores, vergonhoso não é ganhar pouco, mas, não trabalhar.
Indagado sobre a existência do BPC, que a esta altura de sua vida poderia ser um alento para a sua sobrevivência, nosso entrevistado disse que nunca ouvira falar, duvidou de "tamanha bondade" do governo, mas, antes de assoviar para os cachorros e bater em retirada, fez uma pergunta: "Doutor, é preciso ter quantos anos para ganhar esse BP, como é que é mesmo, BPC?". "Sessenta e cinco." "Ah, doutor, eu tenho só 57", disse gargalhando o homem, cuja aparência remetia facilmemente a alguém com mais de 70 anos.
O auxílio emergencial destinado aos brasileiros em situação mais vulnerável nesta pandemia foi instituído em pouco tempo, embora caiba aqui observação: ao escolher o público do programa Bolsa Família (BF) _ cerca de 44 milhões de pessoas _ como o mais elegível, governo e parlamento agiram com um olhar mais na política do que no bem-estar da maioria. Os beneficiários do BF já recebiam seus pagamentos, ainda que a um valor (R$ 150 em média por pessoa) que realmente precisava ser reajustado.
O auxílio foi definido em R$ 600 para o período entre abril e agosto, e de R$ 300 de setembro a dezembro. Além do público do BF, outras 23 milhões de pessoas teriam acessado o auxílio. A partir de janeiro, o pessoal do BF volta a receber R$ 150 e os outros, nada.
Falta dinheiro? Leitor, quando lhe disserem isso, olhe os números do orçamento de perto. O que se vê é que, apenas no ano passado, a União deixou de arrecadar R$ 308 bilhões e, em 2020, R$ 320 bilhões em tributos e impostos federais (ver gráfico). Esta fortuna foi apropriada pelos grupos de interesse específico mais bem representados em Brasília, entre eles, a indústria automobilística, os grandes grupos privados de educação e saúde e as classes média e alta.
Hélio Schwartsman: Como deve ser a fila da vacina?
Pode-se priorizar os mais vulneráveis ou buscar o máximo de proteção coletiva
A epidemiologia é uma ciência firmemente calcada na matemática, mas que não trabalha bem com a conceituação binária certo e errado. A razão do paradoxo é que é grande a interface entre epidemiologia e ética, e esta, apesar dos esforços de certas correntes filosóficas, resiste à matematização.
O problema fica escancarado agora, quando países definem os grupos prioritários para a vacinação contra a Covid-19. Existem duas lógicas a orientar as decisões. Pode-se tanto dar primazia aos mais vulneráveis como procurar extrair o máximo de proteção coletiva de cada dose aplicada. Nada impede a criação de um sistema híbrido, que combine as duas.
Pelo primeiro critério, ganham dianteira na fila idosos, portadores de doenças que agravam a Covid-19, populações institucionalizadas, indígenas etc. Pelo segundo, a prioridade deve ser dada a indivíduos que, mesmo sem correr grande risco pessoal, desempenham funções essenciais e lidam como muita gente, o que os torna elos importantes na cadeia de transmissão: profissionais de saúde, policiais, certos comerciários, motoristas de coletivos, entregadores etc.
Como tudo é novo com essa doença, estamos fazendo as escolhas meio no escuro. Se as vacinas previnem a infecção e não só quadros sintomáticos, teríamos um motivo adicional para enfatizar a segunda estratégia. Se elas não funcionam tão bem com idosos, um efeito esperado, a melhor forma de proteger essa população pode ser imunizando não o indivíduo diretamente, mas as pessoas que se relacionam com ele.
Para tornar tudo mais complicado, há o problema dos "free riders", a turma que quer furar fila. Critérios como idade são relativamente fáceis de controlar. Já os que dependem de autodeclaração (sou motoboy) podem gerar confusão.
Aqui não há certo e errado, mas escolhas diferentes. Só o que é definitivamente errado é menosprezar a vacinação, como fazem alguns governantes.
Ricardo Noblat: Bolsonaro descumpre a Constituição que jurou respeitar
Comportamento criminoso
Jair Messias Bolsonaro tem o direito de comportar-se como um suicida diante da pandemia que matou mais de 182 mil pessoas no Brasil desde março último. A vida é sua e ele faz com ela o que quiser. Mas nem ele e nem ninguém tem o direito de pôr em risco a vida alheia por não dar valor à sua ou porque se julga imortal.
Direito à opinião todo mundo tem. Bolsonaro e seus devotos de raiz, por exemplo, acreditam que a Covid-19 é um vírus criado em laboratório e posto a circular pelo mundo para servir aos interesses geopolíticos da China. Direito a fatos ninguém tem. Fatos são verdades provadas, comprovadas e inquestionáveis.
Repete o presidente que sua saúde é de atleta. De fato, foi de atleta quando ele se destacava nos quartéis por correr a grande velocidade. Ganhou várias provas. Há registros no seu prontuário. Quanto a gozar ainda de saúde de atleta, não passa de opinião. Nunca mais deu provas disso. Foi vítima do coronavírus.
Somente ontem, em três ocasiões, protagonizou atos contra a vida – dos outros, diga-se. O primeiro ao reunir-se com milhares de produtores e de vendedores de frutas e legumes em São Paulo, quase todos sem máscaras, ele também. O segundo, outra vez sem máscara, ao visitar Sílvio Santos, um idoso de 90 anos de idade.
O terceiro foi o mais escandaloso. Bolsonaro aconselhou Eduardo Pazuello, doublé de general e de ministro da Saúde, a fazer uma campanha nacional de propaganda alertando os brasileiros para o perigo de se vacinarem. Desta vez não se referiu diretamente à vacina da China. Haveria perigo de morte em tomar qualquer uma.
Sua conduta não foi quase criminosa. Foi inteiramente criminosa. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão técnico do governo agora contaminado pelo vírus ideológico, existe para testar e conferir a eficácia de remédios e de vacinas. Sem o seu aval, nenhum produto médico é liberado para uso em massa.
Desacreditar a Anvisa, e é isso o que está em curso, e tocar horror nas pessoas para que elas fujam de vacinas que estão sendo aplicadas largamente em outros países, é atentar contra a vida coletiva. Haverá crime maior do que esse? E logo praticado por um presidente que ao tomar posse jurou cumprir a Constituição?
Diz o artigo 5º do Capítulo 1 da Constituição em vigor: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Inviolabilidade do direito à vida!
O que isso significa? Que na atual legislação brasileira “o direito à vida é tido como o alicerce para a prerrogativa jurídica da pessoa, motivo pelo qual o Estado tem por dever resguardar a vida humana, desde a concepção até a morte. Diante de sua importância o direito à vida é uma cláusula pétrea.”
E o que é uma cláusula pétrea? “É um artigo da Constituição que não pode ser alterado. Pétrea é um adjetivo para aquilo que é como pedra, imutável e perpétuo. Uma cláusula pétrea é, portanto, um dispositivo do texto constitucional que é estabelecido como regra e que não pode sofrer nenhuma mudança.”
Por quanto tempo mais o país assistirá inerte o presidente da República afrontar a lei? Não se trata de opinião que ele desrespeita a vida, é um fato que se sucede à vista de todos e quase que diariamente. Se apesar disso nada acontece, a Constituição então serve para quê?
RPD || Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
Alheio às mais de 177 mil mortes por conta da pandemia e já em campo pela reeleição em 2022, Jair Bolsonaro politiza uma questão eminentemente de saúde pública em uma disputa com o Governador João Doria, seu concorrente direto
Provavelmente, o ano de 2020 seja palco não apenas de cenas dramáticas de uma pandemia que levou à enfermidade e à morte milhares de pessoas, mas, também, de uma das maiores evoluções no campo da ciência ao se permitir uma vacina em menos de um ano. Em 08/12/2020, na Inglaterra, foi iniciada a imunização de sua população. E nós, brasileiros, como estamos?
Em nosso país, houve uma conjugação de crises. Crise sanitária, advinda do coronavírus; crise econômica, consequência direta da pandemia; crise política e de liderança, cujo fulcro está nas ações e discursos de Jair Bolsonaro e dos bolsonaristas. Já sabíamos, desde os idos de 2018, que o então deputado Jair Bolsonaro trilhava o caminho sinuoso das redes sociais, especialmente, alicerçado sobre clima de ódio, medo e rejeição – todos característicos da eleição de 2018 – mas, ainda, seguia lépido e à vontade junto às fake news, negacionismos, pós-verdade e teorias da conspiração. Bolsonaro foi eleito, mas não governou nesta primeira metade do mandato.
Situação, provavelmente, inédita de um presidente que, por dois anos, confronta as instituições da democracia, os atores políticos e a própria sociedade e que, nos próximos dois anos, buscará sua reeleição. No bojo de seu presidencialismo de confrontação, Bolsonaro e os bolsonaristas foram, como todos nós, jogados numa situação pandêmica que suspendeu a normalidade de nossas vidas cotidianas. Estamos, todos (ou quase), em compasso de espera pela vacina capaz de nos imunizar, já que não há tratamento comprovadamente eficaz para os quadros mais graves da Covid-19. Desafortunadamente, a pandemia encontrou um presidente sem liderança, um governo que não governa e uma sociedade fraturada politicamente, quase em estado de anomia.
A ciência, os especialistas, os intelectuais públicos, os jornalistas e a Política foram, nestes tempos de bolsonarismo, atacados e, inicialmente, muitos atribuíam às declarações de Bolsonaro uma perspectiva anedótica, caótica. Em Os engenheiros do caos (2019), Giuliano Da Empoli, asseverou que: “No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática” (p.18). Segundo o autor, esse carnaval populista não é desprovido de método e tem, nos bastidores, os “engenheiros do caos”, cientistas especializados em Big Data, ideólogos e consultores políticos que sabem – e muito bem – o porquê de tensionar as regras da democracia e desacreditar a ciência e o jornalismo profissional.
O Brasil, com cerca de 177 mil mortos, como outros países, aguarda, em compasso de espera, uma vacina ou várias capazes de nos devolver à normalidade. O governo federal abençoa a parceria da Fiocruz com a Universidade de Oxford e o Laboratório AstraZeneca, mas ainda não estendeu apoio ao Estado de São Paulo, cujo Instituto Butantan vem desenvolvendo junto com laboratório chinês Sinovac a Coronavac. Uma questão eminentemente de saúde pública está sendo politizada no altar da disputa política que o Presidente Bolsonaro, já em campo pela reeleição em 2022, vem travando com o Governador João Doria, seu concorrente direto.
Doria acaba de desfechar golpe maquiavélico no Chefe de Estado. Anunciou que, a partir de 25 de janeiro próximo, São Paulo começará a vacinar profissionais da saúde, indígenas, quilombolas e todos aqueles, residentes ou não no Estado, demandaram as dezenas de postos de saúde especialmente montados para atender aos brasileiros. Quanto à autorização da Anvisa, o governador informa que, já este mês – dia 15, mencionou – passará à agência toda as informações e os protocolos necessários para assegurar que, no espaço de 40 dias, a autorização para a vacinação seja concedida, a não ser que haja obstrução política, vale dizer, do Planalto.
O cenário que se desenha é bem promissor para o Estado de São Paulo A vacina Fiocruz/Oxford apresentou problemas em seus testes, especificamente no que tange às doses aplicadas nos voluntários, e isto demandará mais estudos, atrasando a conclusão dos testes. Além disso, a produção desta vacina, segundo noticiado, dependerá da construção de uma fábrica, ou seja, de mais recursos financeiros do governo federal. Tal fato demonstra que os investimentos e a logística envolvidos não permitirão que vacinas estejam disponíveis em curto prazo, como a Coronavac em São Paulo. Governadores e prefeitos – há muito descrentes de qualquer liderança presidencial – já se articulam junto ao Butantan e ao Governo de São Paulo para garantir acesso à “vacina do Doria”.
Não se descartam atos extremados, como a judicialização do tema via Supremo Tribunal Federal, com vistas a forçar o governo federal, em última instância, Bolsonaro, a adotar a Coronavac para todo o país.
O cenário em tela será, por anos, capaz de gerar estudos de caso sobre a liderança (ou falta de) na condução do combate à pandemia, estudos que, banhados em ironia, se poderão enriquecer com a leitura de Maquiavel e suas reflexões em O Príncipe.
*Professor e Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp.
Demétrio Magnoli: 2 + 2 = 5
A polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva
A pandemia “é uma coisa política”. A Covid-19 “não é tão grave”. As UTIs “não correm risco de colapso”. As quarentenas “destinam-se a quebrar a economia”. Você, como eu, ouve teorias da conspiração desse tipo quase todos os dias. São bolsonaristas? Sim, mas não apenas. Ignorantes? Claro, mas também indivíduos com diplomas universitários — e de instituições prestigiosas. Não se (auto)engane: uma cisão cognitiva profunda atravessa a sociedade.
A extrema-direita não monopoliza as teorias da conspiração. O governo dos EUA sabia de antemão sobre os atentados do 11 de setembro (e talvez até tenha sido responsável por eles). Os EUA deflagraram a guerra na Síria para fortalecer Israel. Os judeus, donos do dinheiro, controlam Wall Street e dirigem a política americana no Oriente Médio. Sergio Moro perseguiu Lula, pois é agente do FBI ou do Departamento de Justiça dos EUA. 2 + 2 = 5: em certas circunstâncias, a esquerda compartilha a paixão pelo pensamento mágico.
A aprovação de Bolsonaro cresceu ao longo da pandemia — e não só entre beneficiários do auxílio emergencial. Na crise sanitária, dois Brasis separaram-se um pouco mais. Numa ponta, situa-se a população que circula na economia digitalizada e no funcionalismo público: os que conservaram seus empregos e salários durante as quarentenas. Na outra, a população presa à economia analógica ou presencial: os que enfrentam o desemprego, a perda de renda, a falência de negócios, a dissolução de patrimônios. Esqueça a conversa condescendente de que “estamos no mesmo barco”. Tente enxergar a paisagem do ângulo desses últimos.
Os “progressistas”, acampados na economia digitalizada, selecionaram seus especialistas. Os mais aclamados, arautos de uma epidemiologia fundamentalista, projetaram milhões de óbitos no Brasil, mesmo sob nossas precárias quarentenas. Nessa linha, exercitando o pensamento mágico, exigiram rígidos lockdowns de duração ilimitada. Como essa exposição do mais cru elitismo foi interpretada do lado de lá, entre trabalhadores “essenciais” de transportes e supermercados, donos de pequenos negócios comerciais, entregadores de aplicativos, ambulantes, empregadas domésticas?
A oferta de intelectuais e acadêmicos é elástica: todas as correntes políticas têm um estoque deles. Surgiram, previsivelmente, os especialistas do negacionismo. Primeiro, eles definiram a Covid como “gripezinha”. Depois, engajaram-se na “guerra da cloroquina” e na denúncia da “vacina chinesa”. No trajeto, apoiando-se nos dramáticos exageros e nas óbvias manipulações dos especialistas aclamados, engajaram-se nas suas próprias manipulações estatísticas, exibindo gráficos que comprovariam um absoluto fracasso de todas as quarentenas. A “ciência” — isto é, um discurso cifrado acompanhado por números —também pode ser posta a serviço de teorias da conspiração. Você tem uma “prova científica”? Ok, eles também: 2 + 2 = 5.
Teorias da conspiração sempre existiram, ainda que se espalhem mais rápido na era das redes virtuais. A demanda por elas vem de baixo, especialmente em tempos de crise, como resposta a difusas angústias sociais. Seu sucesso reflete a fragilidade dos laços de confiança que conectam a massa da população à “elite pensante”. A verdadeira novidade, fonte da força inédita que adquiriram, está no papel desempenhado pelas lideranças políticas da direita populista. Quando, como fazem Trump e Bolsonaro, o chefe de Estado torna-se porta-voz da irracionalidade, rompe-se a barreira psicológica da vergonha, coagulam-se crenças insanas e cada um ganha o direito de proclamá-las em público sem medo da censura alheia.
A polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva. A “elite pensante” não se interroga sobre as raízes da difusão popular de teorias da conspiração. Prefere a via fácil: dialoga exclusivamente com seus pares, repete incansavelmente suas próprias verdades e, nariz cada vez mais empinado, exibindo superioridade moral, faz troça dos “ignorantes”. Não entendeu o óbvio: rindo deles, você reforça as crenças que imagina combater. 2 + 2 = 5.
Fernando Gabeira: Aquele abraço
O general que confunde invernos e entraria em mais frias que Napoleão não se lembrou de comprar seringas
Quando William Shakespeare tomou sua vacina no histórico 8 de dezembro, confesso que o invejei. A primeira coisa que me veio à cabeça foi abraçar, depois de tantos meses, minha filha que vive longe daqui. Imaginei imediatamente quantos abraços e beijos estão congelados a 70 graus negativos, esperando o momento da vacina.
Mas aqui, caro Shakespeare, a vacina ainda é sonho de uma noite de verão. Gostaria também de voltar à estrada, passar longos dias no mato, voltar ao escurecer, com os curiangos voando diante do para-brisa, as primeiras luzes se acendendo na periferia da pequena cidade.
Aqui, William, somos reféns de um governo obscurantista, que não só negou a Covid-19, como o governo britânico no início, mas, ao contrário dele, nunca mudou de posição.
Não vou te cansar com detalhes biográficos. Para quem conheceu Hamlet, o nome Bolsonaro e seus dramas acabariam aborrecendo pela vulgaridade.
O fato é que ele acredita mais num remédio do que na vacina contra o coronavírus. Primeiro, importou da Índia insumos para hidroxicloroquina, e ela encalhou nos laboratórios do Exército. Depois, ao lado um astronauta, investiu milhões em pesquisa sobre um vermífugo chamado Anitta. Fracasso.
Ele escolheu um general para comandar essa guerra. É um especialista em logística que deixa milhões de testes contra Covid-19 adormecidos num galpão de São Paulo.
Esse general talvez fosse um personagem. Ele acha que o inverno brasileiro do Nordeste coincide com o europeu. E promete comprar vacinas se houver demanda, como se nenhum de nós sonhasse com o seu 8 de dezembro, William.
A única preocupação do homem que preside o país é que a vacina não seja obrigatória. Mas como poderia ser, se levaremos mais de um ano para vacinar todo mundo? Como tornar obrigatório algo que não está disponível. A liberdade será preservada.
Vejo nas redes sociais que seus seguidores temem que a vacina, sobretudo as que trabalham com RNA, possam mudar o código genético. Temem a vacina que você tomou, a da Pfizer, como se depois dela William Shakespeare deixasse de escrever e se tornasse lenhador na cidade de Warwick.
O Brasil talvez seja o único país onde as vacinas têm um peso ideológico. As chinesas são preteridas pelo governo porque são chinesas, têm o olho apertado e podem nos transformar numa multidão de fanáticos do comunismo invadindo as ruas com o livrinho vermelho na mão.
O general que confunde invernos e entraria em mais frias do que Napoleão não se lembrou ainda de comprar as seringas e agulhas, dessas que foram usadas aí, William, nessa terça-feira histórica.
Para não dizer que tudo aqui é cinzento e sem esperança, registro que podemos ver o terno e o vestido que o presidente e sua mulher usaram na posse, em 2019. Eles estão expostos, a entrada é grátis, e foram inaugurados com pompa, discursos sobre estilo e Jesus Cristo, ou como definir as medidas de um enviado dos céus.
Indiferente a tudo, o vírus avança. Nada mais fácil do que enlouquecer um país antes de destruí-lo.
O governo vai amarrar ao máximo o processo de vacinação, simplesmente porque não acredita nele. Em 1904 houve uma revolta contra a vacina. Será preciso uma outra revolta, desta vez para que as vacinas sejam usadas o mais rápido possível.
Será preciso lutar não só para a retomada econômica, mas para que nossas vidas sentimentais sejam reatadas como antes. Isso é até secundário, se consideramos o número de doentes e mortos que o atraso produz.
Contamos com alguns governadores, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Não se pode dizer que sejam rápidos ou solícitos para entrar nessa luta. Mas são o que temos. Se for necessário, que se faça uma pressão sobre todos. Pode chegar o momento em que fique claro que não só o vírus, mas a elite burocrática e política brasileira, é um obstáculo de vida ou morte.
Se no combate contra um vírus há tanta hesitação, imagino em casos mais graves como numa guerra. O Exército, que na origem era aliado da ciência, produz um general obscurantista como Pazuello, o presidente que foi escolhido por milhões dedica-se a expor numa vitrine iluminada um terno escuro e o vestido que a mulher usou na posse.
Nem todos os que se sentem mumificados podem entrar num museu. Há critérios: é preciso tempo e história, até para um lugar no museu de horrores.