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Maria Hermínia Tavares: A farra do centrão

Arthur Lira deve pensar que é um bom momento para passar a sua boiada

Na hora em que a morte é mais rápida que as vacinas, o presidente da Câmara e chefe do centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), decidiu trazer a reforma política de volta à agenda do Congresso.

Talvez imaginando que este seja um bom momento para passar a sua boiada, criou duas comissões destinadas a produzir uma pretensiosa revisão da legislação eleitoral e partidária, com mudanças na forma de escolha dos representantes, na propaganda e financiamento de campanhas e no papel da Justiça Eleitoral.

Assim reassume o seu lugar à mesa de debates o fim do sistema de voto proporcional de lista aberta, que distribui as cadeiras no Legislativo entre as legendas segundo a proporção de votos recebidos por elas, uma a uma, respeitada a preferência do eleitor pelos candidatos que compõem as listas partidárias. Em seu lugar, entraria o "distritão", apelido dado ao sistema que os especialistas denominam, com uma ponta de pedantismo, "voto único não transferível". Nele, as cadeiras nas Câmaras e Assembleias iriam para os mais votados, em seus distritos eleitorais, cujos limites, aqui, coincidiriam com os estados da Federação.

Forma raramente adotada de sistema majoritário, hoje, existe apenas na Jordânia, no Afeganistão e em paragens exóticas como Vanuatu e Ilhas Pitcairn. Seus efeitos mais notórios são limitar a representação das minorias e estimular os partidos a apostar em candidatos com grande potencial de votos: pastores, celebridades de TV e formadores de opinião nas redes sociais.

Além disso, o pacote representa um robusto retrocesso nas regras recém-aprovadas para reduzir o número de partidos representados no Legislativo. Pois propõe a revogação da cláusula de desempenho, pela qual cada legenda deve obter ao menos 2% dos votos em nove estados —ou eleger 11 candidatos—, e a volta das coligações nos pleitos para a Câmara e Assembleias Legislativas. Uma e outra coisa estimulam a multiplicação de legendas, fazendo do Brasil um caso extremo de fragmentação partidária.

Finalmente, muitas propostas intentam enfraquecer a Justiça Eleitoral, guardiã eficiente e indispensável da integridade do processo, sem a qual a democracia desaba.

Propostas de reforma política foram recorrentes no país. Por discutíveis que fossem, sempre miraram a melhoria da competição eleitoral e da capacidade de governar. A iniciativa do presidente da Câmara só pretende favorecer os interesses miúdos dos partidos idem que sustentam um governo de ainda mais baixa estatura. É a farra do centrão, que debilita a ordem democrática enquanto a Covid faz a sua parte.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Ricardo Noblat: Mansão de Flávio Bolsonaro vira dor de cabeça para seu pai

Rapaz treloso

É estranho que Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) tenha comprado uma mansão em Brasília no valor de 6 milhões de reais se tem, como senador, a custo quase zero, o direito a um amplo apartamento em área nobre de Brasília e mais perto do seu local de trabalho da Praça dos Três Poderes?

Sim, seria estranho se recuarmos no tempo algo como 36 anos. Enquanto durou a ditadura militar de 64, apenas os mais destacados servidores do Estado moravam em casas luxuosas da chamada Península dos Ministros, no Lago Sul da cidade, com direito a todo tipo de mordomia. O acesso ali era controlado.

Havia quadras nas Asas Sul e Norte do Plano Piloto, como ainda há, destinadas a deputados, senadores e ministros de tribunais superiores. Mansões eram para os ricos do Distrito Federal que as construíam, ou para representantes de empresas que atuavam como lobistas, ainda poucos para os padrões atuais.

Ostentar riqueza pegaria mal para um parlamentar, era simplesmente inconcebível. A política ainda não tinha virado um grande negócio capaz de encher os bolsos dos mais ousados. A corrupção existia, embora não fosse admitida nos vastos salões, corredores e gabinetes do Congresso.

Um deputado ou senador comemorava quando conseguia emplacar um afilhado político em algum cargo de escalões inferiores do governo. No máximo, o afilhado retribuía mais adiante indicando fornecedores de serviços públicos que poderiam ajudar seu padrinho a pagar despesas das próximas eleições.

Àquela época, uma Lava Jato não teria feito o menor sucesso. O último presidente da ditadura, o general João Figueiredo, deixou o poder com alguns cavalos de raça a mais, presentes que recebeu de bom grado. E teve depois seu Sítio do Dragão, na região serrana do Rio, reformado de graça por empreiteiras.

O presidente Jair Bolsonaro conhece muito bem essas histórias, mas não as admite. Disse que criou os filhos para que comessem filé mignon, não carnes inferiores. Uma vez assim criados, com o pai a empregar na Câmara funcionários fantasmas, natural que eles queiram desfrutar das coisas boas da vida.

Nesse ramo, dos três primeiros filhos de Bolsonaro, Flávio é o que mais sabe aproveitar. Acusado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa, demonstrou estar convencido de que ficará impune a ponto de comprar um dos melhores e mais caros imóveis do exclusivo Setor de Mansões de Brasília.

Além do conforto, a casa oferece discrição. Fica num condomínio onde só entram os donos e seus convidados. Nada do que acontece por lá é visto de fora. Quem chega de avião a Brasília não precisa passar por nenhum ponto da cidade se quiser se reunir com Flávio. O aeroporto fica a 15 minutos de distância.

O senador consultou o presidente sobre a transação selada em dezembro passado e ele deu seu ok. Aconselhou-o, porém, a ser discreto. Flávio teve esse cuidado. A escritura de compra e venda foi assinada em um cartório de Brazlândia, cidade a 45 quilômetros de Brasília. O vendedor é um dos devotos do seu pai.

Mas aí deu ruim. Como, com a renda mensal que ele tem, pôde comprá-la? Mais uma pergunta a juntar-se a tantas outras que incomodam o presidente. Exemplo: por que Fabrício Queiroz depositou 89 mil reais na conta de Michelle, a primeira dama?

Em 7 vídeos, como Bolsonaro sabotou a vacinação contra o vírus

O apocalipse sanitário está logo ali

Os vídeos abaixo, aqui oferecidos em ordem cronológica, são uma pequena amostra do que disse o presidente Jair Bolsonaro de outubro último para cá a respeito da vacinação em massa contra a Covid. Todos estão postados no Youtube.

Eles indicam com clareza que Bolsonaro sempre teve duas preocupações: pôr em dúvida a eficácia das vacinas e livrar-se de qualquer culpa pelo número de mortos que nas últimas 24 horas bateu um novo recorde, o terceiro em uma semana: 1.840.

1 Bolsonaro diz que vacina contra covid-19 “não será obrigatória, e ponto final” (19/10/2020)

Não seria mais fácil investir na cura do que na vacina?”, perguntou Bolsonaro (28/10/2020)

Bolsonaro diz que não vai tomar a vacina (18/12/2020)

4 Bolsonaro questiona ‘pressa’ para acessar vacina (20/12/2020)

5 Bolsonaro diz que fabricantes de vacinas contra covid-19 deveriam procurar o Brasil (28/12/2020)

6 Bolsonaro afirma que apenas 50% da população brasileira pretende tomar vacina contra a Covid-19 (7/1/2021)

7 Enquanto Mourão vê vacina como saída para crise, Bolsonaro volta a defender tratamento precoce(2/3/2021)


William Waack: Cada um por si

A pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo

Já é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos. 

A extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para o Congresso

É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde. 

Um resultado evidente dessa situação cujo alcance Bolsonaro não parece ter percebido ainda é a profunda desmoralização política associada a um governo visto como incompetente. Presidentes anteriores já foram desmoralizados por eventos abrangentes em parte piorados por eles mesmos, como ocorreu com Sarney/Collor (hiperinflação) e Dilma (recessão). No caso de Bolsonaro, além do estelionato econômico eleitoral do qual Paulo Guedes está se tornando cúmplice, é a pandemia que acelera perigosa desmoralização. 

A confluência de crise econômica, tragédia de saúde pública e incapacidade de liderança política (com seus graves riscos de populismo fiscal) compõe a “tempestade perfeita” mencionada por agências de classificação de risco ao publicarem no começo da semana cenários a curto prazo para o Brasil. O agravamento da crise de saúde pública faria as demandas sociais crescerem em ritmo mais rápido do que o “tempo político” necessário para a aprovação de medidas de contrapartida à continuidade da ajuda emergencial, trazendo ainda mais insegurança aos agentes na economia. 

Bolsonaro está no modo de sempre, dedicado a buscar culpados e livrar-se de responsabilidades. A aparente tranquilidade com que enfrenta um quadro que se agrava nitidamente vem de dois fatores proporcionados por sua estreita visão da realidade. O primeiro é a percepção de garantia política dada pela dupla de primeiros ministros – que, na verdade, mal controlam as próprias casas, como ficou demonstrado no episódio da PEC da imunidade ou impunidade dos parlamentares. 

O segundo é o aparente conforto trazido pelo aparelhamento das instâncias superiores do Judiciário – nomeações “casadas” para o STJ e STF, em estreito entendimento com os movimentos políticos evangélicos. Percalços jurídicos policiais de curto prazo em relação à família do presidente estão afastados, ao mesmo tempo em que não existe nada remotamente parecido à presença de uma Lava Jato para criar dificuldades políticas agudas para o atual governo (como aconteceu com Dilma). 

Desmoralização é um fenômeno político forte e de difícil reversão, que costuma nascer e se propagar primeiro nos vários componentes de elites (administração pública, setores empresariais e financeiros, profissionais liberais, elites culturais em sentido amplo). A perda de autoridade de Bolsonaro já se fazia sentir antes da pandemia, fato demonstrado pela maneira como o Legislativo e o STF encurtaram seu poder. A pandemia, como se diz, acelerou o que já existia. 


Merval Pereira: O futuro não chega

A aposta parecia factível em 2003. Se o Brasil crescesse em média 3,6% ao ano, chegaria em 2050 a ser a quinta economia do mundo, ultrapassando a Itália em 2025, a França em 2031, Inglaterra e Alemanha em 2036. Ela constava de estudo da Goldman Sachs que lançou ao mundo a sigla Brics, países que eram vistos como o futuro da economia mundial: Brasil, Índia, Rússia e China.

Mas a projeção não levou em conta peculiaridades brasileiras, como o maior escândalo de corrupção já desvendado no país, quiçá no mundo, uma crise econômica provocada por uma presidente que acabou impedida pelo Congresso de continuar governando, a chegada ao governo de um capitão tresloucado, uma pandemia que mata mais de 1.800 pessoas por dia. Resultado: a economia brasileira teve um crescimento na última década de pífio 0,3% ao ano, com o resultado de 4,1% negativos anunciado ontem pelo IBGE.

Após crescer 4,7%, em média, durante o período de 2004 a 2007 e de se expandir em 5,2% em 2008, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, em 2009, caiu 0,3%. De 1990 a 2003, o crescimento médio foi de 1,8%; de 80 a 2003, 2%. Essa média cresceu um pouco com o resultado dos 8 anos do governo Lula, que teve um crescimento médio de 4% ao ano, mas voltou ao nível de 2% no governo Dilma.

O país já teve também períodos de crescimento sustentado de níveis asiáticos: de 1950 a 1980, média de 7,15%; de 1960 a 1969, média de 6,12%; de 1970 a 1979, de 8,78%. O problema é que já tivemos crescimento médio de 5,3% durante 50 anos, mas ele caiu nos últimos 40 anos, crescendo menos que o PIB mundial. Entre 1981 e 1990, o PIB brasileiro cresceu a mísero 1,55% ao ano. Daí até 2000, o crescimento médio foi de 2,65% ao ano, até 2010 chegou a 3,7%, retomando a performance prevista pela Goldman Sachs.

De um país que era visto como o futuro da economia mundial, junto com Rússia, Índia e China (Brics), o Brasil perdeu quase metade de sua participação no PIB do mundo nos últimos anos. Em 1980, representava 4,3% e, nesta década, passará a menos de 2,5%. O estudo da Goldman Sachs, coordenado pelo economista Jim O’Neill, lançado em 2003, mas com a medição a partir de 2000, mostra que o Brasil manteve-se no trilho da projeção até 2014, quando a crise do segundo governo Dilma jogou o número para baixo.

O economista Robinson Moraes, coordenador de pesquisa econômica do jornal “Valor”, fez uma projeção para o crescimento do Brasil nas duas últimas décadas, comparando com o previsto pelo estudo americano: deveríamos ter crescido 101,7% nos últimos 20 anos e crescemos apenas 43,6%. O Brasil, que no começo da década era a sétima economia do mundo, passou a cair de posição a partir de 2014, chegou a oitava economia em 2017, a nona até 2019 e hoje encontra-se na 12ª posição entre as maiores economias, ultrapassado por Canadá, Coreia do Sul e Rússia.

O ministro Paulo Guedes, numa espécie de recado metafórico, disse que, se o país tomar o rumo errado, dentro em pouco seremos uma Argentina, ou talvez até Venezuela. Isso na semana em que se debatia a intervenção do presidente Bolsonaro na Petrobras, para controlar o reajuste de preços da gasolina (“o cidadão tem que encher o tanque do carro”, disse o futuro presidente da Petrobras, general Joaquim Luna e Silva) e do diesel, por causa dos caminhoneiros.

A desmoralização que vem sofrendo com as seguidas intervenções do presidente na área econômica — também o Banco do Brasil vai trocar seu presidente, que pediu para sair depois que Bolsonaro estranhou o fechamento de agências — parece ter colocado Guedes em posição de aguardo. Está tentando a última cartada, apostando no compromisso do presidente da Câmara, Arthur Lira, de levar adiante as reformas.

Mas, se ficar aguardando essa boa vontade dos parlamentares e o engajamento de Bolsonaro, pode ficar sem tempo de reagir. A partir do segundo semestre, não haverá mais espaço para discussão de reformas, ainda mais as impopulares, como a administrativa, e as difíceis, como a tributária. Guedes também alertou que, se quisermos ser igual à França ou à Alemanha, teremos que fazer um esforço para o outro lado, durante bons 20 a 30 anos. Em 2050, onde estaremos?


Miguel Nicolelis: 'Brasil pode cruzar a marca de 3.000 óbitos diários por covid-19 nas próximas semanas'

Cientista defende um ‘lockdown’ nacional para evitar colapso sanitário. “Vamos entrar numa situação de guerra explícita. Podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”

Felipe Betim, El País

Médico, neurocientista e professor catedrático da universidade Duke (EUA), Miguel Nicolelis coordenou ao longo da pandemia de coronavírus o Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a covid-19. Deixou o grupo no final de fevereiro após meses traçando previsões e orientando os governadores sobre quais medidas deveriam tomar para conter a curva de contágios e evitar o colapso de hospitais públicos e privados. Uma catástrofe que, afirma em entrevista ao EL PAÍS por telefone nesta quarta-feira, está prestes a ocorrer. “Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”, afirmou o médico, que também é colunista deste jornal.

Na conversa, ele afirma que, de acordo com seus cálculos, nos próximos dias o país começará a registrar 2.000 mortes diárias. Horas depois, o Ministério da Saúde registrou 1.910 mortes por covid-19, mais um recorde. “A possibilidade de cruzarmos 3.000 nas próximas semanas passou a ser real”, prevê. Ele argumenta que aumentar o número de leitos já não adianta e que a única saída é decretar um lockdown nacional pelas próximas três semanas.

Pergunta. O que esperar para as próximas semanas ou dias?

Resposta. Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos. A possibilidade de cruzar 2.000 óbitos diários nos próximos dias é absolutamente real. A possibilidade de cruzarmos 3.000 mortes diárias nas próximas semanas passou a ser real. Se você tiver 2.000 óbitos por dia em 90 dias, ou 3.000 óbitos por 90 dias, estamos falando de 180.000 a 270.000 pessoas mortas em três meses. Nós dobraríamos o número de óbitos. Isso já é um genocídio, só que ninguém ainda usou a palavra. O que são 250.000 mortes sendo que a vasta maioria poderia ter sido evitada?

P. São Paulo voltou para a fase vermelha e fechou comércios e serviços não essenciais. O que pode acontecer com o Estado?

R. Acho que São Paulo vai colapsar. Campinas já colapsou. Rio Preto colapsou. Ribeirão Preto está no mesmo caminho. A cidade de São Paulo não vai aguentar. O Hospital Emilio Ribas já está 100% e com fila de espera. O Hospital das Clínicas, que tem um dos maiores números de leitos de UTI do Brasil, está com 80% de ocupação e vai colapsar.

P. Estados têm apostado na abertura de novos leitos. Abrir novos leitos adianta?

R. Não tem mais médico, não tem mais enfermeiro. Todo mundo sabe, e os políticos sabem também, que a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI. Não tem como combater isso criando mais vagas nos hospitais. É a típica estratégia de maquiagem. Aumenta os leitos, mas os leitos às vezes nem funcionais estão, mas vão para a conta e diminui a taxa de ocupação.

P. O que fazer então? Os governadores e secretários da Saúde pressionaram nesta semana o presidente Jair Bolsonaro por medidas.

R. É precisodecretar lockdown de pelo menos 21 dias e pagar um auxílio financeiro para que as pessoas fiquem em casa. Os governadores sabem que o Governo Federal não vai fazer nada, estão querendo empurrar a responsabilidade. Estou sugerindo desde de novembro de criar uma Comissão Nacional com a sociedade civil, governadores e Supremo, que precisa decretar uma tutela judicial no Ministério da Saúde. Uma intervenção. E essa Comissão Nacional ficaria responsável por tomar decisões e supervisionar toda a logística.

P. Mas a população já não respeita as medidas de restrição. Acataria um lockdown?

R. A população nunca teve uma mensagem correta da gravidade da pandemia porque não temos nenhum estadista no país. As pessoas estão falando de sucessão presidencial em 2022 quando o país está morrendo na pandemia. Faltou decisão política e visão estratégica. Faltou as pessoas eleitas pensarem não nos lobbys econômicos e políticos que as sustentam, mas nos cidadãos como prioridade. É preciso bancar uma decisão. John Barry, o maior historiador norte-americano de pandemias, escreveu que, mesmo com a ciência moderna, o que decide o destino de uma sociedade na pandemia é a decisão política, a opção política dos líderes de defender a população. Por isso que você é eleito, para liderar mesmo nos momentos em que a coisa correta a ser feita é impopular. É preciso convencer a população de que aquilo precisa ser feito.

P. Caso não haja lockdown nacional, como tudo indica... O vírus não tem uma dinâmica própria, em que o contágio sobe muito, chega a um pico e depois começa a descer por causa da sazonalidade, entre outras questões?

R. Não quando se tem um vírus mutando fora de controle e se novas variantes são mais letais e mais contagiosas. Cada variante tem sua dinâmica própria. Como você falou, cresce, chega ao pico e cai. Mas se você tem dezenas de variantes superpostas umas nas outras... Acabaram de detectar a variante da Califórnia em Minas Gerais, porque alguém veio de avião dos Estados Unidos e trouxe ela. Nós recomendamos fechar os aeroportos em agosto. Repetimos em setembro. E evidentemente a Infraero não deu bola. Temos no Brasil a reunião de todas as variantes, inclusive as nossas próprias. Essa é a bomba relógio.

P. Sendo assim, quem teve covid-19 meses trás pode acabar se reinfectando?

R. Se você foi contaminado com a variante inicial brasileira, os anticorpos que você desenvolveu são nove vezes menos eficientes para combater a nova variante amazônica. Por que temos que tomar a vacina contra a Influenza a cada ano? Porque as variantes surgem. Mas o que estamos tendo de número de infecctados do coronavírus é muito grave, então a chance do vírus mutar é muito maior.

P. Você mencionou em outra entrevista a possibilidade de colapso funerário. Como isso pode se dar?

R. Porto Alegre já está entrando, um hospital teve de comprar containers para estocar os corpos porque não estava dando conta de manejá-los. Isso é Manaus. A população cidade de São Paulo é nove vezes maior que a de Manaus. A Grande São Paulo é 20 vezes maior. Se a cidade São Paulo cai, todo o Estado de São Paulo cai. É como uma guerra mesmo: quando um batalhão importante cai, todas as forças armadas são comprometidas. É um efeito cascata. Minha metáfora é que somos Stalingrado, estamos cercados neste momento.


Marcos Fuch: Brasil avança na epidemia do autoritarismo

Estudo em parceria com a Conectas antecipado pelo EL PAÍS em janeiro revelava como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas à pandemia. Operação de sabotagem segue sendo realizada por Bolsonaro mesmo diante de colapso da rede de saúde

A defesa primordial da vida deveria ser o direito mais básico a ser tutelado pelo Estado, mas a resposta brasileira ao enfrentamento da covid-19 não tem priorizado a proteção da vida e da saúde dos brasileiros. Um recente estudo realizado pelo Cepedisa (Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário) da USP, em parceria com a Conectas, com base em mais de 3.000 normas produzidas pela União desde o início da pandemia, revela como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia. O levantamento foi obtido com exclusividade pelo EL PAÍS no fim de janeiro.

MAIS INFORMAÇÕES

A mesma pesquisa avaliou a propaganda contra a saúde pública, como o discurso político que mobilizou argumentos econômicos, ideológicos e morais com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas e promover o ativismo político contra as medidas necessárias para conter o avanço da doença.

Mesmo diante do colapso iminente do sistema público e privado de saúde em diferentes estados, o presidente Jair Bolsonaro segue atacando os gestores públicos que optam por adotar as necessárias―e impopulares ― medidas de distanciamento social. Enquanto as campanhas de vacinação não decolam, o distanciamento social e o uso da máscara são as medidas mais eficazes apontadas por autoridades sanitárias de todo o mundo para reduzir a rapidez do contágio do novo coronavírus e de suas novas variantes.

Ao ir na contramão da ciência, aprofundando a negligência e o negacionismo, temos observado uma estratégia de uso da pandemia para implementar a agenda Bolsonaro de retrocessos sociais e de retirada de direitos. O próprio ministro Ricardo Salles acabou por nos alertar quando, em reunião ministerial de abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado após determinação do Supremo, declarou a intenção de aproveitar os holofotes direcionados à cobertura da covid-19 para “passar a boiada” do desmonte da proteção ambiental.

A pandemia foi usada como justificativa, por exemplo, para restringir direitos trabalhistas, alterar a Lei de Acesso à Informação, intervir na escolha de reitores das universidades federais e até para tentar mudar o rito de aprovação de medidas provisórias e, com isso, oferecer poderes plenos ao presidente de legislar sem intervenção de outros poderes. Muitas dessas medidas foram revertidas pelo Supremo ou pelo Congresso, impondo derrotas ao governo, mas intensificando os desgastes das instituições democráticas.

Houve ainda outros episódios que atacaram frontalmente os princípios do estado democrático, como quando se tirou do ar os dados epidemiológicos da covid-19, incentivou a invasão de hospitais de campanha ou promoveu aglomerações em protestos que pediam intervenção no STF (Supremo Tribunal Federal).

O Governo Bolsonaro também usou a pandemia como forma de atacar ou retirar direitos de minorias, como indígenas e quilombolas, migrantes e refugiados e a população carcerária ― todos grupos altamente vulneráveis aos efeitos do coronavírus e que antes mesmo da pandemia vinham sofrendo retiradas de direitos pelo Governo Bolsonaro.

Os indígenas e quilombolas precisaram recorrer ao STF para obrigar a União a elaborar um plano de contingência contra a pandemia que respeitasse suas necessidades. O Executivo Federal chegou a vetar, de um projeto de lei aprovado pelo Congresso de proteção às populações indígenas no contexto da covid-19, itens tão básicos como garantir o suprimento de água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.

No que se refere aos direitos dos refugiados, desde março de 2020 o governo promove restrições seletivas a pessoas provenientes da Venezuela, país assolado por grave e generalizada crise de direitos humanos. Sob a justificativa de conter a pandemia, refugiados que consigam chegar na fronteira são impedidos de pedir proteção no Brasil e são sumariamente deportados, ainda que turistas sejam permitidos de entrar por via aérea e a fronteira com Paraguai seja a única terrestre aberta, e a despeito de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não apresentar uma recomendação neste sentido.

Por fim, a população carcerária, altamente exposta a infecções em razão das condições insalubres e de superlotação dos presídios brasileiros, não foi nem ao menos considerada como grupo prioritário da campanha de vacinação elaborada pelo Ministério da Saúde. As audiências de custódia, aquelas em que a pessoa presa em flagrante deve passar diante de um juiz no prazo de 24 horas para verificar a legalidade da prisão, seguem sendo realizadas por videoconferência na maioria dos estados ― algo que limita a capacidade de identificar indícios de tortura.

Se ainda não sabemos como, por quanto tempo e em quais circunstâncias teremos que conviver com a pandemia, podemos assegurar que os estragos do autoritarismo e conservadorismo que assolou o Brasil levarão anos para serem superados. Enquanto a maior pandemia da história recente já cobrou mais de 255 mil vidas no Brasil, experimentamos o avanço acelerado da epidemia do autoritarismo que corrói as instituições democráticas e ataca o pacto social estabelecido pela Constituição de 1988.

Marcos Fuchs é diretor da ONG Conectas Direitos Humanos


Arminio Fraga: ‘Não é só uma crise fiscal, há crise política e institucional’

Ex-presidente do BC ressalta que, enquanto não for superada, pandemia continuará sendo um freio para a recuperação da economia

Cassia Almeida, O Globo

RIO - Ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Gávea Investimentos, o economista Arminio Fraga diz que o Brasil passa por uma crise que vai além da área fiscal. Segundo ele, o Brasil é percebido hoje como um país de visão atrasada, que passa ao largo de grandes debates, como meio ambiente e qualidade da democracia.

Arminio diz que nenhum país cortaria o auxílio à população de forma abrupta. Ressaltou que mesmo em uma situação econômica e sanitária não tão negativa, a saída teria seria “suavizada”.

Tivemos a maior recessão desde o Plano Collor. O que nos espera?

O Brasil, na verdade, sofreu dois tombos. Tivemos o de 2014, 2015 e 2016, e agora esse. Olhando o gráfico com os dados trimestrais do PIB, é qualquer coisa de extraordinário: desde 2012, o PIB caiu mais que subiu. A queda do PIB per capita chegou a bater quase 10%. É um sinal muito ruim.

E a pandemia?

É um momento que requer muita reflexão. A economia só vai ter chance de se recuperar quando a pandemia estiver dominada. Há um consenso de que a reação do governo deixou muito a desejar, custando caro em número de vidas e em termos de PIB. Há a visão clara e pacífica de que, enquanto a pandemia não estiver superada, vai funcionar como um freio.

Há outras fontes de incerteza?

Outra fonte de incerteza é a política geral. Já falei isso no passado e continuo achando que os efeitos qualitativos, como a questão ambiental, a resposta à crise sanitária e temas em geral ligados à qualidade da nossa democracia, como esses vários decretos sobre armas, criam um pano de fundo tenso.

Do lado da economia, o investimento vem muito parado, a taxa de investimento é muita baixa. A do setor público caiu de 5 % do PIB para 1%. Mesmo um liberal como eu consegue imaginar um espaço importante de investimento tipicamente público complementar ao do setor privado.

Há outros pontos de preocupação?

Ao lado, temos um quadro fiscal precário, a respeito do qual pouco se fez. A reforma da Previdência foi aprovada, é importante, mas teremos déficit primário a perder de vista. Com a inflação arregaçando as mangas, o lado fiscal pode ficar ainda mais preocupante. Isso é algo para o que não está se encontrando resposta.

O vento a favor está muito forte lá fora, preço das commodities subindo, uma situação, para o Brasil, rara. Mesmo assim, a taxa de câmbio foi para R$ 5,70. As pessoas deveriam se perguntar o que está acontecendo. É um quadro geral extremamente preocupante, dificílimo, não há como negar.

O auxílio emergencial deve ser mantido?

Como parecia previsível, o governo não tomou nenhuma medida considerada antipática para viabilizá-lo, mas antipático é jogar o país em outra recessão. A situação sanitária recomenda auxílio. Não há a menor dúvida: nenhum país cortaria esse auxílio, nas circunstâncias atuais, de maneira radical. Mesmo em uma situação nem tão ruim, haveria uma saída minimamente suavizada do auxílio.

Sou a favor, mas correr mais risco na economia, caminhar para outra recessão é um risco social incalculável. Algumas pessoas esquecem que a crise do real em 1998 e 1999 foi equilibrada com o tripé macroeconômico (câmbio flutuante, meta fiscal e de inflação), que o colapso da economia entre 2014 e 2016 veio na esteira de um colapso fiscal.

Corremos o risco de colapso fiscal?

A irresponsabilidade do governo não foi surpresa. Vejo o Congresso ansioso, mas mais reativo e não proativo. O que quero dizer é que, quando a chapa esquenta, o Congresso se move. Não vejo o Congresso pensar na estrutura tributária, na reforma do Estado para valer. Cerca de 80% do gasto vão para folha de pagamento e Previdência.

Na esmagadora maioria dos países, inclusive os de renda média, a parcela corresponde a 60%. É um trabalho de uma década. Não é só uma crise fiscal, é muito mais que isso. No Brasil hoje, há elementos de crise política, institucional, da credibilidade do nosso arcabouço maior. O Brasil está com uma imagem externa ruim e, pior, com uma imagem interna também ruim, por isso o investimento aqui, que é o mais importante, está tão fraco.

Como fica a imagem lá fora?

O Brasil fica mal. Em muitas dimensões, é visto como um país que tem visões atrasadas e incompatíveis com as grandes questões existenciais do planeta, sobre meio ambiente, da qualidade da democracia.


Eliane Brum: A covid-19 está sob o controle de Bolsonaro

A população brasileira se tornou —e grande parte se submeteu— a ser cobaia de um experimento de perversão inédito na história

Afirmar que a covid-19 está fora de controle no Brasil por incompetência de Jair Bolsonaro é um erro. É o mesmo erro de chamar o Governo de Bolsonaro de “desgoverno”. Bolsonaro governa e a disseminação da covid-19 está, em grande parte, sob o seu controle. Se o que vive o Brasil é caos, é um caos planejado. É necessário compreender a diferença para ter alguma chance de enfrentar a política de morte de Bolsonaro. Se existe alguma experiência semelhante na história, eu a desconheço. No Brasil, certamente nunca aconteceu antes. Estamos subjugados a um experimento, como cobaias humanas. A premissa da pesquisa desenvolvida no laboratório de perversão de Bolsonaro é: o que acontece quando, durante uma pandemia, uma população é deixada exposta ao vírus e a maior autoridade do país dá informações falsas, se recusa a adotar as normas sanitárias e também a tomar as medidas que poderiam reduzir a contaminação.

O resultado, em perdas de vidas humanas, conhecemos: o Brasil ultrapassará os 260.000 mortos até o final dessa semana e aumenta velozmente suas chances de se tornar em breve o país com o maior número de vítimas fatais da história da pandemia de covid-19 no século 21. Enquanto vários países do mundo terão sua população inteiramente vacinada nos próximos meses e começam a vislumbrar a possibilidade de superar a covid-19, o Brasil enfrenta uma escalada.

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Em 2020, Estados Unidos e Reino Unido se alinhavam ao lado do Brasil entre os piores desempenhos relacionados à covid-19. Hoje, com o democrata Joe Biden na presidência, os Estados Unidos dão sinais de que vão deixar essa posição em breve e o Reino Unido do direitista Boris Johnson dá exemplo na campanha de vacinação, com o número de mortes baixando dia a dia.

O Brasil se isola no horror da covid-19, como contraexemplo e pária global. Dados da Organização Mundial da Saúde mostram que, enquanto a média de mortes no mundo recua em torno de 6%, no Brasil cresce 11%. Essa consequência é mais visível. Afinal, nesse crime há corpos, nesse momento em número suficiente para povoar somente com cadáveres uma cidade de porte médio. E crescendo à média atual de quase 1.300 mortos por dia.

Outro efeito é menos óbvio: o que descobrimos sobre nós, como sociedade, quando submetidos a essa violência, e o que cada um descobre sobre si quando as escolhas sanitárias, em vez de determinadas pela autoridade de saúde pública, dependem da sua própria decisão. Essa segunda parte do experimento tem se demonstrado bastante perturbadora e poderá minar os laços sociais ao longo de anos e até décadas, como aconteceu com países submetidos à perversão de Estado no passado.

Seguir alegando incompetência do governo Bolsonaro na condução da covid-19 ou é sintoma ou é má fé. Sintoma porque, para uma parte da população, pode ser demasiado assustador aceitar a realidade de que o presidente escolheu disseminar o vírus. A mente encontra um caminho de negação para que a pessoa não colapse. É um processo semelhante ao sequestrado que encontra pontos de empatia com o sequestrador para ser capaz de sobreviver ao horror de estar totalmente a mercê da vontade absoluta de um perverso.

Já má fé é compreender o que está acontecendo e, mesmo assim, seguir negando porque convém aos seus interesses, sejam eles quais forem. A pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Conectas Direitos Humanos provou que o governo federal executou um plano de disseminação do vírus. A análise de 3.049 normas federais mostrou que Bolsonaro e seus ministros tinham —e ainda têm— o objetivo de infectar o maior número de pessoas, o mais rapidamente possível, para a retomada total das atividades econômicas.

As provas estão lá, em documentos assinados pelo presidente e por alguns de seus ministros. O estudo comprova o que qualquer pessoa com capacidade cognitiva média pode verificar no seu cotidiano, a partir dos atos e das falas do presidente. A ação deliberada de disseminação do vírus não é apenas uma percepção, é também um fato. O que faltava era a documentação do fato, já que não basta perceber, é preciso demonstrar e documentar. E hoje está documentado e essa documentação tem se tornado base para novos pedidos de impeachment e comunicações no Tribunal Penal Internacional.

Em carta pública, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde reivindicou nessa semana a determinação de um toque de recolher para todo o território brasileiro e o fechamento de bares e praias, entre outras medidas. Os secretários afirmaram que o país vive o pior momento da pandemia e exigiram “condução nacional unificada e coerente”. Também pediram a suspensão das aulas presenciais e de eventos, incluindo atividades religiosas. “A ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais”, declararam. “Entendemos que o conjunto de medidas propostas somente poderá ser executado pelos governadores e prefeitos se for estabelecido no Brasil um ‘Pacto Nacional pela Vida’ que reúna todos os poderes, a sociedade civil, representantes da indústria e do comércio, das grandes instituições religiosas e acadêmicas do País, mediante explícita autorização e determinação legislativa do Congresso Nacional”. Bolsonaro, porém, obviamente não quer. E, como a imprensa noticiou, seus subordinados, muitos deles generais de quatro estrelas, avisaram que não fará.

Bolsonaro se recusa. Porque há condução do governo e seus atos estão focados na disseminação do vírus. Esse é o equívoco de quem acredita que é necessário convencer Bolsonaro a liderar um pacto nacional pela vida. Ele já executa um pacto nacional, mas pela morte, e não estou usando uma metáfora. Ele já fez várias declarações públicas e explícitas para que o povo deixe de ser “maricas”, afinal “mortes acontecem”, “todos nós morreremos um dia” e “toca o barco”. Por isso, mesmo no pior momento da pandemia, o presidente segue fiel e dedicado à sua política, estimulando aglomerações e comércio aberto, além de atacar o uso de máscaras.

Em Porto Alegre, um de seus apoiadores, o prefeito Sebastião Melo (MDB), ecoa o chefe: “Contribua com sua família, sua cidade, sua vida, para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre”. Percebam que estamos diante de uma completa inversão: ao longo da história, autoridades públicas das mais variadas geografias e línguas pediram sacrifícios econômicos para salvar vidas. O bolsonarismo inverteu essa lógica: exige o sacrifício da vida —dos outros, bem entendido— para salvar a economia. E assim o Brasil de Bolsonaro e do sacrifício da vida supostamente em nome da economia exibiu em 2020 o pior PIB dos últimos 24 anos. Enquanto países que fizeram lockdown já começam sua recuperação também econômica, o Brasil descarrilha.

Diante da abundância de provas sobre a política de disseminação do vírus, é preciso olhar com atenção para aqueles que seguem apoiando Bolsonaro, em público ou nos bastidores. As razões para a má fé são várias, a depender do indivíduo e do grupo. Uma parte dessa entidade que chamam “mercado” ainda aposta que Bolsonaro seja capaz de continuar fazendo as “reformas” neoliberais que deseja que sejam feitas. Uma parte do que chamam de “agronegócio” também aposta na destruição da Amazônia para aumentar o estoque do mercado de terras para especulação e ampliar a fronteira agropecuária. O mesmo vale para a mineração.

Se é fato que uma parcela já recuou por conta do impacto cada vez maior do desmatamento na recusa de produtos brasileiros na Europa, parte espera que Bolsonaro consiga avançar com mais algumas maldades antes de retirar seu apoio, seja ele à luz do dia ou nas sombras. Só então se escandalizará ao subitamente descobrir a intenção de Bolsonaro de enfraquecer a legislação ambiental e abrir as terras indígenas para exploração predatória. Em algum momento, essas cândidas criaturas do mercado vão retirar seu apoio enojadas, em entrevistas ponderadas e pontuadas por jargões econômicos na imprensa liberal. Afinal, como poderiam esses inocentes imaginar que Bolsonaro não era um estadista, justo Bolsonaro, um homem tão elegante e contido? Para alguns, finalmente, ainda há algo a ganhar com Bolsonaro e Paulo Guedes e, para isso, não importa quantos morram, desde que os enterros não sejam na sua família ou no seu seleto clube de amigos.

O mesmo vale para algumas lideranças do pentecostalismo e do neopentecostalismo evangélico, que também ainda acreditam ter bastante a ganhar, mesmo que parte da sua base de fiéis morra de covid-19. O desespero crescente lhes trará outros clientes para compensar sua má fé. Como é claríssimo, os pastores de mercado apostam em manter seu poder agora e nas próximas eleições. Com o sistema hospitalar dando sinais de colapso, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), considerou cultos religiosos “atividades essenciais”. Para agradar aos pastores, que andavam publicamente reclamando de sua atuação, as aglomerações para o benefício da igreja-empresa estão permitidas.

O fervor pela ciência demonstrado por Doria, em nome do qual consolidou-se como o principal opositor de Bolsonaro no primeiro ano de pandemia, foi substituído pelo novo mote anunciado por ele na segunda-feira: “esperança, fé e oração”. Diante da pressão dos vendilhões dos templos e sua ameaça de retirar apoio na disputa presidencial, rifa-se mais uma vez a vida. E segue aquilo que consideram prioritário: a eleição presidencial de 2022. Afinal, há de sobrar um número suficiente de eleitores vivos até lá.

E o que dizer dos políticos, o Centrão puxando o cortejo de corruptos de bolso e de alma, mas longe de estar sozinho? Todas as violações de Bolsonaro não são suficientes para fazer andar a fila de mais de 70 pedidos de impeachment e sempre aumentando. Afinal, o que vale é garantir a impunidade dos próprios parlamentares, essa sim considerada emergencial por aqueles escolhidos para representar os interesses de uma população que hoje morre de covid-19.

Ainda que os fatos sejam conhecidos, é necessário enfileirá-los para compreender que essa é a realidade: há um presidente executando uma política de morte. Não é histrionismo, não é força de expressão, não é hipérbole. É a realidade e muito mais brasileiros morrerão por causa das ações de Bolsonaro.

Nos deixaremos matar?

Em 2021, a conjuntura do Brasil para enfrentar a política de morte de Bolsonaro é muito pior do que em 2020. E isso já se reflete no número de vítimas. Diante disso, nos deixaremos matar? Porque é basicamente essa a questão. Nesta quarta-feira, atingimos o maior número de mortos em um dia desde o início da pandemia: 1.910 pessoas, 1.910 pais, mãe, filhas, filhos, irmãos, irmãs, avôs, avós perdidos, 1.910 famílias despedaçadas. E isso num país com sistema público de saúde, centros de pesquisa respeitáveis e invejável capacidade de vacinação em massa.

O Congresso, que no primeiro ano da pandemia foi importante para estabelecer o auxílio emergencial de 600 reais e para derrubar os vetos mais monstruosos de Bolsonaro, como o de negar água potável aos indígenas, com Arthur Lira (PP) não fará nada para impedir nem as maldades nem o próprio Bolsonaro. Pelo contrário. O judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, conseguiu barrar vários horrores desde o início da crise sanitária, mas nem de longe é suficiente para impedir a monstruosidade do que o Brasil enfrenta. Sem contar que há grande disputa ideológica dentro do judiciário.

O tal do mercado eventualmente em algum momento retirará seu apoio, caso Bolsonaro faça os setores mais poderosos do empresariado perder mais dinheiro do que ganhar, o que já está acontecendo em várias áreas. Mas não dá para contar com as elites econômicas que, se algum dia tiveram alguns expoentes genuinamente preocupados com o país, hoje claramente se lixam para a população. As elites intelectuais têm mostrado que estão pouco dispostas a fazer mais do que protestar em sua bolha como faz qualquer um nas redes sociais. É claro que há exceções em todas as áreas, mas a profunda crise do Brasil mostra que as elites brasileiras são ainda piores do que se supunha.

As periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro gritam: “é nós por nós”. E é. A questão, quando o “nós” é ampliado, é quem são o nós?

A complexidade do “nós” é que Bolsonaro foi eleito pela maioria dos que foram às urnas. Bolsonaro disse exatamente o que faria. E quem votou nele sabia exatamente quem ele era. E mesmo assim ele venceu, o que fala muito desse “nós”. Apesar de executar uma política de morte e converter o Brasil num pária do mundo, as pesquisas mostram que Bolsonaro ainda tem uma aprovação significativa. Caso a eleição fosse hoje, teria chance real de ser reeleito. Isso também fala do “nós”.

Talvez quem tenha melhor expressado o drama do “nós” seja o governador da Bahia, Rui Costa (PT). Ao ser entrevistado ao vivo pela TV Globo, ele chorou. Porque é difícil de entender o “nós”. E, diante do “nós”, a impotência aumenta. “É duro você receber mensagens com as pessoas perguntando: ‘E meu negócio? E a minha loja?’ O que é mais importante: 48 horas de uma loja funcionando ou vidas humanas?”, desabafou Costa. “Não gostaria de estar tomando decisões como esta. Gostaria que todas as pessoas estivessem usando máscaras. Mesmo aquelas que se consideram super-homens, se consideram jovens. Se não é por ele, pelo menos pela mãe, pelo pai, pela avó, pelo parente, pelo vizinho. Essas pessoas, sozinhas, decretaram o fim da pandemia.”

“Essas pessoas”, as quais o governador se refere, é o “nós”. É o “nós” que lotou as praias, é o “nós” que fez Carnaval, é o “nós” que faz festas, obrigando policiais a arriscarem sua vida para impedir que continuem, é o “nós” que resolveu reunir a família no Natal e os amigos no Réveillon, porque afinal de contas “ninguém aguenta mais”. É o “nós” que lota as igrejas porque sua fé, que precisa daquelas quatro paredes para existir, é mais importante do que a vida do seu irmão. É o “nós” que se acha mais esperto porque segue enchendo a cara nos bares com os parças. É o “nós” que anda sem máscara por todos os lugares. E é também o “nós” que já anunciou que tomar vacina é para otário.

O “nós” é um nó

Nessa altura, alguém pode dizer que esse nós não é “nós”, mas “eles”, o outro lado. Ouso dizer que, se a realidade fosse tão simples como “nós” e “eles”, Bolsonaro já teria sido submetido ao impeachment e já estaria sendo investigado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. O “nós” é um nó. E vamos precisar desatá-lo para enfrentar a política de morte de Bolsonaro.

A parte mais perversa da execução do projeto de Bolsonaro é justamente revelar o bolsonarismo mesmo de quem odeia Bolsonaro. Essa é a parte mais demoníaca do experimento do qual somos todos cobaias. Sim, a orientação do presidente é matar e morrer: não use máscaras, aglomere-se, abra seu negócio, vá trabalhar, mande as crianças para a escola, use medicamentos sem eficácia, se tomar vacina pode virar jacaré. Diante do conjunto de orientações para disseminar o vírus, o que resta é cada um tomar decisões individuais que, poderia se esperar, contemplassem em primeiro lugar o bem-estar do outro, mais desprotegido, e o bem-estar coletivo, o do conjunto da comunidade.

Quando na segunda-feira o governador Rui Costa chorou, ao vivo, na TV, diante de milhões de telespectadores, é por sua incompreensão e impotência diante de gente que o ataca por ter que fechar seu negócio por 48 horas para que vidas possam ser salvas. Dois dias. Dois. No Reino Unido as lojas, as academias, os salões de beleza, os cinemas, os bares e restaurantes etc estão fechados desde novembro e não é permitido ver outra pessoa que não more na mesma casa nem mesmo no parque. Os britânicos, como grande parte dos europeus, passaram o Natal, o Réveillon e os feriados sob essas normas. Uso o exemplo do Reino Unido porque Boris Johnson, o primeiro-ministro, não é um “esquerdopata”, mas um dos expoentes da safra de populistas de direita do mundo. E mesmo assim. Os britânicos podem reclamar, mas dentro de suas casas, porque essas são as regras e quem determina as regras numa pandemia são as autoridades sanitárias. Ponto final.

Bolsonaro também determina as regras sanitárias na pandemia. Mas, como já foi amplamente demonstrado, escolheu a disseminação do vírus. E então, para salvar a própria vida e não colocar a do outro em risco, cada um precisa estabelecer suas próprias regras sanitárias. É nessa volta do parafuso que o “nós” se complica. O “nós” então precisa responder a perguntas bem difíceis. Nós todos precisamos. O que o cotidiano está mostrando é que, eventualmente e às vezes até com frequência, “nós” também somos “eles”.

Lidamos muito mal com limites. Não há problema nenhum em ter limites quando não se perde nada ou quando se perde pouco. Mas, quando precisa perder algo que realmente custa, aí complica.Não apenas custo financeiro, mas o custo de um projeto, o custo de um plano, o custo de um sonho, o custo de aguentar a angústia entre quatro paredes, o custo da solidão, o custo de não passar na frente da fila mesmo que as regras permitam mas a ética não. Enfim, se cada um olhar para dentro com honestidade, e não precisa contar para ninguém, sabe muito bem o que realmente lhe custa e prefere não deixar de fazer.

A justificativa do “nós” para quebrar regras da Organização Mundial da Saúde é sempre legítima porque supostamente é em nome de um bem maior. Nosso cérebro encontra as mais elevadas justificativas para recusar limites que nos obrigam a perder muito. E, quando confrontados, achamos que é o outro que não entende a conjuntura ou que está numa posição mais protegida para tomar decisões. O “nós”, quando pode, raramente se pergunta se deve. O “nós” sempre tem melhores justificativas do que o “eles” para fazer o que quer e o que acha importante. E que muitas vezes é mesmo muito importante. Mas, atenção, estamos numa pandemia que já matou quase 260 mil pessoas no Brasil e mais de 2,5 milhões no mundo. O aumento da contaminação significa não apenas mortes, mas novas mutações do vírus que podem ser imunes às vacinas existentes e comprometer as medidas globais de enfrentamento do vírus colocando toda a humanidade em risco.

Quando se toma uma decisão numa pandemia nunca é apenas sobre a nossa própria vida. Só quem quer disseminar a morte, como Bolsonaro, diz que cada um tem o direito de fazer o que quer porque se trata apenas de si. Quando o presidente declara que não tomará vacina porque essa decisão supostamente só diria respeito a ele, Bolsonaro faz esse anúncio exatamente porque tem certeza do contrário. Ele sabe que essa declaração vai muito além da sua própria vida. Qualquer decisão numa pandemia vai impactar muito além da vida de qualquer um. Se é um presidente, autoridade pública máxima, torna-se uma orientação à população.

É muito difícil lutar contra o governo federal, que tem a máquina do Estado na mão e a capacidade de amplificar suas orientações a toda a população. É imensamente mais difícil lutar contra um presidente da República em meio a uma crise sanitária. Em vez de seguirmos normas federais que protegem a todos os brasileiros e especialmente os mais vulneráveis, normas determinadas pelo Estado, fomos submetidos a ter que tomar nossas próprias decisões sanitárias e, ao mesmo tempo, sermos atropelados pelas dos outros.

Há quem não esteja nem aí, claro que há. Mas há muitos que querem tomar as melhores decisões e realmente acreditam que tomam, mas não são sanitaristas, não foram formados para ser, não têm obrigação de ser. É também a esse experimento que Bolsonaro submeteu os brasileiros. Essa experiência está deixando marcas em cada um e está corroendo ainda mais relações que já estavam difíceis. Está corroendo uma sociedade já bastante dividida, cujos laços estão cada vez mais esgarçados.

Ao deslocar a responsabilidade para o indivíduo, Bolsonaro está perversamente nos tornando cúmplices de seu projeto de morte. Quando ele invoca o direito individual de não usar máscara e de não tomar vacina, ele está maliciosamente dizendo também o seguinte: se é cada um que decide e faz o que quer e você está reclamando de mim, por que você não decide se proteger e proteger os outros? Simples assim, ele poderia dizer. Ou “talquei?” É diabólico, porque ele faz isso parecer trivial, como se fosse possível numa pandemia que as decisões sanitárias dependam da escolha individual.

E se decidirmos lutar contra quem nos mata?

A história nos conta que, na ditadura civil-militar (1964-1985), apenas uma minoria se insurgiu contra o regime de exceção. A maioria dos brasileiros preferiu fingir não ouvir os gritos dos torturados, centenas deles até a morte, ou dos mais de 8.000 indígenas assassinados junto com a floresta amazônica. Ainda assim, tudo indica que foi uma reação mais forte e expressiva do que essa que testemunhamos e protagonizamos como sociedade agora, diante de um projeto de extermínio.

O processo da retomada da democracia, com todas as suas falhas, a maior delas a impunidade dos assassinos de Estado, foi capaz de criar a avançada Constituição de 1988. É a chamada “constituição cidadã”, que ainda sustenta o que resta de democracia hoje, apesar de todos os ataques do bolsonarismo. O que essa sociedade fraca, corrompida, individualista e pouco disposta a se olhar no espelho será capaz de criar se não for capaz de se insurgir contra mortes que seriam evitáveis?

Se dermos por perdido, se nos dermos por perdidos, se dermos por impossível, se nos dermos por vencidos, aí já está dado. Completaremos o caminho rumo ao matadouro. Obedientes à política de morte de Bolsonaro, porque gritar nas redes e no whatsapp não é desobedecer a absolutamente nada. É pouco mais do que dissipar energia se autoiludindo que é ação. Para sermos nós, independentemente de quantos nós exista dentro desses nós, precisamos nos unir num objetivo comum: interromper a política de morte de Bolsonaro.

Em 2020, escrevi nesse mesmo espaço: como um povo acostumado a morrer (ou acostumado a normalizar a morte dos outros) será capaz de barrar seu próprio genocídio? Essa pergunta é hoje, quase 260 mil mortos depois, muito mais crucial do que antes. Nossa única chance é fazer o que não sabemos, ser melhores do que somos, e obrigar o Congresso a cumprir a Constituição e fazer o impeachment. E, lá fora, pressionar os organismos internacionais a responsabilizar Bolsonaro por seus crimes.

A cada dia cada um precisa se somar a todos os outros para esse projeto comum. E, talvez, ainda possamos nos descobrir capazes de nos tornarmos “nós”, o que significa ser capaz de fazer comunidade. A primeira pergunta da manhã deve ser: o que faremos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando? E a última pergunta deve ser: o que fizemos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando?

O que mais falta acontecer, ver e provar para compreender que estamos submetidos a um projeto de extermínio? Primeiro vimos pessoas morrerem em agonia por falta de oxigênio nos hospitais. Depois assistimos às cenas de pessoas intubadas que, por escassez de sedativos, tiveram que ser amarradas em macas para não arrancarem tudo por dor e desespero. O que mais falta? Qual é o próximo horror? De qual imagem necessitamos para entender o que Bolsonaro está fazendo? Precisamos compreender por que estamos nos deixando matar, subvertendo o instinto primal de defender a vida, que mesmo o organismo mais primário possui. Mas precisamos entender enquanto agimos, porque não há tempo. A alternativa é seguir assistindo Bolsonaro executar sua política de morte até não podermos mais assistir porque também estaremos mortos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Alon Feuerwerker: Ciência ou política?

Autoridades informam que as medidas de restrição e isolamento na pandemia são determinadas por critérios científicos. É o que qualquer marqueteiro recomendará dizer. Mas o receptor da informação tem o direito de acreditar ou não. Especialmente quando as mesmas autoridades vão mudando de uma hora para outra as medidas tomadas, mesmo sem ter havido nenhuma alteração de cenário.

A verdade é que o fechamento ou abertura de atividades parece, entre nós, depender mais da força do lobby que de qualquer outro fator. Um exemplo são os templos religiosos. A partir de certo grau de pressão política, passam a ser classificados como atividades essenciais. E fica uma dúvida, em particular: o que exatamente nas rezas e cultos não pode ser realizado à distância?

Por que as escolas podem funcionar bem com ensino remoto e os templos não podem fazer cultos online?

Desnorteadas pela emergência da segunda onda da Covid-19 Brasil afora, e pressionadas pela escassez de UTIs, as autoridades precisam mesmo tomar medidas. Tudo que possa dificultar a circulação do vírus é bom. Outra coisa boa seria evitar o uso do argumento da "ciência" para trazer alguma legitimidade à política pura e simples.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Bernardo Mello Franco: Impunidade parlamentar - Lira recuou, mas não desistiu

Por duas semanas seguidas, os deputados esticaram o trabalho e se reuniram para votar numa sexta-feira. O surto de produtividade nada teve a ver com a pandemia. O objetivo era despachar o aloprado Daniel Silveira e evitar novas prisões de parlamentares.

Assim que a cabeça do bolsonarista foi entregue, a Câmara passou a discutir a chamada PEC da Imunidade. A proposta muda a Constituição para reforçar a blindagem de deputados e senadores. Com a regra atual, prender um congressista é muito difícil. Com a nova, passaria a ser uma missão impossível.

O articulador da ideia foi o novo presidente da Câmara, Arthur Lira. Em defesa da mudança, ele disse que “proteger o mandato é garantir que os parlamentares possam enfrentar interesses econômicos poderosos ou votar leis contra organizações criminosas perigosas”.

O deputado não é conhecido por contrariar empresários ou combater quadrilhas. Ele responde a duas ações no Supremo, por corrupção passiva e organização criminosa.

Discípulo de Eduardo Cunha, Lira se inspirou no mestre e tramou uma aprovação a toque de caixa. Na terça, seus aliados começaram a recolher assinaturas para apresentar a proposta; na quinta, o texto estava pronto para votação em plenário.

Pelo rito tradicional, toda PEC precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça e por uma comissão especial. O presidente da Câmara pulou as duas etapas, mas não conseguiu consumar o tratoraço.

Na sexta, o deputado admitiu, a contragosto, que não tinha os 308 votos necessários para mudar a Constituição. Ele se disse “muito triste e preocupado”, com as críticas à emenda. “Essa não merece ser chamada PEC da Imunidade. Deveria ser chamada PEC da Democracia”, reclamou. Lira foi generoso com a própria obra. Outros parlamentares preferiram acrescentar um P, rebatizando-a de PEC da Impunidade.

O chefe do Centrão usou um argumento fajuto para proteger os colegas na mira da polícia. A Constituição afirma que os congressistas são invioláveis por “opiniões, palavras e votos”. O texto foi redigido para defender a democracia e o livre exercício dos mandatos. Não pode ser usado como escudo para a prática de crimes.

Se a proposta de Lira já estivesse em vigor, o deputado Daniel Silveira não teria sido preso e a deputada Flordelis não teria sido afastada por ordem da Justiça. Ela é acusada de mandar matar o marido, executado com 30 tiros em Niterói.

A pastora foi denunciada por homicídio triplamente qualificado, associação criminosa, falsidade ideológica, uso de documento falso e tentativa de homicídio por envenenamento. Ela se tornou ré há seis meses, mas escapou da prisão preventiva graças à imunidade parlamentar.

O marido de Flordelis foi assassinado em junho de 2019. O Conselho de Ética da Câmara só instalou um processo disciplinar contra ela na terça passada, como parte do teatro para justificar a votação da PEC. Lira foi obrigado a recuar, mas já deixou claro que não desistiu.


El País: Pandemia varre as pequenas cidades do interior levando dor e a busca desesperada por um leito de UTI

Com apenas 28.000 habitantes, Coromandel , no Triângulo Mineiro, registrou em fevereiro duas vezes mais mortes por covid-19 do que no ano passado todo, sobrecarregando leitos de internação de cidades vizinhas maiores. Cenário se repete pelo país, que já tem 17 capitais com UTIs superlotadas

Nilson Braz e Beatriz Jucá, El País

A enfermeira aposentada Luiza Telma da Silva, de 69 anos, sentiu a respiração pesar pela covid-19 justo quando sua cidade encontrava a fase mais dura da pandemia. Coromandel ―um município com pouco menos de 28.000 habitantes localizado no Triângulo Mineiro― registrou somente neste mês de fevereiro duas vezes mais mortes causadas pelo coronavírus do que no resto da pandemia toda: dez pessoas faleceram entre maio de 2020 e janeiro deste ano, enquanto o número de mortes somente nas três primeiras semanas de fevereiro de 2021 chegou a 23. Sem leitos de UTI, a cidade depende historicamente de transferência para outras cidades de referência, em um fluxo que ganhou maior complexidade durante a crise sanitária, quando as cidades maiores também começaram a colapsar. Em 10 de fevereiro, Telma amanheceu com dificuldade pra respirar. Sentia-se fraca, e seus familiares decidiram levá-la ao pronto-socorro. Ela foi então internada e passou a receber suporte ventilatório com oxigênio enquanto esperava por um leito de terapia intensiva. Não deu tempo. Acabou morrendo no mesmo dia, no hospital onde trabalhou durante 10 anos.

Até o fim de janeiro, a cidade do Triângulo Mineiro, contava 473 casos de covid-19. Três semanas depois, o número já era quase três vezes maior, com 1.274 casos. O crescimento acelerado levou o sistema de saúde local ao colapso, já que nem mesmo os leitos de enfermaria da cidade estavam sendo suficientes. Em média, cerca de seis pacientes são transferidos todos os dias a cidades maiores ―como Belo Horizonte, Uberaba, Uberlândia, Divinópolis e Montes Claros― para receber assistência. São desde casos mais graves até aqueles que precisam apenas de atenção especializada ou exames. O problema é que parte dessas cidades, como Uberlândia, por exemplo, também já chegou a um esgotamento em suas redes de saúde. Praticamente já não há mais leitos. Lá, 81 pessoas estão à espera de uma vaga de UTI em hospitais públicos e privados. O Governo de Minas Gerais precisou organizar uma força-tarefa para transferir os pacientes a cidades ainda mais distantes, como a capital Belo Horizonte, que fica a mais de 500 quilômetros de Coromandel.

agravamento da pandemia tem pressionado sistemas de saúde em várias regiões do país. Segundo dados da Fiocruz, publicados pela Folha de S.Paulo, 17 capitais já estão com ao menos 80% de seus leitos de UTI ocupados. Mas, diferentemente do que aconteceu no ápice da crise no ano passado ―que atingiu principalmente as capitais―, agora a interiorização da covid-19 tem levado também cidades médias e pequenas ao colapso. O problema já se repete em várias partes do país. No Rio Grande do Sul, a turística Gramado foi a primeira a identificar a presença da nova variante brasileira do coronavírus e está à beira do colapso. Com leitos hospitalares superlotados, as autoridades municipais colocaram até carro de som nas ruas para alertar sobre a necessidade de manter o distanciamento social. São várias as capitais brasileiras, em todas as regiões, que têm visto a demanda por hospitalizações crescer devido à covid-19. Fortaleza, Salvador e João Pessoa, por exemplo, aumentaram as restrições e determinaram toque de recolher.

Em São Paulo, a pandemia também tem se agravado. A capital bateu o recorde de internações em UTI desde o começo da crise sanitária e afirmou, na última quarta-feira, que se as taxas de internação continuarem a crescer na atual proporção, já não haverá leitos disponíveis no Estado no final do mês que vem. Na última segunda-feira (22), haviam 6.410 pacientes em leitos de terapia intensiva enquanto o recorde na primeira onda foi de 6.257 internados, em julho. Em cidades do interior, como Araraquara, Jaú e Valinhos, a situação também é crítica ―Jaú já tem casos confirmados da nova variante do coronavírus, potencialmente mais transmissível. A estratégia nestes locais tem sido utilizar UPAs (unidades de pronto-atendimento para casos mais leves) para estabilização de pacientes, solicitação de transferências ao Estado e a abertura de novos leitos. Mas com a demanda alta, as novas vagas também são ocupadas rapidamente.

Medidas mais restritivas para frear internações

Na porta do pronto socorro de Coromandel, o pequeno município do Triângulo Mineiro, tem se intensificado a movimentação de pessoas que chegam a esperar horas para tentar informações de seus familiares ou um fazer um aceno a eles antes da remoção para outras cidades. Sob um sol forte, no último fim de semana Daniela Machado Moreira aguardava a transferência da mãe, Maria Aparecida Machado da Silva, de 64 anos, que estava internada há mais de uma semana e seria levada para Uberaba. Daniela contou ao EL PAÍS que todo o atendimento na cidade está comprometido e que só conseguiu ter ideia da gravidade do caso da mãe depois de providenciar, pela rede particular, uma radiografia que apontou um comprometimento de 50% dos pulmões.

“Eles [os médicos] falaram que vão transferir só por segurança, porque lá tem mais condições de fazer mais exames. Mas a gente fica com o coração na mão, porque a gente sabe que essa doença é assim, na mesma hora que está bom, não está. É imprevisível”, afirma Daniela. Ela diz que a família tentava seguir com rigor os cuidados preventivos contra o coronavírus, especialmente porque Maria Aparecida é idosa, e Daniela está tratando um câncer. “Eu não moro com ela. Quando ela começou a ter sintomas, foi no dia da minha terceira [sessão de] quimioterapia. Depois que testou positivo ela ficou dentro de casa. A gente só chegava na varanda, levava comida, só de longe ou por chamada de vídeo”, conta. “Abraço e beijo desde que começou a pandemia a gente não está fazendo. Pensando em preservar ela, porque tem mais de 60 anos”.

Em Coromandel quase todo mundo se conhece, ainda que seja de vista. Por isso a dor da perda e a aflição pelas internações são sentidas por todos. Daniela amparava e era amparada pelos três filhos e pela neta de outros dois pacientes internados: o casal Maria das Dores Vieira Gonçalves, de 70 anos, e Célio Gonçalves, de 71. Só a esposa seria transferida naquele dia, para Belo Horizonte, porque estava dependendo muito do oxigênio e poderia ter o estado agravado. Maria das Dores ainda tomou o cuidado de pedir que não comunicassem o marido para não preocupá-lo. “Nesses casos que envolve saturação de oxigênio não se pode sentir muitas emoções. A gente nem queria que eles se encontrassem aqui no pronto-socorro. Eles têm uma ligação muito forte, são casados há mais de 50 anos”, contou o Célio Rodrigo Gonçalves, um dos filhos do casal, ainda emocionado pelo breve encontro com a mãe antes da transferência.

Maria das Dores e Maria Aparecida são duas das dez pessoas transferidas da cidade em 21 de fevereiro. Nove de Coromandel e uma de Monte Carmelo, cidade que fica a pouco mais de 50 quilômetros de distância, e que precisou da ajuda da cidade vizinha para transferir um paciente por não ter um aeroporto. Na semana passada, o prefeito de Monte Carmelo, Paulo Rocha, chegou a fazer um apelo nas redes sociais pedindo a doação de cilindros de oxigênio vazios, já que os equipamentos disponíveis já não dão conta. A cidade, de 48.000 habitantes, está com uma demanda pelo insumo 10 vezes maior por conta da pandemia, segundo o gestor. E também tem transferido pacientes a cidades como a vizinha Uberaba e a já distante Belo Horizonte pela falta de leitos. O cenário é dramático: o único hospital da cidade para o tratamento da covid-19 mantém a ocupação total dos 16 leitos de UTI que dispõe há cerca de um mês.

Coromandel limitou as atividades comerciais no dia 16 de fevereiro por conta do agravamento da pandemia. “Eu nunca vi isso aqui em Coromandel”, diz Sebastiana Joana da Costa, de 91 anos, pelas grades do portão da garagem de casa. Se a pandemia já vinha mudando a rotina da cidade há um ano, nas últimas semanas estas alterações ganharam novos contornos. Barreiras sanitárias foram posicionadas pela administração municipal nos quatro acessos à cidade. Ali, servidores da saúde e policiais militares param os veículos para aferir a temperatura dos motoristas e passageiros. Pessoas que apresentam febre são orientadas a procurar o pronto-socorro e as orientações como o uso da máscara e o distanciamento social são reforçadas. A situação da cidade motivou a visita do secretário estadual de saúde de Minas Gerais, Carlos Eduardo Amaral, que anunciou reforços de um médico intensivista, um infectologista, um enfermeiro, um técnico em enfermagem e um fisioterapeuta para auxiliar os profissionais locais.

Perto dali, uma cidade maior, Uberlândia, também sente forte pressão sobre seu sistema de saúde. No município de quase 700.000 habitantes, 81 pessoas aguardam na fila de espera por um leito de UTI. O assessor técnico da rede de urgência e emergência de Uberlândia, Clauber Lourenço, diz que, no ano passado, houve um pico de infecções mais concentrado em Uberlândia. Agora, a pandemia tem se agravado em toda a região. “Uberlândia está no centro de entroncamento que tem os dois maiores atacadistas do Brasil. Temos uma circulação de pessoas de todo o país, desde caminhoneiros, passageiros de avião, por causa do posicionamento geográfico. Isso prolifera não só o vírus, como até mesmo o risco de termos outras cepas”, diz. Ele também ressalta que o fluxo migratório para a cidade tem um papel forte na pressão sobre o sistema de saúde. “Pessoas procuram os nossos pronto atendimentos. A gente não pode negar o atendimento por não serem de Uberlândia. O atendimento de urgência e emergência tem que ser dado, isso sobrecarregou o nosso sistema”, diz.

Uberlândia ultrapassou 1.000 mortes por covid-19 na última terça-feira (23) e a prefeitura decretou luto oficial de três dias. A cidade tem uma média de 450 novos casos diariamente. O recorde de mortes em um único dia foi de 19 pessoas na última segunda-feira, 22 de fevereiro. Com esses números, a prefeitura optou por decretar toque de recolher das 20h às 5h, a proibição da venda de bebidas alcoólicas em tempo integral por pelo menos 15 dias e a construção de um hospital de campanha nos espaços vazios do Hospital Municipal de Uberlândia. Nada disso alcançou Aveline Roberta Sousa Macedo Veloso, de 34 anos. Ela havia testado positivo para a covid-19 em 6 de fevereiro e, segundo o tio Elias Peres de Macedo, estava sendo acompanhada em casa por falta de leito para internação —Lourenço, assessor técnico da rede de saúde da cidade, justifica que a decisão sobre a internação de pacientes com síndrome respiratória aguda grave é clínica e cabe ao médico. No dia 18, ainda em casa, ela foi encontrada morta. “Não tem essa de ser só com gente com comorbidade, de idade. Chega para todo mundo. E não se consegue internação, ficam protelando, indicam medicamentos sem comprovação nenhuma. Acaba nisso, infelizmente”.


O Estado de S. Paulo: Falta de valorização da ciência prejudicou combate à pandemia, diz presidente do Einstein

Um ano após registro do primeiro caso de covid no País, detectado no hospital, Sidney Klajner critica a postura de médicos, do CFM e de governantes que negaram evidências científicas no combate à doença

Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo

SÃO PAULO - Há pouco menos de um ano, em 25 de fevereiro de 2020, o Brasil registrava seu primeiro caso de covid-19. O paciente, vindo da Itália, teve o diagnóstico confirmado no Hospital Israelita Albert Einstein, que viu o número de internados explodir nos dois meses seguintes, chegando a 135 em abril. Passado quase um ano do início da pandemia no País, o hospital registrou, em janeiro, um pico ainda maior de hospitalizações pela doença (155) e sua ocupação alcançou os 102%. O País, por sua vez, já acumula mais de 10 milhões de casos e 246 mil mortos, e vive uma segunda onda, com a propagação de novas cepas e um ritmo de vacinação aquém do desejado.

Presidente do hospital, o cirurgião Sidney Klajner conta que não esperava que o País perderia totalmente o controle da pandemia e se tornaria um dos campeões em casos e óbitos pela doença. Em entrevista exclusiva ao Estadão, ele diz que a falta de valorização da ciência e de atitudes pautadas em evidências científicas foram os principais fatores que levaram o País à situação atual. Ele criticou também a postura do Conselho Federal de Medicina (CFM) em autorizar a prescrição de tratamentos ineficazes, como a hidroxicloroquina, e disse acreditar que ainda viveremos as restrições impostas pela pandemia por um longo período.

"A gente vai ter uma presença endêmica do coronavírus por um tempo extremamente longo. A gente pode até controlar essas infecções endêmicas em determinados países ou regiões onde a gente tem um poder maior de imunização, mas sempre vai ter o risco de ela ser trazida por alguém que vem de fora dessas comunidades. Eu não vejo muito próximo o retorno a uma vida normal", opinou.

Em um ano de pandemia, 3.045 pessoas foram internadas com covid no Einstein, das quais 149 morreram. Considerando só a mortalidade entre os pacientes que passaram pela UTI, o índice foi de 16,6%, muito inferior a índices de mais de 50% registradas em redes hospitalares do Brasil e do exterior.

Para Klajner, a fórmula para reduzir a mortalidade passa por investir em UTIs com boa estrutura, equipamentos adequados e profissionais capacitados. As condições prévias de saúde da população e a facilidade de acesso à assistência também têm impacto, diz ele.

O principal aprendizado destes 12 meses de pandemia , diz o presidente do Einstein, é a necessidade de pautar as estratégias de enfrentamento à doença no conhecimento científico, e não em ideologias. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Em fevereiro do ano passado, quando o Einstein diagnosticou o primeiro caso, qual era a sua expectativa para duração e evolução da pandemia?

A minha expectativa naquele momento era a de que a gente teria um controle das pessoas que viessem a adquirir o vírus, um controle do isolamento desses pacientes e, por conta disso, a gente atingiria só uma pequena parcela da população. E que tomando os devidos cuidados, como higienizar as mãos, não espirrando nas mãos, evitando locais fechados, a gente teria um controle total da pandemia. Eu costumo ter uma visão mais otimista do que pessimista, então eu lembro que. naquele momento, a gente falava do clima tropical, da diferença do perfil epidemiológico do idoso da Itália, que é diferente do nosso País. Então, a minha visão de otimismo era que a gente teria uma coisa mais controlada.

Na sua opinião, quando as coisas desandaram no País para uma falta de controle completa? Quanto disso pode ser atribuído à falta de conhecimento que tínhamos sobre o vírus no início da pandemia e quanto é responsabilidade da falta de comando dos gestores e autoridades políticas?

Primeiro, a gente está diante de uma infecção por um vírus que ainda carece de muita informação sobre seu comportamento, então a primeira coisa é que a gente aprendeu muito com a doença no ano passado. Aprendeu maneiras de lidar com ela, da necessidade da abordagem multidisciplinar, ainda não aprendemos totalmente quem vai ficar ruim e quem não vai e o porquê. A gente aprendeu que os grupos de risco não são necessariamente só aqueles de faixa etária mais avançada, mas algo que não entendemos é um possível respaldo genético que faz com que algumas pessoas mais jovens também evoluam para insuficiências mais graves. Toda essa falta de conhecimento no início contribuiu, de fato, para a gente ter opiniões divergentes e uma das grandes causas que levaram à falta de um comando pautado por ciência foi a presença de opiniões de pessoas que não detêm conhecimento e passaram a colocar suas posições muito focadas em ideologias. Isso, em um mundo que a gente vive de disseminação muito fácil por mídias sociais, acabou virando verdade e atraindo uma legião de seguidores. A gente via médicos falando que isso não ia passar de uma gripe e que o calor daqui não ia deixar que fosse igual à Europa. A gente viu governantes preocupados com aspectos econômicos, estimulando o não-lockdown. Aqui no Einstein, lá no final de março, a gente já tinha uma projeção de que, caso não fosse feito algo como foi feito na quarentena, a gente teria o estouro da capacidade de leitos na cidade de São Paulo no dia 15 de abril. Então não dá para atribuir um só culpado, mas a falta do conhecimento, talvez a falta da valorização da ciência como o ponto norteador das atitudes e da adoção dessas medidas. E aí, obviamente, entram as nossas lideranças que preferiram acreditar neste ou naquele ponto, fizeram com que o comportamento da população brasileira em como enfrentar a pandemia e os investimentos e planejamento fossem bastante prejudicados desde o início. Toda essa situação colocou o holofote e uma lente maior nas deficiências do sistema de saúde em relação à gestão, ao seu investimento na saúde e na ciência, que é carente no País.

Mas, além dos problemas históricos de gestão e investimentos, teve a postura do governo federal de às vezes ir contra a ciência…

Então, além disso, você deixar de ver o que aconteceu no resto do mundo e colocar soluções salvadoras, se apoiar numa medicação porque aqui é o Brasil, é óbvio que não seria assim. Esse tipo de dúvida, de você atuar na economia independente do resultado da saúde, isso aconteceu no mundo inteiro. A Inglaterra é um país que, no começo, adotou a postura de imunidade de rebanho e, depois de milhares de pessoas indo para as UTIs, eles abandonaram essa estratégia e voltaram para o modelo de controle através de quarentena e lockdown. Então, a gente teria que, primeiro, ter uma liderança. E não necessariamente ia ser o presidente, poderia ser o secretário, o ministro da saúde. No momento que surgiram divergências, o ministro foi trocado. Tivemos duas trocas onde sequer o plano do primeiro ministro foi colocado adiante. Isso abriu espaço para os governos assumirem a autonomia de organizarem o enfrentamento em seus Estados. Então vira uma colcha de retalhos.

O Einstein foi um dos hospitais que lideraram estudos que mostraram que remédios como a hidroxicloroquina são ineficazes contra a covid. Na sua opinião, por que, mesmo com todas as evidências, médicos continuam prescrevendo?

Tudo isso é fruto da importância de como você coloca a ciência como pano de fundo para tudo que a gente faz em saúde. Na medida que esse mundo científico sofre intervenção de ideologias políticas, as mídias sociais se tornaram um palco onde as pessoas podem falar o que querem. Sem falar na própria consequência da última eleição, que praticamente dividiu o País, de pessoas que são partidárias de um tipo de postura, e não é só esquerda ou direita, mas também seguidores fiéis do nosso presidente ou de governantes de Estados, que acabaram, em vez de usar a ciência para se manifestarem, usando esses palcos para autopromoção, para promoção de ideologias. Não existe ciência com ideologia. Mesmo porque isso é um reflexo das brechas que a gente tem da própria formação científica que os médicos têm e de outros profissionais da área de ciências biológicas. Nesse sentido, esse palco deu espaço para as pessoas se manifestarem da forma que elas acham que é, o que mostra que falta essa formação médica para entender que a ciência não é feita com um trabalho com 20 pessoas no hospital na França. A ciência exige que você tenha evidências suficientes para dizer se um medicamento funciona ou não. Ciência e crença não combinam. Só que no nosso código de ética médica, ele coloca que o tratamento fútil é previsto como uma cláusula de má atividade médica. Quando você usa um medicamento que não vai trazer bem ao paciente, pelo contrário, pode causar evento adverso, a responsabilidade é de ambos (médico e paciente), mas o médico influencia muito. Concordo que a autonomia do médico faz parte da relação médico-paciente, da relação de confiança, mas existem também os guidelines, diretrizes e evidências que mostram como deve ser feito.

A gente viu essa questão da autonomia do médico ser usada como justificativa para aqueles que seguem prescrevendo hidroxicloroquina e pelo Conselho Federal de Medicina para manter a resolução que autoriza a prescrição. Mas o conselho já teve posturas contrárias a outras questões que poderiam estar relacionadas com a autonomia, como a telemedicina. Não dá a impressão que são dois pesos e duas medidas?

É isso mesmo que eu acho. Dois pesos e duas medidas, não tenho dúvida. Enquanto o nosso conselho coloca essa questão da autonomia do médico, o conselho da França faz um processo afastando o médico (Didier Raoult) por ter feito os estudos (com hidroxicloroquina) de forma inadequada. Realmente, é passível de crítica, inclusive porque a formação do médico vai seguir os preceitos que o conselho federal coloca, e não é o modo como eu vejo. Aí começam a aparecer casos de hepatite fulminante por ivermectina ou falta de evidências da melhoria dos pacientes.

A gente viu médicos de renome, como Nise Yamaguchi e Anthony Wong, defendendo terapias sem evidências científicas. O que você acha que leva a esse tipo de comportamento?

Aqueles colegas que insistiram no uso de tratamentos que não são pautados por uma boa evidência científica talvez tenham sido influenciados por outros fatores que não o seu paciente como o centro do cuidado pautados pela evidência científica. Ou eles não têm a compreensão, por falta de formação, do que é um artigo científico e quais são as críticas que a gente deve fazer. Te dou um exemplo: recentemente, faz um mês, houve a publicação de um artigo colocando a ivermectina como opção de tratamento precoce e esse artigo foi repercutido pelo próprio ministério, por uma série de médicos, mostrando que agora já teríamos evidências de uma revista renomada. A revista, por ter um nome bacana, foi colocada como se fosse de altíssimo impacto. Essa revista está na posição 984 no impacto dos jornais de medicina dos Estados Unidos. O artigo coloca uma revisão daquilo que já existe. Quem lê aquilo e não está preparado corretamente para interpretar um artigo científico vai ser enganado. O trabalho era praticamente uma impressão pessoal do autor, não havia ciência nesse trabalho. O artigo era uma porcaria, mas, com uma revista com nome bacana e com figurinha de algoritmo, acabou sendo uma chancela. Por que se faz isso? Porque há pessoas que querem ocupar uma posição de destaque que nunca tiveram e aí está a oportunidade. Ou pessoas que não têm a formação para poder compreender o que é um artigo sério. Outra questão é a falta de humildade de voltar atrás. Quando a pandemia começou, ninguém falava em usar máscara. A Organização Mundial da Saúde (OMS) falava que deveria usar máscara quem estivesse tratando de gente com covid. Depois, a gente teve que fazer um mea culpa por não termos usado a máscara antes. Foi um equívoco que o mundo teve que voltar atrás. Esse tipo de postura de soluções salvadoras aconteceu a pandemia inteira. Soluções salvadoras de alguém que tem um único interesse que é o interesse financeiro. Isso é oportunismo. E no meio médico acontece oportunismo da mesma forma.

Vocês tiveram um primeiro pico de internações em abril, com 135 pacientes. E agora, em janeiro, tiveram um novo pico, com 155 hospitalizados. Vocês esperavam que viveriam um pico pior do que o primeiro um ano depois do surgimento do vírus?

Esperar eu não esperava. Na verdade, eu tinha medo por causa do que vimos na Europa. O verão levou todo mundo para as ruas, para a praia, para as festas e eles passaram a experimentar uma segunda onda. Na verdade, eu esperava que não acontecesse, mas existia uma chance considerando o comportamento das pessoas aqui no Brasil como se a gente já tivesse vencido a pandemia. Tivemos aqui no Einstein uma estabilidade de quatro ou cinco meses de 50 pacientes internados no máximo. Depois do feriado de Finados, a gente começou a ver um incremento. A gente já vislumbrava as comemorações de fim de ano, Natal. Eu vi com muita preocupação quando a procura por passagem aérea estava só 15% abaixo da de 2019. Não é possível que as pessoas estejam viajando dessa forma. Ao mesmo tempo, a gente via festas, raves. A contaminação foi brutal e a gente teve que se mexer em meses que geralmente o movimento no hospital cai, que é dezembro e janeiro. A gente chegou a ter no mês de janeiro 102% de ocupação. Por que isso acontece? Teve essa hipótese das novas cepas. Hoje a situação aqui do hospital é de estabilidade. Houve uma diminuição no número de leitos dedicados à covid para 126. A preocupação é manter esses cuidados ainda, evitar aglomeração, até a gente ter uma quantidade de pessoas vacinadas para dizermos que a pandemia está controlada. Vai demorar um tempo grande até a gente ter uma quantidade da população já vacinada e isso que vai fazer ter controle. Se eu fico imunizado e deixo de respeitar essas medidas de precaução, talvez eu não adquira nenhuma forma grave, mas eu posso adquirir uma forma leve e continuar sendo transmissor. Enquanto o controle não é feito e eu estou comemorando a minha imunização, o vírus pode estar mutando até o ponto que a vacina deixa de ser eficaz.

Vimos a tragédia de Manaus, mas países ricos e hospitais melhor estruturados em outros locais do mundo também viveram colapso. Você acha possível que redes mais estruturadas colapsem diante da ameaça das novas variantes? O quanto isso te assusta?

Assusta menos do que assustou no começo da pandemia por conta da expertise em transformar alas não covid em covid e vice-versa. Ele assusta mais no sentido de termos que interromper tratamentos de doenças não covid.

Os dados do Einstein mostram que vocês tiveram uma mortalidade por covid-19 de 16,6% entre os pacientes que foram para a UTI. Outros hospitais têm índices muito maiores, que ultrapassam 50%. Como foi possível ter um baixo índice? Tem a ver com os recursos, mas está associado também ao estado que o paciente chega?

O que importa no tratamento dessa doença é o suporte à vida, o tratamento multidisciplinar e não um tratamento específico. Isso tem a ver com a qualidade de UTI, da disponibilidade dos recursos. Por exemplo, 40% dos pacientes precisaram de diálise. A maior causa de mortalidade em Nova York foi a falta de diálise. Houve UTIs em Nova York com mortalidade de 88% no momento do pico. E obviamente influencia nessa mortalidade as condições da população. A população carente de cuidados médicos terá uma taxa de mortalidade muito maior. Talvez um hospital como o nosso a gente tem uma população que tem um controle melhor das suas doenças. Isso é mais uma demonstração de que não existe tratamento específico. Tem até um estudo americano que mostra que a mortalidade nas UTIs americanas passou a diminuir à medida que deixaram de ficar testando tratamento e passaram a dar importância naquilo que é expertise de uma UTI: tratamento correto da insuficiência respiratória, prevenção de infecção secundária, uso da diálise.

Quando você acha que voltaremos a uma situação próxima da normalidade?

Eu estava lendo um artigo da Nature publicado recentemente e o título é “The coronavirus is here to stay” (O coronavírus está aqui para ficar). Eles entrevistaram uma centena de cientistas do mundo inteiro. E a opinião da maioria é de que a gente vai ter uma presença endêmica do coronavírus por um tempo extremamente longo. A gente pode até controlar essas infecções endêmicas em determinados países ou regiões onde temos um poder maior de imunização, mas sempre vai ter o risco de ela ser trazida por alguém que vem de fora dessas comunidades. Eu não vejo muito próximo o retorno a uma vida normal. Vamos ter que ter precauções quando frequentarmos lugares aglomerados. A gente vai ter que ter preocupação com fronteiras. Eu deposito a esperança do controle na vacinação. Fazendo um comparativo: H1N1 não foi embora. Na época do frio, a gente tem que proteger nossos velhinhos porque senão eles morrem. Então acho que não vai ser nada diferente. 

Qual é o maior aprendizado que fica desse um ano de pandemia?

São vários aprendizados, mas talvez o principal é que quando a gente fala de saúde, isso é uma parte do conhecimento que diz respeito à ciência científica. Nada numa questão de saúde pode ser dirigida, liderada ou idealizada sem a participação de conhecimento científico. Nesse raciocínio, eu imagino que a gestão da saúde obriga que a gente tenha lideranças com conhecimento científico suficiente que vão dirigir o enfrentamento de qualquer situação de saúde. A liderança não pode ser feita por políticos. Ela pode ter políticos, mas ela tem que respeitar o conhecimento científico. Esse é um grande aprendizado que falta para o nosso País. Se você olhar para o resto do mundo, os países que melhor souberam lidar com isso foi quem tinha à frente um time de pessoas com conhecimento científico suficiente para opinar e dirigir as ações, e não uma liderança que tenha como norteador ideologias políticas.