coronavirus
Míriam Leitão: A nossa dor multiplicada
O Brasil chegou ontem ao número impensável e inaceitável. Duzentos mil brasileiros perderam a vida na pandemia do Covid-19. O coronavírus mata no mundo inteiro, mata mais nos países cujos governantes desprezam a vida humana, a prudência e a ciência. É o caso aqui. Ontem, o presidente Bolsonaro, em defesa do assunto que ele acha importante, o voto impresso, referiu-se “a tal da pandemia”. A “tal”, que ele ainda subestima, enlutou lares, levou aflição a milhões de brasileiros, lotou os hospitais, os cemitérios e nos colocou no segundo lugar em mortes do mundo.
Ontem foi dia de uma boa notícia, pelo menos. Isso não é pouco no tempo de tanto luto. O Instituto Butantan anunciou que a vacina que desenvolve junto com a Sinovac chinesa completou a fase 3 dos testes clínicos. Segundo o governo de São Paulo, evita 100% dos casos graves e 78% dos casos leves. Ficaram faltando dados, na interpretação de alguns analistas. O mais importante deles é sobre o percentual dos que tomaram a vacina que não contraíram a doença. Não ficou claro para quem acompanhou a coletiva do governo paulista qual é, afinal, a taxa de eficácia na imunização, que é afinal o objetivo de qualquer vacina. Os testes no Brasil foram feitos com o grupo que está mais exposto: o pessoal da saúde. Isso foi realmente um teste bem mais robusto do que o feito na população em geral. O pedido de registro emergencial vai ser feito à Anvisa nesta sexta-feira e já estão no solo brasileiro mais de 10 milhões de doses. Foi o momento de alívio, num dia tenso e triste.
No Ministério da Saúde, o general Pazuello apareceu na entrevista, coisa que não tem feito faz tempo. Chegou agradecendo o trabalho dos jornalistas. Era falso. Ao longo de 62 minutos ele deu um espetáculo de autoritarismo castrense. No tom que os militares de alta patente costumam falar aos recrutas, o ministro repreendeu e deu ordens aos repórteres. “A gente repete, repete, repete e a notícia sai distorcida”, disse. Em seguida, proibiu a imprensa de analisar os fatos. “Me mostrem quando foi que um brasileiro ou a população brasileira delegou aos redatores ou a qualquer um dos senhores a interpretação dos fatos. Nós não queremos a interpretação dos fatos dos senhores.”
Eu interpreto que Pazuello nada sabe de comunicação e entrou em contradição com os fatos várias vezes. Para citar uma. Ele disse que o governo federal comprará 100 milhões de doses da Coronavac, do Butantan, e essa é de fato uma excelente notícia. Mas em seguida afirmou que isso havia sido dito várias vezes, que inclusive foi assinado um memorando de entendimento em outubro.
O ministro deve ter esquecido do episódio constrangedor que envolveu esse memorando. Pazuello assinou no dia 21 de outubro, o protocolo para a compra de 46 milhões de doses. No mesmo dia o presidente Bolsonaro afirmou que não compraria a vacina. “Já mandei cancelar”, disse Bolsonaro sobre o texto assinado pelo ministro. E, como se não fosse humilhação suficiente, o ministro dias depois teve que gravar um vídeo ao lado do presidente dizendo “ele manda, eu obedeço, simples assim”.
O Brasil não chegou à terrível marca de ontem por acaso. Foi construção diária do governo de Jair Bolsonaro. É fruto do negacionismo, da insensibilidade, da incapacidade de gestão. É resultado dos incentivos diários do presidente para que a população não use qualquer medida protetiva e que faça o oposto do que os médicos orientam. Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde. Henrique Mandetta trabalhou para defender a saúde dos brasileiros, fez todos os alertas ao governo, montou uma articulação com estados e municípios e insistiu nas medidas de proteção. Nelson Teich ficou poucos dias no cargo e saiu defendendo o presidente que não o deixou trabalhar. Aí veio Pazuello, que confunde país com batalhão, convencimento com ordem unida, logística com requisições autoritárias. E pensa que pode, numa democracia, determinar como os jornalistas devem exercer seu ofício. Deveria saber que nem na ditadura seus antigos superiores conseguiram calar a imprensa brasileira.
A pandemia é uma tragédia que se abateu sobre a humanidade. Enfrentá-la com um governo inepto multiplicou nossa dor. Como curar feridas de 200 mil mortes? Essa é a pergunta que ronda o Brasil.
El País: Brasil chega a 200.000 mortes na pandemia com SUS sob pressão
País enfrenta um cenário difícil com doença mais uniforme entre as regiões enquanto a estratégia de vacinação segue imersa em dúvidas. Atrasos em testes e na atualização de prontuários turvam análise
Beatriz Jucá e Jorge Galindo, El País
O Brasil supera a dura marca de 200.000 mortes pela covid-19 em sua contagem oficial com um cenário nebuloso pela frente. O país está prestes a entrar na sazonalidade que favorece a circulação de vírus respiratórios e espera um repique pelas aglomerações das festas de fim de ano enquanto se vê imerso em uma série de obstáculos para iniciar a vacinação e ainda não tem uma política efetiva para frear os contágios mesmo com a iminência de uma variante do coronavírus mais transmissível. É neste cenário que o país conta, nesta quinta-feira, 200.498 mortes por coronavírus durante a pandemia e 7,96 milhões de casos ―mais de 87.000 deles registrados nas últimas 24 horas, um pico. Se no início da crise sanitária algumas regiões emanavam maior preocupação no país continental, a situação agora é grave nas mais diversas regiões. Nos últimos meses, o Brasil viu o vírus se espalhar pelo seu território de forma mais uniforme e agravar, por exemplo, a situação em regiões ao sul, que inicialmente tinham mais fôlego pela baixa concentração de casos e agora sofrem com seus sistemas de saúde abarrotados.
Depois de atingir os primeiros 100.000 mortos oficiais pela covid-19, em agosto, o Brasil não registrou picos agudos de mortes por covid-19 como nos primeiros meses da crise. A estratégia brasileira focou basicamente em uma gestão de leitos por prefeitos e governadores, que decidiam ampliar ou reduzir as medidas restritivas frequentemente conforme os dados locais. Em geral, só iniciativas pontuais de restrição circulação foram novamente impostas de agosto para cá, algumas delas só com a intervenção da Justiça, como em Manaus. Medidas para rastrear casos e de fato tentar frear os contágios não foram implementadas como uma política pública robusta. As mortes por covid-19 foram distribuídas em um espaço maior de tempo, mas o Brasil nunca chegou a conseguir controlar de fato a pandemia. Foram mais de 200.000 mortes registradas oficialmente desde março, data do primeiro óbito. Cerca de metade delas a cada cinco meses de pandemia no país.
Mas a perda humana de uma das maiores crises sanitárias pode ser ainda maior. O excesso de mortes já havia ultrapassado 200.000 em relação à média de anos anteriores em meados de novembro, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass). Além disso, o sistema do Governo Federal que registra hospitalizações e mortes por covid-19, o Sivep-Gripe, indicava nesta quarta-feira, dia 6, as cifras de 187.800 óbitos confirmados e outras 80.000 mortes por síndrome respiratória aguda grave (uma complicação da covid-19 e de outras síndromes gripais) não especificadas, nas quais podem estar incluídos casos de coronavírus não registrados por exame por motivos que vão de problemas da coleta à dificuldades de detecção pelo teste laboratorial. A Vital Strategies —uma organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a Governos— já alertou sobre a possibilidade de casos omissos sob a justificativa de que a OMS determina que casos em que os pacientes apresentaram três ou mais sintomas clínicos de covid-19 deveriam ser diagnosticados como suspeitos. O Ministério da Saúde tem dito que os casos são revisados e só depois incluídos no sistema de monitoramento.
Soma-se a isso a demora nas notificações e o represamento de dados que pesquisadores brasileiros têm ressaltado neste momento, quando a demanda por internação hospitalar de infectados pelo coronavírus voltou a crescer em diversos Estados. Isso porque, com a base de atendimento lotada, as fichas demoram a ser preenchidas e notificadas no sistema federal, atrasando a cadeia de dados. O cenário ainda é influenciado pelo represamento durante os feriados de fim de ano, quando tanto laboratórios quanto hospitais atuaram com equipes reduzidas, em regime de plantão.
Pandemia interiorizada
Se antes havia uma ampla concentração nas populosas capitais e cidades metropolitanas, o interior do país já está marcado pelo avanço do vírus e enfrenta a pandemia com sistemas de saúde mais frágeis. O mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, com dados até o dia 26 de dezembro, mostra que 56% das novas mortes por covid-19 na referida semana já se concentravam em cidades do interior. Esta interiorização da mortalidade é observada desde setembro, quando a concentração de mortes começou a se equiparar entre estes dois perfis.
Em vários Estados, gestores trabalham para tentar ampliar leitos de UTI, mas agora enfrentam maiores desafios para contratar profissionais da saúde, exaustos pelo trabalho na linha de frente ao longo de meses. O Amazonas ―Estado onde já se ventilou a teoria de ter chegado a uma imunidade de rebanho sem vacina e a um preço alto de mortes― vive uma nova onda preocupante. O próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já afirmou que o Amazonas está caminhando para as proporções do ano passado. E o governador Wilson Lima tem dito que trabalha contra o tempo para abrir mais leitos hospitalares, transformando espaços administrativos em hospitais em salas com leitos clínicos e as de leitos clínicos em terapia intensiva. Lá, a Justiça determinou maiores restrições após o Governo relaxar medida sob pressão de comerciantes e empresários.
Em um contexto em que os vizinhos da América Latina já reagem à alta de casos de covid-19 com novas restrições, o Brasil segue inerte. E parece repetir a mesma posição errática do começo da pandemia. A guerra política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Dória na corrida por uma vacina geraram um clima tenso no país, embora, nos últimos dias, há uma pequena sinalização de trégua, com a decisão do Ministério da Saúde de comprar a vacina paulista desenvolvida com os chineses, a Coronavac. O Governo Federal enfrenta pressão da sociedade, de governadores e até da Justiça para antecipar uma estratégia nacional de imunização depois de atrasos nas negociações tanto de vacinas quanto de insumos. O Governo de São Paulo está na iminência de pedir a autorização para uso emergencial à Anvisa da Coronavac e promete começar a vacinar grupos prioritários no dia 25 de dezembro. Enquanto isso, o Governo Bolsonaro corre contra o tempo para tentar iniciar a vacinação antes. Prometeu começar cinco dias antes de São Paulo, no dia 20 de janeiro. Os cronogramas sobre o quantitativo de vacinas que devem estar disponibilizadas nos postos nos próximos meses ainda não estão definidos.
“A gente lamenta, mas a vida continua”
Já o presidente Jair Bolsonaro segue com declarações que põem em xeque a segurança de vacinas em um momento em que a confiança na ciência é fundamental para garantir uma campanha de vacinação ampla. Especialistas têm sido categóricos ao dizer que a estratégia de imunização é coletiva e que, para chegar à almejada proteção, é preciso que a maioria da população receba os imunizantes. Mesmo que a vacinação comece nas últimas semanas de janeiro, os meses seguintes deverão ser de muito trabalho para garantir esta cobertura vacinal. Mesmo os que receberem a vacina deverão seguir os cuidados como distanciamento e uso de máscara, já que há um tempo até o corpo desenvolver uma resposta imune e a maioria das vacinas necessita de duas doses para uma proteção admissível.
Numa mudança de tom, o Ministério da Saúde emitiu nota de pesar pelas vítimas da pandemia. Assinada pela pasta, o informe expressa solidariedade aos familiares que perderam seus entes queridos e diz fazê-lo em nome do presidente. Pazuello também falou pela primeira vez em “guerra” total contra a doença, que deve estar acima “das ideologias”. “O Ministério da Saúde está trabalhando incansavelmente, acompanhando pesquisas científicas e reforçando diálogos entre o Brasil e outros países para garantir vacinas seguras e eficazes à população”, prometeu o ministério. Já Bolsonaro, em uma transmissão ao vivo nas redes sociais, voltou a questionar os dados sobre mortes, falando que pessoas morreram “com” covid-19, como se fosse possível separar as causas. “A gente lamenta hoje, estamos batendo 200 mil mortes. Muitas dessas mortes com covid, outras de covid, não temos uma linha de corte no tocante a isso aí. Mas a vida continua...”
Leia mais
- Banco Mundial alerta que a recuperação econômica ficará pela metade se a vacinação demorar
- Coronavac atinge 78% de eficácia em testes no Brasil, segundo o Governo de São Paulo
- Pazuello vai a TV prometer vacinação em janeiro e compras mesmo sem aval da Anvisa
Cláudio Gonçalves Couto: Como destruir um país
Se há algo que o Brasil bem fazia, era vacinar
A agenda do combate à corrupção culminou, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro. Trata-se de agenda negativa pois, mais do que propor um programa de governo, alardeia a necessidade de limpar o país. Um dos equívocos dessa agenda (não o único) está na suposição de que, feito isso, o resto se resolve sozinho, ou quase.
Contra “a roubalheira do PT”, o que alguns definiram como uma “escolha difícil” foi, para outros, uma decisão fácil: “Bolsonaro e os militares, pelo menos, não são corruptos”, diziam. Que o republicanismo não é atributo dessa turma já ficou evidente na tour de force em defesa do clã Bolsonaro e suas rachadinhas, bem como nas benesses concedidas a militares pela atual gestão - por exemplo, ganharam um novo plano de carreira, enquanto outros foram agraciados com a reforma previdenciária; e asseguraram um cabideiro de empregos federais suficiente para toda a seção de roupas da Riachuelo. Claro, sem esquecer do casamento tardio com o Centrão, apesar de todas as invectivas bolsonaristas e militaristas contra o que se chamava de “velha política”. Foi noutro dia que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, cantarolou: “E se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão...”.
Se o combate à corrupção definitivamente não é objetivo desse governo, o que lhe resta? Talvez a agenda liberalizante de Paulo Guedes, diriam. Quanto a essa, durante o primeiro ano, o que avançou em termos de reforma se deveu não ao Executivo (que, quando muito, não atrapalhou), mas ao Congresso e, em especial, à coalizão legislativa liderada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Um número interessante diz respeito ao plano de privatizações: o governo Bolsonaro, com Salim Mattar à frente, privatizou menos do que a gestão petista de Lula, no mesmo espaço de tempo. Isso significa.
Se não é corrupção, nem economia, é preciso procurar noutros lugares. Certamente o governo levou adiante seus objetivos nas áreas ambiental (com a devastação promovida por Ricardo Salles), cultural (com o desmonte das políticas e a captura ideológica e sectária dos órgãos do setor), da violência (com a facilitação do armamento popular e a dificultação do rastreio de armas e munições), da política externa (com a transformação do Brasil num pária internacional e a multiplicação por mais de 17 vezes do gasto em publicidade governista no exterior), de direitos humanos e participação cidadã (com o desmonte dos órgãos participativos na administração federal, assim como o ataque a políticas de ação afirmativa e proteção a grupos vulneráveis), na educação (com o vilipêndio da autonomia universitária, nomeando-se dirigentes estranhos ao processo legal de escolha) e na saúde, pela sabotagem a políticas de combate à pandemia e pelo aparelhamento militarista do Ministério e da Anvisa.
Nota-se que temos, portanto, um governo que em vez de promover uma agenda positiva de políticas e reformas institucionais, opera para destruir o que foi longamente edificado. Não digo aqui construído desde o início da redemocratização, pois mesmo políticas e instituições geridas anteriormente a ela, obras inclusive dos governos da ditadura militar, têm sido devastadas.
Tendo em vista a situação que vivemos, em meio à pandemia, um aspecto merece destaque. O ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, acompanhado na pasta por seu exército de Brancaleone, tem conseguido a proeza de perturbar o funcionamento de uma das políticas sanitárias mais bem sucedidas do mundo em desenvolvimento e, por isso mesmo, uma das iniciativas mais longevas e positivas dos governos militares: o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que remonta ao governo de Ernesto Geisel (aquele presidente que considerava Bolsonaro um “mau militar”).
O PNI foi edificado a partir da bem-sucedida Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), que operou sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS, esse órgão “globalista”, no léxico olavista do chanceler Ernesto Araújo) e da Organização Pan-americana da Saúde (Opas, um órgão que bolsonaristas creem estar a serviço da Cuba comunista). Essa campanha visava retirar o Brasil da condição de último país das Américas em que a varíola ainda era endêmica e foi levada a cabo pelo presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro mandatário do regime militar.
Embora artífice de uma ditadura fardada, Castelo e seus companheiros percebiam a importância de cooperar com organismos internacionais e combater doenças por meio da vacinação. Hoje, Bolsonaro, Pazuello e seus colegas de armas sabotam diuturnamente a vacinação. Ora pelas dúvidas lançadas pelo presidente sobre a necessidade ou a segurança de imunizantes desenvolvidos pela comunidade científica mundo afora; ora pela barbeiragem logística capitaneada por Pazuello, incapaz de adquirir seringas e agulhas para mais do que 2% da necessidade. E há ainda as declarações do presidente, afirmando que não se vacinará, ou do general da saúde, afirmando que não é preciso ansiedade diante de uma doença que (em conta subestimada) já dizimou 200 mil brasileiros e, nos últimos dias, abate mais de mil cidadãos a cada 24 horas.
Tendo em vista nosso histórico, expertise e estrutura (assegurada a partir de 1988 pelo SUS) em políticas de imunização, o Brasil deveria estar entre os primeiros países do mundo a iniciar a vacinação de seus habitantes. É difícil imaginar que qualquer um dos concorrentes de Bolsonaro em 2018 fosse capaz de tamanha proeza: procrastinar deliberadamente o início da vacinação num país que, desde os anos 1970, é exemplo internacional de boas políticas nessa área.
Em consonância com a agenda destruidora nos demais setores (apontados acima), a desconstrução que se opera na saúde, de forma geral, e nas políticas de imunização, particularmente, é o que melhor caracteriza o governo de Bolsonaro e seus generais.
Não se trata apenas de incompetência, embora se trate também dela; o que vemos levado a cabo por esse governo é um claro projeto de destruição.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Míriam Leitão: A logística da Fiocruz
A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, trabalha de olho no calendário e nos números de produção. Sabe que a saúde e a economia dependem da capacidade de fornecimento de vacinas. Até sexta-feira o instituto deve entrar com o pedido emergencial de uso da vacina da Oxford-AstraZeneca. Até o dia 17, devem chegar as duas milhões de doses importadas da Índia. Em fevereiro, a Fiocruz entrega ao governo 10 milhões de doses e, em março, outras 15 milhões. Ao todo, o instituto vai produzir 100 milhões de doses. O país começará, com a vacinação, a entrar em outra fase. “O momento atual é de muita dor, muita desinformação”, lamenta.
Nísia conta que o espaçamento de doze semanas entre as duas aplicações foi, no caso da vacina da AstraZeneca, conclusão de pesquisa clínica. Com a primeira dose, a imunidade já é de 70%.
—Uma coisa a nosso favor é esse intervalo de 12 semanas, porque, se essa estratégia for adotada pelo Plano Nacional de Imunização, permitirá que mais pessoas sejam imunizadas — diz Nísia Trindade.
Ela participou na segunda-feira de reunião com a Anvisa, para saber de todos os documentos que faltam para o pedido de autorização emergencial. São documentos que devem vir da Índia, onde são fabricadas as vacinas compradas prontas. Ela não tem dúvidas de que o Instituto Serum vai respeitar o contrato feito e mandar as doses:
— Nós nem somos compradores de vacinas, somos produtores, mas neste momento de dor do país achamos bom fechar esse contrato. Ele deve servir para imunizar o pessoal da saúde, que está na frente de combate ao vírus.
A Fiocruz receberá as doses prontas da Índia. Depois passará a produzir com o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), importado da China. O IFA é o núcleo da vacina. A AstraZeneca produz globalmente, mas o lote que fornecerá ao Brasil está sendo produzido na China. No segundo semestre a Fiocruz, graças à transferência de tecnologia, passará a produzir tudo aqui de forma independente:
— A partir de agosto teremos autonomia de produção. A tecnologia da Oxford AstraZeneca é muito adequada para nós, porque será a primeira vacina do mundo a usar a tecnologia do vetor viral, do adenovírus. A tecnologia tradicional usa o vírus atenuado ou inativado. Essa usa o adenovírus que carrega parte da proteína do coronavírus. O organismo reconhece e produz anticorpos e células imunes. É um duplo mecanismo. A Oxford estava trabalhando nessa plataforma para o ebola e outros coronavírus. A tecnologia vai ser útil para outras vacinas.
A Fiocruz, já em abril do ano passado, saiu prospectando fornecedores. O que Nísia explica é que a produção é global, mas muito concentrada, por isso é fundamental que o Brasil invista em ciência e tecnologia.
— É importante entender o fator econômico da vacina. E o geopolítico. Temos que nos preparar para o enfrentamento agora e no futuro investindo no desenvolvimento científico nacional. Está havendo desabastecimento até nos países desenvolvidos. No Brasil, os laboratórios que têm condições de suprir nossas necessidades são a Fiocruz e o Butantan.
Há grupos no Brasil pesquisando vacina para Covid. Não estão na fase de testes clínicos. A coordenação da Fiocruz em Minas Gerais está trabalhando com a UFMG. Há dois outros grupos de pesquisa na Bio-Manguinhos, um deles estudando a tecnologia do RNA mensageiro da Pfizer. Existe outro núcleo na USP.
— Alguém pode achar que isso não faz sentido porque já existem vacinas. Mas é fundamental acompanhar os aperfeiçoamentos — disse Nísia.
Se no mundo da política existe divisão entre as vacinas, na ciência, existe cooperação. A Fiocruz está participando dos testes clínicos da fase 3 da vacina da Janssen e também da Coronavac, do Butantan, no núcleo de pesquisas de Niterói.
A presidente da Fiocruz disse que a produção num primeiro momento poderá imunizar os grupos mais vulneráveis que são 80 milhões de brasileiros. Explica que crianças, adolescentes e grávidas não poderão, por enquanto, ser imunizados com essa vacina da Fiocruz porque não foram feitos testes nesses grupos. Ela acha que o melhor é que a vacinação tenha coordenação federal e que os brasileiros tenham acesso à vacina pelo SUS.
Hélio Schwartsman: Vacinação pública ou privada?
Vacinações são por excelência uma estratégia coletiva de saúde
A vacinação só será capaz de pôr fim à epidemia se estiver no âmbito de um programa universal e público. E, se a circulação do vírus permanecer muito elevada, nem quem tem dinheiro para pagar por um imunizante estará livre de riscos. Vacinações são por excelência uma estratégia coletiva de saúde.
Isso dito, não vejo problemas em permitir que clínicas particulares importem e apliquem vacinas contra a Covid-19. A rigor, qualquer agente que consiga trazer para o Brasil biofármacos que de outra forma não chegariam aqui está contribuindo para o esforço comum.
É preciso, contudo, alguns cuidados. Seria decerto um despropósito se a iniciativa privada e o setor público entrassem numa disputa suicida pelos mesmos imunizantes. Mas há fórmulas menos drásticas que o veto às clínicas particulares para evitar esse tipo de situação.
Uma objeção que merece consideração é a de que a participação privada, ao criar oportunidades diferenciadas de acesso à vacina com base em renda, corrompe o caráter público da fila e o princípio do acesso igualitário. Não vejo como discordar, mas receio que o argumento seja forte demais. Parece-me complicado usá-lo para vacinas, mas deixá-lo de lado para todo o resto.
Nós, afinal, não adotamos a fila única para leitos de UTI em hospitais públicos e privados. E não é só na pandemia. Há décadas aceitamos que pacientes de câncer do SUS morram à espera de vagas para tratamento, enquanto elas sobram na rede particular. A aplicação consistente do princípio da igualdade de acesso implicaria uma espécie de veto à medicina privada, o que não ocorre em nenhum país democrático.
O fato de eu não ver com maus olhos a participação de clínicas particulares na vacinação não significa que ela seja solução. Só voltaremos a algum tipo de normalidade depois que a maioria dos brasileiros tiver recebido sua vacina —e apenas o poder público é capaz de fazer isso.
Juan Arias: 'O Brasil está quebrado e eu não posso fazer nada'. A sibilina e ameaçadora afirmação de Bolsonaro
A arrogância do presidente já é proverbial. Seus erros e sua incapacidade de comandar o país são sempre culpa dos que “não o deixam governar”
Ao voltar de suas férias de pesca, Jair Bolsonaro fez uma das mais graves afirmações desde que chegou à presidência. Dirigindo-se aos seus seguidores mais fiéis, confessou que “o Brasil está quebrado” e que ele “não pode fazer nada”. E ainda acrescentou, desafiador: “Vão ter que me aguentar até 2022”. E o pior é que os seus e o mercado continuam a apoiá-lo. A maior vítima será a grande massa de desempregados e pobres, sobre os quais, como sempre, cairá a crise.
Não creio que haja um único chefe de Estado no mundo que seja capaz de confessar que o seu país está quebrado e que não pode fazer nada sem renunciar no dia seguinte. A arrogância de Bolsonaro já é proverbial. Seus erros e sua incapacidade de administrar são sempre os que “não o deixam governar”.
No entanto, há algo mais grave e sibilino em sua afirmação quando diz que o país está quebrado e que não o deixam fazer o que quer. Com isso está dando a entender que é impossível governar com as atuais instituições democráticas. Seria a difícil, mas indispensável, pluralidade de instituições que o arrastaria à tentação de querer viver sem elas.
E é esse equilíbrio de diálogo nem sempre fácil entre as diferentes instituições com seus freios e contrapesos, mas que são a base indispensável dos regimes democráticos, o que Bolsonaro não pode suportar.
É claro que o sonho não confessado de Bolsonaro é poder ter o Congresso e a Justiça amarrados a seus pés à moda de Vladimir Putin e Nicolás Maduro.
Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$CLIQUE AQUI
De fato, desde que chegou ao poder vem flertando com um golpe contra o Congresso e o STF. Para ele, todo o jogo democrático é um estorvo.
E o mais grave é que os poderes fáticos não se mexem para retirá-lo do cargo,quando não o bajulam para arrancar cargos e privilégios. Daí que o capitão reformado do Exército se sinta forte e se permita todo tipo de provocações sem que haja uma oposição capaz de parar seus coices contra os valores democráticos e civilizatórios.
A arrogância de dizer que ninguém o tirará do poder é típica dos caudilhos populistas e arrogantes. Diante das declarações de Bolsonaro de que este país está à deriva e que não pode fazer nada, seria necessário perguntar o que os militares continuam fazendo apoiando o aprendiz de ditador. O Exército sempre apareceu nas pesquisas junto com a Igreja como uma das instituições mais valorizadas pela opinião pública.
A Igreja já está perdendo o crédito por ter se jogado nos braços do novo mito e caudilho. E os militares que permanecem no Governo podem acabar sujando toda a instituição.
O que esperam então os militares para abandonar o Governo quando o presidente se declara impotente para governar? A menos que se trate de não perder os privilégios do cargo, o que seria mesquinho em uma instituição da envergadura e da importância do Exército.
E o poder econômico está vendo que o Bolsonaro é incapaz até mesmo de entender o que é a força da economia e sua importância para o bem-estar do país. E seu famoso Posto Ipiranga, o ministro da Economia, hoje é apenas uma marionete nas mãos do mito. Como são, no final, até os generais que estão no Governo.
Às vezes, ver como Bolsonaro trata os generais ministros faz pensar que o capitão reformado do Exército por suas aventuras com o terrorismo hoje está se vingando ao tratar os militares de seu Governo como simples coroinhas.
Sem dúvida, as graves declarações de Bolsonaro de que o Brasil é um país quebrado não animarão os empresários estrangeiros a investir aqui, prejudicando ainda mais a já frágil economia que cria cada vez mais desempregados abandonados à própria sorte enquanto a inflação galopante atinge ainda mais a massa de pobres que é a maioria do país.
Todos nós entramos em 2021 com a esperança de que fosse um ano melhor.
As declarações de Bolsonaro e seu boicote contínuo à vacina enquanto cresce a nova onda de covid-19 estão começando a balançar nossas esperanças.
Fica a incógnita de se as outras instituições do Estado estão cientes de que a presença de Bolsonaro é um dos maiores perigos para a democracia desde a ditadura. Há poucos dias, o presidente alertou seus seguidores que não aceitaria o resultado das eleições se fossem usadas urnas eletrônicas novamente. Nesse caso, disse-lhes “pode esquecer a eleição”, dando a entender que se perdesse não aceitaria o resultado.
Já houve analistas políticos que levantaram a hipótese de que a nova paixão de Bolsonaro pela corporação policial e os contínuos mimos que lhes está fazendo é para tê-los ao seu lado se perder as eleições e tentar dar um golpe autoritário. Bolsonaro sabe hoje que para isso dificilmente poderia contar com a cúpula do Exército, do qual se espera que não terá apoio explícito na campanha eleitoral. É mais fácil esse apoio vir da polícia e das milícias que sempre lhe foram favoráveis e com quem ele, seus filhos e toda sua família sempre tiveram relações misteriosas que ainda não foram decifradas.
Bolsonaro é claramente um despreparado culturalmente e incapaz de governar com as regras democráticas, mas conhece como poucos os subsolos e as cloacas dos poderes mafiosos. O Brasil é muito importante aqui e no xadrez mundial para continuar sendo governado por um presidente que não deixa um só dia de brincar com seus sonhos de ditador.
Todo o resto, até que o país esteja quebrado lhe importa menos. E o pior é que não tem pudor em confessar.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Bruno Carazza: Na surdina
Surpresas no fim de ano de Bolsonaro
Nos oito dias compreendidos entre a véspera do Natal e a virada do ano o Congresso Nacional está em recesso, as redações dos jornais funcionam em regime de rodízio e a população em geral, mesmo em tempos de segunda onda da pandemia, está concentrada nas festas ou em viagens de férias. Em Brasília, é a época perfeita para aprontar.
Em edição extra do “Diário Oficial da União” (DOU), publicada no dia 31 de dezembro, Bolsonaro concedeu benefícios para alguns e desalento para milhões, além de desafiar mais uma vez o Congresso Nacional.
De um lado, medidas provisórias estenderam o regime especial para reembolso de passagens pelas empresas aéreas (de 31/12/2020 para 31/10/2021) e ampliaram em mais dois anos o prazo para os cinemas se adaptarem às regras de acessibilidade para pessoas com deficiência - providências que deveriam ter sido implantadas em 2019; ou seja, antes do novo coronavírus.
Mais grave, Bolsonaro rompeu um pacto com deputados e senadores e, na surdina, determinou a manutenção da restrição de acesso ao benefício de prestação continuada (BPC) somente para idosos e pessoas com deficiência cuja família tenha renda per capita inferior a ¼ do salário-mínimo. É bom lembrar que desde o início da pandemia o Congresso trava uma queda de braço com o Palácio do Planalto tentando ampliar a cobertura do BPC para aqueles que recebem até meio salário-mínimo.
A MP nº 1.023 dá um tempo maior para Paulo Guedes encontrar recursos para uma política assistencial pós auxílio emergencial, mas aliada a dezenas de vetos à Lei de Diretrizes Orçamentárias, também anunciados nos últimos minutos de 2020, representa uma nova afronta ao Congresso.
Mas não foi só no 31 de dezembro que a Imprensa Nacional anunciou novidades. Na véspera do Natal, outra edição extra do DOU veio repleta de presentes em forma de decretos, entre eles a concessão de indulto natalino para militares condenados por crimes praticados em serviço, a criação de uma nova estatal para cuidar da navegação aérea e novas regras para a regularização fundiária em terras da União e na Amazônia.
Aproveitar períodos de baixa atenção do Congresso e da opinião pública para editar medidas impopulares não é incomum na experiência internacional. Em 1994, enquanto todos os olhos dos italianos estavam concentrados no jogo que daria ao país a chance de disputar a final da Copa do Mundo contra o Brasil, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi editou um decreto beneficiando centenas de políticos envolvidos na Operação Mãos Limpas. Para continuar no campo futebolístico, Vladimir Putin valeu-se da abertura da Copa da Rússia, em 2018, para, numa canetada, elevar a idade mínima para aposentadoria no país.
Os exemplos acima foram citados por Milena Djourelova e Ruben Durante para justificar sua pesquisa sobre estratégia e timing de atos presidenciais. Com foco dos Estados Unidos, eles analisaram as datas e os contextos das ordens executivas (similares aos nossos decretos) emitidas pelos presidentes americanos entre 1979 e 2016, confrontando-os com dados sobre audiência de notícias na TV.
Assim como no Brasil, os ocupantes da Casa Branca são constantemente criticados por avançar sobre a competência do Congresso ao emitir normas que, sob a desculpa de regulamentar leis, acabam extrapolando e criando direitos e deveres.
A pesquisa de Djourelova e Durante revelou que as ordens executivas dos presidentes americanos têm maior probabilidade de serem emitidas quando a cobertura da mídia está concentrada em outros assuntos, que não a política. Foi o caso, por exemplo, quando Donald Trump perdoou um xerife acusado de injúria racial e baniu soldados transgêneros das Forças Armadas enquanto o país se mobilizava para enfrentar o furacão Harvey, em 2017.
Os dados também indicam que o aproveitamento estratégico da distração pública é mais frequente quando o Congresso é dominado pelo partido rival e quando a medida trata de assuntos não relacionados ao dia-a-dia da administração (como a reestruturação de órgãos ou a execução orçamentária, por exemplo) ou não vinha sendo discutida publicamente nas semanas anteriores - o famoso “efeito surpresa”.
Por aqui isso não é nenhuma novidade. Muito antes de Bolsonaro, todos os últimos presidentes brasileiros aguardaram o período entre o Natal e o réveillon para surpreender.
Sarney aumentou o capital de empresas estatais e concedeu benefícios para seus funcionários, enquanto Collor instituiu uma generosa política de preços mínimos para os usineiros do Nordeste, seu reduto eleitoral. Com o Plano Real em gestação, Itamar Franco lançou um pacotaço de aumento de impostos no último dia útil do ano, prática que foi seguida por seu sucessor Fernando Henrique quando a vaca parecia ir para o brejo no apagar das luzes de 1998.
Mas nem só de medidas amargas foram os finais de ano do governo FHC. Houve também a concessão de benefícios e subsídios para setores específicos, prática intensificada durante a gestão de Lula e Dilma com inúmeros programas de tratamento tributário especial criados ou prorrogados aos 45 minutos do segundo tempo. Sob a administração petista, aliás, também foram frequentes os aumentos salariais para diversas carreiras - sempre por medida provisória e no período entre 24 e 31 de dezembro.
Para fechar o ciclo pré-Bolsonaro, Temer inovou aproveitando as festas de fim de ano para reformular marcos regulatórios, mexendo sem aviso prévio nas regras do jogo aplicáveis aos setores de petróleo, saneamento, imigração, energia elétrica, segurança pública e ambiental.
“Dormientibus non ducurrit ius” é uma antiga regra do direito romano. A experiência brasileira com normas emitidas nos estertores do ano mostra que, quando a mídia e os cidadãos baixam a guarda, os presidentes se aproveitam para conceder benesses ou tungar os contribuintes. Depois não adianta reclamar, pois “o direito não socorre aos que dormem”.
É preciso ficar vigilante o ano todo. Lembremos disso no fim de 2021. Um bom ano a todos!
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Luiz Werneck Vianna: A longa tragédia brasileira
Com dois anos de governo Bolsonaro e mais 10 meses de pandemia passados já se pode avaliar os estragos provocados por esses males, ainda longe de serem erradicados. Por ora, quase 200 mil mortos, milhões de afetados, sabe-se lá quantos padecendo de sequelas, um rastro de miséria política e social, uma sociedade com a morte na alma com os valores que a formaram relegados ao limbo. Entregue às suas próprias forças diante da omissão do governo, dirigido por um Rambo de padaria, ela perde as esperanças, especialmente entre os jovens, abdicando da luta contra a pandemia nas aglomerações dos bares e das baladas malsãs quando flerta animadamente com as práticas de roleta russa. Na ausência de pastor o rebanho desafia o destino e se entrega sem luta à morte.
Não há mais dúvidas de que a tragédia em que somos personagens se deve ao tipo de pastoreio a que fomos confiados, a melhor sorte dos países vizinhos testemunha isso, para não falar dos países desenvolvidos guiados por lideranças conscientes do papel da ciência e das políticas públicas no combate ao flagelo da peste. Em legítima defesa da vida somente dispomos dos recursos da política e das instituições e meios consagrados por nossa Constituição a fim de imprimir um paradeiro a essa nefasta experiência a que fomos submetidos. Não é uma tarefa fácil, inclusive porque nos faltam lideranças à altura dos desafios presentes. Mas sapo não pula por boniteza, e sim por necessidade, lembrava Guimarães Rosa.
O fato é que, nas condições dadas, armou-se uma inextricável fusão entre democracia e defesa da vida, a partir da qual se pode entrever a emergência de promissoras personagens e novas possibilidades de ação. Boa parte delas provém do campo da ciência e dos profissionais da saúde, não menos relevante é a originária da vida associativa popular, evidente em algumas capitais nas recentes eleições municipais, processo benfazejo que também alcança a esfera da política com essa nova safra de prefeitos alinhados em luta contra a pandemia que os irmana às lutas pela democratização das políticas públicas.
Toda essa nova movimentação vem emprestar suporte novo aos que, no interior das instituições republicanas, notadamente no Congresso e no STF, vêm suportando o assédio das forças do autoritarismo político e lhe impondo limites. No horizonte imediato, surgem os primeiros sinais de terra à vista, confirmando que o plano de navegação até então obedecido merece confiança e deve ser preservado. Seu traçado fundamental repousa na formação de uma frente democrática a mais ampla possível, na forma como agora se delineia na eleição à presidência da Câmara dos Deputados, no que pode ser o esboço da política a ser adotada na próxima sucessão presidencial quando o país enfrentará o que tem sido seu trágico destino.
Tragédia de Sísifo, condenados como temos sido, a refazer nosso caminho para a democracia sempre desconstruído em razão da maldição em que incorremos por evitarmos, na hora da nossa fundação, uma luta nacional de libertação, pela frustração do abolicionismo e pela República sem povo que criamos. Assim, como em tantos movimentos do passado, depois das lutas que nos trouxeram a Carta de 1988 temos aí essa marcha à ré ao AI-5 de que é nostálgico o governo Bolsonaro.
Os sinais de alvíssaras também se fazem presentes agora em janeiro com a posse de Biden no governo dos EEUU, malgrado os renitentes pedantes de sempre relutarem em valorizar o episódio, um golpe fundo no nacionalismo populista que vicejou em nossas bandas americanas. Por igual, de nossos vizinhos emanam bons ares, como os da Argentina, Chile e Bolívia. O céu se desanuvia e mais dia menos dia nos chega a vacinação em massa, e com ela as possibilidades de encontro, inclusive com as ruas de que temos sido obrigados a nos afastar.
Tragédias transcorrem em meio a lutas por sua superação, como exaustivamente procura demonstrar o notável crítico Terry Eagleton em seu longo ensaio sobre o tema “Doce Violência – a ideia do trágico” (UNESP,2013). Prometeu roubou o fogo dos deuses para confiá-lo aos homens, assim lhes propiciando os meios para fugir de uma vida vegetativa e a capacidade de modelar com suas próprias forças o seu destino. É Eagleton quem nos lembra do lema de Lacan “não desista do seu desejo”, com o que nos recomenda arriscar o bom combate contra o falso e o injusto e a recusa a uma vida de qualidade inferior.
No deserto hostil em que ora se vive algumas vozes em tom manso, pontuadas pelas artes da ironia, procuram se fazer ouvir como a do jornalista Fernando Gabeira, vocalizando o desejo recalcado de tantos em favor de uma luta que nos liberte dos grilhões que nos mantém atados ao nosso trágico destino. Para tal empreitada não nos faltam os meios nem instituições, assim como as boas lições que aprendemos com a boa sorte de muitos processos de revolução passiva, que longe do quietismo que se entrega aos fatos, importa num ativismo incessante em busca dos elos mais fracos da corrente que nos aprisiona a fim de afrouxá-los, quando não os romper, no limite com o recurso extremo do impeachment.
Os caminhos das revoluções passivas não são adversos ao pragmatismo em matéria política, muito pelo contrário. Maquiavel é sempre bem lembrado quando se trata de sopesar as circunstâncias, se propícias ou não para que tal ou qual ação seja desencadeada. Mas, como ele sustenta, em linguagem hoje talvez tida como machista, a fortuna é mulher e acolhe melhor as ações audazes do que as tímidas. As tragédias contemporâneas têm no lugar dos heróis clássicos a multidão dos homens comuns, como os das praças da primavera árabe e das ruas americanas das passeatas intermináveis do black lives matter. Essa a razão de fundo para que a luta pela democracia tenha seu ponto forte de partida na luta contra a atual pandemia, a fim de liberar, por meio de amplíssimas alianças, o acesso às nossas ruas e praças.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio
Rosângela Bittar: Não há aviso aos navegantes
Tudo em 2021 dependerá do êxito da vacina. Não há mais espaço para conversa fiada de Bolsonaro
Os meteorologistas da política não encontram garantias para prever absolutamente nada de novo para 2021, mais um ano a ser dominado pela pandemia e pela expectativa da vacina. O que deve acontecer é a expansão de 2020 em todos os sentidos.
Jogaram-se para a frente as crises de saúde, a principal entre todas que castigam o Brasil. Também prorrogaram-se os prazos das crises econômica, social e política. Tudo em 2021 vai girar exclusivamente em torno da vacina. O sinônimo de vida.
Na roda de poder dos possíveis candidatos à sucessão de Jair Bolsonaro recomenda-se esquecer o ano novo como calendário original.
Quem tinha perfil de candidato a presidente na sucessão de 2022 e expectativa política deve continuar na mesma. Os fatores que fazem uma candidatura emplacar não estão liberados. Seja para o novato Luciano Huck ou para o veterano Ciro Gomes. Eles, e os demais postulantes conhecidos, entre os quais Hamilton Mourão, João Doria e Sérgio Moro, se tiverem juízo para se submeterem à realidade, continuarão esperando uma possível largada bem mais à frente.
Qual destes possíveis candidatos vai desabrochar, se vai ou não ser um deles, se aparecerá um outro surgido de inusitada situação, qual novo movimento será feito em direção à sucessão, em torno de que plataformas. Um mundo de definições em aberto.
Ninguém está pior que Jair Bolsonaro que, solitário, faz campanha dia e noite, sem nenhuma consequência para os adversários. Ora se vê que está procurando manter seu eleitorado, ora se evidencia o desejo de distrair a atenção do público de alguma de suas mazelas.
O presidente, que não governou na primeira metade do mandato, não governará na segunda, que se inicia; enquanto persegue a reeleição, não tem sequer acrescentado dividendos de peso à sua performance política.
Não se consegue explicar as razões pelas quais Bolsonaro está na posição em que se encontra, com uma adesão acima de 30% nas pesquisas de opinião. O governo é ruim, não há um projeto para o País, ele não apresenta solução para os problemas que angustiam a população cotidianamente e suas questões essenciais são meras demandas para resolver problemas pessoais, enquanto se vê ampliar a vulnerabilidade do seu flanco familiar.
Eleições, em 2021, só as das presidências da Câmara e do Senado, em fevereiro. Nelas só têm lugar compromissos imediatistas.
A sociedade dará atenção total à vacina e seus efeitos. A imprevisão das crises sanitária, social, econômica e política permanecerá nos meses seguintes à imunização. Bem como a oscilação do presidente da República quanto a questões relacionadas à pandemia que interessam a todos.
O governo, com suas posições corrosivas e estapafúrdias, permanecerá causando perplexidade nacional e internacional. Bolsonaro seguirá disfarçando sua ignorância a pretexto de defender a economia contra a vida, tomando atitudes que comprometem uma e outra.
Não é só para a crise sanitária que o governo não tem solução. Faltam-lhe ideias e medidas para resolver qualquer uma das demais crises. Paulo Guedes, o superministro da Economia, parceiro fundamental de Jair Bolsonaro nas soluções esperadas por todos, não terá condições de dizer, em 2021, a que veio. Se permanecer no cargo, depois de ter sido obrigado a desmentir o presidente da República no fim de 2020, continuará a falar sozinho, sem ressonância no governo ou no Congresso. Com todos os instrumentos nas suas mãos, não tem conseguido substituir nem por esperanças as incertezas atuais da economia.
Para lembrar e repetir: tudo em 2021 dependerá do êxito da vacina. Não há mais espaço para conversa fiada de Jair Bolsonaro e sua atração fatal pela morte, contra a ciência e o bom senso. Melhor esquecê-lo. E confiar nas lideranças da sociedade, que podem surpreender. Há espaços , questões e situações que as estimulam.
Lorena Barberia: 'Bolsonaro e Obrador expõem vidas para dizer que não têm medo'
Coordenadora da rede que monitora dados da covid-19 no Brasil, Lorena Barberia aponta falta de transparência e afirma que Estados baseiam suas ações em informações incompletas
Passados 10 meses do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil, o país ainda enfrenta a pandemia no escuro. Sem conseguir fazer testagens em massa que forneçam uma dimensão real do número de doentes em fase de contágio —e não somente as infecções acumuladas, que no país já se aproximam de oito milhões— e com problemas na coleta, organização e divulgação de dados que permitam tomar as medidas necessárias na velocidade do avanço do vírus, Governos de Estados e municípios trabalham com estatísticas incompletas para definir suas ações, não convencem a população da importância de aderir a elas e deixam suas medidas vulneráveis a pressões políticas e econômicas. O diagnóstico é da pesquisadora Lorena Guadalupe Barberia (Cidade do México, 49 anos), coordenadora científica da Rede de Pesquisa Solidária, uma coalizão de especialistas que monitoram e avaliam as políticas públicas de combate à covid-19 em todo o Brasil.
A falta de transparência, a existência de bases de dados divergentes e o pouco detalhamento de informações foram obstáculos encontrados logo de início e orientaram o foco de trabalho do grupo, que passou a ser conhecido como caçadores de dados da pandemia. Pesquisadores distribuídos pelos Estados cobram de suas gestões, das capitais e do Governo federal informações sobre questões como número e tipo de testes realizados, fiscalização de medidas de distanciamento e ações para garantir o ensino a distância. Esbarram, novamente, no descaso com as informações. “É uma tragédia. Estamos tentando produzir algo que poderia ajudar esse Estado a enfrentar melhor a pandemia. Então a falta de vontade de compartilhar uma informação mostra que existe um problema mais sério por trás”, afirma.
Professora de ciência política da USP, a mexicana que é filha de argentinos, graduada em economia pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, mestra em políticas públicas por Harvard e doutora em administração pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV) compara a gestão do presidente Jair Bolsonaro com exemplos internacionais e analisa que a pandemia escancarou o machismo de governantes como o brasileiro e o mexicano Andrés Manuel López Obrador. “Confundem o enfrentamento da pandemia com uma questão de fragilidade ou fortaleza física e colocam em risco a vida da população para mostrar que não têm medo do vírus”, afirma ela, que além da USP, é pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp), da FGV. A seguir os principais trechos da entrevista.
Pergunta. Como foi a criação da Rede de Pesquisa Solidária e como tem sido o trabalho até agora?
Resposta. A Rede começou primeiramente por uma questão pessoal. Eu tenho um grupo de pesquisa voltado para a avaliação qualitativa de políticas públicas. Quando começou a pandemia, em uma reunião do grupo, uma aluna perguntou: “Professora, estamos em uma pandemia. Não vamos fazer nada?”. E isso me despertou para a questão de que, realmente, na área das ciências sociais e de monitoramento de políticas públicas, a gente poderia dar uma contribuição relevante. Com o professor Glauco Arbix, da sociologia [da USP], e o José Eduardo Krieger [InCor-Faculdade de Medicina da USP], pensamos em como criar uma rede multidisciplinar de especialistas conversando sobre a pandemia.
Ficou visível desde o início que existiam pouquíssimos dados para que a gente soubesse a situação real da pandemia. Então uma das nossas primeiras missões foi pensar em como coletar informações para produzir nossos próprios dados, e, assim, avaliar as políticas públicas, colocar isso mais visível para a sociedade e debater soluções com os gestores. E para isso seria preciso produzir dados na velocidade da pandemia.
P. Seu grupo foi apelidado de caçadores de dados, pelo esforço em driblar a falta de transparência e organização dos Governos. Como fazem essa busca?
R. Para avaliar uma política pública, precisamos buscar decretos, portarias e indicadores transparentes disponibilizados pelos Governos. Parte da Rede é formada por advogados que trabalham muito ativamente protocolando pedidos de informação junto aos Estados via lei de transparência [Lei de Acesso à Informação]. Uma área específica em que isso ocorre é a fiscalização das restrições. Os Governos dizem que fiscalizam as medidas de distanciamento físico, então nós queremos saber quais são os dados por bairro, por tipo de infração, ou seja, ter evidências de que essa fiscalização está sendo realmente feita.
Ficamos com essa fama de caçadores de dados da pandemia porque logo no início vimos que para áreas muito importantes há diferentes bancos de dados e eles não estão integrados. Por exemplo, os casos confirmados de covid-19: hoje a gente tem pelo menos três diferentes bancos de dados oficiais —um para buscar informações sobre casos leves, outro para casos graves e hospitalizações, outro para casos em geral... Se você tenta cruzá-los, não há uma correspondência. Descobrir isso foi muito assustador para nós.
P. E em quais tipos de informação esse problema foi encontrado?
R. Ao longo da pandemia, martelamos na defesa de que os Governos precisam produzir dados transparentes e que esses dados precisam ser públicos. E essa discussão tem sido feita principalmente na área de testagem. A gente deveria saber qual é a taxa de positividade por tipo de teste. É um indicador fundamental, mas se a gente acessar hoje, em dezembro, o site do Ministério da Saúde, não encontraremos dados satisfatórios. Então o que fizemos? Criamos um grupo de trabalho em cada Estado e estamos protocolando via lei de transparência pedidos de informação sobre testagem. A nossa preocupação são os testes de casos ativos, que permitem fazer isolamento e rastreamento de contágios. Para reduzir a transmissão, precisamos saber os resultados dos exames RT-PCR. Os testes sorológicos [que buscam saber se o paciente já possui anticorpos contra o vírus, ou seja, se ele já se infectou no passado] e os PCR [que detectam o material genético do vírus naquele momento, portanto, as infecções ainda ativas] não dizem a mesma informação, precisam estar separados. Mas ainda hoje não existe essa informação sistematizada, abrangente, que permita um monitoramento.
Lugares que foram bem-sucedidos no mundo no controle da pandemia, como a Coreia do Sul, investiram em testagem. E é exatamente nessa área que temos falhado muito. Mesmo hoje, em que falamos de vacina, de uma nova esperança, precisamos nos preocupar em fazer mais testes.
P. Qual é o tamanho dessa equipe envolvida nos pedidos de informação junto aos Estados e como tem sido a resposta dos Governos?
R. À medida que o trabalho foi crescendo, a rede começou a fazer parcerias —a gente trabalha muito com o Observatório Covid-19 BR e com várias redes locais nos Estados. Hoje a Rede de Pesquisa Solidária faz parte de uma outra grande rede, uma rede de redes de pesquisadores engajados em buscar e compartilhar informação sobre a pandemia, com a consciência de que precisamos trabalhar colaborativamente para salvar vidas. Temos um trabalho muito abrangente pelo país graças a essas parcerias. Só na área de testagem são mais de 100 pesquisadores, em todos os Estados, trabalhando com a gente.
Infelizmente, a parte mais difícil do trabalho é que não temos visto interesse dos Governos em dar um retorno com rapidez e transparência. Muitas vezes eles demoram a responder, depois os dados não vêm na forma que a lei exige, aí recorremos, eles mandam de novo e ficamos meses nessa negociação. É uma tragédia, porque nós, pesquisadores, estamos tentando produzir algo que poderia ajudar esse Estado a enfrentar melhor a pandemia. Então essa falta de vontade de compartilhar uma informação mostra que existe um problema mais sério por trás.
O caso do Governo federal é mais grave porque ele poderia ser uma liderança nessa questão de padronizar os dados e disponibilizá-los facilmente, mas o que acontece no Brasil é justamente o oposto. Muitas vezes, o Governo retira dados da plataforma, demora a fornecer informações muito básicas, de forma que estamos muito aquém dos padrões internacionais. E somos um país que já possui um sistema de saúde pública, que tem muita infraestrutura que poderia ter sido alavancada e utilizada na questão da informação.
P. E em quais países essa informação foi disponibilizada de forma melhor?
R. Um lugar em que isso funcionou melhor foi na Argentina. Lá tanto o Governo federal quanto os locais foram muito transparentes desde o início para divulgar os dados da pandemia. Há informações muito específicas, por bairro, por tipo de surto, mapeando grupos vulneráveis. E o que é muito importante é que esses dados estão disponíveis em um arquivo CSV [formato que possibilita a leitura por diversos programas, como o Microsoft Excel], não é uma página na Internet em que você leva uma hora para baixar os dados de que você precisa ou em que se você clica de um gente dá certo, se você clica de outro vai para outro lugar. A Argentina permite que você baixe os dados e já comece a analisá-los. No Brasil, nós temos que passar mais tempo não analisando os dados, mas tentando coletá-los.
Isso tem começado a melhorar em algumas localidades —o Espírito Santo e o Ceará são bons exemplos de transparência dos dados de testagem desde o início do enfrentamento da pandemia. Mas não em São Paulo, que foi o epicentro, o Estado mais rico do país, onde isso poderia ter funcionado melhor logo no início e ainda permanecem grandes lacunas em várias questões.
P. No plano nacional, tivemos ao menos dois grandes apagões de dados sobre a covid-19, um em junho, com uma mudança na plataforma do Ministério da Saúde, e outro em novembro, com a instabilidade do sistema que impediu alguns Estados de atualizarem as suas estatísticas. Quais foram as consequências desses problemas?
R. Hoje tudo o que sabemos da pandemia depende dos dados de notificação de casos e óbitos. Dez meses após o início da pandemia, quando a gente fala que o Brasil registrou 1.000 óbitos em um dia, ainda estamos falando de mortes que foram notificadas agora mas que podem ter ocorrido em qualquer momento ao longo desses meses, enquanto que em outros países conseguimos acompanhar as mortes pela data em que ocorreram. Isso é um problema básico. Com isso, quando temos alguma pane como essa dos Estados e não é possível alimentar algum dado, depois vamos ver um pico [nas estatísticas]. A confusão nos números da pandemia é tão grande que esse dado não tem uma utilidade real para o gestor. Como os Governos podem justificar suas medidas de flexibilização usando esse tipo de dado?
E esse problema leva para outra questão, que são os dados sobre leitos. Um dos principais critérios que os Governos usam em seus planos de reabertura é a taxa de ocupação de leitos de UTI [para pacientes com covid-19]. Porque como não há dados confiáveis sobre testagem e sobre casos e óbitos, dependemos de relatórios hospitalares para saber como está a situação. Mas aí já é tarde. Ter uma UTI lotada significa que houve uma transmissão descontrolada nesse local semanas ou meses antes e que não agimos no momento em que precisávamos ter agido para poupar vidas.
P. No início da pandemia, a senhora chegou a elogiar a iniciativa de Governos locais de, à frente do Governo federal, implantar suas próprias medidas de distanciamento. Qual é a análise que faz dessas medidas agora e dos processos de reabertura?
R. Um dos nossos principais estudos hoje é o mapeamento dos planos de flexibilização de cada Estado. No início falamos: “Os Governos reagiram”. Essa corrida foi de fato importante, mas não quer dizer que não teria sido melhor com um esforço nacional mais coordenado. Por exemplo: se logo no início da pandemia tivéssemos determinado que pessoas que chegassem do exterior em todo o país fizessem quarentena por 14 dias, isso teria sido muito mais inteligente do que fechar todas as escolas no Maranhão. Então os Estados deram uma resposta fragmentada e não necessariamente coerente com a situação na pandemia naquele lugar.
Uma outra questão que chama muito a atenção nos planos de flexibilização é a divisão do Estado em regiões. Da mesma forma que falamos que o vírus não respeita fronteiras, ele também não vê que determinada região de São Paulo é vermelha e outra é laranja. Essa classificação cria uma confusão muito grande. Tem Estado com 12 fases de flexibilização, outros têm três... Passa a impressão de que a pandemia é algo muito gradual, que você pode ir fechando e abrindo [as atividades] aos pouquinhos, e não comunica corretamente qual é o nível de risco. O que a população precisa saber é: a situação é grave ou não? Qual é a conduta adequada? Mas em vez de discutir qual deveria ser a conduta mínima de segurança para os moradores de todo o Estado, ficamos discutindo que em tal lugar pode abrir até as 18h e em outro pode abrir até as 22h... Isso significou muita confusão e prejudicou a adesão às medidas.
Especialistas defendem que uma resposta radical e severa por duas semanas você conseguiria um controle muito mais eficiente do que fazer uma quarentena prolongada, mal fiscalizada e que não prática não está limitando nada.
P. Como avalia o Plano São Paulo, de restrições no Estado?
R. Em São Paulo, além da questão da divisão do Estado, os pesos dos indicadores [usados para nortear a reabertura] foram mudando ao longo da pandemia [em julho, por exemplo, o Governo flexibilizou de 60% para 75% o limite de leitos de UTIs ocupados com pacientes de covid-19 necessário para uma região passar da fase amarela para a verde, mais branda]. As estratégias foram mudando para ceder a pressões políticas. Vimos isso em dezembro: o governador [João Doria, PSDB] tentou proibir a venda de bebidas alcoólicas depois das 20h. A associação de bares e restaurantes contestou e venceu na Justiça. Por que isso aconteceu? Porque os Governos estão em uma saia-justa: têm que decidir entre serem muito rígidos, fechando tudo, ou deixarem tudo aberto e perderem o controle. O meio-termo não existe, porque eles precisam negociar com cada setor. E também não há fiscalização.
P. Ao longo desses 10 meses, passamos pela negação da gravidade da pandemia pelo Governo Bolsonaro, por duas trocas de ministros, pelo apagão de dados do Ministério da Saúde e agora por um impasse na elaboração do plano de vacinação. A senhora ainda se surpreende com a gestão brasileira da pandemia? Qual é o saldo?
R. Já temos amplas evidências para falar que é uma conduta irresponsável e criminosa, porque custa vidas. Mas minha leitura de cientista política é que essa é uma estratégia pensada de não se responsabilizar pela pandemia. Parte do diagnóstico de quem sabe que vai perder se decidir responder e enfrentar a pandemia. Coordenar um enfrentamento traria mais responsabilidade e julgamento sobre as ações do Governo Federal. Então a única chance que Bolsonaro tem de ser competitivo em 2022 é se distanciando do problema e colocando a culpa da crise nos governadores e prefeitos. Por isso ele não conseguiu realmente apoiar prefeitos nessas eleições. Ele não poderia se alinhar.
P. No México, a gestão de López Obrador também tem sido criticada e marcada pelo negacionismo. Como compará-la ao Governo Bolsonaro?
R. São dois casos importantes para discutir o machismo de presidentes na pandemia. Tanto Bolsonaro quanto Obrador fazem questão de mostrar que são machos de verdade, e por isso colocam em risco a vida da população e a deles, se expondo sem máscara, para dizerem que não têm medo do vírus. Confundem a capacidade de enfrentamento da pandemia com uma questão de fragilidade ou fortaleza física, com sua masculinidade. Quando você vê o discurso de mulheres, como a Merkel na Alemanha ou a primeira-ministra da Nova Zelândia [Jacinda Ardern], elas não fazem questão de trazer a pandemia para um nível tão pessoal. Alguns presidentes buscam manter essa imagem de homem forte: Brasil, México, Venezuela [com Nicolás Maduro]. Mas essa postura não foi adotada no Uruguai [governado por Luis Lacalle Pou. Então não é uma questão de como partidos de direita ou Governos populistas reagem, é mais uma questão de característica pessoal.
P. O que esperar da pandemia no Brasil em 2021?
R. Sendo realista, acredito que 2021 vai ter uma cena muito parecida com a que o país enfrentou em 2020, só que com a economia muito mais frágil, uma sociedade muito polarizada e com essas lacunas de infraestrutura no combate da pandemia que a gente não arrumou. Vamos ter uma situação muito complicada, porque a população está imaginando que vai chegar logo uma vacina, mas vacinar o Brasil inteiro vai ser um processo complexo, e a gente ainda vai precisar fazer muito distanciamento físico, ainda vai precisar fazer muita testagem. Estamos entrando em um momento grave, e o que me preocupa é: ou os Governos adotam medidas mais severas, entendendo que precisam atuar agora, ou estaremos no caminho de virar os Estados Unidos ou pior.
Folha de S. Paulo: Pandemia deixou óbvio que vivemos em um país desgovernado, diz Frei Betto
Em novo livro, frade dominicano e escritor faz reflexões sobre Covid-19, memória e política
Fernanda Canofre, Folha de S. Paulo
Os meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido de isolamento para Frei Betto, 76. Dividindo-se entre o convento dominicano, em São Paulo, e um sítio, entre palestras virtuais e a escrita, ele conta que sai apenas esporadicamente para ir a consultas médicas de rotina.
As reflexões sobre os primeiros três meses deste período foram reunidas recentemente em “Diário de Quarentena – 90 dias em Fragmentos Evocativos”, publicado pela editora Rocco.
Este é o mais recente da lista de 69 livros assinados pelo frade dominicano, reunião de ensaios, artigos, registros de notícias sobre o avanço da Covid-19, poemas, memórias da ditadura e de pessoas próximas, como frei Tito, amigo que foi torturado pelo regime.
“Colocar no papel ou computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico”, diz ele, em um dos trechos, onde sugere escrever um diário entre as dicas de como enfrentar a reclusão forçada, lembrando os dias em que foi mantido em solitárias nos Dops (Departamento de Ordem Político Social) de Porto Alegre e de São Paulo.
Apenas no estado de São Paulo, ele conta que ainda foi mantido no quartel-general da Polícia Militar, no Batalhão da Rota, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.
A lista de dicas é endereçada a um homem, casado há mais de 20 anos, hipertenso, e que resiste a ficar em casa, para angústia da mulher. Os dois aparecem em entradas variadas pelo diário, e ele acaba contraindo o vírus no decorrer do primeiro mês de uma quarentena que ainda teria muito tempo pela frente.
Ao pedido de entrevista da Folha, Frei Betto preferiu que a conversa fosse por email, pelo qual respondeu sobre a pandemia e questões políticas do cenário nacional, como as eleições municipais e o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a quem chama de BolsoNero, em referência ao imperador de Roma.
Frei Betto, que foi assessor especial da Presidência da República em 2003 e 2004, no governo Lula, diz no "Diário" que a mineirice o preservou de ambições políticas e que o maior erro da esquerda foi o abandono do trabalho de base.
“Lembre-se de que jamais fui militante de qualquer partido político. A meu respeito correm duas lendas sem respaldo na verdade e na realidade: a de que sou sacerdote (sou apenas um religioso leigo) e militante partidário”, ressaltou ele durante a correspondência virtual com a reportagem.
O seu livro mais recente, de um total de 69 publicados, traz textos que o senhor escreveu num período de três meses de quarentena. O senhor acha que alguma lição foi tirada da pandemia? Ficou óbvio que vivemos num país desgovernado, cujos quase 200 mil mortos pela pandemia foram vítimas de um presidente que sofre de tanatomania.
O Brasil voltou a registrar mais de mil mortos em um único dia em decorrência do novo coronavírus. Como estamos encarando essas mortes? Parece que a nossa população sofre também de isolamento psicológico. Esse genocídio, causado pelo descaso do governo, bem como as tragédias de Mariana e Brumadinho, deveriam suscitar grandes mobilizações populares, como ocorreu nos casos George Floyd e, aqui, João Alberto. Perdemos a empatia. O sofrimento do outro não dói em nós. Mas devemos guardar o pessimismo para dias melhores.
O senhor se considera otimista, então, hoje? Tudo que os demolidores, como BolsoNero, querem é que percamos o ânimo e fiquemos à mercê de seus arroubos autoritários. Quando constato que, numa cidade conservadora como São Paulo, Guilherme Boulos passou para o segundo turno e teve mais de 2 milhões de votos, a esperança renasce. O bolsonarismo foi o grande derrotado nessas eleições municipais, como será varrido do mapa em 2022.
Em entrevista recente ao jornal argentino Página 12, o senhor disse que as eleições deste ano seriam um termômetro interessante para avaliar o olhar do população. Pela primeira vez desde 1985, o PT ficou sem governo nas capitais. Qual a leitura o senhor faz desse resultado? Enquanto os partidos progressistas não tiverem consenso em torno de um Projeto Brasil, continuarão sem condições de produzir uma alternativa de poder. E precisam retomar o trabalho de base popular. A cabeça pensa onde os pés pisam.
Qual foi o erro que levou a esse resultado em 2020? Em 2018, a direita soube manipular muito bem, em especial pelas redes digitais, o antipetismo alimentado pelas tramoias da Lava Jato que fomentaram uma narrativa moralista capaz de induzir muitos a esquecerem os avanços, sobretudo na área social, dos 13 anos de governo do PT. Já em 2020 PT, PSOL e PC do B deveriam ter feito mais alianças. Agora, é hora de retomar o trabalho de base popular e definir estratégias na guerra digital.
O que o PT precisa fazer para reverter isso em 2022? E como o senhor vê a figura do ex-presidente Lula nesse contexto? Lula é o mais importante líder popular do Brasil. Tem o papel fundamental de articular esse Projeto Brasil criando, agora, um fórum de partidos e movimentos sociais progressistas.
Lula deveria articular esse projeto em torno de si ou com um novo nome? Quem o senhor vê hoje como sucessor dele? Para 2022 a oposição, se lograr unidade, conta com ótimos candidatos: Lula, Boulos e Flávio Dino são três exemplos. Considero Lula um ótimo candidato a presidente em 2022 [o ex-presidente, porém, hoje está barrado pela Lei da Ficha Limpa]. Quanto ao Projeto Brasil, deverá resultar da articulação entre os partidos progressistas e os movimentos sociais.
Em 2021, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) completa cinco anos. O senhor chegou a dizer que Lula devia estar arrependido por não ter sido ele o candidato em 2014. Continua pensando assim? Sim, Lula deveria ter sido candidato em 2014. Com o patrimônio de dois mandatos presidenciais e 87% de aprovação, o PT não teria que, de novo, começar do zero. Dilma foi bem no primeiro mandato, mas perdeu o rumo no segundo.
Quais lições ficaram destes últimos cinco anos? Fora do povão não há salvação. O afastamento dos partidos progressistas das periferias, favelas e zonas rurais pobres, o refluxo das comunidades eclesiais de base, devido aos pontificados conservadores de João Paulo 2º e Bento 16, abriram espaço, no universo dos marginalizados e excluídos, ao fundamentalismo religioso que alavancou a eleição de BolsoNero.
Temos que fortalecer os movimentos sociais e começar a sinalizar que é uma falácia candidaturas de centro à Presidência da República.
Todos que, agora, se fantasiam de centro são, na verdade, convictos defensores das pautas políticas e econômicas da direita, como a prevalência da apropriação privada da riqueza sobre os direitos coletivos e o 'direito' de as empresas brasileiras sonegarem mais de R$ 400 bilhões por ano. Nenhum deles aprovará uma reforma tributária progressiva, que afete a fortuna dos mais ricos e favoreça os mais pobres.
Bolsonaro sempre tentou se aproximar do voto cristão, de católicos e evangélicos. Como um religioso, o que o senhor acha dessa postura? Ele usa e abusa do nome de Deus em vão. Um presidente que libera armas, que matam, e trava vacinas, que salvam vidas, se compara àqueles que Jesus qualificou de 'sepulcros caiados'.
Em um discurso deste ano na ONU, ele falou sobre "combate à cristofobia". Existe cristofobia no Brasil? Só na cabeça dele, que ainda procura assustar o povo com o fantasma do comunismo, mantém um ministro que passa a boiada por cima de todos os princípios de preservação ambiental e um outro que isola o Brasil, agora órfão da tutela da Casa Branca.
O senhor viveu a repressão da ditadura militar e teve pessoas próximas mortas pelo regime. Como encarou a eleição de Bolsonaro? Como uma tragédia consentida pelo Judiciário, pois como apologista da tortura, da ditadura, do racismo, da misoginia e do golpismo, deveria ter sido impedido de se candidatar.
No último texto que publicou nesta Folha, em outubro deste ano, o senhor critica a decisão judicial que proibia o uso de "católicas" no nome do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. O senhor também publicou aqui uma carta de uma neocristã que fez um aborto. Qual a posição do senhor sobre o tema? Aprovo o sistema francês, no qual tudo se faz para evitá-lo mas, em última instância, a decisão é da mulher. Já propus a várias jovens que, surpreendidas com uma gravidez inesperada, vieram ao convento com seu drama de consciência: tenham o filho e tragam aqui que eu crio. Nenhuma, que eu saiba, abortou. E ganhei um monte de afilhados...
O senhor também fez parte do Fome Zero. Como vê a questão do enfrentamento à fome hoje? Um dos escândalos da atualidade é o fato de a Covid-19 já ter matado quase 1,7 milhão de pessoas no mundo, o que provoca fantástica mobilização em busca da erradicação do vírus, enquanto a fome mata cerca de 24 mil pessoas por dia, 9 milhões por ano, e quase ninguém se mobiliza. Por quê? Porque a fome faz distinção de classe, a Covid não.
O Brasil saiu do mapa da fome em 2014 e, agora, corre o risco de retornar. Segundo a Oxfam, 5,2 milhões de pessoas passam fome no Brasil, sem contar os que não ingerem os nutrientes essenciais, como proteínas e vitaminas.
A fome é o retrato mais cruel da desigualdade social no Brasil. E, apesar disso, o governo Bolsonaro erradicou o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] e mantém total indiferença à questão da segurança alimentar, embora o nosso país seja considerado 'celeiro do mundo'.
RAIO-X
Frei Betto, 76
Frade dominicano e escritor, nasceu em Belo Horizonte. Preso duas vezes durante a ditadura militar, foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula, de 2003 a 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Tem 69 livros publicados. É assessor de movimentos sociais e da FAO/ONU para questões de soberania alimentar e educação nutricional
Fernando Gabeira: Na marca do pênalti
No prontuário de Bolsonaro, não pesam só vidas humanas, mas todos os componentes da riqueza do Brasil
Bolsonaro fez parte de um seleto grupo de estadistas que negaram a pandemia. Em seguida, foi o único no mundo, ressalta o jornal “Le Figaro”, que se colocou negativamente diante da vacinação.
Ele foi escolhido como o pior corrupto do ano, pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project. Coisa de comunistas? Os escolhidos anteriormente foram Putin, Maduro e Duterte.
Bolsonaro chegou ao fim de 2020 com 24 pedidos de impeachment acumulados na gaveta. Alguns comentaristas acham que ele zombou da tortura em Dilma Rousseff para desviar a atenção de seu fracasso diante da pandemia.
Mas é uma tática estúpida. Não se disfarça a morte com cheiro de morte, muito menos se esconde a desumanidade contra muitos, concentrando-a numa só pessoa.
O conjunto de declarações de Bolsonaro está registrado. Uma pandemia com quase 200 mil mortos não desaparece na história como um relâmpago no céu.
Ele contribuiu para que uma parte do povo brasileiro desafiasse o perigo da pandemia e colocasse em risco a própria vida e a dos outros.
Bolsonaro ignorou os apelos para que o Estado protegesse as populações indígenas. Por duas vezes, o STF devolveu ao governo a lição de casa que não consegue realizar: um plano eficaz para protegê-las.
No governo, Bolsonaro aumentou a destruição da Amazônia, queimou um terço do Pantanal, e o Cerrado perdeu 13 % de sua vegetação. No seu prontuário, não pesam apenas vidas humanas, mas espécies animais, plantas, enfim, todos os componentes da riqueza do Brasil.
Sua política arruína as chances de nos apresentarmos como uma potência ambiental, atraindo energias, capitais, poderosos governos, todos ansiosos por trabalhar conosco numa nova etapa da luta mundial pela sobrevivência das novas gerações.
Numa das suas últimas lives, Bolsonaro afirmou que não seria retirado da Presidência sem um motivo justo. Ninguém faria isso. Mas a situação muda de figura quando se consideram 200 mil mortes diante de um governo negacionista. Se isso não for um motivo justo para milhares de famílias que perderam seus entes queridos, o que será?
O auxílio emergencial aprovado pelo Congresso atenuou o impacto da posição inicial na imagem de Bolsonaro. A má vontade com a vacina atualizou sua culpa.
O general Pazuello tem responsabilidade, mas obedece a Bolsonaro. Só é formalmente um Sancho Pança.
Sancho seguia Dom Quixote, um símbolo permanente da humanidade. Assim mesmo, era capaz de alertar: olha mestre, olha o que senhor está falando.
Juntos, capitão e general arrastaram as Forças Armadas para uma política que nega sua proximidade com a ciência, lança dúvida sobre sua capacidade e chega a nos fazer duvidar dos critérios que levam alguém ao generalato.
A aventura da hidroxicloroquina, justificada pelo Exército como um conforto à população assustada, é um argumento religioso. Remédios são feitos para curar.
A pandemia revelou o abismo da desigualdade social. Entramos em 2021 sem resposta para milhares de pessoas necessitadas. Não só estamos longe de um contrato social, mas sendo cada vez mais empurrados para a barbárie.
Bolsonaro é a barbárie de que o capitalismo escapou no século passado, com a ajuda da social-democracia e de políticas sociais. E de que a globalização procura escapar, no século XXI, com as diretivas de governança sustentável e socialmente responsável.
No seu governo, vigora a tese de que o homem é o lobo do homem, de que os fortes sobrevivem de armas na mão. Não há chances de construir um país com essas ideias. A esperança em 2021 passa por nos livrarmos desse pesadelo, em condições ainda difíceis de movimento e contato físico.
Quando os valores humanos são negados tão radicalmente por um líder e seus fiéis que riem da tortura, é fácil compreender que a luta não é apenas por um país, mas pela sobrevivência da espécie.
No Brasil, a humanidade está em jogo. Muitos já compreendem, mesmo vivendo fora daqui, o potencial destrutivo dessa ameaça.