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Hélio Schwartsman: O esquecimento como virtude
Seria útil se as "big techs" aperfeiçoassem seus mecanismos de busca
Agiu bem o STF em não reconhecer o direito ao esquecimento. Fazê-lo implicaria restringir perigosamente direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e de informação. Em termos mais concretos, para dar eficácia ao direito ao esquecimento precisaríamos criar mecanismos que impediriam um sujeito de ir aos arquivos de um jornal e conferir o que foi notícia no passado. Não tem como funcionar.
Daí não decorre que o esquecimento não seja, tanto quanto a memória, um ingrediente importante para o bom funcionamento da sociedade e do próprio cérebro humano.
A razão pela qual humanos não temos uma memória perfeita não é de bioengenharia. Existe uma síndrome rara, a hipertimesia, que faz com que seus portadores se lembrem de praticamente tudo --algo próximo ao que Jorge Luis Borges descreveu no conto "Funes, o Memorioso".
E, como Borges já intuíra, uma memória perfeita tem como efeito colateral severas limitações ao pensamento. O personagem Funes era incapaz de abstrações, de compreender que o símbolo genérico "cachorro" abarcasse todos os diferentes cães dos quais ele se lembrava perfeitamente. Os cientistas cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach sustentam que nossos cérebros foram projetados para não guardar detalhes justamente para maximizar a capacidade de fazer generalizações.
A vida social também depende de esquecimentos, que às vezes chamamos de perdão. Na política, o termo "anistia" carrega os radicais gregos "a-" (não) e "mnestis" (lembrança).
Não dá obviamente para conceder a cada cidadão o poder de definir o que as pessoas podem lembrar sobre ele, mas seria útil se as "big techs" aperfeiçoassem seus mecanismos de busca para se parecer mais com o cérebro humano na capacidade de esquecer.
Não se trata de apagar os registros, mas de, conforme o tempo passa, jogar os pecadilhos e indiscrições das pessoas da primeira para a 18ª página do Google.
Luís Roberto Barroso: A República que ainda não foi
Nos 30 anos da Constituição, há muito que avançar
Ao celebrar o trigésimo aniversário da Constituição brasileira, é possível olhar para trás e fazer um balanço de conquistas e frustrações do período. Na contabilidade positiva, devem-se lançar: 30 anos de estabilidade institucional, a conquista de estabilidade monetária e uma expressiva inclusão social. Em uma geração, derrotamos a ditadura, a inflação descontrolada e obtivemos vitórias marcantes sobre a pobreza extrema. Nenhuma batalha é invencível.
A essas realizações se somam avanços importantes nos direitos humanos, com destaque para os direitos de mulheres, negros, gays e populações indígenas.
Além disso, consolidamos a liberdade de expressão em um país de tradição autoritária e cultura censória. E o SUS, com todas as dificuldades de subfinanciamento e gestão, é hoje o maior sistema público de saúde do mundo, do qual dependem 160 milhões de pessoas.
Na contabilidade negativa, não podem estar de fora: um sistema político que reprime o bem e potencializa o mal, e que precisa ser reformado para se tornar mais barato, mais representativo e facilitar a governabilidade; a revelação de um quadro de corrupção estrutural e sistêmica, que nos coloca no 96º lugar no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, e só agora passou a ser enfrentado pela sociedade e pelas instituições; e o fato de sermos o país mais violento do mundo, com 63 mil homicídios por ano.
As aflições do momento se devem aos embates para a superação da velha ordem. Olhando para o futuro, três itens devem estar na agenda brasileira: um pacto de integridade e republicanismo para substituir o modelo oligárquico de apropriação privada do Estado; um choque de livre iniciativa, com mais sociedade civil e menos oficialismo, sem desmonte dos programas sociais de proteção destinados a garantir dignidade e oportunidades para os menos favorecidos; e uma opção verdadeira e engajada em favor da educação. Elaboro esse último ponto.
Precisamos transformar a educação básica em um projeto nacional, suprapartidário e patriótico. Não um slogan, mas uma obsessão construtiva. Quando da transição do governo Dilma Rousseff para o governo Michel Temer, o grande debate no país foi acerca de quem seria o ministro da Fazenda, o presidente do Banco Central e o presidente do BNDES. Todos compreensivelmente preocupados em escolher os melhores nomes e os melhores rumos.
A educação, no entanto, entrou no racha geral da política. Aliás, tivemos cinco ministros da Educação nos últimos quatro anos e meio. Não há política pública que possa resistir a tal fragmentação e descontinuidade.
Já temos diagnósticos de alguns dos principais problemas. Três deles são: não alfabetização da criança na idade própria; evasão escolar no ensino médio; déficit de aprendizado revelado nos exames de avaliação domésticos e internacionais.
Por outro lado, pesquisas mundiais documentam que um dos melhores investimentos que um país pode fazer é no ensino infantil de zero a três anos, fase da vida em que o cérebro absorve como uma esponja tudo o que seja a ele transmitido.
Essa é a hora de dar à criança nutrição, afeto, respeito, valores e capacidades cognitivas. Num país com muita pobreza e tantos lares desfeitos, a ampliação máxima do ensino nessa fase é um caminho para a superação dos três problemas referidos acima.
Em meio à polarização política, o país poderia celebrar dois pactos, que funcionariam como um denominador comum que uniria os extremos. O primeiro seria o compromisso de integridade, materializado em duas regras: na ética pública, não desviar dinheiro; e, na ética privada, não passar os outros para trás.
O segundo seria um plano estratégico, de curto, médio e longo prazos para a educação básica. A ser conduzido pelos melhores quadros possíveis, que não estejam à mercê dos prazos e circunstâncias do varejo político. Com atraso, mas não tarde demais, essa será a grande revolução brasileira, pacífica e construtiva.
*Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal; professor da Uerj e do UniCeub e colaborador acadêmico da Harvard Kennedy School (EUA)