Constituição
Carlos Andreazza: O garantismo de rebolação
Cinco ministros da corte constitucional brasileira se sentiram à vontade para depredar o texto que deveriam guardar
Não tenhamos dúvida de que a pressão da sociedade foi decisiva para que o Supremo votasse contra o golpe urdido — dentro do Supremo — para autorizar a reeleição dos comandos de Senado e Câmara numa mesma legislatura. Matou-se a pretensão golpista de Davi Alcolumbre, mas não sem que aqui se reforce a vergonha de um presidente de Poder que abandona o mandato vigente para costurar uma presidência futura, ademais interditada por lei. Ceifou-se também a chance de Rodrigo Maia surfar a onda.
Não há o que comemorar, porém. Cinco dos 11 ministros da corte constitucional brasileira se sentiram à vontade para — distorcendo a semântica — depredar o texto que deveriam guardar. Cinco dos 11 ministros, alguns dos quais considerados garantistas, não se acanharam em expor o molejo oportunista do garantismo de rebolação hoje havido no STF.
Rebolam todos, entretanto. Ou quase todos. Muitos dos que agora se impuseram como originalistas — protetores do que versa a palavra constitucional — sendo os que, no ano passado, contorceram o verbo para encontrar na Constituição brecha que encaixasse a prisão após condenação em segunda instância. Não faltam exemplos outros.
Gilmar Mendes, relator da matéria da hora, não escondeu o método em seu voto-cabe-tudo: “O afastamento da letra da Constituição pode muito bem promover objetivos constitucionais de elevado peso normativo”. Difícil é achar ministro — todos decerto seguros de serem promotores dos mais virtuosos refinamentos constitucionais — que já não se tenha baseado nessa fórmula tudo-pode. Trata-se de manifestação cujo endosso teria —e tem — efeito carta branca nas mãos de juízes que não raro se movem como agentes políticos, mas que se querem merecedores da fé devotada aos santos.
Em suma, ignorar o que diz a Carta como forma de, confiando na condução dos iluminados, libertar o sentimento, o sentido não expresso, da Carta. Na prática, ignorar o que diz a Carta, o que pretendeu o constituinte, para que objetivos político-eleitorais de elevado peso antirrepublicano sejam tratados como saudáveis mutações constitucionais por togados, cujo abuso de poder os transformou em ditadores do regime democrático.
Quem lê o voto de Mendes quase tem vontade de o agradecer por ainda não serem ele e os seus supremos os que elegem as mesas diretoras do Congresso. O ministro nos avisa, condescendente, que pretendia mesmo mudar a regra do jogo e que não lhe faltam meios para fazê-lo à revelia do texto constitucional; mas que continuariam sendo os parlamentares a eleger o comando das Casas.
É preciso ser duro com o que se tentou armar no Supremo. Um golpe contra a Constituição da República. Um golpe que consiste em declarar inconstitucional o texto constitucional — com o argumento de cevar o texto constitucional.
Um golpe urdido há mais de ano, nos últimos meses à custa de um país de todo paralisado, que tem como gênese a convicção de que se poderia lastrear um arranjo político, a partir do Supremo, fraudando a Carta. A partir do Supremo, a subversão da Carta! O — como o nomeei no artigo passado — golpe de Alcolumbre; que corpo de golpe não teria, que não passaria de fetiche de moleque autocrata, sem que ministros do STF, verdadeiros despachantes, o tivessem anabolizado por meio de leituras messalinas da Constituição.
Diz-se — e sem o devido escândalo — que ministros do STF fariam cálculos políticos ante o que seria um dilema; como se fossem moderadores de apetites autoritários do futuro. Assim, porque avaliariam que a dupla Alcolumbre e Maia cumpre bom papel em frear o ímpeto golpista de Jair Bolsonaro, seria seguro, pensando num bem maior, estender-lhes os períodos na presidência das Casas legislativas. E então teríamos a seguinte equação arbitrária: para evitar um presumido golpe bolsonarista amanhã, aplique-se um golpe já.
É grave. A prostituição do pacto social assentado pelo constituinte; que faz ver que a progressiva depredação de nossos fundamentos institucionais, de que a eleição de Bolsonaro é a febre maior, plantou não raposas no supremo galinheiro, mas cupins. O STF carcomendo-se por dentro, enquanto do lado de fora crescem os que o querem derrubar — muito mais volumosos sendo os que, considerando-o uma estrutura inconfiável, voltada ao cultivo dos próprios interesses, não se incomodariam com seu empastelamento.
Como defender a importância do equilíbrio republicano e a virtude da separação entre Poderes independentes, da ponderação garantida pelo balanço entre eles, ante um Supremo infiltrado por grupos de interesse e que se acostumou a responder com gambiarras? Como defender a concertação da República, a tessitura garantidora de que o Estado não nos oprimirá tanto, num país em que ministros de corte constitucional conseguem extrair autorização de onde há vedação explícita, por consequência projetando, para deleite dos autoritários, um tribunal que, manipulando o ordenamento para fins casuísticos, enfraquece sua a razão de existir?
O Supremo precisa se proteger — se defender — do próprio Supremo.
Ruy Castro: O poder gera folgados
Donald Trump, depois de presidente, nunca mais abriu uma porta; Bolsonaro, a Constituição
Num dos melhores episódios da última temporada de “The Crown”, série da Netflix, há uma reveladora sequência envolvendo a personagem de Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido, interpretada por Gillian Anderson. Ela é mostrada em casa, ao fogão, de panela na mão e avental, aviando o jantar, enquanto seus nervosos ministros, também na cozinha, tentam convencê-la a aprovar uma sanção à África do Sul, exigida pelos membros da Commonwealth. É uma decisão de que depende a unidade do Império Britânico. Mas Thatcher nem cogita interromper o preparo de sua omelete ou fritada para discutir o assunto. Eles saem de mãos abanando.
Margaret Thatcher foi uma das mulheres mais poderosas do século 20. Tomou amargas medidas econômicas, peitou a monarquia, declarou guerra à Argentina e ganhou todas. Era a Dama de Ferro. Se quisesse, teria oito chefs à sua disposição para cozinhar, mas preferia ela própria pilotar suas trempes. Em diversas ocasiões, a série a mostra como uma governante modesta, atenta a custos. Numa produção de luxo quase indescritível, seu guarda-roupa pouco varia, como se ela só tivesse mesmo dois ou três tailleurs.
Duvido que sir Winston Churchill, seu mais ilustre antecessor na vida real, tenha algum dia fervido uma água. Ou Evita Perón, “mãe dos descamisados”, dito “Por favor” a um serviçal. Ou Fidel Castro, fumante de charutos, esvaziado um cinzeiro. Ou Jacqueline Kennedy, a deusa, lavado uma calcinha.
O poder faz do mais consciencioso um folgado. Donald Trump, depois de presidente dos EUA, nunca mais abriu uma porta. Jair Bolsonaro, a Constituição.
Acabo de saber que, na dita sequência de “The Crown”, o objeto na mão da Dama de Ferro era uma travessa, contendo um prato a que, com esmero e ternura, ela estava aplicando rodelas de ovo cozido —uma paella, talvez. A dama podia ser de ferro, mas só do gabinete para dentro.
Ricardo Noblat: Só cabe ao Supremo Tribunal Federal respeitar a Constituição
Vale o que está escrito
Não fosse por um detalhe, a recondução de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da Câmara dos Deputados em fevereiro próximo, e a de David Alcolumbre (DEM-AP) à presidência do Senado seria bem vista por muitos que os enxergam como freios ao controle que o presidente Jair Bolsonaro gostaria de exercer sobre o Congresso a dois anos de tentar renovar o seu mandato.
O ano da pandemia foi aquele onde, apesar da queda de popularidade por não ter sabido enfrentar a doença, e da derrota que colheu nas eleições municipais, Bolsonaro conseguiu mesmo assim aumentar o seu poder. Livrou-se de Sérgio Moro, passou a mandar na Polícia Federal e nomeou para o Supremo Tribunal Federal um ministro que obedece às suas ordens
É verdade que Alcolumbre tem se comportado mais como aliado do presidente da República do que como político à altura da grandeza do cargo que ocupa. De olho na eleição para governador do seu Estado em 2022, mendiga favores ao governo e em troca funciona como líder in pectore de Bolsonaro no Senado. Apesar disso, escuta Maia e nem sempre ultrapassa certos limites.
Mas é o detalhe que impede que ele e Maia fiquem por mais dois anos nos lugares onde estão. Infelizmente para os dois, e talvez também para o país, o parágrafo quarto do artigo 57 da Constituição diz de maneira a não restarem dúvidas:
“Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.
Alcolumbre e Maia foram eleitos para presidente do Senado e da Câmara em 2018. Ou seja: na atual legislatura que só se encerrará daqui a dois anos com a eleição de novos senadores e deputados. No caso de Maia, ele completou o mandato de Eduardo Cunha (MDB-RJ), presidente da Câmara, cassado em 2016 por quebra de decoro parlamentar. Reelegeu-se em 2017 e outra vez em 2019.
Bolsonaro quer ver Maia pelas costas porque acha que ele só lhe cria problemas e não o apoiará em 2022. Torce, porém, para que a Alcolumbre seja concedida a graça de se reeleger mesmo na contramão da Constituição. A graça a Alcolumbre e a Maia, ou apenas a um deles, só poderá ser concedida pelo Supremo Tribunal Federal que a partir de hoje começará a julgar a questão.
O resultado é imprevisível, embora não devesse porque a Constituição é clara e o Supremo deve respeitá-la. Mas ele já a ignorou pelo menos uma vez quando o Senado cassou o mandato da presidente Dilma, mas não os seus direitos políticos como previsto na Constituição. À época, a sessão do Senado foi comandada por Ricardo Lewandowski, presidente do tribunal.
Assim, Dilma pode ser candidata ao Senado por Minas Gerais na eleição de 2018. Os mineiros a cassaram.
Fernando Schüler: Resistir à tentação da política e preservar a estabilidade da Constituição
Carta não deve ser ajustada ao sabor de eventuais maiorias
A Constituição é clara ao fixar os mandatos das Mesas do Congresso em dois anos e estabelecer que é “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. É sempre possível à criatividade humana desafiar o sentido das palavras. E um risco quando se trata do direito e da Constituição, onde levar a sério as palavras significa levar direitos a sério.
É o tema neste episódio da sucessão de Maia e Alcolumbre no Congresso. Para além de juízos de maioria ou minoria, a Constituição consagrou o valor da alternância de poder. O reconhecimento de que não faz bem ao país a tentação do uso da máquina do próprio Parlamento para a preservação do poder.
Neste episódio, porém, há algo mais em jogo: a própria ideia de que o que está escrito na Constituição não é uma banalidade passível de interpretação a gosto de uma eventual maioria na Câmara ou no Senado.
A tese simples e essencial de que não é a “autonomia dos Poderes” que disciplina o uso da Constituição, mas a Constituição que disciplina o funcionamento dos Poderes. Tese que põe por terra o argumento sem nexo, que se escuta por aí, segundo o qual fixar as próprias regras de sucessão é um problema interna corporis do Congresso.
Não é. A regra já foi dada pela Constituição. A Carta que deve funcionar, como diz meu conterrâneo Lênio Streck, como um “remédio contra as maiorias” e a “voz das ruas”. Neste caso, diria, a voz dos corredores do Congresso. Leio coisas ainda mais estranhas, como a ideia de que ministros do Supremo avaliem como positivo o atual “arranjo político” e a contenção do Executivo feita por Maia e Alcolumbre. E que seria uma boa ideia manter os atuais presidentes.
Não faz sentido que integrantes da Suprema Corte façam este tipo de juízo quando se trata de garantir o que está escrito na Constituição.
É certo que o avanço dos tribunais sobre o Parlamento já vai longe. Em dezembro de 2019, o Supremo promoveu um debate com líderes partidários sobre a possibilidade das candidaturas independentes. O tema continua na pauta do STF. À época, o ministro Barroso dizia que era preciso entender “se o Supremo tem caminhos para decidir sobre o assunto”, ou se isso caberia ao Parlamento.
O dado singelo é que a Constituição diz que a filiação partidária é “condição de elegibilidade” e, ao menos até onde se saiba, cabe ao Congresso (e em alguns casos nem mesmo ao Congresso) mudar a Constituição.
Caso notório foi o tratamento que o Supremo deu a dois elementos centrais do pacote anticrime aprovado em 2019 pelo Congresso. O primeiro foi o devido ajuste feito na exigência de revisão de prisões preventivas a cada 90 dias. Havia um clamor popular, e o STF decidiu que a regra aprovada no Congresso não era bem assim. Quanto ao juiz das garantias, foi simplesmente suspenso em decisão monocrática.
O caso mais banal talvez tenha sido a reintrodução pura e simples da censura prévia na vida brasileira. Dado que feita contra os “indesejáveis”, pouca gente chiou. O tema mereceu o curioso argumento de um ministro do STF segundo o qual se tratava de uma “curadoria”. Proibir alguém de usar o Facebook não significava ferir sua liberdade de expressão, visto que ele poderia seguir falando o que quisesse, imagino que gritando pelas ruas ou via sinais de fumaça.
Sob certo aspecto, trata-se de um tema sem solução. Como bem disse o ministro Fux em seu discurso de posse, o próprio mundo político usa o STF para lidar com seus desacordos. E as pessoas tendem a reclamar do ativismo judicial apenas quando a coisa mexe em seus interesses ou paixões do momento.
A pergunta é se o próprio Supremo não vem criando incentivos para que o mundo político o tome como instância moderadora. A judicialização e a interferência crescentes, para a qual não há outro remédio que a autocontenção. No fundo, a renúncia à tentação da política em nome da guarda e da estabilidade da Constituição em meio ao vaivém das maiorias e urgências cotidianas da democracia.
Este episódio da sucessão no comando do Congresso será um bom teste neste sentido.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Juan Arias: Novo ministro do Supremo de Bolsonaro surpreende com defesa do Estado laico
Magistrados como Kassio Nunes Marques devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a lei
O presidente Jair Bolsonaro havia anunciado que a primeira nomeação de um novo magistrado do Supremo Tribunal Federal seria alguém “terrivelmente evangélico”, o que criou preocupação visto que o Brasil, pela Constituição, é um Estado laico. O novo ministro do STF, Kassio Nunes Marques, porém, surpreendeu, na última quarta-feira, ao defender enfaticamente a laicidade do Estado, que deve respeitar todas as confissões religiosas igualmente sem se identificar com nenhuma.
Segundo Nunes Marques, “a laicidade do Estado não significa Estado ateu, mas Estado de todas as religiões e de religião alguma”. E acrescentou que “o fato é que o Estado não deve professar religião alguma e que se manter neutro não significa manter uma postura hostil ou impeditiva da religiosidade”.
A postura impecável do novo magistrado na defesa da laicidade do Estado contrasta com a ideia quase obsessiva de Bolsonaro desde que era um simples deputado, quando defendia que o Estado brasileiro não é laico, mas cristão. “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico, não”, gritou durante a campanha eleitoral, acrescentando: “o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”.
Não é descabido pensar que o sonho de Bolsonaro e dos pastores evangélicos, que já têm três partidos próprios no Parlamento e estão presentes em outros 16, é mudar a Constituição para eliminar sua laicidade e trocá-la pela Bíblia, para criar uma espécie de República islâmica.
E o sonho dos evangélicos, que passam de 30% da população, sempre foi ter um presidente deles. Até agora só conseguiram que um deputado, o pastor Marco Feliciano, presidisse a importante Comissão Parlamentar de Direitos Humanos. O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, já havia profetizado que “era a vontade de Deus que um evangélico chegasse à presidência”.
Com Bolsonaro o conseguiram só pela metade, pois na verdade sempre foi católico e se fez rebatizar na Igreja Evangélica por cálculos eleitorais, já que essas igrejas poderosas movimentam milhões de votos sob o lema “o irmão vota no irmão”.
Todos os presidentes até agora nas campanhas eleitorais tiveram que se render aos evangélicos e se ajoelhar para pedir sua bênção, inclusive a candidata agnóstica Dilma Rousseff, escolhida por Lula para substituí-lo. Dilma foi obrigada, para não perder o voto dos evangélicos, a enviar-lhes uma carta se comprometendo a não tocar na lei contra o aborto durante seu mandato. Dilma foi eleita e cumpriu sua promessa.
O deputado Feliciano, que foi coroinha aos 13 anos na Igreja Católica e se converteu ao evangelismo quando conseguiu sair do mundo das drogas, hoje é um evangélico que chega a dizer que “os católicos adoram Satanás e têm seus corpos entregues à prostituição”.
No Brasil, o reino de Deus é cada vez mais deste mundo. As igrejas evangélicas e pentecostais atuam cada vez mais como um tea party à brasileira.
O pastor Feliciano, que dirige uma das igrejas mais importantes, chegou a dizer que os africanos carregam uma maldição divina desde os tempos de Noé, que faz com que vivam na miséria.
Ainda é cedo para saber se o novo ministro do Supremo, Nunes Marques, se manterá firme na defesa da Constituição e do Estado laico. E ainda é difícil saber o que Bolsonaro pensou da defesa da laicidade do Estado feita por seu magistrado. Como é cedo para saber se, em se tratando de assuntos que dizem respeito ao delicado tema das denúncias de corrupção da família Bolsonaro, o novo magistrado continuará sendo coerente com seu juramento de defender a Constituição em vez de ser um lacaio do presidente que o escolheu a dedo.
Para não cair no pessimismo, prefiro pensar que o presidente tenha ficado decepcionado com seu novo ministro e que este preferirá não sujar sua carreira de alto jurado da mais alta corte e, como acaba de fazer, seja fiel à Constituição.
Prefiro pensar que essa defesa aberta da laicidade do Estado estabelecida na Constituição continue alinhada com a independência que todo magistrado do Supremo deve ter, o que nem sempre tem sido o caso, pois levou não poucas vezes a relações espúrias entre alguns magistrados e o mundo político, ao que tantas vezes se dobraram, traindo a importante separação entre as instituições que devem ser independentes, como exige a Constituição.
Mais do que “terrivelmente evangélicos”, os magistrados do Supremo devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a Carta Magna dos brasileiros.
Almir Pazzianotto Pinto: Constituição – realidade e ficção
Demagogia em conluio com utopia foi o erro de deputados e senadores eleitos em 1986
É impossível fazer vista grossa para a crise que assola o País e a responsabilidade que recai sobre a Constituição da República.
Exceto raros ex-integrantes da Assembleia Nacional Constituinte, é opinião generalizada que a oitava Carta Magna teve o prazo de validade ultrapassado. Não porque pequeno grupo conspire para derrubá-la. A morte virá por falência múltipla dos órgãos, decorrente de septicemia.
Poderoso argumento utilizado contra a convocação de nova constituinte consiste no receio da perda de direitos sociais, relacionados no Capítulo II do Título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Afinal, o que é a Constituição, também denominada Lei Fundamental? Os especialistas na matéria não costumam pôr-se de acordo acerca da correta definição. Pinto Ferreira, após citar uma dezena, define-a como “conjunto de normas convencionais ou jurídicas que, repousando na estrutura econômico-social e ideológica da sociedade, determina de uma maneira fundamental e permanente o ordenamento do Estado” (Da Constituição, Ed. José Konfino, 1956).
Poderia ter dito apenas “conjunto de normas fundamentais que regem a organização do Estado”.
As definições convergem, todavia, na afirmação de que compete à Constituição determinar regras fundamentais. Tudo o que não for fundamental pertence à esfera da legislação ordinária. Assim o dizia o artigo 178 da longeva Carta Imperial de 1824, que vigorou por 65 anos e recebeu emenda uma única vez: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições dos respectivos Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não for constitucional pode ser alterado, sem as formalidades requeridas, pelas Legislaturas ordinárias”. A Constituição republicana de 1891 foi a que mais se aproximou do salutar princípio. Daí ter durado 40 anos, com poucas mudanças, feitas de uma só vez, em 3/9/1926.
Para ser verdadeira e não descambar para o enganoso terreno da utopia, a Lei Fundamental deve refletir a realidade e não oferecer mais do que a infraestrutura econômica consegue proporcionar. Como diria Oliveira Vianna, o traço dominante das últimas constituintes consiste na fatídica crença no poder mágico das palavras. Da Constituição de 1988 recolho como exemplos de ilusionismo o elenco dos direitos sociais, a definição do salário mínimo, a proteção contra a automação na forma da lei, as garantias relativas à saúde, à educação, à segurança, ao emprego, ao trabalho (artigos 6.º e 7.º, IV e XXVII, 144, 170, 196, 205).
Os direitos sociais relacionados nos 34 incisos do artigo 7.º oferecem frágil cobertura a minoritário mercado formal, onde se encontram os que têm carteira profissional anotada. Para a maioria desempregada, subocupada ou desalentada prevalece a lei da oferta e da procura, agravada pela crise aprofundada pela pandemia, cuja extensão o presidente Jair Bolsonaro insiste em menosprezar. São 14 milhões de desempregados, 9 milhões sem carteira profissional assinada, 21,4 milhões de autônomos, 51,7 milhões abaixo da pobreza, vítimas das fantasias dos constituintes de 1988.
Direitos fundamentais, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis são a igualdade perante a lei, a liberdade de imprensa e de opinião, a dignidade, a cidadania, a pluralidade política, o voto universal e secreto, o acesso ao trabalho e à livre-iniciativa. Não basta, para usufruí-los, que se encontrem escritos e encadernados. A Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada em 17/9/1789 por 55 delegados representantes de 12 Estados, tem sete artigos, emendados 20 vezes. Não faz referência a direitos sociais, que só se concretizam quando o Estado é democrático e a economia, vigorosa, funciona bem.
Para que a admiremos a Constituição deve ser conhecida e manter vínculos de fidelidade com o povo. Eruditos comentários redigidos por acadêmicos e professores estão fora do alcance do grosso da população. São ótimos para a venda de livros que dissertam sobre mundo irreal. O Idealismo da Constituição, livro de Oliveira Vianna, talvez o único que analisou o fracasso da Constituição de 1934, está fora de circulação. Parafraseando o autor, a Constituição de 1988 falhou por instituir relações conflitantes entre idealismo, utopia e realidade nacional.
Fonte do direito positivo ordinário é a vontade revelada pelo Estado. Fonte do direito constitucional, entretanto, é a vontade revelada pelo povo por meio dos seus representantes, salvo quando não dimana, como em 1964, da ruptura da ordem jurídica provocada por golpe militar. Fazer da demagogia, em conluio com forte dose de utopia, fonte do Direito Fundamental foi o erro em que incidiram deputados e senadores eleitos em 1986, investidos erroneamente de poder constitucional.
Estamos a caminho da nona Constituição. Se não encontrarmos a fórmula política consensual para redigi-la e promulgá-la, a letal combinação entre crise econômica e crise social poderá deflagrar crise institucional cujo desfecho virá, como em 1964, pela violência das armas.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
Modesto Carvalhosa: Nova Constituição?
Uma que ponha o Estado a serviço da Nação, e não o contrário, como é hoje
A declaração de Ricardo Barros, líder do governo na Câmara dos Deputados, propondo constituinte para elaborar nova Carta para o Brasil suscitou reação imediata dos que temiam tratar-se de manobra do presidente da República para consolidar o seu poder com viés populista e autoritário. Mas a ideia pertenceria só a Barros, expoente do Centrão que já serviu a FHC, Lula e Temer, além de ter relatado a distorcida e depenada Lei Anticrime, que acabou enfraquecendo a Lava Jato, operação de que o agora líder de Bolsonaro – quanta coincidência! – também foi alvo há pouco menos de dois meses.
Por sua vez, falando em mera “cirurgia plástica na fisionomia do Estado”, o ex-presidente Michel Temer, embora concorde “com algumas preocupações do deputado Ricardo Barros”, tomou posição contra a ideia de constituinte, que só teria por justificativa uma ruptura institucional.
Ora, mas essa ruptura já ocorreu e só não a reconhece quem não quer. Afinal, o que é uma ruptura institucional? Trata-se da ausência de legitimidade das instituições, refletida na perda do respeito da cidadania pela autoridade do Estado e na incapacidade manifesta dos mandatários de exercerem suas funções em prol do interesse público. Diante da imoralidade da conduta de mandatários que governam e legislam em causa própria, diante de magistrados de cúpula incapazes de interpretar a Constituição a favor da ordem pública, da segurança da sociedade e da paz social, o povo não mais acata espontaneamente o poder constituído, nada mais sendo necessário para caracterizar o divórcio entre a Nação e o Estado. A ruptura político-institucional não precisa ser fruto de revolta sangrenta, como a que persiste há um ano no Chile. Basta o sentimento permanente de indignação e de repulsa da sociedade civil contra o sistema vigente.
O povo brasileiro quer mais do que uma nova Constituição, quer uma nova República que seja capaz de desmontar essa estrutura odiosa que torna o País cronicamente inviável. Quer uma República de oportunidades para todos, instaurando um regime de isonomia, equidade e acesso da cidadania à vida pública, acabando com o arquicorrupto profissionalismo político.
Não se pode falar em democracia baseada apenas nas liberdades públicas que já conquistamos. Os direitos individuais, coletivos e sociais são um dos seus três fundamentos. Porém não existe regime democrático sem igualdade de direitos e deveres para todos os membros da coletividade. Não há democracia sem oportunidades para todos. Não há democracia num país como o nosso, onde 11,5 milhões de pessoas vivem sem o menor risco econômico, enquanto 100 milhões (população economicamente ativa) assumem todos os riscos na luta pela sobrevivência. O povo brasileiro está inconformado com os privilégios do estamento estatal e com as regras constitucionais de dominação da sociedade, que são a causa do nosso atraso, das injustiças sociais, da pobreza crescente, da decadência de nossa indústria e da falta de oportunidades de desenvolvimento pessoal, social e econômico.
É urgente a criação de uma nova República realmente democrática, fundada numa Constituição com os seguintes princípios normativos: proibição de reeleição; voto distrital puro; voto não obrigatório; partidos federais, estaduais e municipais autônomos e independentes entre si, em face do regime federativo; apuração pública das eleições mediante voto impresso acoplado às urnas eletrônicas; candidaturas independentes dos partidos políticos, para todos os cargos eletivos, nas três esferas federativas; perda de mandato por iniciativa dos eleitores (recall); eliminação do Fundo Partidário, do fundo eleitoral e das emendas parlamentares ao Orçamento; reformas constitucionais mediante plebiscito; vedação aos eleitos para o Poder Legislativo exercer qualquer cargo no Poder Executivo; eliminação dos cargos em comissão; regime de estabilidade restrito a magistratura, Ministério Público, oficiais das forças armadas e delegados das polícias judiciárias; regime previdenciário único para os setores público e privado; regime trabalhista único CLT para os setores público e privado; não prevalência do direito adquirido no âmbito do Direito Público; eliminação de adicionais e verbas indenizatórias dos servidores; seguro de obra pública (performance bond); trânsito em julgado mediante decisão de segundo grau; fim do foro privilegiado; transformação do STF em Corte Constitucional, com ministros com mandato de oito anos, nomeados pelo regime de antiguidade dos magistrados das Cortes superiores (o mesmo sistema para procurador-geral da República e para os tribunais de contas); todos os recursos do Orçamento discricionários e contingenciáveis, não podendo a folha de pagamento dos servidores exceder 25% do Orçamento; fim da exploração econômica pelo Estado; dever do Estado e da sociedade de defesa e preservação do meio ambiente.
Essas e outras dezenas de normas estruturais são necessárias em qualquer Constituição que pretenda pôr o Estado a serviço da Nação, e não o contrário, como é hoje, sob o regime de 1988.
ADVOGADO, É AUTOR, ENTRE OUTRAS OBRAS, DE ‘UMA NOVA CONSTITUIÇÃO PARA O BRASIL: DE UM PAÍS DE PRIVILÉGIOS PARA UMA NAÇÃO DE OPORTUNIDADES’ (NO PRELO)
Luiz Fux: Constituição para todos
Seguiremos tratando a questão prisional como política judiciária de Estado
A trajetória democrática brasileira tem pés firmes na jurisprudência da Suprema Corte, que nas últimas três décadas vem contribuindo para o avanço do processo social à luz da Constituição Cidadã. Mas se por um lado temos julgados paradigmáticos que permitiram saltos civilizatórios notáveis, incluindo o fortalecimento de direitos e garantias e de proteção aos vulneráveis, é preciso manter vigília permanente contra ameaças e violações a princípios basilares de nossa Carta Magna, notadamente no campo dos direitos fundamentais e da dignidade humana.
Foi imbuído desse espírito que agiu o Supremo Tribunal Federal em 2015, ao reconhecer que quase 1 milhão de brasileiros vivem à margem da lei máxima do país enquanto dentro de nossas prisões, sob a tutela do Estado. É para a superação definitiva desse grave desarranjo institucional, com efeitos nefastos para o grau de desenvolvimento inclusivo ao qual nos comprometemos por meio da Agenda 2030 das Nações Unidas, que executamos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o programa Fazendo Justiça.
Trata-se de continuação da parceria de sucesso iniciada em 2019 com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, somada a importante apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Em verdade, a natureza interinstitucional é um dos principais méritos da parceria —de forma inédita, mais de 3.500 atores estratégicos em diferentes níveis federativos estão mobilizados em torno de uma agenda nacional com planejamento e indicadores bem definidos, adaptável às realidades locais com foco em resultados de médio e longo prazo.
Nos próximos meses, o CNJ conduzirá 28 ações nacionais estruturantes para diferentes fases e necessidades do ciclo penal e do ciclo socioeducativo, facilitando serviços, produzindo e difundindo conhecimento e reforçando o arcabouço normativo. Lançaremos planos nacionais de geração de trabalho e renda, de incentivo à leitura e de incentivo ao esporte e ao lazer, fundamentais para dinâmicas de ressocialização. Até o segundo semestre de 2021 teremos um fluxo permanente de identificação civil por meio de biometria conectando todo o país, com emissão de documentos para facilitar o acesso a direitos durante e após o cárcere.
Pactuações em andamento com tribunais e outros atores locais resultarão na inauguração de ao menos 13 Serviços de Atendimento à Pessoa Custodiada, 10 Núcleos de Justiça Restaurativa, 3 Centrais de Alternativas Penais e 12 Escritórios Sociais, serviço de atenção a pessoas egressas e familiares fomentado pelo CNJ que garantiu 20 unidades em 14 estados apenas no último ano.
No campo da tecnologia da informação, o Sistema Eletrônico de Execução Unificado (Seeu) já centraliza de forma inédita a gestão da execução penal, integrando atores, agilizando procedimentos e produzindo dados nacionais em tempo real. Também passa por revolução o monitoramento e fiscalização das execuções de medidas socioeducativas, que aliada a outras ações estruturantes, fortalecerá a atuação do Judiciário sob o princípio da proteção integral de adolescentes preconizado por nossa Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Em ambos os sistemas, segue como prioridade o enfrentamento à Covid-19 pelo direito à saúde coletiva e pelo direito à vida.
Tantas ações em andamento durante uma pandemia global, com resultados já visíveis —registramos a menor taxa de prisão provisória dos últimos 17 anos—, só se tornaram possíveis com um ambiente de diálogo permanente entre poderes públicos, setor privado e sociedade civil para a construção de soluções colaborativas.
No Judiciário, o empenho de diferentes gestões para desmantelar o cenário narrado pelo STF em 2015 reforça o compromisso para oferecer respostas robustas a um desarranjo que se alimenta da inércia. Seguiremos tratando a questão prisional como política judiciária de Estado para que nossa Constituição permaneça como a certeza primeira de todos os brasileiros.
*Luiz Fux é presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça
Michel Temer: Nova Constituição?
Não temos nenhuma desestruturação justificadora de uma nova Constituinte
O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, sempre se revelou extraordinário administrador, tanto que conduziu com perfeição o Ministério da Saúde no meu governo. É também um líder político que sempre faz propostas muito adequadas.
Nestes últimos dias, propôs a hipótese de nova Constituinte. Instado, pronuncio-me sobre o tema.
Primeiro é preciso saber exata e precisamente o que é uma Constituinte. Direi trivialidades que, na verdade, devem ser sempre repetidas. A Constituinte é a face visível de um Estado que será. Diferentemente, a Constituição é a face visível do que o Estado é. Indispensável a pergunta: quando se justifica uma Constituinte? Quando há uma ruptura do sistema jurídico constitucional.
Será que neste momento temos uma ruptura desse sistema ou podemos seguir adiante com a Constituição que teve a sabedoria de amalgamar os chamados direitos liberais com os direitos sociais? Veja-se, só para exemplificar, que o direito à livre-iniciativa, o prestigiamento da propriedade, os direitos individuais em capítulo que é o maior que se conhece no mundo, com 78 incisos no seu artigo 5.º, de maneira exemplificativa, já que o parágrafo 1.º do mesmo artigo estabelece que a enumeração dos direitos ali listados não exclui a invocação de outros derivados dos princípios constitucionais e dos tratados de direitos aprovados pelo Brasil. Portanto, os direitos liberais aí estão.
Por sua vez, há um capítulo com direitos sociais que trouxe para o texto constitucional, por exemplo, o direito dos trabalhadores.
O que antes se verificava apenas na legislação infraconstitucional o constituinte de 1988 trouxe para a Lei Magna. De fora parte direitos como aqueles em que a Constituição estabelece o direito à educação e à saúde como dever do Estado. Quando a Constituição garante o direito à alimentação, o direito à moradia, o que visa é a alimentar as pessoas e dar teto àqueles que têm dificuldades para obtê-lo.
Com isso quero ressaltar que a sabedoria do constituinte de 1988 tem sido produtiva, pois quando surgem problemas tais dizeres do texto constitucional resolvem essas questões ensejadoras de alguma dificuldade.
Por outro lado, saliento que o proponente da Constituinte pode ter razão relativamente a certos aspectos da Constituição federal.
Mas ela própria, Constituição, estabelece meios e modos para a sua modificação.
Mais uma obviedade: por meio da emenda à Constituição federal, ressalvadas as hipóteses previstas no artigo 60, parágrafo 4.º, da Carta Magna, ou seja, a intocabilidade da Federação, da separação de Poderes, dos direitos individuais e do voto direto secreto e universal com valor igual para todos. Tudo o mais pode ser objeto de emenda à Constituição, ou seja, de uma espécie de plástica que se faça naquela face visível que nós rotulamos como Estado.
Pode-se fazer plásticas na fisionomia do Estado por meio de emendas à Constituição federal. Só num caso extremo em que, digamos assim, o rosto inteiro estivesse desfigurado em razão de um acidente gravíssimo é que se poderia falar na recomposição completa daquela face. Assim também só a desestruturação total é que permitiria uma plástica jurídica completa a justificar novo Estado. Fora daí não há como cogitar-se de uma Constituinte. Portanto, sem embargo de concordarmos com algumas preocupações do deputado Ricardo Barros, o fato é que quando se pensa numa Constituinte, para dizer o óbvio, nunca se sabe o que vai acontecer ali adiante. Se há uma pequena desestruturação ensejadora de algumas modificações no texto constitucional, não é possível levar ao extremo modificando por inteiro a face do Estado. Algumas que o proponente indica podem ser objeto de emenda à Constituição.
Aliás, o que dá a chamada segurança jurídica é precisamente o rigoroso cumprimento da Constituição da República. O que não se pode é negar-lhe a aplicação. Aí, sim, é que há problemas para a governabilidade e, naturalmente, para a tranquilidade institucional do Estado brasileiro.
Não se pode, a esta altura, invocar o que está acontecendo no Chile. Lá, sabemos todos, a Constituição vigente ainda vem dos tempos da ditadura do presidente Pinochet. É muito diferente a situação do Brasil.
Nós saímos de um sistema concentrador e centralizador para uma Carta Constitucional democrática. Portanto, não estamos modificando regras de um eventual sistema centralizador e autoritário. Mas estaríamos modificando regras de um sistema que, no dizer do artigo 1.º da nossa Lei Maior, é o de um Estado Democrático de Direito, em que a ênfase da democracia vem ressaltada em vários pontos desse mesmo texto constitucional.
Assim, se necessária alguma plástica na Constituição federal, que se a faça por meio de emenda, já que não temos nenhuma desestruturação justificadora de uma nova Constituinte.
*Advogado, professor de Direito Constitucional, foi presidente da República
Hélio Schwartsman: Ponto para a democracia
Chile transformou Constituição com forte vício de origem em experiência real de democracia
Símbolos importam. E os chilenos foram claros quanto a isso ao determinar, por uma margem de quase 80%, que a atual Carta, herança da ditadura de Pinochet, seja substituída por uma nova, a ser elaborada por uma convenção constitucional exclusiva. Ponto para a democracia.
No mundo da vida prática, porém, o Chile, apesar da origem espúria da Carta, já era uma democracia sólida, com alguns ciclos de alternância de poder entre esquerda e direita. Os aspectos mais autoritários da Constituição foram extirpados por uma série de emendas aprovadas ao longo dos anos, notadamente em 1989 e 2005. Não teria sido impossível persistir nesse caminho.
Aliás, num cálculo puramente numérico, será mais difícil aprovar a nova Carta do que emendar a velha. Pelas regras em vigor, algumas matérias constitucionais exigem maioria de 3/5 dos parlamentares para ser modificadas, e outras, as mais sensíveis, de 2/3.
Pelas regras da convenção, só irão para o novo texto constitucional artigos aprovados por 2/3 dos constituintes, e, ao fim dos trabalhos, o projeto ainda terá de ser chancelado pela população em plebiscito.
Outro aspecto interessante do processo constitucional é que será o primeiro no mundo a ser conduzido por uma convenção paritária, com 50% de mulheres e 50% de homens. Achei um pouco autoritário não terem dado aos eleitores chilenos a oportunidade de exercer uma escolha ativa diante de algo tão novo (a opção pela convenção exclusiva já vinha com a paritária), mas são os tempos em que vivemos.
Meu ponto é que constituições são uma parte importante da democracia, mas nem de longe o jogo inteiro.
Há Cartas que são ótimas no papel, mas que na vida real não geram nada parecido com uma democracia, e há casos como o do Chile, que conseguiram transformar uma Constituição com forte vício de origem numa experiência real de democracia. Símbolos importam, mas a prática também.
Adriana Fernandes: Proposta de plebiscito no Brasil é debate às avessas do movimento chileno
Não é correto responsabilizar a Constituição por todas as escolhas ruins que foram feitas por vários e vários governos
BRASÍLIA - Na esteira do movimento ocorrido no Chile, é oportunista a declaração do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), propondo a realização de um plebiscito para que os brasileiros decidam sobre a elaboração de uma nova Constituição.
Sob o argumento de que a Carta Magna transformou o Brasil em um “País ingovernável”, Barros culpou as regras do Orçamento com o argumento de que o Brasil não tem mais capacidade de pagar a sua dívida, que com o efeito da pandemia do coronavírus cresceu muito.
Não é correto responsabilizar a Constituição por todas as escolhas ruins que foram feitas por vários e vários governos. A Constituição não determinou a elevação das renúncias tributárias de 2% para 4,3,% do Produto Interno Bruto (PIB), as várias ineficiências dos programas de governo, a corrupção, a contratação de grande quantidade de servidores, as remunerações acima do teto, os penduricalhos, os seguidos Refis (parcelamento de débitos tributários) que beneficiaram os devedores contumazes, as obras faraônicas sem retorno social e econômico, os R$ 200 bilhões de subsídios via BNDES e outras fontes de transferência de recursos para setores privilegiados, além da falta de prioridade política nas últimas duas décadas para fazer a reforma tributária e cobrar do “andar de cima”.
Não precisa fazer uma nova constituição para dar conta da rede de proteção prevista na Constituição. Tem é que ter coragem para enfrentar o ajuste e as medidas necessárias.
A Constituição tem defeito. Entre elas, amarras que engessam o Orçamento. Mas por que falar de mudanças justo agora quando faltam poucas semanas para uma série de encaminhamentos de medidas de ajuste para 2021? Passa a impressão de que o líder está sinalizando que o governo pouco pode fazer para costurar um acordo no Congresso para medidas que apontem um rumo para 2021 diante do ímpeto gastador dos aliados do presidente Bolsonaro. Estaria o líder jogando a toalha?
Como líder do governo, Barros deveria estar mais preocupado com a criação das condições políticas para a instalação da Comissão Mista de Orçamento (CMO), que poderia ajudar o País a sair do impasse fiscal e orçamentário que tem alimentado as incertezas sobre o futuro da economia.
Como definiu a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto, ferrenha defensora dos recursos para saúde e educação garantidos na Constituição, um plebiscito agora traria, na prática, uma espécie do debate chileno às avessas: uma desconstitucionalização das garantias de saúde e educação públicas universais e um retrocesso brasileiro na contramão da revolta social chilena.
O Estado de S. Paulo: Líder do governo Bolsonaro na Câmara diz que Constituição tornou Brasil 'ingovernável'
Ao comentar votação no Chile, Ricardo Barros defende plebiscito no País e afirma que a Carta brasileira 'só tem direitos e é preciso que o cidadão tenha deveres com a Nação'
Breno Pires e Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), defendeu a realização de um plebiscito para que os cidadãos brasileiros decidam sobre a elaboração de uma nova Constituição, sob o argumento de que a Carta Magna transformou o Brasil em um “País ingovernável”. Barros citou como exemplo o Chile, que foi às urnas no domingo, 25, e definiu que uma nova Assembleia Constituinte deverá ser eleita para a criação de uma nova constituição do país.
“Eu pessoalmente defendo nova assembleia nacional constituinte, acho que devemos fazer um plebiscito, como fez o Chile, para que possamos refazer a Carta Magna e escrever muitas vezes nela a palavra deveres, porque a nossa carta só tem direitos e é preciso que o cidadão tenha deveres com a Nação”, disse Barros nesta segunda-feira, 26, em um evento chamado "Um dia pela democracia”.
No começo da tarde, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), rebateu a declaração de Barros. "A situação do Chile é completamente diferente da do Brasil. Aqui, o marco final do nosso processo de redemocratização foi a aprovação da nossa Constituição em 1988. No Chile, deixaram está ferida aberta até hoje", disse ele ao Broadcast Político/Estadão. Maia tem nacionalidade brasileira, mas nasceu em Santiago, no Chile, em 1970, durante o exílio do pai, o também político brasileiro Cesar Maia. O vereador e ex-prefeito do Rio de Janeiro era militante do Partido Comunista Brasileiro e havia fugido por ser perseguido pela Ditadura Militar no País.
Ricardo Barros, que representa os interesses do governo federal na Câmara dos Deputados, disse que a Constituição tornou o País “ingovernável”, ao afirmar que o Brasil hoje tem uma “situação inviável orçamentariamente". "Não temos mais capacidade de pagar nossa dívida, os juros da dívida não são pagos há muitos anos, a dívida é só rolada e com o efeito da pandemia cresceu muito, e esse crescimento nos coloca em risco na questão da rolagem da dívida”, disse. Emendas à Constituição, segundo ele, não são o suficiente.
“A nossa Constituição, a Constituição cidadã, o presidente (José) Sarney já dizia quando a sancionou, que tornaria o país ingovernável, e o dia chegou, temos um sistema ingovernável, estamos há seis anos com déficit fiscal primário, ou seja, arrecadamos menos do que gastamos, não temos capacidade mais de aumentar a carga tributária, porque o contribuinte não suporta mais do que 35% da carga tributária, e não demos conta de entregar todos os direitos que a Constituição decidiu em favor de nossos cidadãos”, disse.
O outro problema, na visão do parlamentar, é que “o poder fiscalizador ficou muito maior que os demais” e, por isso, seria necessário também “equilibrar os Poderes” no país. O deputado, que é alvo de investigações do Ministério Público Federal, diz que é preciso punir quem apresentar denúncias sem prova.
Conhecido crítico à Operação Lava Jato, Barros acrescentou que, apesar de ser um desejo dos brasileiros, o combate à corrupção não pode ser feito “cometendo crimes”. O deputado disse também ser a favor do parlamentarismo. “Seria um regime de governo muito mais efetivo, que nos permitiria ajustar rapidamente as crises, retomar mais rapidamente o rumo quando existe um impasse, mas vamos ainda lutar por isso”, disse.
O discurso do deputado foi feito em evento organizado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), que contou com a presença de ministros do Supremo Tribunal Federal, do ministro da Economia, Paulo Guedes, e de juristas.
Integrante do Centrão, deputado federal por seis legislaturas e ex-ministro da Saúde de Michel Temer, Ricardo Barros foi nomeado como líder em agosto, no lugar de Major Vitor Hugo (PSL-GO).