Constituição
O teste de fogo do Judiciário e o apoio social para vencê-lo
Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo
Quem aposta na incapacidade do Judiciário de se conduzir como Poder coeso e atento às suas prerrogativas institucionais está errando feio. Escaramuças frequentes na sua cúpula, o STF, em torno de temas atinentes, ou conexos, ao cotidiano político, faziam prosperar cogitações de que ela estivesse irremediavelmente atravessada por controvérsias a ponto de colocar em risco o cumprimento eficaz da sua missão de guardiã da Constituição. Temia-se, ademais, o efeito cascata dessa virtual dinâmica centrífuga derramando-se pelos demais tribunais superiores e para baixo, esgarçando o tecido institucional daquele Poder.
Na última semana, confirmando sinais da semana anterior, reiterados na abertura das atividades judiciárias após o recesso, passou a ficar claro que, se há contencioso crônico na cúpula do Judiciário, ele não se estende à pauta da defesa da democracia e da República. O risco de uma pane institucional no País, pela veiculação cada vez mais aberta e insolente, de ataques e deboches dirigidos a ministros do STF por parte do Chefe do Poder Executivo, associados a ameaçadas veladas e mesmo diretas às eleições de 2022, levou o colegiado a falar em uníssono, assumindo suas responsabilidades ante o momento crítico que se vive.
Há quem considere que a reação tardava, mas ninguém, exceto os politicamente engajados na referida cruzada desestabilizadora, tem dúvidas sobre a o acerto do recente pronunciamento do ministro Luís Fux, presidente do STF. Ele respalda e amplifica o alcance jurídico e político de providências tomadas pelo ministro Alexandre Moraes, relator, naquela Corte, do processo no qual Jair Bolsonaro foi incluído, como investigado, por indicação unânime do plenário do TSE. Essa indicação, por sua vez, já representava mais que incremento, um salto de qualidade na disposição da Justiça Eleitoral - desde sempre demonstrada pelo presidente daquela corte, ministro Luís Roberto Barroso -, de enfrentar a campanha de descrédito, movida contra ela, como parte de uma estratégia golpista de deslegitimação prévia dos resultados das eleições, as quais se desenham no horizonte como dique definitivo a ilhar pretensões autocráticas do presidente.
A convergência pública de posições, nesse terreno, entre ministros tão habitualmente afastados em pontos de vista, como Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes - que chegaram a protagonizar embates agressivos no plenário do STF sobre várias questões - é medida do amadurecimento de uma convicção sobre a prioridade lógica e política que a conservação da estabilidade institucional merece. Reconhece-se, nessa atitude coletiva, uma lógica análoga à que, no Congresso Nacional, alinha bancadas adversárias quando a instituição é ameaçada por outro Poder. Firma-se, assim, o STF, como autêntico poder republicano, não mera instância de legitimação/deslegitimação técnica de atos do poder político.
É preciso distinguir essa coesão institucional benigna daquele corporativismo, por vezes negativo, que costuma incidir sobre a conduta de membros de ambos os poderes. A propaganda da extrema-direita, refletindo interesse político do grupo que empalma e abastarda o Executivo, procura diluir a percepção da coesão institucional do Poder Judiciário de duas maneiras. A primeira é a fulanização de juízos sobre posições assumidas naquele ambiente, ao que parece, com três objetivos. Os ataques pessoais, perpetrados em termos chulos contra determinados ministros, visam popularizar o estigma de conspiradores e sabotadores da atuação do presidente eleito, ao tempo em que procuram (em vão, como se vê) – fomentar, artificialmente, uma cizânia permanente no tribunal e, por fim, blindar Bolsonaro contra as evidências de que afronta o Judiciário como um todo.
A segunda maneira de tentar diluir a imagem de coesão do STF é distorcê-la, apresentando-a como expressão, ora de um corporativismo odioso aos olhos de uma sociedade desigual, ora de uma vontade ditatorial que, através de um regramento severo, dito exorbitante, do comportamento social dos cidadãos e da conduta dos agentes governamentais, estaria ameaçando a liberdade individual de uns e outros. Essa fabulação tenta equiparar, ou mesmo confundir, as éticas da vida privada e da vida pública, em desfavor dessa última. A legitimação do poder ilimitado de um autocrata, que se busca com tal narrativa, resultaria, caso fosse bem-sucedida, de uma apropriação distorcida do argumento liberal e mesmo do léxico democrático e da revogação prática da República, pela destruição de suas instituições.
O que foi dito não ignora, nem pretende ocultar (até porque seria esforço inútil) a presença de um corporativismo social e culturalmente nefasto entre as práticas correntes no âmbito do Judiciário, convivendo, dialeticamente, com o papel positivo desse Poder na garantia de avanços sociais e culturais. Também não ignora ou subestima o potencial de risco para a democracia contido numa hipotética ditadura de juízes. Sequer desconhece a presença, em diferentes estratos hierárquicos do Judiciário, de uma vontade de poder que, em certas circunstâncias, pode levar a flertes autocráticos também. Ainda está fresca em nossa memória a perversão da operação Lava-jato, que levou à sua maré vazante. Assim como não se deve esquecer a acolhida que algumas de suas práticas e até arbitrariedades factuais encontraram na malha judiciária do país e até no âmbito do STF. Longe estou, portanto, de uma ode à toga. Um ceticismo moderado é um anticorpo democrático.
Nada disso, no entanto, deve confundir o juízo político sobre a hora presente. O Judiciário coloca-se, objetivamente, hoje, como a mais eficaz instância de contenção das investidas autocráticas contra a ordem republicana e democrática no Brasil. Os direitos da cidadania, desde o mais elementar direito à vida ao mais relevante dos direitos políticos, que é o de eleger representantes, passando por direitos civis como às livres reunião, organização e expressão e pelos direitos sociais conquistados ao longo de décadas, todos eles nos faltarão em grau importante, senão fatal, se o Judiciário for vencido no presente embate contra as forças do obscurantismo, da violência e do atraso. Embate que esse Poder não escolheu, mas do qual, tendo lhe sido insistentemente imposto, não pode desertar, sob pena de faltar ao dever que justifica a sua própria existência como poder constituído.
Por essa razão não se pode alimentar ressalvas no apoio político e social ao que se está processando no TSE e no STF. E não é irrealista pensar que esse apoio tende a crescer a se materializar num fio resistente de consciência cívica que conecte, no âmbito do Estado, decisões de tribunais, manifestações em tribunas parlamentares, articulações partidárias, decisões legislativas, mobilização de entes federativos e de corporações e instituições estatais autônomas frente ao governo. E que superados os rigores da pandemia, com o avanço da vacinação, o encontro de tudo isso com a dinâmica, já hoje mais fluente, da sociedade civil em suas múltiplas faces, seja a da organização de classes e grupos sociais de extração popular, seja as dos movimentos civis temáticos, as das entidades cientificas, profissionais e religiosas que formam opinião, as empresariais, a imprensa e a mídia social.
Acostumemo-nos de novo ao hábito da conexão entre estado e sociedade, produzido pela representação política e pela organização social. O choque de realidade que a emergência política da extrema-direita nos trouxe está nos levando a esse reaprendizado. As cobranças para que os agentes do Estado - os políticos principalmente – escutem a sociedade precisam continuar e vão continuar, a perder de vista. É da própria índole dos regimes e das sociedades democráticas que assim seja.
Ao lado desse gerúndio, a hora requer chamados à responsabilidade política dos cidadãos para com a conservação das instituições do país. Hoje o Judiciário, em seu contra-ataque, precisa do apoio da sociedade e da política, no interesse delas próprias. Logo chegará a vez do Congresso, mais apropriadamente ainda, sendo, como é, a casa da representação política, ser convocado ao mesmo bom combate. Deve aceitar a convocação, como faz hoje o Judiciário e precisará do mesmo apoio social, para converter em ferramenta política. De aflições, desafios, ressalvas e respostas vivem, renovando-se, as repúblicas democráticas.
*Cientista político e professor da UFBa
Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/08/paulo-fabio-dantas-neto-o-teste-de-fogo.html
Novo texto do voto impresso reduz poder do TSE e busca ‘efeito imediato’ de mudanças
Relator do projeto, deputado Filipe Barros protocola novo parecer sobre a medida; proposta deve ser analisada pela comissão especial da Câmara
Camila Turtelli / O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Às vésperas de a proposta de adoção do voto impresso ser analisada pela comissão especial do Congresso, o relator do projeto, deputado Filipe Barros (PSL-PR), protocolou nesta quarta-feira, 4, um novo parecer sobre a medida. A nova versão ganhou um dispositivo para reduzir o poder do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas investigações sobre processos de votação e outro para permitir que eleitores possam acompanhar a contagem manual dos votos na seção eleitoral. Há ainda uma alteração que, segundo especialistas, derruba a regra de que as mudanças só poderiam ocorrer um ano após aprovadas, ou seja, as mudanças teriam validade imediata e para as eleições de 2022.
O novo texto tem previsão de ser analisado pela comissão especial nesta quinta-feira, 5. Caso seja aprovado, vai ao plenário da Casa onde, para seguir para o Senado, precisa do apoio, em dois turnos, de três quintos dos parlamentares (mínimo de 308 votos favoráveis). A movimentação do governo sobre o assunto ocorre no mesmo dia em que o presidente da Câmara, Arthur Lira, disse que confia no sistema atual das eleições, mas que há espaço para debater o assunto no Congresso, porque, segundo ele, uma parcela da população não teria a mesma avaliação.
Rosângela Bittar: 'Está apenas começando a revelação da corrupção'
As mudanças apresentadas por Filipe Barros também se dão no momento em que o presidente da República, Jair Bolsonaro, eleva o tom nas críticas ao presidente do TSE, ministro Luis Roberto Barroso, e nos ataques à democracia, instituições e autoridades, colocando em suspeição a realização das eleições no ano que vem caso a medida não seja implementada no Brasil.
No novo texto, Barros determina que investigações sobre o processo de votação devem ser conduzidas de maneira “independente” da autoridade eleitoral e que esse trabalho tem que ficar a cargo da “Polícia Federal, sendo a Justiça Federal de primeira instância do local da investigação o foro competente para processamento e julgamento, vedado segredo de justiça”, diz o texto. Ao Estadão/Broadcast, o parlamentar afirmou que o dispositivo é “para garantir investigações céleres e isentas”.
Barros também retirou um artigo da versão anterior que dizia que o TSE editaria normas e adotaria medidas necessárias para assegurar o sigilo do exercício do voto. O deputado fez ainda mudanças para garantir que qualquer pessoa possa acompanhar a apuração manual dos votos, apesar de não estar detalhado como isso ocorreria.
“A apuração consiste na contagem dos votos colhidos na seção eleitoral, pela mesa receptora de votos, publicamente por meio da presença de eleitores e fiscais de partidos, imediatamente após o período de votação e gera documento que atesta o resultado daquela seção eleitoral”, diz o texto. “Apuração tem que ser pública. É ato administrativo. Apuração secreta só em ditaduras”, disse Barros.
Anualidade
Atualmente, qualquer mudança no processo eleitoral só pode começar a valer se tiver sido aprovada até no máximo um ano antes das eleições. É a chamada regra da anualidade. Essa norma está prevista na Constituição em um trecho que diz: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”
Barros quer acrescentar um adendo a esse trecho: “A lei que verse sobre a execução e procedimentos dos processos de votação, assim como demais assuntos que não interfiram na paridade entre os candidatos, tem aplicação imediata”.
Para técnicos legislativos, esse acréscimo pode flexibilizar a regra da anualidade e fazer com que qualquer mudança aprovada em cima da hora passe a valer. Barros discorda. “Estamos só deixando mais claro o entendimento do próprio STF e TSE, que aquilo que for relacionado a procedimento não precisa respeitar a anualidade e que essa regra só vale para o que puder gerar uma desigualdade entre os candidatos”, disse o deputado.
O texto prevê ainda que todos os programas de computador utilizados nos processos de votação devem estar com seus códigos permanentemente abertos para consulta pública na internet.
Prevê ainda que o transporte dos registros impressos de voto até a sede das autoridades estaduais eleitorais ficará a cargo das forças de segurança pública ou das Forças Armadas e, após serem entregues, a responsabilidade pela custódia caberá à respectiva autoridade estadual eleitoral. Barros determina que os registros impressos de voto deverão ser preservados pelo prazo de cinco anos contado a partir do dia seguinte da proclamação do resultado.
‘Corujão’
Antes da discussão sobre o voto impressão, a Câmara decidiu se debruçar sobre o sistema eleitoral. Os deputados marcaram para as 22h30 desta quarta-feira uma reunião na comissão especial que analisa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com a mudança do sistema proporcional, atualmente usado, para o Distritão. O horário da reunião é incomum. A proposta tem apoio de parlamentares da atual legislatura e costura-se um acordo de bastidores para a aprovação, mas caciques de partidos médios e grandes fazem pressão contra o modelo.
NOTÍCIAS RELACIONADAS
Rosângela Bittar: 'Está apenas começando a revelação da corrupção'
Quem é o 'hacker' estelionatário usado por bolsonarista para defender voto impresso
Lira indica apoio a voto impresso e fala em ‘auditagem mais transparente’
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,novo-texto-do-voto-impresso-reduz-poder-do-tse-e-busca-efeito-imediato-de-mudancas,70003800358
Empresários e intelectuais lançam manifesto de apoio ao processo eleitoral
Documento diz que Brasil terá eleições e seus resultados serão respeitados; afirma ainda que sociedade não aceitará aventuras autoritárias
Sérgio Roxo/ O Globo
SÃO PAULO - Um grupo de mais de 200 empresários, economistas e intelectuais divulgará nesta quarta-feira uma manifesto de apoio ao processo eleitoral brasileiro em resposta aos ataques do presidente Jair Bolsonaro à urna eletrônica e ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso.
O texto diz que o "Brasil terá eleições e os seus resultados serão respeitados". Afirma também que a "sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias". Assinam o documento, entre outros, os empresários Luiza Trajano (Magazine Luiza), Guilherme Leal (Natura) e Roberto Setúbal (Itaú); os economistas Armínio Fraga, Pérsio Arida e André Lara Resende; os líderes religiosos Dom Odilo Sherer (cardeal arcebispo de São Paulo) e Monja Coen; os médicos Raul Cutait, Drauzio Varella e Margareth Dalcomo; os ex-ministros José Carlos Dias, Pedro Malan, Paulo Vanuchi e Nelson Jobim; e os professores universitários Luiz Felipe de Alencastro e Candidato Mendes de Almeida.
Leia mais: Novo texto do voto impresso enfraquece TSE e prevê adoção imediata do sistema
"Apesar do momento difícil, acreditamos no Brasil. Nossos mais de 200 milhões de habitantes têm sonhos, aspirações e capacidades para transformar nossa sociedade e construir um futuro mais próspero e justo. Esse futuro só será possível com base na estabilidade democrática", afirma o manifesto.
O texto ainda ressalta que "o princípio chave de uma democracia saudável é a realização de eleições e a aceitação de seus resultados por todos os envolvidos". "A Justiça Eleitoral brasileira é uma das mais modernas e respeitadas do mundo. Confiamos nela e no atual sistema de votação eletrônico", afirma.
Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-Direito São Paulo e um dos idealizadores do manifesto, diz que o documento é uma resposta após a fala de Bolsonaro na segunda-feira em que o presidente atacou o presidente do TSE e o acusou de prestar um desserviço ao país. Por meio de grupos de diálogo já existentes, os signatários decidiram pela elaboração do manifesto.
— Queremos mostrar que a sociedade não considera normal o presidente atacar instituições que estão exercendo a sua função. É importante que os mais diferente setores estejam unidos na confiança na Justiça e no processo eleitoral.PUBLICIDADE
Leia também: Moraes inclui Bolsonaro no inquérito das fake news por ataques ao Supremo e notícias falsas sobre urna eletrônica
Sundfeld destaca que o signatários possuem diferentes visões políticas e são oriundos das mais diversas atividades profissionais. O grupo, segundo ele, reconhece um risco para a democracia e está disposto a defendê-la.
Ainda de acordo com o professor, o manifesto é apenas o primeiro passo. A expectativa é que a Congresso enterre o projeto que institui o voto impresso, mas, se isso não ocorrer, uma das possibilidades debatidas é questionar a constitucionalidade do texto.
Bolsonaro critica Moraes e ameaça com 'antídoto fora da Constituição'
Presidente fez declarações sobre a sua inclusão no inquérito das fake news em entrevista a rádio, após apelo por equilíbrio feito por novo ministro da Casa Civil
Ricardo Della Coletta / Folha de S. Paulo
Numa nova escalada na crise institucional aberta com o Judiciário, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) reagiu nesta quarta-feira (4) à sua inclusão como investigado no inquérito das fake news e disse, em tom de ameaça, que o "antídoto" para a ação não está "dentro das quatro linhas da Constituição".
"Ainda mais um inquérito que nasce sem qualquer embasamento jurídico, não pode começar por ele [pelo Supremo Tribunal Federal]. Ele abre, apura e pune? Sem comentário. Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está, então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas da Constituição", disse Bolsonaro, em entrevista à rádio Jovem Pan.
A crítica de Bolsonaro se refere ao fato de o inquérito das fake news —e a sua inclusão nesta quarta como investigado— ter sido aberto de ofício, e não a pedido da PGR (Procuradoria-Geral da República).
No caso do inquérito das fake news, a abertura ocorreu por decisão pelo então presidente do STF Dias Toffoli e posteriormente referendado pelo plenário da corte.
A inserção de Bolsonaro como alvo da investigação, por sua vez, ocorreu a pedido do presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Luís Roberto Barroso.
A ameaça de agir fora dos limites constitucionais foi repetida em outras ocasiões na entrevista.
"O meu jogo é dentro das quatro linhas [da Constituição]. Se começar a chegar algo fora das quatro linhas, eu sou obrigado a sair das quatro linhas, é coisa que eu não quero. É como esse inquérito, do senhor Alexandre de Moraes. Ele investiga, pune e prende? É a mesma coisa".
Em outro momento, ele disse: "Estão se precipitando. Um presidente da República pode ser investigado? Pode. Num inquérito que comece no Ministério Público e não diretamente de alguém interessado; esse alguém vai abrir o inquérito, como abriu? Vai começar a catar provas e essa mesma pessoa vai julgar? Olha, eu jogo dentro das quatro linhas da Constituição. E jogo, se preciso for, com as armas do outro lado. Nós queremos paz, queremos tranquilidade. O que estamos fazendo aqui é fazer com que tenhamos umas eleições tranquilas ano que vem."
Bolsonaro concedeu a entrevista ao lado do deputado Filipe Barros (PSL-PR), relator de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que institui o voto impresso. O projeto é defendido por Bolsonaro, que tem lançado suspeitas e questionamentos sobre sistema eletrônico de votação.
O presidente tem afirmado, sem apresentar provas, que as últimas eleições presidenciais foram fraudadas. Ele também alega que as urnas eletrônicas são vulneráveis a adulterações —afirmações que o TSE rechaça.
Na entrevista desta quarta, Bolsonaro voltou a alimentar a tese falsa de que ele teria sido eleito em primeiro turno.
O presidente venceu o segundo turno das eleições de 2018, numa disputa com Fernando Haddad (PT). O resultado final foi 53,13% para o atual presidente contra 44,87% para o petista.
"Eu volto a dizer, pelo meu sentimento, pelas minhas andanças pelo Brasil, pelo que aconteceu: nós ganhamos disparado no primeiro turno", declarou.
Na entrevista, Barros apresentou o que ele diz ser um inquérito em que o próprio TSE teria reconhecido que um hacker invadiu o sistema interno do tribunal.
De acordo com Bolsonaro e o deputado, isso mostraria a fragilidade das urnas eletrônicas
Em uma rede social, o presidente da comissão especial que analisa a PEC do voto impresso, Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), afirmou que os documentos apresentados por Barros e por Bolsonaro "possuem conteúdo grave e a situação exige uma investigação séria". "É de interesse de todos que zelam pela democracia", escreveu.
A Folha recebeu, na semana passada, o inquérito citado na entrevista e consultou diversos especialistas e uma pessoa envolvida na investigação, que foram unânimes: o inquérito não conclui que houve fraude no sistema eleitoral em 2018 ou que poderia ter havido adulteração dos resultados, ao contrário do que disse o mandatário.
Bolsonaro também desferiu novos ataques contra Barroso, a quem chamou de mentiroso.
TSE
Em nota à imprensa, na madrugada desta quinta (5), o TSE disse, em referência ao inquérito da Polícia Federal que apura ataque ao seu sistema interno em 2018, que o episódio foi divulgado na época em vários veículos de comunicação e não representou qualquer risco à integridade das eleições.
"Isso porque o código-fonte dos programas utilizados passa por sucessivas verificações e testes, aptos a identificar qualquer alteração ou manipulação. Nada de anormal ocorreu", afirma a nota.
O TSE diz também que o código-fonte é acessível aos partidos políticos, à OAB, à Polícia Federal e a outras entidades que participam do processo. "Uma vez assinado digitalmente e lacrado, não existe a possibilidade de adulteração. O programa simplesmente não roda se vier a ser modificado", diz o tribunal.
Na nota, o TSE reafirma que as urnas eletrônicas não entram na rede. "Por não serem conectadas à internet, não são passíveis de acesso remoto, o que impede qualquer tipo de interferência externa no processo de votação e de apuração".
"O próprio TSE encaminhou à Polícia Federal as informações necessárias à apuração dos fatos e prestou as informações disponíveis. A investigação corre de forma sigilosa e nunca se comunicou ao TSE qualquer elemento indicativo de fraude", aponta o tribunal na nota à imprensa.
Segundo o TSE, de 2018 para cá novas camadas de proteção foram incluídas no cenário mundial de cybersegurança, o que aumenta a segurança dos sistemas informatizados.
"Por fim, e mais importante que tudo, o TSE informa que os sistemas usados nas eleições de 2018 estão disponíveis na sala-cofre para os interessados, que podem analisar tanto o código-fonte quanto os sistemas lacrados e constatar que tudo transcorreu com precisão e lisura", finaliza a nota.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/08/bolsonaro-acusa-inquerito-de-moraes-de-ilegal-e-ameaca-antidoto-fora-das-4-linhas-da-constituicao.shtml
Pedro Fernando Nery: A falácia dos deveres que recai sobre os brasileiros mais pobres
A contrapartida de direitos são os tributos, que aparecem fartamente na Constituição
O argumento é recorrente. Os brasileiros mais pobres já possuem benefícios demais: a própria Constituição citaria “direitos” dezenas e dezenas de vezes, mas “deveres” somente em um punhado de ocasiões. Com tantos direitos sem deveres correspondentes, o arranjo seria insustentável. O argumento é falacioso: a contrapartida de direitos são os tributos, eles são fartamente previstos na Constituição e incidem mais justamente sobre os mais pobres – aqueles que teriam direitos demais.
Comecemos com um Ctrl+F na Constituição. Tributos e seus tipos – impostos e contribuições – aparecem mais de 300 vezes. São eles os espelhos dos direitos, e não um termo genérico como “dever”. O direito à saúde é concretizado com contribuições sociais. O direito à educação é efetivado com impostos. E assim vai.
No Brasil, muitos desses tributos, ou deveres, recaem sobre quem ganha menos, que paga a conta indiretamente quando compra um produto. Na verdade, os mais pobres pagam mais em tributos indiretos do que os mais ricos, quando considerado o peso dos tributos em proporção à renda de cada grupo.
Essa distribuição é muito diferente da de vários países desenvolvidos, que exigem mais esses deveres dos mais ricos. Mesmo uma reforma da tributação sobre o consumo, como a PEC 45, pode atenuar a situação, ao distribuir melhor a carga entre o que é consumido pelos mais bem posicionados na distribuição de renda e os mais vulneráveis. Estudo da economista Débora Freire conclui que essa reforma tributária traria “ganhos de bem-estar” para as famílias mais pobres, pelo seu efeito nos preços.
Para que as elites tenham mais deveres, são importantes também medidas relacionadas à tributação da renda. Embora a Constituição demande tratamento igual entre os cidadãos em geral, e progressividade no Imposto de Renda em particular, o fato é que ele é regressivo para rendas mais altas: quanto mais se ganha, menos se paga (a alíquota efetiva chega a 5% para o grupo que ganha mais de R$ 300 mil). Isso porque para este dever muitos pagam 0% em relação a certas rendas, isentas legalmente de pagar o IR – em provocação à Constituição.
Temos também muitos problemas com isenções ou outros auxílios a empresários de setores específicos da economia. Estes ficam dispensados de seus deveres constitucionais parcial ou totalmente, por um prazo definido ou indefinidamente. São os chamados gastos tributários (renúncias, benefícios fiscais): um montante que eleva a nossa dívida com pouca clareza sobre suas vantagens em termos de políticas públicas.
Um passo, ainda que tímido, foi dado semana passada para que os deveres sejam distribuídos de forma mais igualitária. Com a nova Emenda Constitucional n.º 109, decorrente da PEC emergencial, uma nova lei complementar passa a ser exigida regulamentando a criação desses benefícios fiscais, regras para avaliação e um plano para sua redução. É importante que a regulamentação do tema enquadre mecanismos que dão menos deveres a grupos mais prósperos, como isenções no IR ou tributação do patrimônio favorecida, abaixo dos limites da Constituição.
É verdade que em nosso pacto social é possível identificar direitos em excesso, mas a evidência é de que isso não ocorre entre os mais pobres. Se consideramos deveres os tributos, consideremos agora o gasto público como uma aproximação de direitos. Os dados apontam que transferências do governo são regressivas quando dividimos a população – por exemplo – em cinco grandes grupos de renda: isto é, quanto menos pobre cada quinto da população, mais recursos recebem.
De tal forma que para o quinto mais rico pesam em sua renda os recursos recebidos do governo quase o mesmo tanto que para os mais pobres. Como mostra estudo da antiga Secretaria de Acompanhamento Econômico, esse padrão é muito divergente do de países da OCDE, em que o gasto é muito mais direcionado aos mais vulneráveis.
Como evidencia o debate do auxílio emergencial, uma larga parcela da população está, na verdade, com poucos direitos. Centenas de economistas lançaram no último fim de semana uma carta que chamou atenção pelas cobranças quanto à pandemia, mas que também defende de forma contundente uma reforma no sistema de proteção social – exatamente pela cobertura insuficiente.
Muito mudou no País desde que Roberto Campos fez a crítica que seria popularizada nas décadas seguintes – de que a Constituição prevê direitos demais e deveres de menos. À época, ainda não haviam sido montados os mecanismos legais que hoje distorcem tanto nosso sistema tributário em benefício de quem está no topo. Que as mudanças que esperam nosso País nos próximos anos se orientem por uma verdade inconveniente: são os mais ricos que têm deveres de menos.
*Doutor em economia
Janio de Freitas: A pandemia não matou a doença do golpismo
Medidas duras contra governadores só podem ser intervenções. Não terá sido ocasional a presença da expressão estado de sítio antes da ameaça
O ressurgimento de Lula da Silva, prestigiado até pela atenção da CNN americana, simultâneo a outros fatos de aguda influência, levam Bolsonaro ao estado de maior tensão e descontrole exibido até agora.Sua conversa com o ministro Luiz Fux e as palavras que a motivaram, centradas em referências dúbias a estado de sítio, tanto expuseram uma situação pessoal de desespero como o componente ameaçador desse desvairado por natureza. O pouco que Bolsonaro disse ao presidente do Supremo em sentido neutralizador conflita com a adversidade que cresce, rápida e envolvente, contra seu projeto.
Embora lerda como poucas, a investigação das tais "rachadinhas" de Flávio, além de outra vez autorizada, afinal vê surgir a do filho Carlos e encontra o nome Jair. O filho mais novo, ainda com os primeiros fios no rosto, inicia-se como investigado por tráfico de influência.
"Com crise econômica, o meu governo acaba" é a ideia que orienta Bolsonaro mesmo nos assuntos da pandemia. Nos quais não deu mais para manter a conduta de alienação e primarismo diante do agravamento brutal da crise pandêmica.
A reação de Bolsonaro foi a tontura do desesperado. Lula pega a bandeira da vacina, então é urgente pôr a vacina no lugar da cloroquina. Põe máscara. Tira máscara. Volta à cloroquina. Culpa os governadores. Mas o empurrado é Pazuello. Escreve carta solícita a Biden e recebe uma resposta de cobrança sobre meio ambiente. Volta à vacina. Falta vacina.
Se 300 mil mortes não importam a Bolsonaro, é esmagador o reconhecimento inevitável de que a vacina de João Doria veio a ser um pequeno salvamento e uma grande humilhação para o governo. E a economia decisiva? Inflação, necessário aumento dos juros, ameaça às exportações, fome, socorro em algum dinheirinho a 45 milhões e contra as contas governamentais.
Bolsonaro corre ao Supremo, com uma ação contra os governadores, pretendendo que sejam proibidos de impor confinamento e reduzir a atividade econômica ao essencial. Não sabe que o regime é federativo e isso o Supremo não teme confirmar.
"É estado de sítio. Se não conseguir isso [êxito no Supremo], vem medidas mais duras." Medidas duras contra governadores só podem ser intervenções. Não terá sido ocasional a presença da expressão estado de sítio antes da ameaça. Tudo no telefonema e no que foi dito depois reduz a uma ideia: golpe.Bolsonaro não se deu conta, no entanto, da variação já captada pelo Datafolha. Sua persistência contra a redução da atividade urbana não atende mais à maioria da sociedade. Sua demagogia perdeu-se nas UTIs. Apenas 30% dos pesquisados, nem um terço, recusam agora o isolamento, em favor da economia. E já 60% entendem que o confinamento é importante para repelir o vírus. O que é também repelir Bolsonaro.Volta-se ao risco maior: a pandemia não matou a doença do golpismo.
Tudo em casa
O corporativismo, conhecido nas ruas por cupinchismo, arma um lance espertinho para livrar-se de uma decisão entre duas possíveis: reconhecer que Sergio Moro levou à violação do processo eleitoral de 2018 pelo próprio Judiciário ou carregar, para sempre, o ônus de tribunal conivente com a violação, para salvar o que resta de Moro. Nessa armação, Kassio Nunes Marques faz sua verdadeira estreia no Supremo.
Os ministros Edson Fachin e Nunes Marques propõem que o plenário do Supremo examine primeiro a anulação das condenações de Lula. Se aprovada, seria cancelada a apreciação final, que deveria vir antes, sobre a imparcialidade ou parcialidade de Sergio Moro. Com essa inversão da agenda, Marques não precisaria dar o voto incômodo que protela. E Moro e suas ilegalidades, que Gilmar Mendes relatou, iriam para o beleléu. Com o necessário cinismo, a anulação das condenações seria dada como solução para o problema Moro. Complicado, mas esperteza óbvia não é esperta.
Ocorre, no entanto, que a ação à espera do voto de Nunes Marques é sobre a conduta de Sergio Moro como juiz, se cumpriu ou transgrediu as normas a que estava obrigado e agiu com ética judicial (a pessoal teve julgamento público). Disso a decisão de Fachin não trata, mas a moralidade judicial não pode dispensar.
Hélio Schwartsman: A tragédia poderia ter sido evitada
Sem citar Bolsonaro ou Covid, André Nemésio dispara um asteroide contra a política sanitária do atual governo
A ficção científica tem uma legião de fãs dedicados. Não estou entre eles. Embora leia de tudo, eventualmente até ficção científica (e quase sempre com prazer), não sei de cor todos os títulos de Asimov, Bradbury e Clarke —e nem acho que tenha assistido a todos os episódios de “Jornada nas Estrelas”.
É estranho que a ficção científica não goze de grande prestígio literário, já que o gênero convida os autores a trabalhar com ideias em estado puro. Ela não é limitada pela ditadura da realidade nem pelos acidentes da geografia espacial e do estado tecnológico em que calhamos de viver.
No fundo, a única restrição que a ficção científica impõe é a de não violar sistematicamente as leis da física, as quais deixam enorme latitude para a imaginação. É um gênero perfeito para a crítica social, pois permite apontar problemas desvinculando-os de paixões presentes.
Faço essas considerações a propósito de “Crônicas do Cretáceo”, livro de estreia de André Nemésio, biólogo com o qual troco e-mails já há vários anos. A história gira em torno do asteroide que caiu sobre o que é hoje a península de Yucatán, 66 milhões de anos atrás, provocando uma extinção em massa. A tragédia poderia ter sido evitada. Não avanço mais para não cometer um “spoiler” sideral.
Impressionou-me a quantidade de discussões científicas fascinantes que André conseguiu reunir num enredo que prende a atenção. Quão comum é a vida no Universo? E a vida inteligente? Dinossauros poderiam ter criado uma civilização? Ainda entram debates sobre epistemologia, feminismo e, principalmente, sobre os riscos de ignorar a ciência. Sem nem mencionar Bolsonaro ou Covid-19, André dispara um asteroide inteiro contra a mortífera política sanitária do atual governo.
Detalhe revelador do rigor científico com que o autor trata os temas abordados, “Crônicas...” é um livro de ficção com notas de rodapé e bibliografia.
Bruno Boghossian: Espera inútil por moderação garante impunidade a Bolsonaro
Negacionistas da delinquência presidencial, políticos e juízes aceitam radicalismo mortífero
No penúltimo domingo de maio, Jair Bolsonaro provocou aglomeração durante um protesto contra o Congresso e o STF. Na terça, Rodrigo Maia fez na Câmara um "convite à pacificação dos espíritos". Dois dias depois, o presidente foi à portaria do Palácio da Alvorada e, aos gritos, lançou sua infame advertência ao Supremo: "Acabou, porra!".
A eterna ilusão de que Bolsonaro se tornaria um governante moderado circula há dois anos em Brasília. Na pandemia, essa fantasia ainda engana autoridades que aguardam pacientemente uma mudança de comportamento na gestão da crise. Essa esperança inútil legou ao país a tragédia impulsionada pelo radicalismo mortífero do presidente.
Rodrigo Maia não foi um negacionista da delinquência bolsonarista, mas eles estão por aí. No fim de 2020, um dos principais líderes do centrão dizia que a imagem desastrosa do governo na pandemia era "má vontade da mídia" e que o presidente havia abandonado o extremismo. "Ele notou que aquilo era um erro", disse o senador Ciro Nogueira.
Esses sócios do governo também viram sinais positivos quando Bolsonaro passou a falar bem da vacina e decidiu trocar um ministro da Saúde incompetente. Pouco depois, o presidente mostrou que não mudaria as diretrizes da gestão, voltou a defender a cloroquina e acionou o STF contra governadores que tentam conter o colapso de seus hospitais.
Ainda há quem espere mudanças. No auge da crise, o presidente do Senado disse que é hora de "sentar à mesa" e pediu "a coordenação do presidente da República". O chefe da Câmara afirmou que é preciso "evitar essa agonia e esse vexame internacional". Os dois estão atrasados.
No STF, Luiz Fux telefonou para o Planalto ao saber que Bolsonaro havia citado um cenário de estado de sítio ao ameaçar uma “ação dura” contra governadores que implantaram medidas de restrição. O autor da bravata disse que aquilo não era verdade, e o ministro se deu por satisfeito. Bolsonaro sabe que os negacionistas vão deixar por isso mesmo.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro tem de renunciar a si mesmo ou ao governo
Presidente, centrão e amigos encenam a farsa da união nacional na semana que vem
Imagine-se que, na semana que vem, Jair Bolsonaro renuncie a si mesmo. Que abdique da alma monstruosa que reina sobre o país da morte.
Nesse universo paralelo, Bolsonaro acaba por se render na guerra civil que luta contra estados e cidades, contra a vida e a razão. Passa a apoiar o distanciamento social. No Ministério da Saúde, saem generais e coronéis brucutus, terraplanistas e negacionistas em geral. Entra gente capaz de organizar a distribuição de UTIs, remédios para intubações, oxigênio etc.
O governo federal convoca um comitê de cientistas que coordenará pesquisadores dedicados a entender as novas variantes do vírus e outras virologias, infectologias e epidemiologias que permitam inventar estratégias capazes de conter a disseminação da doença. Outro grupo prepara o plano para cuidar dos sobreviventes com sequelas do coronavírus etc. O delírio é livre.
É tudo imaginável, claro.
Bolsonaro arranjou para a semana que vem uma reunião em que espera receber apoio da cúpula de Judiciário e Legislativo para criar um “gabinete de crise” da epidemia (vai ocupar a sala do gabinete do ódio?). Será uma farsa, faltando saber apenas o tamanho da presepada. Para que não o fosse, Bolsonaro teria de renunciar a si mesmo.
Bolsonaro quer ganhar tempo, assim como seus cúmplices no comando do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Fará a pose do governante, no que tem sido ainda mais diminuído por prefeitos, governadores e até por Lula da Silva, que não governa coisa alguma.
Tentará sufocar conversas sobre CPIs ou coisa pior. Quem sabe ocorresse uma estabilização do número de mortes até o fim do mês. Seria resultado do trabalho de governadores e prefeitos, mas Bolsonaro, como o grande parasita que é, sugaria o esforço alheio.
Com uma mão grande, Bolsonaro afana a faina dos outros. Com a mão pesada do ferrabrás, Bolsonaro de novo volta a fazer ameaças de golpe, como em meados do ano passado. Para sua massa, seria o líder contra o caos social que adviria das políticas de distanciamento social. Para começar, sugere um estado de sítio.
Pacheco e Lira também ganham tempo até que o diálogo com Bolsonaro pela união contra a epidemia acabe por se revelar a farsa que é —ou até que as pessoas comecem a agonizar sufocadas nas calçadas dos hospitais.
O objetivo comum é conter com custo baixo a ira crescente contra o genocida. O acordão Bolsonaro-centrão não se sustenta com fúria popular crescente. Os colaboracionistas do empresariado, assim como os cúmplices por omissão, esperam também essa água na fervura que começa.
Para que a farsa durasse pelo menos um ato, Bolsonaro teria de engolir por uns dias as imundícies que cospe sobre as políticas de distanciamento, violência agora acompanhada de ações do governo na Justiça contra estados que adotam lockdowns (fajutos, mas ok). Seria também o mínimo para não desmoralizar logo de cara o ministro da Saúde que nem assumiu, esse que anuncia que a ciência irá para o governo.
Quanto mais tempo levar a farsa, melhor para a sustentação do grande acordo de morte entre centrão, Bolsonaro e o grosso da elite econômica.
Em abril, começa a ser pago o auxílio emergencial. Há uma chance de estados e cidades conterem a explosão contínua de mortes na virada do mês, a tal estabilização do horror. Neste mundo sem Deus e em um país que aceita quase 3.000 mortes por dia, tudo é possível. O tombo da economia e os 100 mil cadáveres extras até o fim de abril já estão no preço da política e da elite.
Elio Gaspari: Jennifer Doudna, a Decodificadora
Livro é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza.
Está nas livrarias “A Decodificadora”, de Walter Isaacson (foto). Num tempo de Covid, Bolsonaro, cloroquina e “gripezinha”, é uma vacina para a alma. Conta a vida da cientista americana Jennifer Doudna, prêmio Nobel de Química do ano passado.
Quando parece que o mundo vai acabar, algo de bom acontece. Em junho de 1940, os alemães haviam entrado em Paris, mas a americana Sylvia Beach resolveu reabrir sua livraria Shakespeare & Co. Vendeu apenas um exemplar de “...E o Vento Levou”. Dias depois, Hitler visitou a cidade, mas alguém estava lendo uma boa história.
Jennifer Doudna pesquisou um método de edição de genomas chamado CRISPR. Em português, “Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas”. Felizmente, mesmo com um tema agreste, Isaacson é capaz de lidar com essas coisas de forma compreensível. Com sucesso, já contou a vida de Steve Jobs e Albert Einstein. Grosseiramente, o CRISPR é um método de “copia e cola” de sequências genéticas. Graças a ele, criaram-se vacinas contra a Covid em menos de um ano.
“A Decodificadora” é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza. Quando criança, no Havaí, ela viu o mistério das plantas “não me toques”, aquelas que abrem e fecham suas folhas ao passar dos dedos.
Num mundo em que um presidente de Harvard disse que mulheres não têm aptidão para a ciência, Doudna ralou, mas mostrou o tamanho da bobagem. (O economista Larry Summers perdeu o emprego.)
Isaacson publicou sua biografia de Steve Jobs quando todo mundo estava familiarizado com os computadores. “A Decodificadora” apareceu no meio de uma pandemia e explica o mundo das vacinas, mas ainda parece difícil entender um universo com DNA, RNA de interferência ou as bactérias que se defendem de vírus. Mesmo assim, algum esforço ajuda as pessoas a se proteger de algo pior: a superstição.
No dia 12 de março do ano passado, Jennifer Doudna ia buscar o filho num torneio de robótica, quando recebeu uma mensagem avisando que o evento havia sido cancelado e todos os jovens deviam voltar para casa. Era o lockdown.
Naquele mesmo dia, o presidente Jair Bolsonaro dizia, no Palácio da Alvorada:
— Eu acho... Eu não sou médico, não sou infectologista. Do que eu vi até o momento, outras gripes mataram mais do que essa. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo.
Quando Bolsonaro expunha suas crenças, na Alemanha, o casal de médicos Ugur Sahin e Ozlem Türeci firmou uma parceria com a Pfizer para produzir uma vacina que transporta informações genéticas, o tal RNA Mensageiro. A dupla sabia que o Coronavírus resultaria em algo muito diferente das “outras gripes”. Sua vacina já foi aplicada em cerca de 20 milhões de pessoas. Em novembro, a empresa fundada pelos dois valia US$ 21 bilhões. Tornaram-se uma das famílias mais ricas do país e continuam no mesmo apartamento. O casal contará sua história num livro que sairá no fim do ano.
(O Ministério da Saúde brasileiro só comprou vacinas da Pfizer na semana passada.)
Boa ideia
Corre no Conselho da Justiça Federal do STJ uma ideia que parece boa, simples e barata. É a criação de Varas de Inquérito.
Sem precisar criar um só cargo, separam-se nas ações penais os juízes que cuidam de inquéritos e aqueles que prolatam sentenças. Na prática, se o Sergio Moro estivesse numa vara de inquérito, poderia fazer tudo o que fez, mas quando chegasse a hora da ação penal, o caso iria para outro juiz.
Essa mudança pode ser feita sem grandes sobressaltos e sem novas despesas. Tem a vantagem de impedir o surgimento de novas repúblicas de Curitiba ou, pelo menos, tornar mais difícil o seu aparecimento.
Santos Cruz
Para quem sonha com a possibilidade de trazer o general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz para uma disputa eleitoral, vale a pena lembrar que lhe foi oferecida a candidatura a prefeito do Rio, e ele recusou.
General em armação política é coisa que não acaba bem. O vice-presidente Hamilton Mourão não é metade do que lhe disseram que seria.
Há cerca de meio século, um pedaço da oposição transformou o general Euler Bentes Monteiro em candidato na eleição (indireta) de 1978.
Euler era um oficial de vitrine, rigoroso, cordial e bom administrador. Perdeu, foi para seu sítio e morreu em 2002. A oposição que havia cortejado estava no poder e mal se lembrou dele. Seu obituário foi noticiado abaixo do registro da morte da inesquecível porta-bandeira Mocinha, da Mangueira.
Bolsonaro x Lula
Quando Jair Bolsonaro disse, com toda naturalidade, que Lula ficará inelegível, mostrou que acredita num salto triplo carpado, partindo das virtudes contorcionistas do ministro Nunes Marques.
Se ele pular logo, ficará feio. Se demorar, poderá ser tarde.
Datafolha no Planalto
Até a divulgação da última pesquisa do Datafolha, Bolsonaro e seu pelotão palaciano estavam certos de que o combate ao isolamento aumentava seu capital eleitoral.
Talvez a valentia tivesse algum valor, mas as estatísticas da pandemia abalaram essa crença.
Com 79% dos entrevistados achando que a peste esta fora de controle, ir para um segundo turno com um passivo de mais de 300 mil mortos deixou de ser boa ideia.
Bolsonaro e o sítio
Bolsonaro flerta com o Apocalipse desde o início da pandemia. Anteviu saques e desordens que não aconteceram. Os saques que ocorreram em alguns estados, como no Rio do governador Witzel, não miravam em supermercados e sim na bolsa da Viúva, afanando verbas de hospitais de campanha.
No caso das desordens, basta olhar em volta: quatro ministros da Saúde, as vacinas de Manaus foram para Macapá, e o Exército recebeu ordens para fabricar cloroquina.
Tudo teria sido melhor se o capitão tivesse olhado de outro jeito para a pandemia, mas a vida é como ela é.
No seu último surto apocalíptico, Bolsonaro tirou da gaveta o absurdo fantasma estado de sítio.
As desordens que não aconteceram podem ocorrer. Num delírio de cloroquina pode-se imaginar alguns milicianos atacando lojas ou depredando ônibus.
Em 1981, procurou-se atribuir a uma organização terrorista de esquerda que não existia mais a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento, dentro do carro de um capitão lotado no DOI.
Anos antes, um maluco que via discos voadores juntou-se a policiais, assaltou um banco e botou bombas em São Paulo. Preso, contou que recebia ordens de poderosos.
Isolamento social
Jair Bolsonaro pode ter suas razões ao achar que o isolamento social abala a economia.
Com certeza, não há economia que ande direito se o presidente detona em menos de um mês os presidentes da Petrobras e do Banco do Brasil.
Isso para não se falar na desidratação dos frentistas do Posto Ipiranga. Pelo menos 15 já foram embora.
Míriam Leitão: A palavra que habita em nós
Genocídio. Por que a palavra ficou tão presente na vida brasileira? Porque ela é usada quando um povo está morrendo. Nós estamos morrendo. Todas as outras palavras parecem pálidas. Prisioneiros de uma armadilha institucional e trágica, os brasileiros morrem diariamente aos milhares. Os remédios usados no tratamento extremo, a intubação, estão acabando, e o país está numa macabra contagem regressiva de quantos dias durarão os estoques. O que acontecerá se os medicamentos acabarem antes de serem repostos? Seremos intubados sem sedativos ou sufocaremos? Nós não estamos apenas morrendo. Caminhamos para morrer em maior número e de maneira mais cruel. Que nome deve ser usado? Genocídio.
A palavra habita nossas mentes porque estamos vendo os fatos, temos consciência do destino. Objetivamente, é a única que temos para descrever os eventos deste tempo. Quem se ofende com ela, se fosse pessoa com sentimentos humanos, teria reagido para evitar a tragédia. Nós sabemos sinceramente que nada podemos esperar de quem empurrou o país para este momento de barbárie.
A armadilha em que estamos é que não há remédio institucional fácil, e suficientemente rápido, para neutralizarmos o agente de nossa própria morte. Não temos legítima defesa. Os democratas respeitam as regras do jogo constitucional. O constituinte não pensou que haveria um tempo assim tão perigoso em que o governante atentaria contra a vida coletiva. Na Constituição está escrito que a saúde é um direito do povo e um dever do Estado. Esse é o primeiro princípio, de uma infinidade de outros, que está sendo quebrado.
O presidente da República convidou o presidente do Supremo Tribunal Federal para participar de um comitê de combate à pandemia. Estranho, porque ele nunca combateu a pandemia. Ao mesmo tempo, ingressou no Supremo contra três governos estaduais que tomaram medidas para reduzir a circulação de pessoas e, portanto, do vírus. O ministro Luiz Fux perguntou aos colegas se devia ir e recebeu a aprovação. Fux vai para um “diálogo institucional”, mas já avisou que não participará de uma comissão formal. Não existe meia entrada nessa reunião. Jair Bolsonaro está em litígio com os governadores. Se o STF vai julgar essas ações não pode participar de diálogo algum. É uma armadilha. Mais uma.
O que mais ele terá que fazer? Quantas mortes serão suficientes? Quanto fel ele ainda terá que destilar? Até quando os poderes da República vão acreditar que estão diante de um governo normal, com o qual se pode ter diálogo?
Desde o início desta pandemia o presidente da República escolheu seu lado. Não é o da vida. Diariamente ele maquina o mal. Ficou contra cada medida que poderia evitar mortes. Seu governo se nega a fazer a coordenação que, numa federação centralizada como a nossa, cabe à União. Ele não apenas se omite, ele age. Bolsonaro sabota a ação do aparato de Estado que o país construiu. O Ministério da Saúde é uma sombra do que foi, do que poderia ter sido nesta crise. A demolição institucional continua sendo executada com crueldade.
O presidente é pessoa de extrema perversidade. Mas um perverso com método. Ele apostou, desde o início, que a melhor forma de se salvar é defender que a economia deve continuar funcionando. Calculou que a imunidade coletiva chegaria e nesse momento ele diria que estava certo desde o início. Então a raiva da população ferida poderia ser dirigida contra os outros. Que outros? Todos. Governadores, prefeitos, ministros do Supremo, adversários políticos, jornalistas. Qual a variável de ajuste dessa equação? Os mortos. Podem ser quantos forem até que se atinja a imunidade coletiva que, na sua visão, viria da contaminação em massa. Bolsonaro certa vez comparou o coronavírus à chuva. “Ela vai molhar 70% de vocês”. Bolsonaro está errado desde o início. A ciência nos ensina que diante deste vírus mutante e mortal a imunidade coletiva só virá com a vacinação em massa.
O presidente adotou conscientemente o caminho de nos levar para esta exposição máxima ao vírus porque desta forma se chegaria, na cabeça dele, ao fim da pandemia. O caminho está errado sob todos os pontos de vista: médico, científico, humano. Ele está nos levando para a morte. Qual é a palavra exata? Genocídio.
Eliane Cantanhêde: Guerra insana
A união nacional contra a pandemia só funciona com uma premissa: isolar Bolsonaro
O Brasil exige união de forças contra o coronavírus, mas o presidente Jair Bolsonaro trabalha na direção oposta, pela desunião e o caos. Enquanto instituições, Estados e Municípios buscam a iniciativa privada e articulam uma frente para salvar vidas e garantir atendimento e humanidade aos pacientes, o presidente da República insiste na sua guerrinha pessoal, insana e cheia de ameaças autoritárias contra governadores e isolamento social.
Na quinta-feira à noite, o presidente da Câmara, Arthur Lira, foi à residência oficial do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ali ao lado da sua, para discutir a extrema gravidade da situação e formas de reagir, abrindo portas com empresas, fábricas e laboratórios, para suprir o que já começa a faltar: leitos, oxigênio, medicamentos para intubação e, sim, vacinas, vacinas, vacinas.
Na sexta, às 8h em ponto, o general Luís Eduardo Ramos, secretário de Governo da Presidência, chegou à casa de Pacheco com o mesmo objetivo, tentando viabilizar uma reunião na próxima terça com os presidentes da República, do Senado, da Câmara e do Supremo, o procurador-geral da República e um representante dos governadores de cada região do País.
E o que anda fazendo Bolsonaro? Trabalhando a favor da pandemia! É um aliado incondicional do coronavírus, faça chuva ou faça sol, morram 30 ou 300 mil, o que deixa, inclusive, uma dúvida: que papel terá na terça? O que dirá? Que compromissos assumirá?
Como Bolsonaro não é um interlocutor minimamente apto na pandemia e ninguém se dirige ao Planalto para tratar de providências, os poderes e entes federativos se acertam e tomam decisões. Rodrigo Pacheco também se reuniu com o quase futuro ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e mandou ofício ao quase ex Eduardo Pazzuelo sobre cronogramas de vacinas – atrasados, confusos e de baixa credibilidade.
E o senador pediu à sua correspondente nos EUA, Kamala Harris (que acumula a vice com a presidência do Senado), um “gesto de solidariedade” para negociar as doses excedentes de vacinas com o Brasil e, assim, atacar a pandemia no seu atual epicentro e aumentar a segurança nos países das Américas. São bons argumentos.
Enquanto os Poderes se mexiam, Bolsonaro anunciava uma ação contra o toque de recolher no DF, Bahia e Rio Grande do Sul, para conter a circulação de pessoas e do vírus assassino. Se o Supremo acatar a ação, ele estará liberado para abrir uma guerra mortal aos governadores e às medidas de combate à pandemia. Mas o Supremo não vai acatar.
Ato contínuo, o presidente disse a apoiadores que “o caos vem aí” e “vai chegar o momento de tomar uma ação dura”. Luiz Fux, que preside a Corte, telefonou para ele. Não há indicação de estado de sítio e governadores têm autonomia para decretar toque de recolher, previsto na lei sobre a pandemia. Bolsonaro erra, confunde, ameaça e o ministro da Justiça, André Mendonça, usa a Lei de Segurança Nacional contra quem usa o termo “genocida” e critica o presidente.
Cidadãos pregarem um cartaz em Palmas (TO) dizendo que Bolsonaro “não vale um pequi roído” é muito diferente de um deputado ameaçar “dar uma surra” num ministro do Supremo. Uma coisa é liberdade de expressão e crítica, como cartazes contra Bolsonaro e balões de Lula presidiário. Outra é o crime de ameaçar bater em ministros, invadir suas casas e jogar fogos de artifício sobre o Supremo.
Assim como o vírus, o presidente está fora de controle, sempre testando os limites da democracia. Não vê o que todos vêem: o colapso da saúde e as mortes. Mas vê o que ninguém vê: insurreição popular e quebra-quebra, mantendo seus delírios sobre golpes e arroubos autoritários. Uma união nacional contra o vírus depende de uma premissa: isolar Bolsonaro.