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Vinicius Torres Freire: Na guerra da vacina, Doria injetou veneno de descrédito na testa

Governador exagerou no show e ameaça programa de imunização

Ao fim da guerra da vacina, João Doria poderia parecer um líder mais nacional e um contraponto da razão a Jair Bolsonaro. O governador paulista decerto fez o bom serviço de cutucar a inoperância federal. Mas, depois dos vexames recentes, Doria pode parecer apenas um destrambelhado provinciano. Pior, lançou desconfiança sobre a própria vacina que comprou, grave em termos sanitários e econômicos.

Por duas vezes, o governo de São Paulo adiou a publicação da eficácia da Coronavac. Na quarta-feira (23), o país foi induzido a esperar boas notícias. Em vez disso, ouviu uma conversa palerma de que os dados precisariam ser antes mastigados pela Sinovac, por uma obrigação contratual, e de que a eficácia da vacina era diferente daquela verificada em outros países, no limite de apenas 50%.

Descobriu-se que Doria estava em Miami, o que pareceu fuga do fiasco. Para piorar, soube-se na sexta (25) que a Turquia não teria “obrigação contratual”, pois divulgou, de modo mambembe, que a Coronavac seria eficaz em 91,25% dos casos.

O governo Doria suscitou desconfiança sobre os números que virão sobre a vacina, já objeto de propaganda negativa criminosa de Bolsonaro.

Quanto menos confiança, menos gente tende a aderir ao programa de vacinação. Quanto menos vacinados, menor a possibilidade de a vacina evitar mortes, aliviar hospitais e atenuar as restrições obrigatórias ou autoimpostas de contato social, o que tem óbvio impacto econômico também.

Mesmo com uma vacina eficaz em 85% dos casos, a campanha contra a Covid teria de atingir adesão do nível de vacinações contra a gripe (uns 95%) para propiciar um alívio notável apenas a partir lá de maio. A vida, porém, ainda teria restrições sérias, em especial para negócios e empregos que dependem de aglomerações e circulação livre pelas cidades.

Na reunião dos governadores com o capacho do ministério da Saúde, dia 8, Doria já trocara as mãos pelos pés. Em vez de vencedor generoso e agregador, pareceu um “mauricinho metido e exibido”, como disse a este jornalista um governador ainda simpático ao colega paulista. Depois, houve duas negaças dos resultados da vacina. Doria blefava, com confiança temerária?

No mundo político, ficou a impressão de que Doria não sabia bem o que estava fazendo, o que sublinhou sua imagem de pouco confiável, um tipo obstinado que faz qualquer negócio, de atropelar aliados a apoiar Bolsonaro em um dia para sair de fininho pouco depois.

O governo paulista poderia simplesmente apresentar a situação tal como ela é, dando publicidade e explicações racionais para a atos e processos, o que seria um contraponto confiável ao desvario bolsonarista. Tem gente para fazê-lo. Doria nomeia muitos bons quadros para seus governos.

Não se trata de ser “transparente”. Apenas na fantasia juvenil ou anarquista um governo pode ser um BBB ao vivo. É política, administrativa e tecnicamente inviável. Mas, claro, em qualquer tempo e lugar, gente com poder sonega informação do público, o que é autoritário.

A fim de recuperar terreno, Doria terá de abafar seu caráter espetaculoso, parar com segredinhos, com vazamentos de notinhas publicitárias e mostrar que pode ser alternativa de racionalidade mínima à pura monstruosidade bolsonarista. Já tem um passivo grande, até pelo Bolsodoria de 2018, relembrado nestes dias de vexame.

Terá de contar com sorte também, que a vacina seja eficaz em nível relevante, uns 75% ao menos, e fazer a mais bem-sucedida campanha de vacinação da história.


Luiz Carlos Azedo: A vacina do Natal

Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança

Talvez esse seja o pior Natal de nossas vidas, em termos sociais, é claro, porque a experiência de vida de cada um é que determina a avaliação. Festa que congrega a família, confraterniza os amigos, dissemina amor e solidariedade, neste ano, a data magna do cristianismo, que é comemorada por todas as religiões ecumênicas, está sendo marcada pela maior tragédia humanitária já vista por nossas gerações, desde a Segunda Guerra Mundial. Aqui no Brasil, só não é maior por causa do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, apesar de um presidente da República que, com seu negativismo, no combate à crise sanitária, sabota seu povo, seu governo e, em ultima instância, a si próprio.

Entretanto, é Natal. Os miseráveis, os enfermos, os condenados, todos sem exceção, de alguma forma, são acarinhados com votos de esperança e compaixão. Os poetas, os cantores, os cronistas, todos que podem espalhar amor e esperança se encarregam de fazer chegar sua mensagem àqueles que estão na pior. De igual maneira, os trabalhadores dos serviços essenciais, de plantão, mesmo privados da convivência com suas respectivas famílias, com sua labuta, principalmente os cientistas e o pessoal da saúde, mandam o recado: confiem, estamos cuidando de vocês. A magia do Natal é uma enorme força transformadora da sociedade, no sentido civilizatório, mesmo agnósticos e ateus devem reconhecê-lo.

A propósito, o biólogo evolucionista Richard Dawkins, no livro O Gene egoísta, publicado em 1976, sua obra-prima, tenta explicar a evolução biológica ao mostrar como certas moléculas replicadoras (ancestrais dos genes) poderiam ter evoluído de modo a formar as primeiras células e, a partir daí, todos os seres vivos existentes. O microscópico encontro de um vírus com uma bactéria, por exemplo, é um grande evento histórico da criação, que se reproduz na natureza a todo instante e provoca mutações genéticas. A covid-19 é fruto desse fenômeno.

Dawkins tentar explicar o problema profundo de nossa existência ao sugerir que os organismos vivos são sofisticadas máquinas de sobrevivência, eficientemente moldadas pelo processo de evolução para promover a replicação sexuada dos genes nelas contidos. Entretanto, essa abordagem levanta sérios questionamentos filosóficos. Seremos meros replicadores de genes, controlados por eles. Onde entra a consciência? Dawkins afirma que genes não têm vontades próprias ou valores morais. Aqueles genes que apresentam um comportamento que seria visto como egoísta pelos seres humanos são os que se mantêm representados dentro dos genomas das espécies, ao longo do processo evolutivo, com o passar dos anos e milênios. O altruísmo seria uma estratégia de sobrevivência, principalmente nos seres humanos.

Eugenia
Genes são polímeros químicos de fósforo e carbono, associados a uma molécula de açúcar e bases nitrogenadas, encapsulados em duas fitas reversas e complementares; ou seja, genes são codificados em moléculas de DNA. Dawkins sugere uma forma de seleção natural darwiniana na qual as moléculas quimica- mente mais estáveis perduravam — enquanto aquelas mais instáveis eram destruídas. A evolução sempre dependeu da adaptação, uma molécula mais estável é mais adaptada ao universo em que vivemos. Assim como existe luta pela sobrevivência na sociedade humana, existe, também, num ambiente molecular.

Hoje, sabemos que os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram as máquinas de sobrevivência mais eficazes para morarem; aqueles que foram menos aptos não deixaram descendentes. Cerca de 4 bilhões de anos depois, Dawkins explica: “Com certeza, eles não morreram, pois são antigos mestres na arte da sobrevivência. (…) Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se, esses replicadores. Agora, eles recebem o nome de genes e nós (todos os organismos vivos) somos suas máquinas de sobrevivência.”

O gene passa de corpo em corpo através das gerações, manipulando as máquinas de sobrevivência por meio de instruções escritas em linguagem digital (A, C, T e G), abandonando tais corpos mortais na medida que eles vão ficando senis e duplicando-se em sua prole. As instruções dizem basicamente: copie-me, ou seja, viva e reproduza. A reprodução é o processo de cópia dos genes, é o processo que os mantém vivos ao longo dos tempos. Socialmente falando, porém, essa eugenia (seleção de certos genótipos para a reprodução em lugar de outros) é totalmente inaceitável. Lembra as teorias de superioridade ariana e o Holocausto.

Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. A postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus — “a melhor vacina é pegar o vírus” — é um inaceitável darwinismo social. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança. Que venham as vacinas contra a covid-19. Feliz Natal!

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-vacina-do-natal/

Beatriz Jucá: A “angústia” quase ofensiva de Pazuello

Ministro chama de “ansiedade” e “angústia” a cobrança por um plano de vacinação em um país que conta mais de 183.000 mortes, após semanas marcadas por falta de transparência e guerra ideológica

Depois de meses vendo o Governo Bolsonaro mergulhar no negacionismo e abrir mão de um valioso arsenal do Sistema Único de Saúde (SUS) no combate à pandemia, o Brasil enfim viu uma luz no fim do túnel nesta quarta-feira. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ampliou o leque de vacinas consideradas no plano nacional e incluiu até a do laboratório chinês Sinovac ―já rejeitado verbalmente pelo presidente Bolsonaro, mas cuja aquisição vinha sendo requisitada por pesquisadores, governadores e prefeitos diante de uma sinalização de resultados promissores. Uma coordenação nacional da vacinação era pleiteada por todos eles. Foram semanas de cobranças sem respostas efetivas, reuniões a portas fechadas, colaboradores técnicos com microfones silenciados e informações difusas disparadas para a população a conta gotas pelo Governo. Ainda assim, um Brasil atormentado por mais de 183.000 mortes causadas pela covid-19 ouviu do ministro: “Para quê esta ansiedade, esta angústia?”.

A declaração foi feita pelo ministro durante a apresentação oficial do plano de operacionalização da vacinação contra a covid-19 no país. Um documento “prévio” de 94 páginas já havia sido enviado a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF) e aberto uma crise com pesquisadores do próprio corpo técnico do Ministério ―listados entre os elaboradores, mas que só viram o documento publicado na imprensa. Nenhuma menção oficial direta à intenção de adquirir a Coronavac aparecia nos documentos ou coletivas de imprensa, apesar da pressão intensa de governadores e da velocidade que a pandemia voltava a ganhar no país, com os sistemas de saúde de vários Estados funcionando no limite da sua capacidade.

O STF precisou entrar no jogo e obrigar o Governo a apresentar um plano com todas as vacinas e, depois, um prazo para iniciar a vacinação. Só então Pazuello indicou que demoraria cinco dias para fazer as vacinas chegarem aos Estados, a serem contados após registro da Anvisa e entrega aos estoques do Ministério. Enquanto isso, seu chefe Jair Bolsonaro que já havia dito que não compraria a “vacina chinesa do Doria”― ia à televisão afirmar que não tomaria a vacina do coronavírus e que pretendia exigir um termo de responsabilidade aos que fossem ser vacinados. Bolsonaro, que jogou mais desconfiança sobre as vacinas, mudou o tom nesta quarta e pediu união. “Se algum de nós exagerou foi no afã de buscar solução”, disse. Pazuello também resolveu tentar aplacar a guerra ideológica abraçada pelo Governo do qual participa. “Qualquer fumaça ou discussão anterior ficou para trás. Todos os brasileiros receberão a vacina de forma grátis e igualitária”, afirmou.

Os sinais de que o Governo coordenará a estratégia de vacinação é um alívio para a sociedade brasileira ―que corria o risco de assistir a uma desastrosa disputa entre Estados e uma estratégia desarticulada. O próprio ministro Pazuello agora prega a união entre os três entes federativos, depois de meses com a pasta que conduz seguindo uma agenda ideológica bolsonarista ―da posição contrária às políticas de restrição de circulação implementadas pelos Estados à aposta na cloroquina (ou, como costumam dizer nas coletivas, “o tratamento precoce” que a ciência não reconhece) como ação de combate à pandemia. Diante da apatia da União, foram intensas as movimentações de governadores e prefeitos nos últimos dias em busca de um plano B para antecipar a campanha de vacinação. Pazuello parece ignorar todo este contexto ao dizer, só agora: “Não podemos abrir mão de nos tratar como um país”.

O ministro ―que já projetou várias datas para iniciar a vacinação e, nesta quarta, estimou meados de fevereiro para jornalistas e 21 de janeiro a governadores― ainda critica uma suposta onda de “desinformação” sobre a capacidade do SUS de realizar uma ampla campanha. O Brasil tem um dos maiores sistemas de saúde do mundo e um reconhecido Programa Nacional de Imunização (PNI). Tem dois potentes institutos capazes de produzir imunizantes: a Fiocruz e o Butantan ―com acordos, respectivamente, para produzir a Astrazeneca e a Sinovac. Cientes desta expertise, pesquisadores levaram as mãos à cabeça diante de uma aparente inércia e da falta de transparência do Governo nas últimas semanas. Vários deles alegam que o Brasil saiu atrasado na corrida por um imunizante e agora precisa correr atrás do prejuízo para garantir a entrega breve de vacinas e até a compra de seringas e agulhas. O Brasil planeja uma campanha de 16 meses, e os cronogramas para a chegada de cada vacina ainda são vagos.

“Vamos levantar a cabeça. Acreditem: o povo brasileiro tem capacidade de ter o maior Sistema de Saúde Único do mundo, de ter o melhor plano de vacinação”, animou Pazuello. O ministro pede a confiança de milhares de brasileiros que já viram as armas do SUS serem desperdiçadas neste ano. Um exército de agentes de saúde, presente em praticamente todos os municípios, não foi aproveitado em uma estratégia coordenada de rastreio de casos para frear contágios. O Brasil tampouco conseguiu implementar políticas eficazes no controle da pandemia, mas tem sim um SUS forte e um PNI robusto. Os anúncios desta quarta-feira foram celebrados por pesquisadores, enfim ouvidos pelo ministério. Os próximos passos dependem do registro dos imunizantes na Anvisa e da capacidade do Governo de formalizar as compras e garantir entregas num contexto de escassez global e de produção ainda pequena no país, no momento iniciada apenas pelo Butantan. A Fiocruz deve começar a produção em janeiro. “Precisamos produzir mais e ter a capacidade de controlar a ansiedade e a angústia”, insiste o ministro. O Governo precisa dar respostas a um país que segue amplamente vulnerável à pandemia há quase dez meses e que vê seus profissionais da linha de frente exaustos na iminência de uma nova grande onda de contágios.


RPD || Editorial: Horizonte sombrio

Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional. Colheu os frutos do programa de transferência de renda decidido no âmbito do Congresso Nacional, na forma de elevação do percentual de aprovação junto aos eleitores. Finalmente, operou com sucesso a mudança radical de uma estratégia de confronto das instituições, que teria o golpe como único corolário possível, para o funcionamento novo, na forma de “governo parlamentar”, com apoio dos partidos classificads como “centrão”. 

Ao fim do ano, contudo, dois contratempos relevantes para os projetos governamentais emergiram. Em primeiro lugar, a derrota de Trump nas eleições americanas, retirando de cena o único contraponto possível aos retrocessos procurados deliberadamente nas relações com a China e a União Europeia. Em segundo lugar, a derrota contundente da grande maioria dos candidatos que obtiveram o apoio presidencial explícito nas eleições municipais de novembro. Aparentemente, em muitos casos o apoio declarado do Presidente teria funcionado como “beijo da morte”, afundando candidaturas até promissoras até aquele momento. 

Ambos os revezes acontecem às vésperas da passagem para um ano que promete elevar os problemas do país e do governo a outro patamar. No que respeita ao enfrentamento da pandemia, tudo indica que a incapacidade do governo federal para obter vacinas em quantidade suficiente e planejar sua aplicação ordenada no conjunto da população será desvelada. A situação que se avizinha é a de comparação cotidiana, completamente desfavorável para nós, com países que conseguirão vacinar a tempo sua população.  

Na perspectiva econômica, por sua vez, a situação inspira cuidados. O fracasso em conter a pandemia impede uma retomada consistente. Por outro lado, não é viável manter o auxílio no montante atual e a comparação nesse caso acontecerá entre o cidadão de 2020 que recebia um tanto e o de 2021, que passará a receber uma fração desse montante. 

Comparações desfavoráveis geralmente são fonte de insatisfação, com potencial para evoluir para rejeição e fúria no plano da política. Num quadro com essas características, índices de popularidade são os primeiros a desaparecer e, na sua ausência, o debate sobre o abreviamento do mandato presidencial pode tomar assento na agenda da política. À luz da experiência recente, esse é o cenário mais provável, num cenário de aprofundamento das diversas crises. No entanto, na perspectiva da experiência mais antiga, que anima setores relevantes do governo, a situação de tempestade poderia, paradoxalmente, reunificar os defensores da ordem a qualquer custo em torno do fortalecimento político do Presidente da República. 


RPD || Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo

Alheio às mais de 177 mil mortes por conta da pandemia e já em campo pela reeleição em 2022, Jair Bolsonaro politiza uma questão eminentemente de saúde pública em uma disputa com o Governador João Doria, seu concorrente direto

“Todavia não se pode dizer que haja virtude em exterminar concidadãos, trair os amigos, não ter fé nem piedade nem religião; pois é possível conquistar o poder por esses meios, mas não a glória”
Nicolau Maquiavel – O Príncipe

Provavelmente, o ano de 2020 seja palco não apenas de cenas dramáticas de uma pandemia que levou à enfermidade e à morte milhares de pessoas, mas, também, de uma das maiores evoluções no campo da ciência ao se permitir uma vacina em menos de um ano. Em 08/12/2020, na Inglaterra, foi iniciada a imunização de sua população. E nós, brasileiros, como estamos?

Em nosso país, houve uma conjugação de crises. Crise sanitária, advinda do coronavírus; crise econômica, consequência direta da pandemia; crise política e de liderança, cujo fulcro está nas ações e discursos de Jair Bolsonaro e dos bolsonaristas. Já sabíamos, desde os idos de 2018, que o então deputado Jair Bolsonaro trilhava o caminho sinuoso das redes sociais, especialmente, alicerçado sobre clima de ódio, medo e rejeição – todos característicos da eleição de 2018 – mas, ainda, seguia lépido e à vontade junto às fake news, negacionismos, pós-verdade e teorias da conspiração. Bolsonaro foi eleito, mas não governou nesta primeira metade do mandato.

Situação, provavelmente, inédita de um presidente que, por dois anos, confronta as instituições da democracia, os atores políticos e a própria sociedade e que, nos próximos dois anos, buscará sua reeleição. No bojo de seu presidencialismo de confrontação, Bolsonaro e os bolsonaristas foram, como todos nós, jogados numa situação pandêmica que suspendeu a normalidade de nossas vidas cotidianas. Estamos, todos (ou quase), em compasso de espera pela vacina capaz de nos imunizar, já que não há tratamento comprovadamente eficaz para os quadros mais graves da Covid-19. Desafortunadamente, a pandemia encontrou um presidente sem liderança, um governo que não governa e uma sociedade fraturada politicamente, quase em estado de anomia.  

A ciência, os especialistas, os intelectuais públicos, os jornalistas e a Política foram, nestes tempos de bolsonarismo, atacados e, inicialmente, muitos atribuíam às declarações de Bolsonaro uma perspectiva anedótica, caótica. Em Os engenheiros do caos (2019), Giuliano Da Empoli, asseverou que: “No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática” (p.18). Segundo o autor, esse carnaval populista não é desprovido de método e tem, nos bastidores, os “engenheiros do caos”, cientistas especializados em Big Data, ideólogos e consultores políticos que sabem – e muito bem – o porquê de tensionar as regras da democracia e desacreditar a ciência e o jornalismo profissional.

O Brasil, com cerca de 177 mil mortos, como outros países, aguarda, em compasso de espera, uma vacina ou várias capazes de nos devolver à normalidade. O governo federal abençoa a parceria da Fiocruz com a Universidade de Oxford e o Laboratório AstraZeneca, mas ainda não estendeu apoio ao Estado de São Paulo, cujo Instituto Butantan vem desenvolvendo junto com laboratório chinês Sinovac a Coronavac. Uma questão eminentemente de saúde pública está sendo politizada no altar da disputa política que o Presidente Bolsonaro, já em campo pela reeleição em 2022, vem travando com o Governador João Doria, seu concorrente direto.

Doria acaba de desfechar golpe maquiavélico no Chefe de Estado. Anunciou que, a partir de 25 de janeiro próximo, São Paulo começará a vacinar profissionais da saúde, indígenas, quilombolas e todos aqueles, residentes ou não no Estado, demandaram as dezenas de postos de saúde especialmente montados para atender aos brasileiros. Quanto à autorização da Anvisa, o governador informa que, já este mês – dia 15, mencionou – passará à agência toda as informações e os protocolos necessários para assegurar que, no espaço de 40 dias, a autorização para a vacinação seja concedida, a não ser que haja obstrução política, vale dizer, do Planalto.  

 O cenário que se desenha é bem promissor para o Estado de São Paulo A vacina Fiocruz/Oxford apresentou problemas em seus testes, especificamente no que tange às doses aplicadas nos voluntários, e isto demandará mais estudos, atrasando a conclusão dos testes. Além disso, a produção desta vacina, segundo noticiado, dependerá da construção de uma fábrica, ou seja, de mais recursos financeiros do governo federal. Tal fato demonstra que os investimentos e a logística envolvidos não permitirão que vacinas estejam disponíveis em curto prazo, como a Coronavac em São Paulo. Governadores e prefeitos – há muito descrentes de qualquer liderança presidencial – já se articulam junto ao Butantan e ao Governo de São Paulo para garantir acesso à “vacina do Doria”.  

Não se descartam atos extremados, como a judicialização do tema via Supremo Tribunal Federal, com vistas a forçar o governo federal, em última instância, Bolsonaro, a adotar a Coronavac para todo o país.

O cenário em tela será, por anos, capaz de gerar estudos de caso sobre a liderança (ou falta de) na condução do combate à pandemia, estudos que, banhados em ironia, se poderão enriquecer com a leitura de Maquiavel e suas reflexões em O Príncipe.

*Professor e Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp. 


Pablo Ortellado: Impeachmente é pouco para Bolsonaro

Negacionismo de Bolsonaro contribuiu para descumprimento do distanciamento social e ampliação de contaminação e mortes

Parte expressiva dos cidadãos brasileiros segue encantada pelo flautista do Vale do Ribeira e vai marchando mesmerizada, prestes a se afogar no rio.

Segundo pesquisa Datafolha, 52% dos brasileiros não veem nenhuma responsabilidade do presidente nas mortes causadas pela Covid-19. As evidências contrárias, porém, são eloquentes.

Bolsonaro não elaborou com antecedência um plano nacional de vacinação e não estabeleceu protocolos para o distanciamento social, gerando descoordenação entre as iniciativas de estados e municípios. Durante todo o período da pandemia, minimizou a mortalidade da Covid, condenou o fechamento do comércio e difundiu a descrença em vacinas.

Os efeitos dessa postura negacionista foram medidos em vários estudos.

Um deles, realizado por pesquisadores da FGV e da Universidade de Cambridge, com dados da empresa In Loco, descobriu uma redução do distanciamento social em municípios com alta votação em Bolsonaro depois que ele discursou contra políticas de isolamento.

Outro estudo, feito na USP com dados do Google, mostrou que estados com alta votação em Bolsonaro relaxaram mais rapidamente a quarentena e que municípios médios e grandes de São Paulo que mais votaram em Bolsonaro cumpriram menos o distanciamento social.

Por fim, estudo de pesquisadores da UFRJ identificou maiores taxas de contaminação e de mortalidade pela Covid nos municípios nos quais Bolsonaro obteve maior votação.

A pesquisa do Datafolha divulgada no último fim de semana mostra novas correlações entre o bolsonarismo e atitudes com relação à Covid.

Simplesmente não pretendem se vacinar contra o vírus 22% dos brasileiros e 33% daqueles que sempre confiam no presidente. Os números são ainda mais chocantes quando o Datafolha pergunta especificamente sobre a vacina desenvolvida pela chinesa Sinovac --cuja confiabilidade tem sido minada pelo presidente e é alvo de intensa campanha negativa no WhatsApp.

Não pretendem tomar a Coronavac --a vacina com mais chances de ser primeiramente aprovada e distribuída-- 50% dos brasileiros e 67% daqueles que sempre confiam no presidente. Essa disposição em não vacinar é grande o suficiente para impedir que o país alcance a imunidade de rebanho.

Bolsonaro tem responsabilidade pelo aumento do descumprimento do distanciamento social, pelo aumento das contaminações e das mortes e, ao que tudo indica, terá também responsabilidade pela cobertura vacinal reduzida. Pode ser que ainda não seja politicamente viável, mas já não é mais motivo para impeachment, é motivo para cadeia.


Ricardo Noblat: Nota da Anvisa trai sua contaminação pelo bolsonavírus

Órgão técnico vira órgão político

Criada pela Lei nº 9.782 de 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é uma autarquia que “tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população […] mediante a intervenção nos riscos decorrentes da produção e do uso de produtos e serviços sujeitos à vigilância sanitária, em ação coordenada e integrada no âmbito do Sistema Único de Saúde”

É um órgão de natureza eminentemente técnica como ela própria, em nota distribuída, ontem, a propósito do uso de vacinas contra o coronavírus, fez questão de ressaltar. Ocorre que a nota é o maior atestado público de que a Anvisa, em tempos de governo presidido por um ex-capitão do Exército e de Ministério da Saúde repleto de militares, foi inoculada pelo vírus ideológico.

A primeira parte da nota disserta sobre o plano mal ajambrado de vacinação em massa ainda sem data marcada para começar – mas até aí nada demais a levar-se em conta um presidente que tratou a Covid-19 como uma gripezinha, estimou que não mataria mais do que oitocentas pessoas, menos ele dotado de saúde de atleta, e que ao fim acabariam morrendo os que tivessem de morrer, e daí?

Vale como confissão do aparelhamento político da Anvisa o que está escrito na nota do seu meio para seu final. Está dito lá que deve ser levada em consideração ao se avaliar o uso emergencial de vacinas “a potencial influência de questões relacionadas à geopolítica que podem permear as discussões nacionais e decisões estrangeiras relacionadas à vacina da Covid-19”.

Segundo a Anvisa, “há o risco ainda de que países coloquem interesses nacionais em primeiro lugar na garantia de acesso a uma vacina para seus próprios cidadãos, criando potencial de corromper o rigor com que as vacinas candidatas contra a Covid-19 são avaliadas para autorização de uso de emergência”. E aí? Aí a nota entra no assunto que de fato a justifica: a vacina chinesa.

O Brasil é o líder internacional no processo de avaliação da Coronavac, vacina que já se encontra com Autorização de Uso Emergencial (AUE) na China desde junho. A agência argumenta que os critérios chineses para concessão de autorização de uso emergencial não são transparentes e que não há informações sobre os critérios empregados para essa tomada de decisão.

E decreta: “Até o momento, nenhuma outra autoridade reguladora estrangeira tomou decisão semelhante. Caso venha a ser autorizada a replicação automática da AUE estrangeira no Brasil, sem a devida submissão de dados à Anvisa, são esperados enfraquecimento e retardação na condução do estudo clínico no Brasil; além de expor a população brasileira a riscos”.

Há pouco mais de um mês, depois de ter sido autorizado pelo presidente Jair Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, reuniu-se com mais de 20 governadores e anunciou que todas as vacinas comprovadamente eficazes seriam compradas pelo governo federal, inclusive a Coronavac. Desautorizado no dia seguinte, recuou sob a desculpa de quem tem juízo obedece.

A questão é muito simples: à falta de interesse do governo federal em preservar vidas, João Doria (PSDB), governador de São Paulo, saiu em defesa do seu rebanho, e o Instituto Butantã fechou um acordo com a China para a produção da Coronavac. Ao invés de correr atrás de outras vacinas, Bolsonaro faz tudo para impedir que Doria seja bem-sucedido, mesmo que à custa de mais mortes.


Eliane Cantanhêde: O sonho e o pesadelo

Com graves dúvidas sobre vacinas, o santo remédio para Bolsonaro é… reforma ministerial

As vacinas mexem com os nervos e o medo da população, tornam-se o maior desafio do governo e serão um divisor de águas para o presidente Jair Bolsonaro, que, se você prestar atenção, vai repetindo os antecessores Dilma Rousseff e Fernando Collor. É o remake de uma série que a gente já viu, capítulo por capítulo, só que com personagens ainda mais absurdos, fantásticos.

Todos os três presidentes nunca tiveram alguma intimidade ou cumplicidade com seus vices, a quem qualificam de traidores. Assim como Dilma e Michel Temer, Collor e Itamar Franco, Bolsonaro nem consegue mais ouvir falar de Hamilton Mourão, que dá entrevistas sobre qualquer coisa, fazendo uma clara contraposição a Bolsonaro e alternando concordância e discordância com decisões do governo.

A história se repete com os ministros e com a forma de governar – ou de não governar. Todo presidente acuado, que erra muito e fica sob forte pressão da opinião pública e com medo de impeachment saca três fórmulas mágicas: cria um bunker com seu grupinho “leal”, abre os braços (e os cofres) para o Centrão de ocasião e lança uma reforma ministerial.

Dilma se trancou no palácio com meia dúzia de gatos pingados que pensavam exatamente como ela e deixou de fora até mesmo os lulistas do PT. Orelhas ardiam, principalmente as do vice Temer e do ministro da Economia, a culpa era sempre da mídia, o Centrão fazia a festa.

Collor, que se elegeu com a bandeira de “caçador de marajás”, descartou tudo isso junto com o seu PRN, jogou para segundo plano os coloridos de primeira hora e, num último e desesperado esforço para salvar o pescoço, tentou atrair Fernando Henrique Cardoso e o PSDB (que balançaram, mas não foram) e conseguiu Jorge Bornhausen e o então PFL. Era tarde demais.

Bolsonaro vem fazendo o mesmo: desvencilhou-se das bandeiras de campanha, dos bolsonaristas-raiz, do PSL e atracou-se ao Centrão. É hora de… reforma ministerial. O primeiro time reuniu velhos amigos do capitão Bolsonaro na caserna e do deputado Bolsonaro na Câmara, líderes de bancadas temáticas (como a do agro) e pitadas de estrelismo: astronauta, um economista conhecido, o ícone de Lava Jato. A segunda será mais pragmática.

Lêem-se os nomes de Temer daqui, Davi Alcolumbre (Senado) dali, José Mucio (ex-TCU) acolá. Não são nomes ao vento, isolados. Fazem parte do mesmo pacote dos sonhos – ou da necessidade – de um Bolsonaro que pode ser tudo, mas não tem nada de bobo na hora de pensar em si e nos filhos. Os candidatos são do DEM, MDB e até PSDB.

Assim como trocou neófitos por experientes nas lideranças e vice-lideranças do Congresso, Bolsonaro agora articula trocar ministros que só dão problema por gente conhecida, testada, capaz. Mais ou menos como ocorreu na eleição municipal. Depois do fiasco do “novo” de 2018, volta o “experiente”. Inclusive no governo.

Bolsonaro apostou tudo na vitória de Arthur Lira e do Centrão para a presidência da Câmara, contra Rodrigo Maia e o centro ampliado. Se vencer com Lira, terá o que entregar às suas bases eleitoral e parlamentar originais: armas, conservadorismo e recuos em costumes. E reunirá força para atrair os tais nomes conhecidos, torcendo para não ser tarde demais, como foi com Collor. Se Maia vencer, porém, o núcleo DEM, PSDB e MDB ganha impulso para 2022 e um hábil articulador: o próprio Maia.

Em meio a tudo isso, há algo maior: a vida. Se falhar com a vacina, como falhou deploravelmente até agora em tudo o que diz respeito à covid (e não só), como Bolsonaro pretende atrair para ministérios quem respeita a vida, a ciência e a própria biografia? O sonho de Bolsonaro de fazer uma boa reforma ministerial e se reeleger em 2022 esbarra no pesadelo Bolsonaro. Assim como a própria reeleição.


José Casado: Enlaçado e cercado

Governador acena com vacina na rua em 40 dias

Trinta e oito graus sobre terra queimada. É Carnaíba, no sertão, a 400 quilômetros do Recife. Lá vivem 19 mil pessoas aturdidas pelo vírus, mas fiéis à esperança de proteção. Médico e prefeito, José de Anchieta Patriota (PSB) se cansou do desgoverno federal. Entrou no Instituto Butantan e saiu com a reserva de 40 mil doses da vacina CoronaVac.

Ontem, a lista do Butantan abrigava 912 prefeituras, 13 estados mais os governos de Argentina, Chile, Peru e Honduras. A romaria ao laboratório cresce. O início da vacinação em São Paulo está marcado para 25 de janeiro, feriado pelos 466 anos da construção do barraco pioneiro da capital paulista, obra dos jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta.

É essa a mudança relevante na perspectiva política. Faz diferença quem chega antes com respostas objetivas à ansiedade pandêmica. O governador João Doria (PSDB) acena com vacina na rua em 40 dias.

Em contraste, depois de nove meses Jair Bolsonaro não tem vacina nem seringas — corre atrás de 331 milhões, mas vai precisar de 600 milhões. Mandou ao STF um plano sem data ou quantidade de pessoas nas fases de vacinação. Enviou ao Congresso um orçamento com déficit na Saúde (R$ 40 bilhões em 2021), sem prever gasto com imunizantes.

Diretores da Pfizer tomam chá de cadeira na Saúde desde abril, mas sua vacina já é usada nos EUA. O Butantan ainda espera resposta às três cartas que enviou no primeiro semestre oferecendo a CoronaVac.

A romaria de governantes a São Paulo evidencia fadiga com a inépcia. Bolsonaro acabou enlaçado por Doria e cercado em Brasília. O Supremo exige-lhe um plano consistente. O Ministério Público liberou estados e municípios na procura de solução, diante da omissão federal. O Congresso prepara lei para a imunização, legitimando o uso da CoronaVac.

Restou a aposta no socorro da agência reguladora, que não oculta disposição de vetar ou atrapalhar a “vacina do Doria”. É risco puro, porque o Congresso já engatilhou uma CPI da Anvisa. Ela, inevitavelmente, empurraria Bolsonaro no precipício que ele tanto contempla.


Folha de S. Paulo: Maioria isenta Bolsonaro por mortes na pandemia, aponta Datafolha

Para 42% dos brasileiros, no entanto, condução da pandemia pelo presidente é ruim ou péssima

Thiago Amâncio, Folha de S. Paulo

As mais de 181 mil mortes registradas no Brasil pela Covid-19 não podem ser colocadas na conta do presidente da República, Jair Bolsonaro, na avaliação da maioria dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha.

Para 52% dos entrevistados, Bolsonaro não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pelo novo coronavírus no Brasil. Outros 38% disseram crer que o presidente é um dos culpados, mas não o principal, e 8% afirmaram que ele é o principal culpado pelas mortes.

Em diversas ocasiões o presidente da República menosprezou a gravidade da pandemia da Covid-19, que já matou mais de 1,6 milhão de pessoas em todo o mundo.

A declaração mais famosa foi de que a doença seria apenas uma “gripezinha”, mas Bolsonaro acumulou outras pérolas, ao dizer, por exemplo, “e daí?” ou “eu não sou coveiro”, ao ser questionado sobre número de mortes.

Mais recentemente, chegou a dizer que o Brasil deveria “deixar de ser um país de maricas” e, apesar da nova alta de número de casos, disse que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”.

Mesmo assim, cresceu a parcela da população que isenta o presidente: eram 47% os que diziam que ele não tinha culpa nenhuma em pesquisa feita pelo Datafolha em agosto.

Embora a maioria da população isente Bolsonaro da responsabilidade pelas mortes, isso não quer dizer que o desempenho do chefe do Executivo é bem avaliado pela população brasileira.

Dos entrevistados, 42% avaliam como ruim ou péssima a atuação de Bolsonaro em relação à pandemia. Já 27% veem as ações do presidente como regulares, e 30% avaliam como ótimas ou boas.

Mulheres tendem a avaliar o desempenho do presidente na pandemia pior do que homens (47% delas consideram ruim ou péssimo, contra 35% deles), e há diferença grande entre mais ricos (55% avaliam mal) e escolarizados (57%), além de quem vive nas grandes cidades (onde 49% avaliam mal as ações do presidente, contra 36% no interior).

A maior parte dos entrevistados (53%) disse acreditar que o Brasil não fez o que era preciso para evitar as mais de 181 mil mortes pela Covid-19, enquanto se dividem igualmente o restante que pensa que nada que o país fizesse evitaria esse número (22%) e os que pensam que o Brasil tomou as atitudes necessárias para evitá-lo (22%).

A pesquisa Datafolha mostra também que está em baixa a avaliação do desempenho do Ministério da Saúde na condução da pandemia.

Hoje, 35% consideram o desempenho da pasta como ótimo ou bom. Esse número chegou a 76% em 3 de abril, quando o ministério era chefiado por Luiz Henrique Mandetta (DEM), médico e deputado federal que se contrapunha ao presidente ao defender medidas de distanciamento social e concedia entrevistas diariamente para divulgar dados e ações do governo.

Após uma série de atritos com Bolsonaro, que negava a gravidade da doença e que fez aparições públicas que provocavam aglomerações, Mandetta foi demitido em 16 de abril.

Assumiu, em seu lugar, outro médico, Nelson Teich. Datafolha de 27 de abril mostrava que 55% das pessoas avaliavam como bom ou ótimo o desempenho do Ministério da Saúde na época.

Menos de um mês após assumir o cargo, no meio de maio, Teich também deixou a pasta, após embates com o presidente, que queria incluir a recomendação da cloroquina para pacientes infectados com o vírus mesmo sem evidência científica da eficácia do medicamento.

Em seu lugar ficou, a princípio interinamente e depois efetivado, o secretário executivo da pasta, o general Eduardo Pazuello, sem formação médica e muito próximo do presidente. Sob a gestão do militar, a avaliação do desempenho do ministério da Saúde continuou em queda.

Pazuello tem protagonizado uma disputa com o governo de São Paulo, que anunciou importaçãoprodução e administração de vacinas contra a Covid-19 de forma independente do governo federal.

O ministro tem se contraposto ao governador João Doria (PSDB), que antagoniza com Bolsonaro e usa o plano de vacinação como principal arma política para uma candidatura à Presidência em 2022.

Pazuello ainda não apresentou à população um plano de vacinação, embora a imunização já tenha começado no Reino Unido e esteja prestes a iniciar nos Estados Unidos.

Em resposta a ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal cobrando um plano federal, Pazuello encaminhou um documento à corte que não prevê data e estima vacinar apenas um terço do necessário. Enquanto o tribunal tornava público o documento, no sábado (12), o ministro tirou parte do dia para almoçar com o cantor sertanejo Zezé Di Camargo.

Após a divulgação do documento, pesquisadores que constam como autores do plano afirmaram que nem sequer chegaram a ver o texto.

O Datafolha mostra ainda que a avaliação que a população faz da atuação dos governadores é melhor que a do presidente —41% dos entrevistados considera o desempenho frente a pandemia como bom ou ótimo, e 30% considera ruim ou péssimo.

É no Sudeste onde a população avalia pior o governante —35% considera o desempenho do mandatário estadual durante a pandemia ótimo ou bom, enquanto 36% o considera ruim ou péssimo, e 29% diz ser regular. Já na região Sul, 52% consideram o desempenho do governador bom ou ótimo, enquanto apenas 19% o avaliam mal.

Por fim, o Datafolha também perguntou aos entrevistados sobre como veem o desempenho dos prefeitos de suas cidades na condução da pandemia: aprovados por 42% e reprovados por 30%.

A pesquisa Datafolha foi feita entre 8 e 10 de dezembro com 2.016 brasileiros adultos em todas as regiões e estados do país, por telefone, com ligações para aparelhos celulares (usados por 90% da população). A margem de erro é de dois pontos percentuais.


Ricardo Noblat: Dê-se a Bolsonaro o que ele tanto se esforça por merecer

A coragem de um presidente que diz o que pensa e deseja

A lerem-se os fatos com as lentes dos bolsonaristas de raiz, o presidente da República acertou em cheio nos seus comentários sobre a pandemia da Covid-19 desde que ela se insinuou por aqui em março último. Pode ter errado ao estimar que o vírus mataria, se tanto, oitocentas pessoas. Corrigiu-se depois e falou em algo como três mil. O número já ultrapassou a casa das 180 mil mortes.

Sim, mas é daí? Quem poderia ter acertado na mosca? Bem, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, muito antes de ser demitido por Bolsonaro, disse a ele que se nada fosse feito para deter a pandemia, em dezembro o número de mortos chegaria a 180 mil. Mandetta disse isso a Bolsonaro de corpo presente e também por escrito para que ele não esquecesse. Não adiantou.

Outra vez: e daí? Bolsonaro não é coveiro. Prescreveu remédios para a cura do vírus – a cloroquina foi um deles. Ordenou ao Exército que os produzisse em grande quantidade. Milhões de brasileiros se encharcaram com eles. E não se assistiu a nenhuma marcha de consumidores enganados pelo presidente. O governo gastará mais de 200 milhões para desovar o estoque das drogas.

Quem tinha que morrer, morreu ou ainda morrerá – outra observação afiada de Bolsonaro que foi mal compreendida por muitos, mas que está sendo confirmada pela realidade. E não será o uso da máscara, nem medidas de isolamento que porá um fim ao avanço da doença. Ela só será detida, como Bolsonaro sempre garantiu, quando contaminar 70% da população. Taokey?

Daí porque não há pressa para dar início à vacinação em massa. E quando ela finalmente começar, só deve ser vacinado quem quiser. Quem não quiser, novamente como Bolsonaro afirmou, poderá estar sendo negligente com a própria vida, mas jamais com a vida dos outros. Afinal, liberdade é mais importante do que a própria vida mesmo que ponha em risco a vida alheia.

A mais recente pesquisa Datafolha, divulgada ontem, mostra que aumentou o número dos que não pretendem tomar uma vacina contra o novo coronavírus. 22% dos entrevistados disseram que não planejam se vacinar, enquanto 73% disseram que vão participar da imunização. Cerca de 5% declararam não saber o que fazer. Em agosto passado, os dispostos a se vacinarem eram 89%.

Sejamos isentos: trata-se ou não de mais um triunfo de Bolsonaro que costuma dizer o que pensa doa em quem doer? Sua posição sobre a vacina da China, berço do vírus, passou a ser compartilhada pelos que o escutam. Metade dos entrevistados do Datafolha respondeu que não tomará a Coronavac de jeito algum. Preferem uma vacina americana ou inglesa. Até mesmo russa.

O fato é que os verdadeiros ou falsos profetas só costumam ser reconhecidos para além do tempo em que pregaram.


Elio Gaspari: A nova Revolta da Vacina

Só um burocrata megalomaníaco pode acreditar que poderá impedir que as pessoas busquem os postos de saúde

Depois de ter dito que a Covid era uma “gripezinha” que o brasileiro tiraria de letra e que a cloroquina era remédio eficaz, Jair Bolsonaro não deve esperar da plateia que ela lhe dê ouvidos. Já morreram mais de 178 mil pessoas, número superior ao dos mortos de Hiroshima em 1945. Contra bomba atômica não há vacina, mas contra a Covid haverá. Enquanto o processo de imunização segue um curso de racionalidade pelo mundo afora, em Pindorama o jogo político contaminou a discussão.

O governador João Doria anunciou que começará a oferecer vacinas a partir do dia 25 de janeiro. Pintada para a guerra, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária apressou-se para informar que “não foram encaminhados dados relativos à fase três, que é a fase que confirma a segurança e eficácia da vacina, esse dado é essencial para a avaliação tanto de pedidos de autorização de uso emergencial quanto pedidos de registro”.

Só um burocrata megalomaníaco pode acreditar que poderá impedir que as pessoas busquem os postos de saúde. A vacina só será oferecida em janeiro aos índios, quilombolas e profissionais de saúde. Quem anda pelas ruas de São Paulo não costuma cruzar com índios nem quilombolas. Restam os profissionais de saúde. Admitindo que esse burocrata existe, seria ridículo vê-lo dizendo ao doutor David Uip que não pode tomar a CoronaVac. Até as pedras sabem que os tribunais derrubarão quaisquer tentativas para impedir a aplicação das vacinas. Países andam para trás: em 1904, houve no Rio uma revolta contra a vacina obrigatória, o desconforto da Anvisa estimularia em 2020 uma revolta contra a vacina voluntária.

Bolsonaro falava em “menos Brasília, mais Brasil”. Pois é disso que se precisa. Se o almirante da Anvisa ou o general do Ministério da Saúde tiverem argumentos para bloquear a aplicação da CoronaVac, que coloquem a cara na vitrine dando suas razões. Há poucas semanas, a Anvisa meteu-se num vexame suspendendo testes a partir da morte de um voluntário que se havia suicidado.

Bolsonaro e Doria acusam-se de fazer política no meio da pandemia. É verdade, mas um detalhe os separa. Um faz política com a “gripezinha”, o outro oferece uma vacina.

A CoronaVac só será oferecida para quem tem mais de 75 anos a partir de 8 de fevereiro. Jair Bolsonaro, se quiser, só poderá ser vacinado a partir de 21 de março, quando completará 65 anos.

O negacionismo de Bolsonaro levou-o a uma armadilha. Continuar na linha que adota desde março será apenas falta de juízo. A Anvisa e o Instituto Butantan têm profissionais qualificados para discutir as qualidades ou os defeitos da CoronaVac. Um finge que se deve respeitar o rito burocrático; e o outro finge que respeita esse mesmo rito, impondo-lhe um prazo de validade.

O ministro da Saúde, general Pazuello, fez fama como um especialista em logística. Reunido com governadores, disse a João Doria: “Não sei por que o senhor diz tanto que ela [a vacina] é de São Paulo. Ela é do Butantan”. Ganha uma viagem a Caracas quem souber a importância disso. Do jeito que o general fala, se a logística do desembarque na Normandia estivesse nas suas mãos, em agosto de 1944 os Aliados não estariam em Paris. Os alemães é que teriam chegado a Londres.