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El País: Prisão de Marcelo Crivella fecha ano infernal da política no Rio de Janeiro

Além da detenção domiciliar do prefeito, Estado teve governador sofrendo impeachment por acusações de corrupção, a exemplo dos mandatários anteriores. Enquanto isso, covid-19 avança e lota hospitais

Ana Paula Grabois, El País

2020 vem sendo um ano difícil para o Brasil, entre uma pandemia que já deixou mais de 188.000 mortos e uma crise econômica que poderá levar milhões de pessoas ao desemprego e à pobreza. No Rio de Janeiro, entretanto, o ano ganhou um contorno extra de agonia: uma crise política cada vez mais profunda, que culminou nesta terça-feira com a prisão do prefeito da capital, Marcelo Crivella (Republicanos), pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, acusado de liderar uma organização criminosa dentro da prefeitura para praticar corrupção ―no fim da noite, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, concedeu prisão domiciliar ao prefeito, com o uso de tornozeleira eletrônica. De acordo com o magistrado, Crivella não apresenta periculosidade o bastante para permanecer preso em uma penitenciária.

Além de preso, Crivella também foi afastado do cargo. O Rio terá como prefeito nos últimos nove dias deste ano o presidente da Câmara de Vereadores da cidade, Jorge Felippe (DEM), até a posse em 1º de janeiro de Eduardo Paes, filiado ao mesmo partido, vencedor da última eleição municipal ao derrotar o próprio Crivella. Via rede social, Paes disse que irá manter o trabalho de transição para o cargo. O episódio da prisão tem pitadas de ironia. No último debate na TV antes do segundo turno da eleição, Crivella afirmou repetidas vezes que o adversário iria ser preso.

A prisão ocorre depois de o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), ser afastado do cargo em agosto e ter seu impeachment aprovado pelo parlamento fluminense devido a diversas denúncias envolvendo fraudes em contratos na área da saúde, principalmente os emergenciais para a compra de equipamentos e a construção e operação dos hospitais de campanha para tratamento da covid-19.

O histórico recente dos governadores do Rio, aliás, é trágico. Os dois antecessores de Witzel estão presos devido às investigações do braço da Operação Lava Jato no Estado. O ex-governador Sérgio Cabral foi preso em 2016, após deixar o cargo, e está no Complexo Penitenciário de Bangu. Já o ex-governador Luiz Fernando Pezão, preso em 2018, está em prisão domiciliar. O casal Anthony Garotinho e Rosinha Matheus, que governou o Estado antes de Cabral, também já foi preso. Hoje os dois estão em liberdade, embora processos que motivaram as prisões ainda tramitem no Judiciário. Garotinho chegou a ser preso cinco vezes. Rosinha, três. Houve ainda a prisão do ex-governador Moreira Franco em 2019, quando era ministro do governo Michel Temer. Moreira Franco ficou preso por quatro dias devido à Lava Jato.

Como se não bastasse o caos na política, o Rio também enfrenta uma taxa de ocupação de mais de 90% dos leitos de UTI da rede pública em plena epidemia, poucas semanas após Crivella ―ainda durante a campanha em busca da reeleição à prefeitura― autorizar a volta de banhistas às praias, aumentar a flexibilização para o uso de bares e restaurantes e permitir a prática de esportes em espaços públicos, além da volta às aulas nas redes pública e privada. Desde o início da pandemia da covid-19, o Estado do Rio de Janeiro já acumula mais de 24.000 mortos.

QG da Propina

Como motivo da prisão, o Ministério Público do Rio de Janeiro acusa Crivella e mais seis pessoas de praticar os crimes de corrupção, peculato, fraudes a licitações e lavagem de dinheiro. Os promotores também teriam identificado uma movimentação atípica de quase 6 bilhões de reais na Igreja Universal do Reino de Deus entre maio de 2018 e abril de 2019, de acordo com o portal UOL. Ao chegar à delegacia para ser preso, o prefeito declarou ser alvo de “perseguição política” e que espera por “justiça”. “Fui o governo que mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro”, disse.

A detenção preventiva do grupo tem relação com o chamado QG da Propina, um esquema supostamente operado por Rafael Alves, amigo de Crivella que despachava na prefeitura sem ter cargo oficial. Também preso nesta terça-feira, Rafael é irmão de Marcelo Alves, que presidiu a Riotur, a empresa municipal de turismo. Rafael operava nas dependências da Prefeitura do Rio a partir da indicação de postos-chave, como no Tesouro Municipal e de acordo com o MP , negociava propinas com empresários que buscavam pagamentos devidos ou manutenção de contratos. Além dos sete presos, 26 pessoas foram denunciadas no esquema. Segundo o Ministério Público do Estado, tratava-se de “uma bem-estruturada e complexa organização criminosa liderada por Crivella” que atuava desde 2017, ano em que iniciou o seu mandato.

Como mostrou reportagem do EL PAÍS em setembro, em um vídeo gravado durante a busca e apreensão na casa dele, em março, Crivella supostamente liga para um dos celulares de Rafael Alves para avisar de uma busca na Riotur e é atendido pelo delegado da Polícia Civil responsável pela ação. Ao perceber que não se tratava de Alves ao telefone, Crivella encerra a chamada. A desembargadora Rosa Helena Guita, da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que deu a ordem de busca na ocasião e determinou a prisão do prefeito nesta terça, disse que na época que “a subserviência de Crivella a Rafael Alves é assustadora”.

O prefeito passou a ser investigado após a delação premiada do doleiro Sérgio Mizrahy, em 2018, no âmbito da Operação Lava Jato. Em setembro, no pedido para busca e apreensão na casa de Crivella, os promotores do MP diziam que a organização criminosa praticava “toda a sorte de crimes contra a administração” e que a sua “nefasta atuação se espalhou por todo o tecido da administração municipal do Rio de Janeiro, consistindo, o seu modus operandi, em um verdadeiro mecanismo predatório de governo, em que todas as facetas da administração são enxergadas como oportunidades para a consumação de novas negociatas espúrias”.

Agarrado a Bolsonaro

Durante sua gestão, Crivella foi alvo de três votações de impeachment na Câmara dos Vereadores e conseguiu se livrar de todos. Desaprovado por cerca de 70% dos cariocas, perdeu a reeleição para o seu antecessor. No segundo turno, a maioria dos concorrentes do primeiro turno declararam apoio a Paes contra Crivella, incluindo os partidos de esquerda PT e PSOL.

Com uma administração criticada em diversas áreas, o pastor buscou se agarrar ao seu eleitorado mais fiel, os evangélicos de denominações neopentecostais, e à figura do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O Rio é o berço político do presidente e de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, ambos do Republicanos, mesma legenda de Crivella.

Durante a campanha, Crivella usou diversas imagens de arquivo junto a Bolsonaro na propaganda política, mas o presidente nunca chegou a gravar para o horário eleitoral. Cerca de duas semanas antes do primeiro turno, em sua live semanal, o presidente declarou apoio a Crivella, liberando os seus seguidores a votar em Paes. “O outro [Paes], eu não quero tecer críticas. É um bom administrador, mas eu fico aqui com o Crivella. Se você não quiser votar nele, fique tranquilo, não vamos criar polêmica e brigar entre nós porque eu respeito os seus candidatos também”, afirmou Bolsonaro.

Nesta terça, em conversa com jornalistas, o vice-presidente Hamilton Mourão negou que a prisão de Crivella respingue no governo. “Isso aí é questão policial, segue o baile, investigação e acabou”, disse ele “Para o governo não tem impacto nenhum. Tem nada a ver com a gente. Sem impacto, zero impacto”, afirmou. Bolsonaro não comentou o episódio ao longo desta terça-feira.

Problemas pela frente

À frente da prefeitura, Paes terá que encarar diversos problemas. Um deles é o déficit fiscal, estimado por sua equipe em R$ 10 bilhões. Outro é uma situação caótica de enfrentamento à pandemia na cidade. O Rio é a capital brasileira com a maior taxa de letalidade em relação ao total de casos de covid-19. Além da superlotação nas UTIs e do sucateamento do sistema de saúde, praias, igrejas e bares seguem liberados.

Para evitar a corrupção dentro da administração, o futuro prefeito anunciou no início de dezembro a criação da Secretaria de Governo e Integridade Pública, a ser comandada pelo deputado federal Marcelo Calero (Cidadania). “Todos nós na vida pública temos que responder pelos nossos atos. Aqueles que forem designados por mim terão suas vidas abertas, não a sua vida pessoal, mas terão a sua dimensão pública permanentemente acompanhada”, disse Paes ao anunciar a pasta.

A nova secretaria pretende implementar mecanismos de controle, transparência e sanção entre os integrantes do governo e nas compras públicas e licitações, além de adotar um novo sistema de gestão para o pagamento de dívidas.

Eduardo Paes foi muito ligado ao ex-governador do Rio Sérgio Cabral, preso na Operação Lava Jato devido a uma lista extensa de crimes de corrupção relacionados a contratos de fornecedores com o governo do Estado. Paes não é réu em nenhum inquérito criminal da Lava Jato, mas foi citado em delação da OAS por ter supostamente recebido caixa 2 na campanha eleitoral municipal de 2012. Existe também um processo que corre na Justiça Eleitoral por suposto recebimento de recursos da Odebrecht, também em campanha eleitoral.

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Luiz Carlos Trabuco Cappi: Pra não esquecer jamais

Tirar lições de dificuldades ou de situações de crise é uma questão de bom senso

Colaboro regularmente com O Estado de S. Paulo há seis meses, período pautado pela pandemia do novo coronavírus, que deixará marcas profundas na história. Agradeço ao jornal, do qual sou leitor há muitas décadas, por essa jornada inestimável. Escrever para contribuir com o debate sobre os vários temas suscitados pela covid-19 e a realidade brasileira abre novos desafios de raciocínio.

Economia, política, ética, solidariedade, sustentabilidade, administração pública, deveres do Estado e do cidadão; nenhum desses assuntos deixou de ser avaliado e discutido intensamente, em 2020, pela comunidade científica, classe política, empresários, sociedade civil. Todos. Tentei acompanhar os debates e oferecer minha contribuição. 

A discussão ampla, franca e honesta dos problemas de uma sociedade é a ferramenta mais eficaz para encontrar boas soluções, faz parte da construção da democracia. É gratificante e enriquecedor receber, da parte de leitores, críticas, sugestões, ideias, outras perspectivas, e até elogios, que estimulam a reflexão mais profunda e sistemática sobre nossas potencialidades e problemas. Estou certo de que, ao longo de 2021, o exercício de compartilhar ideias, valores e crenças será cada vez mais profícuo. 

Conhecemos as consequências da pandemia para o Brasil e o mundo. Façamos uma rápida avaliação. Este ano, o número de mortes no País por Covid-19 supera os 180 mil. É uma tragédia sem paralelo. As medidas de isolamento social, mais severas no início, reduziram de forma drástica a atividade econômica. Teremos em 2020 uma queda do Produto Interno Bruto (PIB) estimada em 4,5%. Isto agravou o desemprego, que atinge agora quase 14 milhões de trabalhadores. 

Os desembolsos do governo no combate à pandemia e aos seus reflexos econômicos – sem os quais a atividade econômica teria uma queda muito maior – geraram um problema fiscal que não será resolvido no curto prazo: terá de ser enfrentado por este governo e os próximos. Até outubro, o governo federal acumulou um déficit de 680 bilhões de reais e o seu financiamento elevou a dívida pública para 91% do PIB. Essa dívida provavelmente será superior a 100% do PIB pelos próximos anos. 

Tivemos outros fatos que marcaram o ano, como o incêndio no Pantanal, o aumento do desmatamento na Amazônia e o assassinato de João Alberto Silveira de Freitas, um homem negro, num supermercado de Porto Alegre. Ganharam repercussão mundial e levantam pontos relevantes, como a questão do meio ambiente, uma de nossas maiores riquezas, além de desnudar o racismo estrutural em nossa sociedade. 

Entretanto, 2020 pode servir de ponto de partida. Tirar lições de dificuldades ou de situações de crise é uma questão de bom senso. Insensato seria persistir no erro e caminhar para crises mais graves. Perder a oportunidade de usar eficientemente os conhecimentos (econômicos, científicos e sociais) adquiridos neste ano dramático é subtrair à próxima geração a possibilidade de viver em um país melhor, menos instável, mais próspero, mais justo e igualitário. 

Acredito que o Natal é um tempo propício para reafirmar esses princípios. É quando percebemos mais a solidão e as carências dos outros, reconhecemos as nossas imperfeições e projetamos como melhorar como seres humanos. 

Conhecemos a pauta econômica que deve nos orientar. As reformas estruturais são fundamentais. As mudanças sociais que reclamamos, como o combate à desigualdade em todos os seus aspectos, também o são. Sabemos ainda que todas essas mudanças para se tornarem perenes pressupõem uma educação melhor e realmente inclusiva. 

Este é um ano que não pode ser esquecido. Mostrou o paradoxo que é a vida: o nosso bem mais valioso, ao mesmo tempo tão frágil. Portanto, é preciso colocá-la em primeiro lugar. 

O Natal de 2020 reforça que valores, afetos e o aquecer dos corações são o que realmente importa. 

PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. 


El País: Fim do auxílio emergencial deixa o Brasil entre o medo da pandemia e do desemprego em 2021

Segundo pesquisador, desemprego pode atingir 25 milhões de pessoas no país. “Como vou procurar emprego se a pandemia continua?”, questiona beneficiária do programa de ajuda do Governo

Heloísa Mendonça, El País

Não foi fácil atravessar o ano de 2020, mas o fim dele preocupa ainda mais a desempregada Bianca Duarte da Silva, de 25 anos. A partir de janeiro, ela fará parte do grupo de cerca de 67 milhões de brasileiros que deixarão de receber o auxílio emergencial, já que o benefício criado para minimizar os impactos econômicos da pandemia de covid-19 não foi prorrogado para 2021 pelo Governo de Jair Bolsonaro. Moradora de São Paulo, a desempregada já calcula o que precisará cortar no próximo ano. “Esse dinheiro ajudou muito nas despesas, na questão de alimentos e fraldas. Tenho um bebê e uma criança de 8 anos. Agora, dependemos todos de uma única renda, que é a do meu marido. Por conta da pandemia, não sei quando conseguirei procurar um emprego. Vai ficar apertado”, explica a jovem, que atuava antes como promotora de vendas, um exemplo da angústia vivida por essa parcela da população brasileira.

A equação para Bianca gerar mais renda não é fácil. Com as escolas e creches ainda fechadas, ela não tem com quem deixar os filhos para procurar um novo posto de trabalho e, ao mesmo tempo, está com medo do aumento dos casos de coronavírus na capital paulista. O ano terminou, mas a pandemia não. “Antes torcia para as escolas reabrirem, mas com o aumento de casos da doença colocaríamos todos em risco. O melhor seria mais parcelas do auxílio. Eu ainda tenho meu marido trabalhando. Mas e as tias dele que só vivem do auxílio, como vão fazer?”, lamenta. Hoje, 5% da população nacional vive apenas do benefício, segundo a última pesquisa PNAD Covid, do IBGE.

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A prorrogação desejada por Bianca e milhões que continuam sofrendo os impactos da crise sanitária já é, no entanto, carta fora do baralho para o Governo. “Auxílio é emergencial, o próprio nome diz: é emergencial. Não podemos ficar sinalizando em prorrogar e prorrogar e prorrogar”, afirmou o presidente Bolsonaro na última terça-feira (15). O presidente também ressaltou que não haverá oRenda Brasil, um novo programa que chegou a ser aventado durante este ano para substituir o auxílio emergencial. A expectativa era que o benefício fosse criado a partir da reformulação de vários programas sociais, mas ele não chegou a virar uma proposta nem no papel. “Quem falar em Renda Brasil, eu vou dar cartão vermelho, não tem mais conversa”, ressaltou o presidente. Segundo ele, a ideia é aumentar um pouquinho o Bolsa Família.

Além das famílias atingidas, o fim do auxílio emergencial, em um momento em que o país vê crescer novamente o número de casos de covid-19 e a economia está longe de sair da paralisia, também preocupa especialistas ouvidos pelo EL PAÍS. Os efeitos do benefício foram grandes e fizeram, inclusive, a pobreza diminuir no país, ainda que de forma temporária. Ela passou de 23% da população, em maio, para 20,9%. A extinção da transferência de renda pode, no entanto, causar um efeito contrário a partir do próximo ano. Caso o auxílio não tivesse sido oferecido desde abril, o índice de pobreza teria saltado para 36% durante a pandemia, segundo cálculos de Rogério Barbosa, professor do IESP-UERJ e pesquisador da USP. “A renda dos mais pobres de fato aumentou, mas essa melhora é ilusória. O dinheiro que chega é gasto imediatamente nas necessidades básicas, que se impõem. O auxílio não se converte em nenhum tipo de benefício duradouro. A real taxa de pobreza é quando você deixa de computar o auxílio”, pondera.

Queda de arrecadação e falência de pequenos negócios

Para o pesquisador, além da queda de renda da população, o fim do benefício irá afetar a arrecadação de Estados e municípios e também os pequenos comércios locais. O auxílio não tem apenas impacto sobre os pobres e vulneráveis que recebem, mas também no seu entorno, já que injeta recurso na economia. “O dinheiro recebido circula em comércios pequenos mantendo empregos e gera impostos no nível municipal e estadual. Claro que o auxílio não se paga ou volta para os cofres da União, mas vai para Estados e municípios de forma indireta. A pobreza pode chegar a 30% eventualmente se os negócios começarem a falir ainda mais e houver quebra generalizada”, explica.

O desafio da equipe econômica para decidir, nos últimos meses, sobre a continuidade do programa era encontrar uma fonte de financiamento que coubesse dentro da regra do teto ― que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação. Tarefa complexa para um orçamento engessado e em um momento que a saúde das contas públicas é uma das piores dos últimos anos, assim como a dívida do país, que pode chegar a 90% do PIB. As primeiras parcelas do auxílio no valor de 600 tiveram um custo de cerca de 51,5 bilhões de reais por mês. O valor caiu para a metade nos últimos meses do ano, quando a parcela do benefício foi reduzido em 50% (300 reais).

Na avaliação do economista Marcos Mendes, do Insper, se o país apresentar um aumento de despesa muita alto por um longo período certamente vão piorar as condições financeiras da economia. “E o que você eventualmente estará dando para a população mais pobre, você estará tirando por conta da deterioração econômica, com juros alto, inflação, estagnação”. Porém, o economista pondera que em uma situação de agravamento da pandemia não há como não dar assistência aos mais vulneráveis. “É uma situação bastante difícil porque a gente já gastou mais do que poderia em excesso e agora está faltando munição num eventual momento crítico da pandemia”.

Para Mendes, o ideal seria redirecionar os recursos atuais de política social para os 40% mais pobres da população. “Há dinheiro, mas ele é mal direcionado. Os programas precisam ser aperfeiçoados ao longo do tempo. O presidente interditou, no entanto, esse debate com o discurso populista, de que não iria tirar dinheiro de ninguém”, explica. Bolsonaro foi contra, por exemplo, qualquer mudança no abono salarial, uma espécie de 14º salário para quem ganha até dois salários mínimos. “Não podemos tirar dos pobres para entregar para os paupérrimos”, disse o presidente em agosto.

Já o pesquisador Rogério Barbosa defende que o momento atual de crise sanitária permite um endividamento do Estado. “Isso não é uma questão em outros países. A Inglaterra, por exemplo, está dizendo: ‘vamos endividar depois a gente paga. Não é um crescimento da dívida em condições normais, isso é uma precaução com respeito a consequências muito piores. Não estamos fazendo gastos estatais em tempos de bonança”, diz.

Embora o presidente insista que estamos hoje “no finalzinho da pandemia”, mesmo com o país voltando a registrar mais de 1.000 óbitos diários pela covid-19, a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva afirmou em entrevista a esta jornal que não estamos fora de perigo, e que o auxílio emergencial deveria continuar em países como o Brasil. “Tirar esse salva-vidas prematuramente é um perigo em relação à pobreza e desigualdade. Retirar o apoio também prejudicaria a recuperação: até agora o que vemos é que os países que estão se recuperando de forma mais rápida têm em comum ter conseguido controlar a pandemia e ajudado as pessoas e as empresas”, afirmou ao jornalista Ignacio Fariza.

Desemprego pode ter salto

Os empregos podem ser outras vítimas da pandemia. A taxa de desemprego ― em 14,6%, no terceiro trimestre ― pode dar um salto com o fim da transferência do auxílio emergencial. Muitas pessoas que perderam seus postos de trabalho não voltaram a procurar outro por conta da pandemia e as regras de quarentena. É o que Barbosa denomina “desemprego oculto” pelo distanciamento social. “Elas estão desempregados, mas não estão na estatísticas. O desemprego oculto foi diminuindo ao longo dos meses, se transformando em desemprego real, mas se você computa os dois índices você possui um taxa de 25% de desemprego. Ainda que a taxa de ocupação esteja de fato se recuperando, o desemprego cresce em velocidade mais rápida do que a própria ocupação”, explica. Pelos cálculos do pesquisador, podemos chegar a ter 25 milhões de pessoas na fila do desemprego no país. E as taxas de pessoas buscando emprego serão maiores nos Estados do Norte e Nordeste.


Armando Castelar Pinheiro: Economia das narrativas

Três narrativas em 2021: desaceleração com o fim do auxílio, retomada com vacinação e choque temporário da inflação

De acordo com o dicionário Merriam-Webster, uma narrativa é “uma forma de apresentar ou compreender uma situação ou série de eventos que reflita e promova um particular ponto de vista ou um conjunto de valores específicos”. Essa definição está no instigante livro de Robert Shiller, “Narrative Economics” (Princeton University Press, 2019). Como indica o título, o livro é uma grande análise das narrativas econômicas, que expande a palestra proferida no encontro de 2017 da Associação Americana de Economia (bit.ly/38mq5SX). Nesta, o autor observa que o “cérebro humano tem sido sempre altamente sintonizado com narrativas, factuais ou não, para justificar ações em curso, mesmo ações tão básicas como gastos de consumo e investimentos. Histórias motivam e conectam atividades a valores e necessidades profundamente enraizadas”.

O objetivo de Shiller é construir um referencial teórico sobre como as narrativas influenciam o comportamento dos agentes econômicos e como isso, por sua vez, determina o que ocorre na economia. A obra que se encaixa, portanto, no campo mais amplo da Economia Comportamental, a cujos conceitos Shiller recorre em diferentes partes do livro. É o caso, por exemplo, do conceito de “framing”, que enfatiza a influência da forma como as coisas são apresentadas (“framed”) nas decisões tomadas pelos agentes econômicos.

De fato, uma narrativa nada mais é que uma forma de apresentar e organizar as informações que circulam em certa comunidade, sejam elas verdadeiras ou não. Ou, como define o próprio Shiller, “narrativas são construções humanas que são misturas de fato, emoção, interesse humano, e outros detalhes estranhos que formam uma impressão na mente humana”.

Ao contrário do que ocorre nos trabalhos mais tradicionais de Economia Comportamental, porém, o foco de Shiller é a macroeconomia e, em especial, os ciclos econômicos. Assim, como ele coloca, “uma proposição chave deste livro é que as flutuações econômicas são substancialmente impulsionadas pelo contágio de variantes simplificadas e facilmente transmissíveis de narrativas econômicas. (...) Como com as epidemias de doenças, nem todos ficam infectados. (...) Mas em uma epidemia histórica, para a maioria das pessoas a narrativa será fundamental para suas razões para fazer, ou não fazer, coisas que afetaram a economia”.

Assim, a estrutura de análise utilizada no livro é: surge uma narrativa econômica que organiza ou confirma ideias e sentimentos ou paixões que flutuam na sociedade. Essa narrativa em algum momento é expressa publicamente por uma celebridade e isso gera um surto semelhante ao de uma epidemia, fazendo a narrativa se espalhar e influir no comportamento de um número grande o suficiente de pessoas para afetar o que ocorre na economia.

O livro ilustra esse argumento com diferentes exemplos, incluindo bolhas e recessões. Mas a proposta central não é tanto identificar e analisar narrativas que ajudem a entender fenômenos históricos, mas sim propor que uma metodologia como essa ajudaria a prever o que vai ocorrer à frente. Ou seja, que ao pensar o futuro não devemos olhar apenas preços e restrições econômicas, mas também as narrativas que podem vir a moldar o comportamento dos agentes econômicos.

Pensando no Brasil, por exemplo, eu enxergo três narrativas que podem exercer esse tipo de influência em 2021. Uma é que o fim do Auxílio Emergencial levará a uma significativa desaceleração da economia. Essa narrativa já parece influenciar a confiança de consumidores e empresas, o que pode levar a uma profecia auto-realizável, se desencorajar compras e investimentos. O Congresso, porém, parou de discutir a extensão do Auxílio, o que diminuiu a frequência com que o tema aparece na imprensa e isso vai enfraquecer a propagação dessa narrativa.

Uma segunda narrativa, na direção contrária, é a da recuperação econômica que virá com a vacinação e o controle da pandemia. Esta ainda é, por ora, uma narrativa do mercado financeiro, mas ela deve se disseminar conforme a primavera chegue no Hemisfério Norte. Veremos muitas histórias de consumo e, penso, uma narrativa se desenvolverá de que é justificado “exagerar” no consumo no pós pandemia, em especial de serviços.

A terceira narrativa diz respeito à alta dos preços. O Banco Central (BC) tomou a dianteira, argumentando que os 6% de inflação esperados para meados de 2021 são um choque temporário. Esse é um exemplo de algo que Shiller não enfatiza, mas que é uma conclusão direta de sua análise: que a construção e disseminação de narrativas é uma forma como o governo pode fazer política pública. Ainda que pense que o BC está certo em propor essa narrativa, acredito que ele enfrentará uma forte corrente de narrativas contrárias, já iniciadas por celebridades do mercado financeiro, que reportam uma maior preocupação com o controle da inflação em 2021. Preocupação para a qual vão concorrer, no segundo semestre, as pressões advindas da retomada do setor de serviços.

2020 foi um ano muito difícil para todos. Que o Natal e 2021 nos tragam muita felicidade. Sem receio de exagerar!

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ


Hélio Schwartsman: Desigualdade vacinal

Podemos e devemos fazer é afastar pelo voto ou outro meio legal dirigentes que falharam em proteger seus governados

Numa era que abomina desigualdades, nenhuma delas poderia ser mais vital do que a diferença no acesso a vacinas contra a Covid-19. Enquanto a União Europeia já contratou imunizantes para inocular toda a sua população duas vezes, o Reino Unido e os EUA, para quatro, e o Canadá, para seis, vários países pobres ou remediados ficaram chupando o dedo.

Não é a face mais nobre da humanidade, mas o fenômeno era esperado. Apenas repete em escala biofarmacológica o que já víramos acontecer na disputa por respiradores no início da pandemia.

Nem vejo muito como recriminar os governantes dos países que açambarcaram o mercado. Eles, afinal, não foram a uma gôndola de supermercado e levaram para casa muito mais víveres do que serão capazes de consumir. Só acumularam tantas doses porque, diante das incertezas que cercavam e ainda cercam as vacinas, diversificaram suas apostas —o que é bem básico.

Quando esses dirigentes firmaram seus acordos, ainda não se sabia quais imunizantes funcionariam e quais seriam descartados no meio do processo. Também não havia clareza em relação à eficácia de cada um deles e aos prazos de entrega.

O fato, porém, é que o Canadá não vai vacinar seus cidadãos seis vezes no próximo par de anos, de modo que há uma sobra de imunizantes contratados. O destino que o país dará a eles pode fazer a diferença entre uma atitude, digamos, fominha e uma posição ética. O ideal é que essas nações que adquiriram mais vacinas do que usarão doem o excedente a países pobres.

Embora sempre possamos sonhar com um mundo igualitário, em que os habitantes do Sudão receberiam vacinas no mesmo dia que canadenses, não devemos ver nada parecido tão cedo, e não me parece que devamos condenar os governantes que se mostraram capazes de proteger seus governados. O que podemos e devemos fazer é afastar pelo voto ou outro meio legal os dirigentes que falharam nessa missão.


Carlos Andreazza: A semana do presidente

Isto é Jair Bolsonaro. O que planta descrença, difunde desconfiança, atenta contra o pacto social que fundamenta nossa rede de imunização

A semana passada foi especialmente rica em manchetes oferecidas — forjadas — pelo presidente da República. Acuado, Jair Bolsonaro disparou. É o que faz. Ameaçado, reage com novos graus de irresponsabilidade. Provoca. Agride. Trai. Mente. Conspira. Comete crimes. Promove conflitos. Dedica-se ao seu nós contra eles total — obra por meio da qual será capaz de atiçar policiais contra o inimigo jornalista. Obra por meio da qual transformou uma vacina — a chinesa, a comunista — em inimiga da liberdade.

Isto é Bolsonaro. Aquele que, sob pressão, espalha-se para lançar estímulos em direções diversas; para difundir pautas-isca, apostando em que o volume de suas descargas resulte num conjunto de reações difusas que embaralhe a hierarquia das gravidades.

São muitas as gravidades. Uma maior que as outras, porém. Óbvio que o Bolsonaro particularmente cafajeste dos últimos dias é produto do caso Abin. Evidente que seu último pacote de barbáries pretendeu também dissolver em boçalidades as novas revelações sobre o que seria a privatização da Agência Brasileira de Inteligência pela sua família. Nada se soube de mais comprometedor — de mais perigoso para Bolsonaro — numa semana em que galgou novos parâmetros em sua pregação antivacina.

O caso Abin: uma apuração jornalística, da revista “Época”, informou-nos que um órgão de Estado — aparelho de inteligência impessoal a serviço da Presidência — teria operado, com relatórios, para orientar a defesa do filho do presidente numa investigação relativa ao tempo em que Flávio Bolsonaro era deputado estadual. Escândalo a que se somou a notícia, pela revista Crusoé, de que haveria — dentro da agência — uma espécie de Abin do B trabalhando, à margem da estrutura convencional, pelos interesses de Bolsonaro e turma.

Então, para embaçar: onda e espuma. Também para camuflar a imposição do mundo real — seu governo, derrubando-lhe a palavra-veto, terá de comprar a vacina do Doria — à sua mistificação de macho-mito: onda e espuma.

Impressiona que ainda haja quem se surpreenda com Bolsonaro. Ingenuidade pela qual ele é gratíssimo; e que explora com engenho e arte. Por exemplo: em visita à Ceagesp, chocou os bocós liberais retardatários que, em dezembro de 2020, creem em que este governo privatizará alguma coisa. Nem a Ceagesp! Oh! Fomos traídos...

Em que planeta vivem? Como nenhum entre os limpinhos percebeu que o populista-estatista manipularia os manés liberais-só-na-economia para promover uma das facetas do grande estelionato eleitoral que aplica há quase dois anos? É como acreditar que de uma jaqueira pudesse cair uva. Como se um sujeito que engordou aboletado no sofá do Estado — um tipo que constituiu família, que ergueu bem-sucedida empresa familiar, dentro do Estado — pudesse se mover para diminuir a superfície que lhe enche e ampara a pança. Oh! Fomos enganados!

O presidente anunciou também que não montará o novo partido. Que não fundará o tal Aliança pelo Brasil; e que deverá se filiar a um já existente, decerto uma dessas legendas de aluguel que lhe assegurariam a escada formal para poder disputar a reeleição. Ah! Quem poderia imaginar que um notório depredador da democracia representativa — uma força destruidora que prosperou explorando a criminalização da política — não fosse investir na construção de um partido? Oh!

Também nos informou que Fabrício Queiroz pagava suas contas e que os R$ 89 mil que o amigo, amigo também de milicianos, depositou na conta da primeira-dama Michelle eram para ele — e que aquilo, aquela merreca, não poderia ser considerado propina. Ocorre que ninguém disse que a transação consistiria em pagamento de propina.

Como faz com frequência, Bolsonaro respondeu, com indignação, a uma acusação jamais feita. É mestre nisso; em criar uma falsa imputação, um falso problema, como o da vacinação obrigatória, e lhe responder com energia. Concebe um mundo paralelo — no qual estará sempre com a razão. Ninguém pode ser forçado a se vacinar — e assim brigará contra tirano inexistente. Com o que desvia a verdadeira questão: Queiroz foi denunciado como operador de um esquema de peculato havido no gabinete de Flávio Bolsonaro, tendo sido o mesmo Queiroz a fazer depósitos na conta da mulher do presidente. Essa é a fotografia no mundo real; a pergunta sendo: de onde veio o dinheiro depositado na conta de Michelle Bolsonaro?

Nenhum, porém, entre os atos graves encenados para diluir-distorcer a gravíssima investigação sobre a captura da Abin pela famiglia, teve maior gravidade do que o presidente da República declarar que não se vacinará. Foi o investimento desinformante mais violento em sua campanha — genocida – de dilapidação de nossa cultura vacinal. Isto é Jair Bolsonaro. O que planta descrença. Difunde desconfiança. Atenta contra o pacto social que fundamenta nossa rede de imunização — atentado que não apenas chama de volta o sarampo, mas também mina as bases de uma teia que costura mesmo, na prática, a própria ideia de República entre nós.

Essa malha de confiança — que alinhava a nação (como o sistema eleitoral) — é empecilho para o autocrata tanto quanto lhe será impulso ter uma Abin, uma Polícia Federal, particular.


Fernando Gabeira: Uma vacina contra a estupidez

A dois meses de completar 80 anos, a Covid-19 me visitou. Se a ideia era me matar na praia, o vírus perdeu

Com a vacina no horizonte, a dois meses de completar 80 anos, a Covid-19 me visitou. Se a ideia era me matar na praia, o vírus perdeu. Tornou-se apenas uma memória no meu sangue, na forma de IgG reagente. Um retrato na parede, como dizia Drummond.

Pouca febre, muita dor de cabeça: é bom vencer uma batalha, mesmo sabendo que, no final, perde-se a guerra.

Ainda assim, estarei na fila da vacina. Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas a Covid-19 tem negado essa crença popular.

Bolsonaro está tirando o bumbum da seringa. E o faz em situações diferentes. Em primeiro lugar, quer que as pessoas assumam um termo de responsabilidade ao tomar a vacina. Ele não leu a Constituição no trecho que afirma que a saúde como direito de todos é dever do Estado.

Em segundo lugar, afirma que não vai se deixar vacinar e ponto final. Em muitos lugares do mundo, os estadistas se vacinam em público para estimular as pessoas. Obama, Clinton e Bush se dispuseram a isso. O vice-presidente dos EUA o fez. A rainha da Inglaterra espera na fila de vacinação.

Depois de muito resistir à CoronaVac, que chama de vacina chinesa, Bolsonaro decidiu autorizar o general Pazuello a comprá-la, no Instituto Butantan.

Aqui, o movimento de tirar o bumbum da seringa é mais sutil. Ele percebeu que não será fácil conseguir vacinas rapidamente, além da CoronaVac. E o exame cotidiano das pesquisas mostra que a incapacidade de oferecer vacinas derrubará seus índices de popularidade.

A ideia de sabotar a CoronaVac não era boa. Na década de 1980, no auge da epidemia de aids, o governo francês sabotou uma técnica de exame de sangue, formulada pelo Abbott. Havia uma iniciativa semelhante, porém mais atrasada, no Instituto Pasteur.

Quando se descobriu que o governo empurrou com a barriga a licença de uma técnica que salvaria muitas vidas, foi um deus-nos-acuda. Famílias de hemofílicos entraram na Justiça, houve até uma tentativa de explodir uma bomba. Para simplificar a história: dois diretores do Centro Nacional de Transfusão de Sangue foram condenados a quatro e dois anos de cadeia. São eles Michel Garreta e Jean-Pierre Allain.

Em síntese: atrasar por razões políticas uma vacina que possa salvar vidas dá cadeia. É importante que os militares da Anvisa saibam disso. O próprio general Pazuello também deveria entender. Se for difícil para ele, sempre haverá alma caridosa para explicar com desenhos e animação.

Outro dia, vi nas redes um vídeo em que o general Pazuello, numa festa, cantava “Esperando na janela”. O ministro da Saúde cantando numa festinha, em plena pandemia, é sempre estranho. Pazuello já teve Covid. Foi tratado com todos os recursos disponíveis, não lhe faltou leito.

Ao dizer em discurso que não entende a ansiedade de todos nós, ele se esquece de milhões de pessoas que têm medo de não encontrar vaga em hospital, medo da falta de ar, medo de ser intubadas, medo da morte.

A frase de Pazuello é a versão edulcorada do “país de maricas” que Bolsonaro enunciou num dos seus discursos no Planalto. No fundo, são pessoas que não entendem o medo em nossa economia psíquica, muito menos as qualidades do feminino. Associam ideias estupidamente.

Percebo agora como subestimei o perigo que Bolsonaro representava em 2018. Calculava apenas a ameaça à democracia e contava com os clássicos contrapesos institucionais: STF e Congresso, imprensa. Não imaginei que um presidente poderia enfrentar uma tragédia como o coronavírus ou precipitar dramaticamente a tragédia anunciada pelo aquecimento global.

Os Estados Unidos passaram por um flagelo semelhante e o superaram, apesar das marcas. A versão tropical é mais devastadora, não só pela profundidade da ignorância de Bolsonaro, mas também pelas circunstâncias.

Trump deixa os Estados Unidos com pelo menos uma vacina produzida nos EUA e quantidade de doses contratada suficiente para imunizar o país. No seu lugar, entra Biden: consciência ambiental e sintonia absoluta com a ciência no combate ao coronavírus.

Não tenho dúvidas de que também vamos acordar do pesadelo. Mas uma importante tarefa, assim como aconteceu com uma geração de intelectuais alemães no pós-guerra, será estudar as causas disso tudo: as raízes no imaginário nacional que nos tornam tão vulneráveis à barbárie, tão seduzidos pelo discurso da estupidez.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: Chegamos ao fim de 2020

O controle da pandemia abrirá condições para promover as mudanças no funcionamento da nossa economia

Certamente 2020 entrará para a história como um dos anos mais difíceis vividos pela humanidade com o aparecimento de um vírus mortal que colocou em cheque parte do conhecimento acumulado nas últimas décadas. Este seu status deriva não apenas do número de mortes causadas pela covid-19 em todo o mundo, mas também por mudanças importantes do protocolo de funcionamento das economias nacionais. A chamada globalização, que era considerada o modelo mais eficiente para a economia mundial, terá que ser repensada em função dos riscos que a ultra mobilidade entre os mercados nacionais revelou agora.

Mas, nesta última coluna do ano, prefiro restringir minhas reflexões na evolução da economia brasileira neste período e, principalmente, o que esperar para 2021. A partir do momento em que foi possível entender a natureza da crise econômica provocada pela covid procurei centrar minha atenção nos seus aspectos estruturais de mais longo prazo, deixando a conjuntura para outros profissionais. Aprendi, ao longo da carreira profissional, que em momentos de crise grave é esta postura a mais adequada para fugir das armadilhas e ruídos do curto prazo. Relendo minhas colunas deste ano foi possível fazer uma linha do tempo da evolução de meu entendimento do que iríamos enfrentar.

Assim, propus na coluna de abril “Olhar com otimismo para 2021” em função das decisões tomadas rapidamente por governos e bancos centrais para enfrentar o pânico que atingiu investidores e instituições financeiras no mundo todo. A lição de 2008 foi aprendida e, desta vez, as ações previstas foram rapidamente aplicadas, e mesmo expandidas por outras medidas ainda mais heterodoxas. Em pouco tempo construía-se um protocolo de natureza keynesiana para enfrentar a recessão que se seguiria. O mesmo ocorreu aqui no Brasil, com um dos mais exitosos e eficientes entre os que foram acionados por países emergentes e mesmo os desenvolvidos.

Já em 15 de junho na coluna “Um segundo pacote fiscal“ ponderei que seria necessário a definição de um segundo pacote de estímulos fiscais de cunho keynesiano para fortalecer a recuperação da atividade econômica na parte final de 2020 e principalmente durante 2021. Mesmo no Brasil, com todas as dificuldades de lidar ainda com a fase de estabilização da pandemia, o governo Bolsonaro e o Congresso precisavam iniciar um debate sobre a questão de novos estímulos para enfrentar 2021. Esta questão continua presente mesmo depois que a recuperação mais rápida da economia em 2020 tenha ocorrido, reduzindo o escopo das medidas a serem tomadas.

Em julho, meu otimismo sobre o futuro estava descrito na coluna “A destruição criativa no pós pandemia”. Citei as ideias do economista Joseph Schumpeter em seu livro, “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, quando definiu o termo “destruição criativa” como um impulso fundamental para o motor do desenvolvimento econômico no mundo capitalista via inovações tecnológicas e de gestão das empresas”.

Em outras palavras, Schumpeter queria dizer que o sistema capitalista não acaba porque sempre se reinventa. Mas, para entender é preciso ter vivido algumas das crises que já ocorreram e ter sobrevivido a elas.

Hoje temos uma visão mais clara do que significa a expressão “destruição criativa” na crise atual com reflexões de vários analistas sobre o “boom” econômico que pode acontecer em função do choque positivo que terá a implantação de novas tecnologias a partir de 2021. Cito aqui artigo recente de Martin Wolf do Financial Times no qual aponta que a covid-19 acelerou o mundo rumo ao futuro. Este movimento será liderado por duas forças principais que já estavam em ação, mas que se intensificaram durante a pandemia: tecnologia e desglobalização,

Na coluna de novembro “O vírus contra-ataca” consolidei minha visão de que “a volta da atividade econômica no Brasil foi conseguida principalmente em função de uma expansão vigorosa - e eficiente - dos gastos do governo em um momento em que a arrecadação corrente de tributos era reduzida pela recessão. Portanto era natural - e necessário - que seu déficit fiscal tivesse um grande aumento no período mais agudo da crise. Somente com o retorno do crescimento econômico sustentado a partir de 2022 é que o governo poderá buscar uma situação orçamentária de superávits primários que estabilize a curva da dívida pública no futuro.

O objetivo destas minhas reflexões era o de enfrentar os argumentos dos economistas mais ortodoxos que pediam quase histericamente movimentos radicais para reduzir os déficits fiscais do setor público. Implícito nestas mensagens estavam as ameaças de um chamado “abismo fiscal” eminente e o colapso da rolagem da dívida pública. Hoje com a calma de volta aos leilões dos títulos públicos pela ação eficiente do Tesouro e Banco Central podemos esperar a volta do crescimento econômico para definir uma ação mais estruturada de medidas fiscais de controle da expansão dos gastos públicos.

Finalmente, agora com a definição pelo governo de um programa de vacinação racional e sem os preconceitos anteriores, temos a certeza de que o controle da pandemia abrirá condições para olharmos para a frente, cuidar das feridas da batalha e promover as mudanças no protocolo de funcionamento da nossa economia. Isto em um mundo que deve entrar em um período de crescimento mais forte puxado pela China e outros países da Ásia e as maiores economias ocidentais.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Ricardo Noblat: Taokey, Jair Bolsonaro, você venceu!

Sociedade com o vírus pouco custou ao presidente até agora

Morreram quase 187 mil pessoas? Mais de 7 milhões foram infectadas? E daí? Quem tiver que morrer, morrerá. A pandemia só chegará ao fim depois que o vírus contaminar mais de 75% da população. É assim que o presidente Jair Bolsonaro sempre pensou desde quando o então ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, o pressionava para combater a pandemia. E assim será.

O governo não tem pressa em comprar vacinas. Ou melhor: gastar com vacinas, seringas, agulhas. Foi o próprio presidente da República quem o disse numa conversa com seu filho Eduardo, o Zero Três, deputado federal, lobista de empresas americanas de armas, o embaixador do Brasil em Washington que tentou ser, mas deu ruim. A natureza de Bolsonaro não mudou nem mudará.

Só tirou Abraham Weintraub do Ministério da Educação porque se sentiu ameaçado por um processo de impeachment. Weintraub havia sugerido a prisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal, “esses vagabundos”. Como prêmio de consolação, ganhou uma diretoria do Banco Mundial nos Estados Unidos. Salário em dólar. Aí começou a farsa de que Bolsonaro iria trocar de pele.

Dizia-se que, assustado, ele aprendera a respeitar a Justiça e o Congresso, escolhera o diálogo como principal instrumento de governo e decidira compartilhar o poder com os partidos. Tudo como fizeram seus antecessores. Finalmente, um presidente normal, e não um destruidor do sistema como ele se pretendia. A democracia estava salva. Aleluia, irmãos! Deus é pai!

Mas no final de maio último, Fabrício Queiroz, amigo há 40 anos de Bolsonaro, designado por ele para tutelar Flávio, o Zero Um, na Assembleia Legislativa do Rio, foi descoberto e preso numa casa no interior de São Paulo do advogado Frederick Wassef. Advogado de quem? Ora, de Flávio e do seu pai, embora os dois jurem de mãos postas que jamais souberam que Wassef escondia Queiroz.

Então o presidente normal ou normalizado reuniu ministros militares e anunciou que estava disposto a fechar o Supremo Tribunal Federal. Para tanto, talvez bastasse um cabo e dois soldados como Eduardo sugeriu. Não houve golpe porque, consultados, os chefes das Forças Armadas tiraram os deles das seringas. É no que dá ser um país de maricas…

Até o momento, não há plano estratégico do Ministério da Saúde para o enfrentamento da segunda fase da pandemia do coronavírus, concluiu uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União e apresentada no dia 8 deste mês. Falta a entrega de equipamentos de proteção individual, respiradores, kits de testes e sobram irregularidades em contratos assinados.

Não haverá vacina para todo mundo como Bolsonaro tem prazer de repetir. Estados Unidos e Inglaterra já começaram a vacinar. Chile e Colômbia começarão a vacinar em janeiro. A Índia prevê que terá vacinado 300 milhões de pessoas até agosto. É mais gente do que há por aqui. Bolsonaro tem 20 bilhões de reais para arcar com tudo isso, mas prefere pôr em dúvida a eficácia das vacinas.

Em poucos dias, 59 milhões de brasileiros deixarão de ter direito ao auxílio emergencial criado para atenuar os efeitos da pandemia. Isso quer dizer que, dos 68 milhões que receberam o auxílio de abril para cá, apenas os 19 milhões inscritos no programa Bolsa Família continuarão a contar com alguma ajuda do governo. Sem o benefício, 24 milhões de brasileiros voltarão à pobreza extrema.

E daí? E daí que Bolsonaro está pouco ligando porque para ele vidas pouco importam. Está mais preocupado em eleger os próximos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado para poder aprovar, ali, propostas que lhe assegurem o apoio da parcela dos brasileiros, estimada em mais de 50%, que o isenta de responsabilidade pelas mortes que o vírus provocou.

Uma vez que preserve o apoio da metade dessa parcela, terá lugar garantido no segundo turno da eleição presidencial de 2022. E aí seja o que Deus quiser.


FAP fortalece sua função social com série de eventos e cursos online durante o ano de 2020

Confira o relatório anual das atividades da Fundação, durante os meses de janeiro a dezembro de 2020. Apesar da pandemia, a FAP continuou a exercer seu compromisso de entregar conteúdo de qualidade ao público

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em pouquíssimo tempo, a Covid-19 se espalhou pelo mundo, e o desconhecido provocou medo e muita ansiedade. Economia, política, religião, crenças, valores, tudo junto, em um turbilhão de emoções, expectativas, aflições. Mais do que nunca, a FAP (Fundação Astrojildo Pereira) continuou a exercer seu compromisso de entregar conteúdo de qualidade ao público, em diversos formatos, sustentados, sobretudo, na defesa da democracia e dos valores republicanos.

A informação verdadeira seguiu como chama para manter acesa a incessante busca por uma sociedade menos injusta, menos desigual e menos excludente. Em um ano totalmente diferente e que desafiou nosso modo de vida como humanidade, o objetivo das ações de 2020 foi entender os desafios, criar conexões de solidariedade e compartilhar informação para transformar o nosso amanhã.

Por isso, o site da FAP bateu recorde de audiência em 2020, até o dia 21 de dezembro, com 240.134 acessos únicos, também chamados de “visitantes diferentes”. Em 2019, foram 114.557 e, em 2018, 90.977, no mesmo período. Até o mês de dezembro, o ano passado totalizou 126.663 acessos únicos, e o anterior acumulou 114.996.

Dezenas de lives e webinars da Biblioteca Salomão Malina, mantida pela FAP em Brasília, discutiram assuntos extremamente relevantes, atuais e de interesse público. A revista mensal Política Democrática Online ganhou ainda mais relevância com o aumento substancial do consumo de informação digital neste ano, que também foi marcado pelas eleições municipais.

Também de olho na formação política, a FAP realizou os cursos a distância Jornada da Cidadania, realizado de fevereiro a junho deste ano, e Jornada da Vitória, de junho a setembro.

Em 2021, a fundação continuará promovendo o estudo e a reflexão crítica da sociedade, de maneira a construir referências teóricas e culturais relevantes para a defesa e a consolidação do Estado Democrático de Direito.

A seguir, confira a lista de ações da FAP neste ano.


Janeiro

  • Lançamento do livro Encontro de Sonhos – História do PCB ao PPS no Amazonas

A FAP realizou, em 5 de janeiro, o lançamento do livro Encontro de Sonhos – História do PCB ao PPS no Amazonas, do autor Jose Maria Gomes Monteiro, em Manaus. A entidade investiu no transporte para envio de livros para a capital do Estado.

Data de realização:05/01/2020
Participantes:Público em geral
Total de beneficiados:70



  • IV Encontro de Jovens Lideranças

Comprometida com a formação política e cidadã da juventude do Brasil, a FAP realizou, de 15 a 18 de janeiro de 2020, o IV Encontro de Jovens Lideranças, no Hotel Fazenda Paraiso dos Sonhos, em Corumbá (GO).  Os jovens tiveram a oportunidade de participar de uma imersão política em formato de curso de liderança e treinamento para trabalho em equipe, com palestras, aulas, debates, dinâmicas de grupo, além de atividades lúdicas e recreativas. A FAP investiu em passagens aéreas, hospedagem e alimentação para os participantes, durante o evento.

Período de realização:15 a 18/01/2020
Participantes:Jovens ligados ao Cidadania23
Total de beneficiados:Presencial = 80 pessoas | Online = 6.024

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Vinicius Torres Freire: Como pode ser a vida depois das primeiras vacinas de Covid-19

Se vacinação e distanciamento funcionarem, vida passa a melhorar no meio do ano

Em abril, o número de mortes por Covid-19 em São Paulo deve começar a cair graças à vacina, se der certo o plano do governo paulista. Com base em premissas otimistas, a vacinação pode derrubar o morticínio em 64%. Atualmente, morrem 154 pessoas por dia no estado; em abril, morreriam então mais de 50 (no início de novembro, eram 85 mortes diárias).

Os números importam, mas dizem pouco sobre como pode ser a vida depois da primeira onda de vacinação: ainda difícil. Até 22 de março, terão sido vacinadas pessoas com mais de 60 anos, gente da saúde, indígenas e quilombolas, nove milhões de pessoas, apenas um quinto da população.

Mas, com vacina e com os cuidados de distanciamento que tomávamos em outubro, poderíamos reduzir o número de mortes diárias à casa da dezena em meados de 2021. Se a Coronavac também evitar contágios, a menos ainda.

As vacinas derrubariam o número de mortes em abril porque em grande parte seriam aplicadas no grupo que padece mais da doença. Cerca de 77% dos mortos em São Paulo tinha 60 anos ou mais. Quase 0,5% dessa população morreu de Covid-19, uma pessoa em duzentas, um horror.

A hipótese otimista depende de premissas esperançosas sobre taxa de vacinação e da eficácia da Coronavac.

Supôs-se que a eficácia dessa vacina seja de 86%, similar à da sua prima Sinopharm, número até agora não publicado com rigor técnico, porém. Supôs-se ainda que sua efetividade na vida real seja idêntica à da eficácia na fase de testes. Supôs-se também, de modo heroico, que a Coronavac seja aplicada em tantos idosos quanto aqueles que receberam a vacina de gripe no ano passado (97,6%, em São Paulo). Mas Jair Bolsonaro faz campanha criminosa de desmoralização da vacina. Pode ser que a adesão caia para 75%.

Eficácia e efetividade de 86% significa que uma de cada sete pessoas vacinadas estará sem proteção. Os hospitais ficarão menos cheios, mas o risco individual ainda será relevante.

Por eficácia entende-se por ora a capacidade da vacina de proteger as pessoas dos efeitos graves da doença. Não se sabe se as vacinas disponíveis evitam (ou limitam) a transmissão. Cientistas acreditam que, em alguma medida, as vacinas em geral possam limitar o contágio. Isto é, fazer com que o vacinado e infectado espalhe menos o vírus. Assim, mesmo sem terem sido vacinadas, menos pessoas adoeceriam, tudo mais constante. Por tabela, haveria menos padecimento econômico.

Tão cedo não haverá informação sobre isso. Será preciso acompanhar grupos de vacinados por uns quatro meses, fazendo testes de contaminação algo complicados.

Em suma, em abril a vida ainda estará prejudicada. Para diminuir o prejuízo, será preciso vacinar o grupo de 40 a 59 anos, que conta quase 20% das mortes (e equivale a 27,5% dos paulistas).

A fim de conter a tragédia educacional, social e psicológica do fechamento das escolas, talvez seja preciso vacinar os 470 mil professores do ensino básico (e quantos mais funcionários de apoio?). Não haveria vacina bastante na primeira rodada. Uma segunda rodada de mesmo tamanho e velocidade da primeira estaria completa apenas em fins de maio.

Até abril ainda estaremos sujeitos a um aumento pavoroso do número de mortes. Até agora, não temos vacina. Assim que tivermos, não podemos dar ouvidos a genocidas. Temos de nos vacinar tanto quanto nas campanhas antigripe e seguir os cuidados que em outubro ajudaram a reduzir o morticínio. Com menos casos, talvez enfim possamos testar, rastrear e isolar os doentes.

Há jeito de dar cabo da peste.


Hélio Schwartsman: Guerra, militares e boas histórias

Se desempenho de oficial à frente da Saúde equivale ao de nosso Exército, então Bolívia pode conseguir saída para oceano Atlântico

Na tentativa de entender melhor a cabeça dos militares, que ocupam espaço cada vez maior no governo brasileiro, comprei, baixei e comecei a ler "War" (guerra), da historiadora Margaret MacMillan. Não me arrependi.

A tese central da autora é simples. A guerra é muito mais central para o ser humano do que estamos dispostos a admitir. E ela não serve só para matar gente. Muitos dos avanços científicos, tecnológicos e até de organização da sociedade resultaram de conflitos. O forte do livro, porém, não são teorias, e sim as boas histórias que conta sobre guerras, militares e os que teorizaram sobre isso.

Examinemos o caso da intendência. O general alemão Erwin Rommel não foi nada ambíguo em relação ao que achava dela: "A condição essencial para um exército ser capaz de suportar batalhas é um estoque adequado de armas, combustível e munição. Na verdade, as batalhas são travadas e vencidas pelos oficiais de intendência antes de os tiros serem disparados".

E, se sempre foi vital garantir armas a guerreiros, a intendência ganhou ainda mais importância nos conflitos modernos. Foi a introdução de serviços de higiene, como a lavanderia, na 1ª Guerra que fez com que, pela primeira vez, doenças não causassem mais baixas que o fogo inimigo.

A intendência alterou a natureza do conflito, já que permite que ele tenha duração indeterminada. Nas batalhas antigas, a peleja não podia ir além da comida disponível nas imediações. Pior, ao fazer a ligação entre a capacidade de produção de um país e sua performance na guerra, a logística borra a distinção entre alvos legítimos e ilegítimos. O operário civil de uma fábrica de uniformes pode ser abatido?

Bolsonaro entregou o Ministério da Saúde a um oficial de intendência. Se seu desempenho à frente da pasta é representativo do de nosso Exército, então a Bolívia poderá conseguir sua tão sonhada saída para o mar, pelo Atlântico...