coronavirus
Evandro Milet: Livros, uma vacina contra a ignorância
Steve Jobs vivia e respirava música. Era um fã incondicional de Bob Dylan e dos Beatles e já tinha namorado Joan Baez, cantora famosa na época. Seu interesse pessoal guiou as estratégias da Apple em música, basta lembrar do iPod e iTunes. O interesse pessoal de Jeff Bezos também teve forte influência na Amazon. Bezos não apenas amava livros; ele mergulhava neles, processando cada detalhe metodicamente.
No apêndice do livro A loja de tudo”, que conta a história da Amazon, há a lista de leitura de Jeff incluindo, entre outros, “O dilema da inovação” de Clayton Christensen, “A lógica do cisne negro” de Nassim Taleb, “Empresas feitas para vencer” e “Empresas feitas para durar”, ambos de Jim Collins, que se tornou grande consultor da empresa. Aliás também consultor fundamental da equipe de Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles em seus sonhos grandes na Ambev.
Bill Gates, criador da Microsoft, é outro leitor compulsivo. A imprensa costuma publicar sua lista de recomendação de livros, mais ampla inclusive que apenas obras de gestão e tecnologia.
O livro de Daniel Bergamasco “Da ideia ao bilhão”, conta a história dos unicórnios(startups que atingem valor de mercado de um bilhão de dólares) brasileiros. Em duas das histórias os livros também desempenham papel fundamental nos processos de gestão, incentivados pelos fundadores. Na fintech Stone a seleção de empregos é feita com uma lista de livros com sete títulos à escolha dos candidatos. Em um dos processos constavam o já citado “Feitas para vencer” e “Por que fazemos o que fazemos” de Mário Sérgio Cortella. Até alguns anos atrás só havia uma obra, “Paixão por vencer” , do icônico Jack Welch, ex-CEO da GE.
O objetivo é ler, entender, interpretar e estabelecer conexões entre os conceitos apresentados e as próprias crenças. “Estudar é uma forma de esticar as pessoas” dizem na Stone. Num livro os autores reúnem o aprendizado de uma vida em algumas páginas, diz André Street, fundador da Stone, que até hoje separa duas horas diárias para estudar. Como ele diz, começou lá pelos 12 anos de idade a encarar livros de auto-ajuda, como “Mais esperto que o diabo” de Napoleon Hill e “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, de Dale Carnegie.
Na unicórnio Arco Educação, o CEO Oto de Sá Cavalcante, um devorador de livros de diferentes estilos, premia as melhores resenhas sobre títulos indicados a cada ano, que vão de “Foco” de Daniel Goleman, a “O Príncipe” de Maquiavel. Os cinco melhores textos recebem cada um mil dólares. "Líderes também precisam ler”, dizia um folheto que anunciava o livro de 2020: “A marca da vitória”, autobiografia de Phil Knight, criador da Nike.
Além disso, as equipes da Arco participam semanalmente do “método da cumbuca”, disseminado por Vicente Falconi.
Um livro é proposto a um grupo de 4 a 6 pessoas. e a cada semana eles se encontram para falar sobre um capítulo que todos devem ter lido. Os nomes vão para a cumbuca e a pessoa sorteada deve resumir o capítulo. Se ele não tiver lido a reunião é cancelada, para constrangimento do sorteado. Aliás, a inspiração para o nome da empresa veio de uma passagem de um clássico: “As cidades invisíveis'', de Ítalo Calvino.
Atualmente há uma proliferação de clubes de leitura para empresários, como o que é organizado pela empresa de consultoria KPMG, por onde passaram o sempre presente “A lógica do cisne negro” e mais “Miopia Corporativa” de Richard S. Tedlow e “A Regra é Não ter Regras”, de Reed Hastings e Erin Meyer, com o modelo de gestão da Netflix.
Aqui também em Vitória, as organizações de jovens empreendedores Líderes do Amanhã e Ibef Academy usam a ideia de discutir livros entre os associados como forma de aprendizado em empreendedorismo, economia e gestão.
Que 2021 seja um ano sem pandemia, com muitos livros, ficção e não-ficção, clássicos ou atuais, best sellers ou não, técnicos e não-técnicos(menos o do torturador). As experiências mostram que os livros são importantes para o empreendedorismo, mas também representam o tratamento precoce amplo contra obscurantismos ou uma vacina contra a ignorância.
Demétrio Magnoli: O sermão nosso de cada dia
Jornais descobriram atalho de confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no seu público-alvo
Reza a sabedoria convencional que o advento das redes sociais provocou a crise existencial da imprensa em curso. O fenômeno é mais complexo: a crise deve-se, essencialmente, à resposta adaptativa escolhida pelo jornalismo profissional ao desafio posto pelas redes.
Diante da perda dramática de receitas publicitárias, os jornais engajaram-se na fidelização de leitores ou espectadores. Na batalha de vida ou morte, descobriram um atalho: falar, preferencialmente, para um segmento da sociedade definido por certas visões de mundo. Ou, dito de modo diferente, confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no público-alvo.
Os veículos de imprensa entregaram-se a alinhamentos ideológicos cada vez mais nítidos. Nos EUA, exemplo icônico, as redes CNN e MSNBC tornaram-se porta-vozes informais das correntes mais liberais (ou seja, à esquerda) do Partido Democrata, enquanto a Fox firmou-se como arauto da ala reacionária do Partido Republicano. A última cresceu numa estridente oposição a Obama. As duas primeiras, assim como o New York Times, obtiveram retumbante sucesso comercial com a denúncia inclemente de Trump. Hoje, sem o “diabo laranja”, indagam-se sobre o rumo a seguir.
O atalho conduz a uma armadilha fatal. As pautas, os enfoques e a linguagem do jornalismo profissional tendem a se submeter à lógica discursiva das redes sociais. A Folha, que renasceu nos anos 80 com sua adesão ao movimento das Diretas Já!, uma posição editorial justificada pelo imperativo de reconquista da liberdade de imprensa, decidira não tomar parte em novas campanhas políticas, já que o sistema democrático garante a pluralidade de opiniões. Agora, porém, patrocina a campanha “#Use amarelo pela democracia”, uma bandeira anti-bolsonarista de forte apelo no seu leitorado que equivale a desistir de conversar com todos os brasileiros.
“Um bom jornal é uma nação dialogando consigo mesma” (Arthur Miller). A renúncia a esse ideal tem amplas consequências jornalísticas, como indicam as críticas da jornalista Bari Weiss, que se demitiu do NYT.
Espelho, espelho meu. As redes sociais alimentam seus seguidores com o discurso que eles querem ouvir. O jornal capturado por um nicho selecionado de leitores procede quase da mesma forma. “Toda pressão empurra para publicar mais um artigo sobre como Trump é um monstro ou um palhaço”, constata Weiss. Ela não gosta Trump, mas rejeita o tribalismo político dos dois lados: “Cada vez mais, o NYT e outros veículos mostram uma pequena faixa do país, um mundo como os editores ou os leitores gostariam que fosse”.
A pluralidade ideológica dos colunistas de opinião, item no qual a Folha dá um banho no NYT, não soluciona o problema. A ferida situa-se no núcleo do fazer jornalístico, não em editoriais apropriadamente duros (mas evitando a pulsão panfletária expressa em frases como “estupidez assassina de Bolsonaro”), ou na indispensável denúncia das torrentes de fake news. O ponto crucial é que o universo da notícia sofre uma compressão e uma amputação.
O jornal que pronuncia sermões imita a linguagem do pregador ou do militante —e, nesse passo, inclina-se a conceder a eles um palanque desproporcional à influência que exercem. As pautas identitárias extremas saltam da periferia do debate público —isto é, de obscuros refúgios acadêmicos— para o centro do palco. A reportagem sujeita a trama factual a uma mensagem apriorística. O comício deles contagia, infecta, espalha o vírus; a nossa manifestação de protesto purifica, liberta.
Sermão é um ato religioso: uma cisão entre “nós” e “eles”. O jornal que só conversa com os seus inscreve-se na moldura da intolerância discursiva, potencializando as engrenagens de polarização das redes sociais. Mesmo quando fala sem parar de amor, saúde, igualdade, solidariedade, justiça e inclusão.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Jamil Chade: 2020 - O ano das verdades inconvenientes
O ano forçou a suspensão de um cegueira coletiva e deliberada. Poderemos fechar os olhos de novo, mas não há mais como apagar do inconsciente as imagens de um mundo insustentável
Na Alemanha, quando fronteiras em março e abril foram fechadas para conter o vírus da covid-19, rapidamente se descobriu que a primavera não seria igual às demais. Os dias eram cada vez mais longos e o desabrochar das flores não poderia ser detido. Mas, no campos de legumes da maior economia da Europa, faltava uma peça fundamental: as mãos escuras e ásperas de imigrantes para colher alimentos.
Em poucos dias, o que era impensável se transformou em um realidade: a Lufthansa organizou voos especiais para ir às margens da Europa buscar justamente aquelas populações indesejadas por uma parcela dos alemães. Com as fronteiras fechadas e sem eles, não haveria o tradicional aspargos nos pratos.
2020 marcará nossa geração. Haverá um antes e um depois na história. Mas seja qual for a forma pela qual o futuro irá narrar os acontecimentos deste período, não restam dúvidas de que 2020 foi o ano de verdades inconvenientes.
Ainda nas primeiras semanas da pandemia, a notícia de que o médico responsável por detectar o vírus pela primeira vez e alertar as autoridades tinha morrido gerou uma comoção. Não por conta apenas de sua descoberta. Mas pelos relatos de que ele foi alvo de uma repressão policial chinesa ao tentar avisar ao mundo de que um novo vírus ameaçava a humanidade. A verdade inconveniente, em 2020, é que a censura de uma ditadura é real e mata.
À medida que o vírus se espalhava, governos travavam batalhas comerciais para garantir máscaras e respiradores. Governos como o de Angela Merkel chegaram a colocar barreiras para impedir a exportação, enquanto relatos e proliferavam de operações já em pistas de decolagem para desviar carregamentos.
Não foi muito diferente quando a vacina chegou. Países ricos esvaziaram as prateleiras, ficando com bilhões de doses e um volume suficiente para imunizar várias vezes suas populações. Enquanto isso, países pobres fazem filas humilhantes em busca de garantias de que pelo menos uma parte desses avanços na pesquisa cheguem às suas populações.
A verdade inconveniente de 2020 é de que a ciência não beneficia todos ao mesmo tempo. E, uma vez mais, as inovações chegam primeiro para Margarets, e não para Marias. Chegam para Steven ou John, e não para Severinos.
Também foi o ano em que uma parcela de economistas foi confrontado por uma dura realidade que minava um discurso bem ensaiado de que o liberalismo cego, a privatização inclusive de serviços básicos e o papel apenas regulador da administração pública eram sinais de avanço e modernidade. Diante do colapso da economia mundial e da crise, se escutava por ruas escuras, corredores higienizados e manchetes: onde está o Estado?
2020 foi o ano ainda em que ouvimos do FMI um apelo aos governos: gastem o que tiverem de gastar para socorrer suas populações. Aquele mesmo que passou décadas ensinando governos as belezas de austeridade. O que está em jogo não são apenas vidas humanas. Mas a estabilidade de um sistema.
Nas periferias dos EUA, nos bairros mais pobres das grandes cidades britânicas ou nas favelas no Brasil, o vírus matou mais. A análise da Kaiser Health News, por exemplo, revelou que os negros americanos de 65 a 74 anos morreram de covid-19 cinco vezes mais do que os brancos na mesma faixa etária.
Quando as escolas fecharam e estudantes foram instruídos a usar a Internet de casa, “descobriu-se” rapidamente que aquele instrumento revolucionário da web não era universal. Dois terços das crianças em idade escolar do mundo - ou 1,3 bilhão de crianças de 3 a 17 anos de idade - não têm conexão à Internet em suas casas, de acordo com um relatório da Unicef e da União Internacional de Telecomunicações.
A verdade inconveniente é que, em 2020, a Internet não é para todos. Não há um fosso entre diferentes grupos. Há um oceano de distância entre a porção conectada do mundo e aqueles que apenas sonham com um lápis.
Quando a OMS sugeriu que todos lavassem suas mãos na esperança de frear a pandemia, descobriu que 25% dos postos de saúde pelo mundo não contavam com água. Também se descobriu que milhões de pessoas viviam no fio de uma navalha e que qualquer abalo os jogaria de volta a uma pobreza profunda. A fome voltou e o futuro ficou mais distante.
Quando governos tentaram sair ao socorro de suas populações, se depararam com a constatação de que direitos, formalidades e redes de proteção se limitavam apenas a uma minoria privilegiada.
Em 2020, mais de 2 bilhões de trabalhadores atuam na informalidade. Ou seja, 62% de todos os que trabalham no mundo. Nos países de renda baixa, essa taxa chega a 90%.
Quando bares, hotéis e restaurantes fecharam na rica e sofisticada cidade de Genebra, das sombras surgiu uma fila inesperada e inconveniente de milhares de pessoas esperando pela entrega de sacos de comida por grupos de caridade. Eram os imigrantes que, escondidos em cozinhas, lavanderias e nos bastidores do luxo, garantiam que o sistema funcionasse.
E quando, já exaustas, sociedades receberam a notícia de que uma empresa alemã havia descoberto uma vacina com uma alta chance de eficácia, a verdade inconveniente é que, de fato, tal conquista havia sido atingida por um casal de imigrantes turcos. Teriam eles conseguido entrar hoje na Europa?
Guias foram elaborados por autoridades sobre como se despedir daqueles que amamos. Mas não existe guia para a falta de um abraço, de um ombro ou de uma mão que oferece um lenço. A verdade inconveniente é de que o luto faz parte da vida.
Em 2020, um espelho foi colocado diante do mundo. E, como uma realidade que não se pode ignorar, esse mundo não teve o poder de escolher apenas os reflexos que interessavam. A imagem que despontou era intransigente. Não tolerou manipulações. Sim, ali estavam a genialidade humana, a solidariedade e a beleza. Mas também verdades inconvenientes que preferiríamos não ver.
Elas nunca estiveram escondidas e 2020 forçou a suspensão de um cegueira coletiva e deliberada.
Poderemos optar por fechar os olhos de novo. E certamente muitos escolherão esse caminho em 2021. Mas, no silêncio envergonhado de alguns, no pesadelo de noites de calor ou na reflexão íntima de nossos destinos comuns, não há mais como apagar do inconsciente as imagens de um mundo insustentável.
*Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
Ricardo Noblat: As duas faces de Bolsonaro no Natal da pandemia
Escolha a que lhe pareça mais verdadeira
Na véspera do Natal, o presidente Jair Bolsonaro ofereceu aos brasileiros duas versões dele mesmo – uma por cadeia nacional de rádio e televisão e a outra por meio das redes sociais.
Na primeira, ao lado de Michelle, sua mulher, ele leu um texto escrito por assessores. Na segunda, ao vivo, falou de improviso como costuma fazer sempre às quintas-feiras.
O Bolsonaro que tratou o novo coronavírus como “gripezinha”, receitou cloroquina para os doentes e disse que morreriam os que tivessem de morrer, ficou de fora do rádio e da televisão.
Ali foi servido um presidente da República que se solidarizou com as vítimas da pandemia, destacou que seu governo agiu para salvar vidas e empregos e que por isso acabou sendo bem-sucedido.
“Nessa ocasião, solidarizo-me com as famílias que perderam seus entes queridos. Externo meus sentimentos, pedindo a Deus que conforte os corações de todos”, afirmou Bolsonaro.
Em seguida, lembrou o pagamento do auxílio emergencial, o financiamento a micro e pequenas empresas e a medida que compensou parte da redução de salários em empresas.
No dia em que o Brasil ultrapassou a marca das 190 mil mortes pela Covid-19, o Bolsonaro das redes sociais preferiu atacar o governador João Doria (PSDB-SP).
“Eu quero o cidadão de bem armado. Com o povo de bem armado, acaba essa brincadeirinha de ‘vai ficar todo mundo em casa que eu vou passear em Miami’”, disparou Bolsonaro.
Que insistiu: “Pelo amor de Deus. Oh… calcinha apertada! Isso não é coisa de homem. Fecha São Paulo e vai passear em Miami. É coisa de quem tem calcinha apertada. Isso é um crime”.
Outra vez pôs em dúvida a segurança das vacinas que estão sendo desenvolvidas por vários laboratórios e que já começaram a ser aplicadas na Inglaterra, Estados Unidos, México e Chile:
– A eficácia da vacina em São Paulo parece que está lá embaixo, né? Não vou aceitar uma vacina que não está devidamente comprovada, que está em fase experimental.
Por fim, da vacina saltou para o uso de armas e declarou: “Ajudamos muita gente a comprar armas e munições. Quero que o brasileiro se arme. O povo armado jamais será escravizado”.
A primeira vez que Bolsonaro falou em armar o povo foi dentro de um quartel do Exército em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, seis meses depois de empossado na presidência da República.
Contra o regime militar de 64, a esquerda brasileira usou os slogans “O povo unido jamais será vencido”, “O povo organizado derruba a ditadura” e “Só povo armado derruba a ditadura”.
Feliz Natal para todos com o Bolsonaro que melhor lhe aprouver.
Eliane Cantanhêde: Mas vai melhorar...
Vacina, saúde, felicidade e esperança para a Nação, eficiência e responsabilidade para os líderes!
O melhor presente de Natal que Papai Noel pode embrulhar em esperança e otimismo para dar ao mundo é a vacina que salva vidas, economias e empregos. Mas os líderes políticos precisam colaborar, planejando, adquirindo e distribuindo com eficiência e responsabilidade as diferentes vacinas contra a covid-19, criadas em tempo recorde pela genialidade dos melhores cientistas e pelo compromisso dos melhores laboratórios de toda parte. É essa eficiência e essa responsabilidade dos líderes que andam em falta por aí, ou melhor, por aqui.
Em torno de três milhões de pessoas dos grupos prioritários já se vacinaram no mundo, mais de um milhão só nos Estados Unidos, inclusive o presidente eleito Joe Biden, mas o Brasil continua envolto numa nuvem de negacionismo, de um lado, e de afoiteza, de outro, deixando os cidadãos confusos, indecisos, descrentes. Esse é, ou seria, o pior dos mundos: ter vacinas, mas parte da sociedade se recusando a tomá-las.
O presidente Jair Bolsonaro só abre a boca para falar besteira, como aquele velho personagem de TV, e trabalha não a favor, mas contra a vacina, particularmente contra a vacina que já vem chegando ao País, a Coronavac. E o governador de São Paulo, João Doria, decidiu dar tiro no pé no final de um ano tão aterrorizante, quase no início de outro que pode ser a salvação da lavoura. Vá-se entender...
O governo federal errou na estratégia, se atrapalhou com prazos, pendurou equivocadamente todas as fichas numa só vacina, a AstraZeneca/Oxford, e agora tem dificuldades para ampliar negociações, por exemplo, com a Pfizer, que chegou primeiro no Reino Unido, nos EUA e por aí afora e está com a lista de encomendas congestionada.
Já o governo de São Paulo foi mais previdente, saiu na frente na parceria com a Sinovac da China e na articulação com o nosso Butantã e trouxe os primeiros lotes de vacina e de esperança ao Brasil, em torno de 10 milhões de doses para início de conversa. Mas João Doria, que colhia elogios por ter posto Bolsonaro contra a parede e chacoalhado o Ministério da Saúde, errou na pior hora.
Num dia, o governo paulista comunica ao distinto público que ninguém pode ir a lugar nenhum no Natal e no ano-novo. No dia seguinte, o governador quebra a regra e escapole para... Miami. Ninguém é de ferro e Doria teve um ano dificílimo, foi diligente, trabalhou incansavelmente e tem direito a um bom descanso. Mas política é símbolo. Sair no dia seguinte? Para Miami? Sem avisar?
Ficou a sensação, errada ou não, de que estava fugindo. Na boa, sempre está lá. Na dividida, larga na mão da equipe. Enquanto a mídia e as redes discutiam a ida e a volta de Doria, atingido em cheio também pelo teste positivo do vice Rodrigo Garcia, sua equipe inundava o País, Estados e municípios de frustração. Em vez dos relatórios sobre a Coronavac, só uma vaga declaração atestando a “eficácia suficiente” da vacina, seja lá o que isso signifique.
É assim que as doses de Coronavac chegam, mas a Anvisa, que estava a postos, ainda não começou a contar o tempo para a análise e a autorização de uso no Brasil, seja o emergencial, seja permanente. Notícia péssima para o País, para os cidadãos e para os Estados e municípios que já fecharam acordos para a vacina.
Bem... Hoje é Natal, dia de festa, alegria, amor e esperança. Hora de confraternização segura, sem aglomeração, sem embrulhar vírus para presente e sem jamais perder o otimismo, a crença na ciência, nas instituições, no nosso povo. A vida anda difícil, sim, mas vai melhorar, como conclama Martinho da Vila em Canta Canta, Minha Gente. E “amanhã há de ser outro dia”, já ensinava o grande Chico Buarque em outros tempos, também cabeludos. Feliz Natal!
Fernando Gabeira: Vacina, o fator que importa
Este ano que passou foi terrível. Mas o que virá será muito difícil ainda
O fato do ano foi a pandemia, a esperança de superação é a vacina. Há muitas coisas além disso, mas esse é o dilema essencial.
O processo de vacinação não significa apenas poupar vidas. É um imperativo econômico. A sorte do País vai depender de duas variáveis: o aumento do número de pessoas vacinadas e a queda do número das contaminadas.
O Brasil tem, segundo os especialistas, um bom sistema de imunização nacional, melhor do que muitos outros no mundo. Além disso, o País é um dos maiores fabricantes de vacinas do planeta, com dois centros de excelência, o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz.
Esses são os pontos positivos. Mas os negativos são muito fortes.
Bolsonaro não só negou a epidemia de covid-19, mas faz uma campanha de descrédito contra a vacina. Da mesma forma, seu ministro da Saúde, general Pazuello, acha que a expectativa em torno da imunização é exagerada. Se considerarmos que os dois principais responsáveis nacionais não estão na linha de frente – ao contrário, um deles, Bolsonaro, milita na retaguarda –, o processo poderá ser mais lento e acidentado.
Há muitas frentes abertas com esse cenário contraditório. Será preciso uma pressão dos setores produtivos que entendem a importância da vacina para a recuperação. Igualmente será preciso uma ação dos governadores no sentido de buscar a eficácia e preencher as lacunas abertas pela ausência de uma boa coordenação nacional.
Outra batalha se dará no campo das mentes e dos corações. Algumas das vacinas que já estão em uso, como a da Pfizer, são produto da medicina genética, trabalham com a técnica do RNA mensageiro. Essa novidade, que representa muito para o controle futuro de doenças, dá margem a inúmeras especulações sobre mudanças no sistema imunológico. Uma das mais bizarras é do próprio Bolsonaro, insinuando que a pessoa pode virar jacaré, homem falar fino e crescer barba em mulher. É apenas uma tentativa de afastar as pessoas da vacinação apelando para mitos, mas precisa ser combatida de forma inteligente e eficaz. A simples obrigatoriedade não funciona – o voto é obrigatório e houve mais de 30% de abstenção.
Nem tudo, entretanto, se vai decidir no front sanitário. O governo Bolsonaro, além de negar a pandemia, concentra-se na sua própria defesa, jogando todas as fichas no controle da Câmara dos Deputados. No início do ano, fracassaram as manifestações que pediam intervenção militar. Bolsonaro foi contido pelas instituições.
O Ministério Público do Rio desvendou a corrupção no gabinete do filho e, consequentemente, uma técnica usada por todo o clã Bolsonaro. Com a prisão de Fabrício Queiroz, o movimento de intervenção militar desapareceu, assim como menções a um artigo na Constituição que daria às Forças Armadas poder moderador. Bolsonaro procurou o Centrão e reinaugurou uma fase mais familiar e tradicional da política brasileira: o toma lá dá cá. Até nomeou um ministro para o Supremo Tribunal que alguns políticos do Centrão chamam de “o nosso Kassio”.
A disputa pelo controle da Câmara é vista pelo governo como fator decisivo para evitar processos de impeachment. O caso mais importante em investigação no momento são as chamadas rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro. Em tese, mesmo se elas tiverem existido no gabinete de Jair Bolsonaro, não deveriam atingi-lo no cargo, pois seria crime cometido antes da posse como presidente.
Acontece que, no empenho de blindar não só o filho, mas suas próprias atividades, Bolsonaro, segundo denúncia de Sergio Moro, tentou interferir na Polícia Federal do Rio. E, finalmente, foi descoberta uma articulação da Abin para proteger o filho do presidente e atacar a Receita Federal, de onde surgiram os dados que denunciaram Flávio Bolsonaro. Sobretudo este último caso, o de interferência da Abin, configura, se demonstrado, crime de responsabilidade.
São casos mais recentes, porque Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara, reteve 24 pedidos de impeachment por achar que não havia condições políticas para tal.
No quesito condições políticas, a análise da situação da Câmara dos Deputados não é a única variável. Bolsonaro perdia apoio na sociedade quando o Congresso aprovou a ajuda emergencial na pandemia. Isso foi capitalizado por ele, que conseguiu crescer nos setores mais pobres. Acontece que a ajuda emergencial, que se tornou a renda única de muita gente no Brasil, vai ser cancelada em 2021.
A principal margem de manobra é o crescimento da economia, que, por sua vez, depende diretamente do sucesso do plano de vacinação. Por questões ideológicas, não apenas pelas reservas quanto à vacina chinesa, mas também por uma posição obscurantista em relação às vacinas em geral, Bolsonaro é um grande obstáculo em 2021.
Não há volta atrás, ao momento em que alguns aliados pediam intervenção militar. Mesmo se conquistar a Câmara, contra uma grande frente democrática que se formou contra ele, dificilmente o Centrão, que o apoia, resistiria a uma intensa pressão social.
Este ano que passou foi terrível. Mas o que virá será muito difícil ainda.
Alon Feuerwerker: Só lá na frente
Assim é a política. O quase ex-presidente Donald Trump acha pouco os US$ 600 que o Congresso quer dar a título de auxílio a milhões de americanos por causa da crise provocada pela Covid-19. Trump quer que sejam US$ 2.000. O problema? O valor aprovado foi fruto de um suado acordo neste pedregoso fim de ano entre deputados e senadores democratas e republicanos (leia).
Para quem está indo embora, jogar para a plateia e provocar confusão tem um custo apenas relativo. No caso de Trump, com um ingrediente adicional: ele está muito longe de pretender se aposentar, e um de seus alvos principais desde agora são os homens e mulheres do partido dele que correram, uns mais rapidamente, outros mais devagar, a reconhecer a vitória de Joe Biden.
E no Brasil? A criação de empregos vai razoavelmente bem, segundo o Caged (leia). Mas a recuperação leva mais gente a procurar emprego, e daí crescem também as taxas de desemprego (leia). Uma dúvida que continua é se a recuperação vai resistir ao fim do auxílio emergencial, que deixará o palco junto com 2020. Mas isso só saberemos lá na frente.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Bernardo Mello Franco: Suprema carteirada na fila da vacina
Luiz Fux assumiu a presidência do Supremo com uma posse contagiante. Na contramão das recomendações sanitárias, o ministro insistiu numa cerimônia presencial seguida de coquetel. A festa deixou ao menos dez autoridades infectadas com a Covid. Além do homenageado, contraíram o vírus o presidente da Câmara e o procurador-geral da República.
A presidente do Tribunal Superior do Trabalho, que entrou na lista dos contaminados, precisou ser transferida para um hospital em São Paulo. Passou 16 dias internada e teve que receber oxigênio por um cateter. Chocada com o mau exemplo, a professora Ligia Bahia definiu a FuxFest como um “covidário”. “Foi um evento totalmente irresponsável”, resumiu.
Três meses depois da posse, o presidente do Supremo está de volta ao noticiário da pandemia. Ontem ele defendeu o tribunal pela tentativa de furar a fila da vacina. O órgão pediu à Fiocruz que reservasse sete mil doses para imunizar ministros e servidores.
Em documento oficial, o Supremo sustentou que a vacinação vip seria “uma forma de contribuir com o país nesse momento tão crítico”. Questionado, Fux disse não ver nada de errado na carteirada. “Temos de nos preocupar para não pararmos as instituições fundamentais do Estado”, justificou.
O ministro informou que o tribunal fez o pedido “de forma delicada, ética”. Delicadamente, a Fiocruz respondeu que destinará suas vacinas ao Ministério da Saúde, sem atender a “qualquer demanda específica”. As doses serão distribuídas segundo os critérios do Programa Nacional de Imunizações. As regras não mencionam o uso da toga como fator de risco para a Covid.
O Supremo não é a primeira instituição a reivindicar preferência na distribuição da vacina. No início do mês, promotores paulistas pediram que a categoria fosse incluída “em uma das etapas prioritárias” da imunização. Depois foi a vez de o Superior Tribunal de Justiça tentar furar a fila da Fiocruz. A turma do “vacina pouca, meu braço primeiro” nunca admite estar em busca de privilégios. Ontem Fux disse ter uma “preocupação ética” com o assunto.
Celso Ming: Vacina não é só vacina
População vacinada produz impacto positivo na economia, nos investimentos, na retomada do emprego, na educação, na cultura e na vida social
O Instituto Butantan adiou o anúncio do nível de eficácia da vacina Coronavac, que deveria ter acontecido hoje. A razão admitida foi a de que ficou necessário consolidar os resultados dos testes finais com os dos outros centros que vêm desenvolvendo o produto na China, na Indonésia e na Turquia.
Mesmo que o governo do Estado de São Paulo mantenha o início da vacinação para o dia 25 de janeiro e mesmo que o Instituto Fiocruz, do Rio de Janeiro, também obtenha dentro de mais algumas semanas a vacina britânica da Oxford, não basta apenas contar com a aprovação da Anvisa, a agência reguladora do setor, para dar início ao processo de vacinação em massa, mesmo em caráter emergencial.
Ainda é preciso definir como o processo de imunização acontecerá. É preciso saber quais grupos terão prioridade, com que vacina, em que condições e com que logística será aplicada. Começar pelos profissionais de saúde e com os idosos de apenas um Estado é bem diferente de atender a esses segmentos preferenciais na maior parte do território nacional.
Esses temas se tornaram essenciais, especialmente depois das confusões em que se meteram o presidente Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello.
Como em tantas outras questões, Bolsonaro não se limitou a fazer opções erradas. A maneira como vem lidando com a vacina se transformou em tiros em seus próprios pés. Se é para condenar a quarentena e o isolamento social para que a economia não desabe e, assim, produza estragos ainda maiores do que os da doença – como ele próprio argumentou –, então seria melhor dar toda a força para a vacina, o instrumento que abriria o caminho para a recuperação da economia.
Essa postura negacionista em relação à covid-19 atendeu às necessidades eleitorais do presidente: com uma economia em desabamento, como o que se seguiria ao isolamento social, Bolsonaro perderia ainda mais apoio político e não teria condições de se reeleger, como pretende. No entanto, porque viu que a vacina salvadora do Butantan injetaria ar quente no balão de seu adversário político, o governador João Doria, Bolsonaro resolveu atacar não só a Coronavac, mas quaisquer outras vacinas. Com isso, viu seu próprio balão murchar ainda mais.
Uma população vacinada não produz impacto positivo apenas na economia, nos investimentos e na retomada do emprego. Produz, também, em outras atividades: no ensino, no acesso à cultura, na vida familiar e na vida social. É preciso repensar e enfrentar, por exemplo, os problemas que surgirão com o retorno às aulas, mesmo antes da vacinação em massa. Pergunta inadiável: haverá vagas para os alunos que perderam o ano e que se somarão aos que passaram a atingir a idade escolar? As disparidades aumentaram. A população mais pobre não conseguiu acesso ao ensino nem por meio digital, porque não tem computadores.
Hoje a vacina ainda é produto escasso. Há apenas cinco com eficácia comprovada. Mas logo virão outras. Pelos levantamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS), há no mundo 223 em desenvolvimento, das quais 10 estão em fase final de testes.
Eliane Brum: Quando o vírus nos trancou em casa, as telas nos deixaram sem casa
A cultura do ‘home office’ e das ‘lives’ e dos ‘meetings’ pedalou a nossa porta
Encerro 2020, o ano que anuncia que o tempo das pandemias chegou, com estranhos sintomas. A ideia de fazer mais uma live, mais um meeting pelo Jitsi, Zoom ou Google, ou mesmo pelo WhatsApp, me deixa fisicamente enjoada. Escrever, como faço agora, enquanto as notícias e as mensagens pipocam num canto da tela, me deixa tonta e exausta. Amigos me pedem encontros de Natal, happy hours de Ano-Novo. Quero. Mas não consigo. Que o excesso de telas cansa e pode causar transtornos e até doenças, sabemos. A experiência atual, porém, vai muito além disso. O home office, as lives e os meetings mudaram oconceito de casa. Ou talvez tenham provocado algo ainda mais radical, ao nos despejar não apenas da casa, mas também da possibilidade de fazer da casa uma casa.
A maioria dos que tiveram a chance de ficar entre paredes durante a maior parte do ano para se proteger do vírus vive, como eu, uma experiência inédita na trajetória humana: a de estar 24 horas dentro de casa e, ao mesmo tempo, não ter nenhuma casa. A pandemia nos levou ao paradoxo de nos descobrirmos sem teto debaixo de um teto. Mais do que sem teto, nos descobrimos sem porta. Sem porta, não há chave para nenhum entendimento.
Sim, aqueles que têm a chance de trabalhar no sistema de home office, o que significa trabalhar a partir da sua casa, são privilegiados num planeta encurralado pelo vírus. Pensar sobre a desigualdade no tempo das pandemias é pensar sobre quem pode desempenhar suas funções profissionais “remotamente” e quem não pode. A maioria dos que não podem trabalhar remotamente é composta pelos mesmos que têm mais chances de figurar em todas as piores estatísticas: os mais pobres, os negros, as mulheres.
Afirmar que a pandemia expõe e agrava a desigualdade social, de raça e de gênero é uma obviedade que várias pesquisas comprovaram ao longo de 2020. A iniquidade abissal do Brasil —e, em menor escala, da maioria dos países do planeta— impõe como privilégio aquilo que é um direito básico, o de ser capaz de se proteger de uma ameaça. Assim, é como privilegiada que discuto aqui a experiência de nos descobrir sem casa, uma experiência que não é apenas subjetiva. Apesar das paredes de concreto que nos cercam, nos sentir sem casa é uma experiência bem concreta.
O que é uma casa?
O que é uma casa? Essa pergunta entrou na minha vida de jornalista junto com a imposição de Belo Monte ao rio Xingu e aos seus povos. Para os ribeirinhos expulsos de ilhas e da beira do rio para a construção da hidrelétrica, casa era uma ideia concretizada a partir de uma experiência de viver e de ser floresta. Para os funcionários da Norte Energia SA, a empresa concessionária da usina e outras terceirizadas a seu serviço, assim como para os advogados que consumavam a “negociação” em que nunca se negociou nada, porque tudo foi imposto, casa era algo referenciado na experiência de viver em cidades do centro-sul do Brasil.
Como quem detinha —e detém— o poder era a empresa, o valor da indenização e de outras compensações foi determinado à revelia da experiência cultural e também objetiva de quem vivia um conceito expandido do que é uma casa, um conceito arquitetônico diverso do que é uma casa, um outro tipo de material para criar uma casa. Enfim, para quem vivia uma experiência inteiramente diversa de fazer casa que foi esmagada pelos tecnocratas. Não apenas por ignorância, mas porque, ao ter o poder de determinar que o que era casa não era casa, ou que o que era casa não era uma boa casa, o valor monetário da indenização e também as compensações seriam muito mais baixos ou, em alguns casos, inexistente.
Testemunhar essa violência implantou a questão do que é casa definitivamente na minha cabeça, e eu a expandi para outros territórios objetivos e, principalmente, subjetivos. Em minha experiência como jornalista, já escrevi reportagens sobre um homem que fez uma casa dentro de uma grande árvore, em plena zona urbana de Porto Alegre. Já contei de uma família que fez casa embaixo de um viaduto, convertendo o cotidiano numa experiência onde cabia preparar o café da manhã, arrumar e levar os filhos para a escola todos os dias para garantir que tivessem educação formal. Já testemunhei o que se tornou uma das reportagens mais impactantes da minha vida, na qual um grupo de crianças de rua fez casa nos esgotos da cidade. Chamavam a si mesmos de Tartatugas Ninja, como no filme que então estreava nos cinemas.
Conheci também experiências diversas de casa com diferentes povos indígenas. Algumas coletivas, como a dos Yanomami, outras unidades familiares, sendo que também aí há diferentes entendimentos sobre qual é a teia de relações que constitui o que cada etnia chama de família. As humanidades são variadas e experimentam diferentes formas de tecer relação com a natureza. Ou, no caso da minoria branca e dominante —essa que chama sua experiência de civilização e equivocadamente a considera universal ou até mesmo superior—, romper com a natureza.
Andando pelos tantos Brasis em busca de histórias para contar, vi as pessoas inventarem todo o tipo de casa, até as invisíveis, quando é necessário fantasiar paredes nas esquinas movimentadas de cidades gigantes como São Paulo, para fazer limite simbólico entre a família e o mundo sempre ameaçador para os que pouco têm além do próprio corpo. E, claro, já entrei em mansões e também em palácios. Parte do encanto de ser jornalista é a possibilidade de ter acesso a lugares aos quais jamais teríamos em outras profissões.
Apesar da diversidade de experiências, há algo comum a essas tantas construções do que é uma casa, algo para além das diferenças de tamanho, de material, de arquitetura, de contexto e de geografia. É a ideia da casa como o lugar onde cada um faz seu espaço próprio, o lugar que cada um reserva para si ou para a família ou para o grupo. É a ideia da casa como refúgio. É a ideia da casa como proteção contra chuva e contra sol excessivo, contra animais que podem querer nos converter em jantar, contra aqueles que não conhecemos e por isso não sabemos se querem ou não nos fazer mal. É a ideia da casa como espaço de abrigo e de descanso, como um mundo dentro do mundo onde fazemos aquilo que é mais importante, como nos alimentar, nos reproduzir e amar.
Se há ‘office’, não há ‘home’
Quando a casa deixa de representar esse conjunto de significados, não importa a forma que ela tenha, há um distúrbio. Pode ser porque o abusador mora nela —seja ele o pai, um padrasto ou um tio que molesta, seja um marido ou companheiro violento. E então a casa já não garante mais segurança, proteção e abrigo. Seja porque a casa foi invadida e saqueada, seja porque algo violentamente disruptivo aconteceu desde dentro e a casa passa a guardar uma memória com a qual temos dificuldade de lidar. A casa então já não pode mais ser refúgio. A casa então se descasa, porque sozinhos ou acompanhados somos, de qualquer modo, casados, no sentido de que fizemos casa. E fazer casa é preciso.
Se tornar descasado, no sentido de sem casa, é o que está acontecendo hoje com aqueles que, desde março, fazem home office, expressão em inglês para apontar que a casa, no sentido de lar (home), se tornou também o escritório (office), no sentido de local de trabalho. A expressão home office, porém, é ardilosa. A experiência cotidiana mostra que, se há office, não há home.
Quando o trabalho invade a casa no modo 24(horas)X7(dias) por semana, perdemos a casa. E com ela o descanso, o refúgio, o remanso. E também o espaço de intimidade que só será alcançado pelos de fora se quisermos abrir a porta. Perdemos principalmente a porta. E uma casa sem porta não é uma casa. Mesmo que essa porta seja invisível, caso dos moradores de rua, essa barreira concretizada pela imaginação cumpre o papel simbólico de fazer borda, dar limite. No modo pandêmico, ao contrário. Mesmo que materialmente exista uma porta de madeira ou mesmo de ferro, grossa e cheia de fechaduras complicadas, seguidamente precedida da porta do prédio e ainda da porta externa do edifício, como hoje vive parte da classe média urbana, ainda assim não há porta nenhuma porque já não há limite para o que invade a casa pelas telas —todas as telas— desde dentro.
Essas muitas portas e fechaduras que se multiplicaram para supostamente nos manter seguros só são capazes de botar algum limite nos assaltantes clássicos. Hoje, porém, há outro tipo de assaltante, que pode nos roubar algo muito mais importante, até mesmo insubstituível e seguidamente irrecuperável do que bens materiais. A invasão contemporânea é aquela que nos rouba o tempo e sequestra o espaço da vivência dos afetos, da intimidade, dos prazeres e das subjetividades. Tempo no sentido definido pelo grande pensador Antônio Cândido (1918-2017), tempo como o tecido das nossas vidas, como tudo o que temos, como algo não monetizável. Esse assalto, a médio e longo prazo, pode provocar muito mais estragos no corpo-mente de cada um do que o que convencionamos chamar de assalto.
A tecnologia, e de forma totalmente transtornante e veloz, a Internet, já haviam nos tirado de casa quando em casa. Talvez o primeiro ataque tenha sido o telefone, mas lembro que não era educado telefonar para a casa das pessoas depois de certa hora da noite, em geral cedo, e antes de certa hora da manhã, tampouco na hora das refeições, que costumavam ser feitas na mesma hora em todas as casas. E jamais um chefe ligaria para a casa de um subordinado no fim de semana ou feriado se não fosse literalmente um caso de vida e morte. Mesmo no jornalismo, só éramos perturbados na nossa folga se literalmente caísse um avião ou houvesse um massacre em algum lugar que exigisse uma viagem imediata. E, ainda assim, com um pedido de desculpas por perturbar nossa privacidade e interromper nosso descanso logo na introdução.
A Internet mudou as convenções sociais muito rapidamente, antes que a maioria sequer pudesse compreender a Internet e antes que mesmo seus criadores fossem capazes de entender seu impacto. A Internet, como quase tudo, se fez e se faz na própria experiência. Assim como as pessoas acham que podem escrever nas redes sociais o que lhes vêm a cabeça, sem filtros ou freios, apenas porque o outro supostamente estaria à sua disposição ou, com frequência, seria seu saco de pancada, também se tornou corriqueiro mandar mensagens de WhatsApp a qualquer hora ou por qualquer motivo ou mesmo sem motivo algum. Ninguém enviaria 10 cartas para alguém no mesmo dia, mas quase todos acreditam ser perfeitamente “normal” enviar mensagens e memes e vídeos e links numa só manhã, confundindo poder com dever.
Essa é justamente uma época em que, dos cidadãos aos governantes, todos acreditam que, porque podem, devem. Ou, mais provável, o questionamento sobre dever ou não fazer ou dizer algo foi deletado e, assim, o único verbo a ser exercitado é o “poder”. O tempo da Internet, que é o tempo da velocidade, eliminou para muitos a etapa obrigatória da reflexão. Estamos todos pagando um preço altíssimo por essa mudança brusca e ainda subdimensionada que encolheu ou mesmo eliminou o tempo dedicado à ponderação antes da ação ou reação. Seu impacto é a corrosão de todas as relações, a começar pelos governantes, que passaram a se comunicar pelas redes sociais, conectados diretamente com seus eleitores, em alguns casos com seus fiéis, mas desconectados do ato de responsabilidade que é governar.
Tudo se complica infinitamente mais quando o mundo do trabalho invade a casa. Com a comunicação facilitada e imediata permitida pela tecnologia, os limites que antes eram determinados pela carga horária da jornada passaram a ser ultrapassados ou mesmo ignorados. A precarização das condições de trabalho, o apagamento das fronteiras entre vida privada e profissional, o devoramento do tempo, e com ele, a corrosão da vida, já tinham se tornado uma questão crucial da nossa época.
Com o home office, as condições de trabalho se precarizaram ainda mais. A vida foi transtornada com maior rapidez do que no acontecimento da Internet. Ainda que veloz, a internet foi ao menos progressivamente veloz. Já o home office se impôs literalmente da noite para o dia, determinado pelas necessidades de quarentena ou lockdown. E, para muitos, com o home office do companheiro ou companheira e também com as crianças sem escola.
As crianças, por sua vez, foram convocadas a compreender o incompreensível: que a casa deixou de ser casa para se tornar o lugar de trabalho onde os pais se tornam ainda menos acessíveis e, por todas as razões, com menos paciência e disponibilidade. Os pais estão totalmente presentes e, ao mesmo tempo, quase que totalmente ausentes. Quase que inteiramente em outro lugar, mesmo que inteiramente dentro de casa. Os impactos dessa experiência sobre as crianças de todas as idades estão sendo muito mal dimensionados. É muito difícil para as famílias cuidarem de algo que os pais nem sequer entendem e com o qual também sofrem muito. Também os pais sentem que lhes faltam ferramentas para lidar com a casa transtornada pela pandemia.
Sintomas de “descasamento”
Acompanhando minha própria experiência, assim como a de amigos e conhecidos, percebi que, no início, ficar em casa foi bem interessante. O álibi perfeito para quem já não suportava mais viajar e correr de um lado para o outro, de um mundo pro outro. Para quem vive em cidades grandes, o deslocamento para o trabalho costuma ser estressante, custoso e demorado. Assim, as pessoas acreditaram que, de imediato, ganhariam no mínimo uma hora a mais de tempo para si. Muitos se iludiram que leriam todos os livros empilhados na cabeceira e finalmente ficariam atualizados com os filmes e séries. Trabalhar de pijama ou moletom também soou confortável. A casa oferecia ainda o bônus de manter longe colegas de trabalho chatos e chefes abusivos.
Muita gente já dizia que não voltaria mais ao escritório ou ao consultório ou para o que fosse porque estava provado que era possível e melhor trabalhar de casa. Principalmente, várias empresas começaram a fazer as contas de quanto poderiam economizar quando cada funcionário virasse uma ilha em caráter definitivo. Muitas dessas empresas, inclusive, pouco dispostas a pagar os custos dessa ilha que é, afinal, a casa da pessoa. Defendem, portanto, que deveria ser problema de cada indivíduo pagar as contas de luz, internet etc., mesmo que os custos tenham aumentado pelas necessidades profissionais de uso.
E então começou o império do Big Brother, e a rotina passou a ser determinada pelo agoniante, às vezes enlouquecedor, ruído das mensagens entrando pelo Whatasapp ou dos e-mails se enfileirando na tela. Claro, se pode “emudecer” o som das mensagens, mas quem vai emudecer o chefe, o fornecedor, o fulano que ficou de dar notícias sobre prazos, o sicrano que vai enviar informações importantes, o beltrano que precisa de documentos? As horas foram invadidas além de qualquer precedente. Como emudecer ou mesmo desligar os celulares na hora de dormir se pessoas queridas estão sozinhas no meio de uma pandemia e podem precisar de ajuda a qualquer momento?
Se antes era impossível marcar um número muito grande de reuniões por dia, porque havia o tempo do deslocamento, agora as pessoas estão em casa. Tornou-se possível triplicar o número de encontros (ou desencontros), às vezes sem hora para acabar. As lives e os meetings, que permitiram que o mundo se conectasse para traçar estratégias para enfrentar a pandemia, fazer vaquinhas de solidariedade ou apenas conversar, se tornaram fáceis demais e por isso mesmo excessivos demais. Todos querem fazer meetings e lives por qualquer motivo. Tudo vira imediatamente performance. As horas que se acreditava liberar ao eliminar o tempo de deslocamento entre o trabalho e a casa foram engolidas... pelo trabalho. E outras que não estavam lá foram adicionadas. A desculpa social de “não vou estar em casa” ou “dei uma saidinha” desapareceu. Todos agora sabem onde cada um está. Em casa.
Essa foi a sequência alucinante de acontecimentos que pedalaram a porta da casa. Sem porta, logo a casa deixou de ter paredes e, sem paredes já não fazia mais sentido nenhuma estrutura. Nos tornamos sem porta e com janelas demais, mas um tipo de janelas pelo avesso, na qual somos observados desde dentro, em vez de contemplar o exterior. Reproduzimos a experiência excruciante dos animais confinados em zoológicos, criados em cativeiro.
A tecnologia que nos uniu, essencial para enfrentar essa pandemia, também nos escravizou. Não importa onde estivermos, as telas nos acompanham. No bolso, na bolsa, na mão, no pulso. Os mais sensíveis sentiram primeiro e sofreram mais. Uma amiga passou a não enxergar o que estava na tela. Ou melhor, enxergava, mas um borrão. Nenhuma doença foi constatada. Os relatos em geral apontavam sintomas que impossibilitavam seguir diante da tela. Há pessoas com enxaquecas que nunca antes haviam tido enxaquecas. Gente que se orgulhava de dormir como um cadáver que passou a ter insônia ou sono interrompido. Eu mesma passei a sentir enjoo diante da tela, mas enjoo seletivo. Reuniões de trabalho e meetings com muita gente me provocam náuseas, mesmo quando adoro todos que estão na tela.
Me sinto um corpo que não suporta mais tanta exposição. Minha capacidade subjetiva ainda não encontrou caminhos para criar paredes e portas na minha mente, fazer um refúgio onde não há nenhum, fazer de mim a casa que perdi. Tudo e todos entram casa adentro, na hora que bem entendem, pela tela do computador, pela tela do celular, pela tela do tablet. Informações que não pedi, vídeos que não me preparei para ver, comentários que preferia não ouvir. Gente desconhecida de repente está na minha sala ou mesmo na minha cama. E já não é mais tão fácil desligar todas essas telas porque o trabalho depende delas, as informações que eu realmente preciso dependem delas, a certeza do bem-estar de pessoas que amo e que fazem quarentena sozinhas dependem delas, a vida social depende delas. Nunca socializei tanto quanto nessa pandemia e não sou exatamente alguém que gosta de conversar o tempo todo. Sinto falta de estar realmente sozinha, de estar realmente em silêncio, de estar realmente no meu tempo e no meu ritmo.
Uma porta para importar o que importa
Esses sentimentos e sintomas, porém, são apenas a barbatana que desponta acima da superfície. Abaixo dela, há um tubarão inteiro. Obcecados por planejar a volta de algo que andam chamando de “normal”, esquecemos de olhar para a profundidade da transformação que nossa vida está sofrendo. Somos resultado, como espécie, de um longo processo de evolução e de adaptação, pelo menos dois milhões de anos desde o Homo erectus. Mas, como humanos contemporâneos, nossa existência sofreu uma brutal transformação com a internet e, em 2020, com a primeira pandemia na época das telas.
Nosso corpo não processa uma mudança tão monumental em tão pouco tempo. Desde que o novo coronavírus apareceu, a principal preocupação dos vários setores da sociedade é com os custos financeiros da pandemia. É urgente falar muito mais dos custos psicológicos, das crianças que só conhecem paredes e têm medo de outras crianças porque aprenderam que são ameaças, dos velhos confinados em solidão, dos adultos submetidos a uma pressão inédita e a um nível de convivência também inédito. Esse custo é alto e suas sequelas poderão durar uma vida.
Tratamos a pandemia como uma anomalia, mas a real anomalia é o mundo que criamos dentro do mundo. Ou melhor: o mundo que a minoria dominante dos humanos criou dentro do mundo, submetendo todos os outros, subjugando a maioria. O custo desse mundo ameaça nossa existência no planeta, isso que chamamos crise climática. A pandemia é consequência da corrosão da vida causada pelo capitalismo neoliberal, ao destruir o habitat de outras espécies, e pelo modo de produção em que as mercadorias circulam ampla e velozmente pelo globo, assim como muitos de nós a bordo de aviões altamente poluentes.
A segunda onda de covid-19 mostrou que anomalia produz anomalia. Nosso modo de vida é insustentável, o que fizemos com as outras espécies agora pode nos matar. É uma fantasia perigosa acreditar que é possível voltar à anomalia que chamamos de normal e seguir tocando a vida como se cada ato não tivesse consequências em cadeia.
Em 2020, perdemos definitivamente a casa. Que, além de perder a porta, se tornou também uma prisão, a pior espécie de prisão, aquela que foi criada pelos nossos atos. E o que é uma prisão senão um lugar em que estamos confinados mas não temos privacidade, em que somos acessados a qualquer hora, em que cada gesto é controlado e monitorado, onde as visitas são reguladas e não pode haver toque? O que é uma prisão senão um lugar em que não temos escolha sobre o que pode ou não entrar? Um lugar em que estamos a mercê de todas as outras forças?
Do lado de fora, nas ruas, há três tipos de experiências. A daqueles a quem foi arrancado o direito fundamental de se proteger, porque seu trabalho não pode ser feito em casa e os empregadores e o Estado não os bancam. A daqueles que fazem serviços essenciais, como os profissionais de saúde. E a da maioria de pessoas, que poderia fazer quarentena mas não faz, porque não se importa com a vida de todos os outros, e assim contribui de forma decisiva para a ampliação da contaminação e pelo maior número de vítimas. Esse grupo numeroso de boçais é cínico a ponto de empunhar a bandeira da liberdade, conceito que corrompem ao convertê-lo em liberdade de matar.
Para enfrentar a pandemia é preciso enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies. Para enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies teremos que criar muito rapidamente uma vida realmente sustentável. Para criar uma vida realmente sustentável temos que nos tornar outro tipo de gente.
Diante da magnitude do desafio, podemos começar organizando a casa. Para organizar a casa é preciso recuperar a casa, essa que é refúgio. E então parar de destruir a casa comum que é o planeta. Não é coincidência que no momento em que enfrentamos as consequências da destruição de nossa casa comum também enfrentamos a experiência subjetiva de perder a possibilidade de fazer casa da casa. É o mesmo nó. Para sair dele, precisamos recuperar a porta, e com ela a possibilidade de voltar a importar —colocar para dentro, deixar entrar— apenas o que realmente importa. A porta da casa é a única saída.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Vinicius Torres Freire: Economia deve fraquejar no verão vermelho da Covid-19
Metade final de 2021 deve ser melhor, mas desordem na saúde deve causar estagnação
A segunda metade do ano que logo vem pode ser de notícias melhores na economia se o governo não sabotar o país. O verão de 2021, porém, vai ser uma “fase vermelha”, como se diz aqui em São Paulo das restrições mais graves para comércio e serviços na epidemia.
Não quer dizer que a economia vá embicar para baixo ou que embique de modo relevante. Mas os indícios são de que deve haver estagnação, uma parada da recuperação desde o fundo do poço de meados do ano. Quais são esses indícios?
O Índice de Confiança do Consumidor medido pela FGV caiu de modo significativo de novembro para dezembro e a intenção de ficar na retranca nos gastos é alta. O repique da epidemia, o fim dos auxílios emergenciais, a desordem no programa de vacinação e o desgoverno em geral devem derrubar os ânimos.
A inflação medida pelo IPCA deve ficar entre 5,5% e 6% ao ano de abril a agosto. É uma dentada cruel na renda real e uma injeção de desânimo na veia do povo miúdo.
No estado de São Paulo, o número de internações em UTI por Covid-19 parece ter desacelerado nesta semana, mas ainda é cerca de 60% maior que no início de novembro. O número de mortes é 86% maior. No conjunto do país, o morticínio cresceu mais de 100% nesse período.
Mesmo sem restrições formais a movimentação e atividade econômica, o medo causa receio ou paralisa. Continuam parados, muito prejudicados ou voltam a cair os negócios de turismo, convenções, feiras, viagens, esportes, cultura, entretenimento em geral, serviços de saúde e de educação, restaurantes, bares, lanchonetes, salões de beleza, academias. A movimentação menor pelas cidades derruba a venda dos lojistas. Tudo isso é um pedaço enorme da economia. O repique da Covid-19 já faz estragos nos faturamentos, é a conversa quase geral, mesmo sem medidas restritivas.
Quanto à política econômica, mais especificamente sobre gastos do governo, é agora improvável que aconteça uma explosão, barbeiragem ou gambiarra mais nociva até fevereiro, pelo menos. Mas não há governo na economia e não se sabe se haverá, menos ainda enquanto não houver a eleição dos comandos de Câmara e Senado, em fevereiro. Até lá, haverá arrocho por inércia e inépcia do governo.
Ainda assim, a falta de rumo (qualquer rumo racional), a persistência da epidemia e a sabotagem federal do programa de vacinação não devem animar contratações de trabalho e de novos investimentos em expansão de empresas e construções. Haverá certamente uma massa de pessoas, talvez vinte milhões ou mais, que cairá em miséria, mesmo no melhor cenário médio.
Nesta quarta-feira pode ser que tenhamos uma grande e boa notícia sobre a vacina comprada pelo governo de São Paulo. Uma vacina eficaz (perto de 90%) e um programa de vacinação com ampla cobertura (mais de 90% das pessoas) atenuaria a tristeza horrível por tanta morte e daria esperança econômica.
A taxa básica de juros está baixa, há oferta razoável de crédito bancário, o preço das commodities está bom, há alguma poupança financeira represada nas famílias remediadas. Há pelo menos alguns meios para que possamos continuar a subir desde o fundo do poço da epidemia. Com responsabilidade sanitária na virada do ano e no verão, a retomada da retomada poderia vir mais cedo.
Se Jair Bolsonaro e sua sabotagem criminosa da vacinação puderem ser contidos, melhor ainda _o país, governadores e Supremo tentamos improvisar um governo na área da saúde.
No entanto e por enquanto, o risco é de a recuperação fraquejar no verão vermelho da Covid-19.
Zuenir Ventura: E Biden não virou jacaré
Presidente eleito dos EUA, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina da Pfizer/BioNTech
Além de tudo, a vacinação em massa seria um bom negócio para o país. É o que dizem duas autoridades econômicas do governo: o presidente do Banco Central e o ministro da Economia. Roberto Campos Neto afirma que investir em vacina é mais barato do que o pagamento de benefícios emergenciais. Já Paulo Guedes traduz isso em números. Em entrevista, ele lembrou que o auxílio emergencial chegaria a R$ 55 bilhões por mês, enquanto a vacinação da população custaria menos da metade, R$ 20 bilhões.
Isso não deveria ser novidade. Desde criança, me acostumei ao ritual de ser picado contra diversas doenças, numa boa. Doía um pouquinho, mas valia a pena, porque fazia bem à saúde da gente e do país. Nunca chegou a me fazer chorar.
Até que ultimamente comecei a ouvir perguntas disparatadas sobre possíveis efeitos que seriam causados pela imunização. Ideia de algum maluco, como a hipótese de que quem tomasse corria o risco de virar jacaré. Parei de rir quando soube que não era uma fake news das redes sociais. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi quem, num evento na Bahia, advertiu os ouvintes assustados: “Se você virar um jacaré, é problema seu”.
Ele não costuma dizer coisa com coisa, mas dessa vez garantia, com a autoridade de presidente da República, acredite, que o contrato da Pfizer/BioNTech isentava o laboratório da responsabilidade pelos efeitos colaterais. E dava mais exemplos: “Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) não têm nada a ver com isso”.
O teste definitivo aconteceu anteontem, quando o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina, justamente do laboratório contra o qual Bolsonaro lançara a advertência, o Pfizer/BioNTech.
Mas até ontem pelo menos, até o momento em que escrevo esta coluna, tudo indica que Joe Biden não virou jacaré. Se isso tivesse acontecido, acho que não só eu, mas o mundo todo teria sabido.