Conrado Hübner Mendes
Conrado Hübner Mendes : A vacina da revolta sustenta Bolsonaro
Mais difícil que explicar a letargia social é justificar o torpor institucional
Jair Bolsonaro vacinou 30% da população brasileira muito antes da pandemia. Assim como a vacina do RNA mensageiro ensina o organismo a se defender do coronavírus sem inocular vírus nenhum, a vacina bolsonara ensina a mente a recusar fatos e a atacar uma esfera pública que comunique fatos. Sequestra a consciência, os sentidos e qualquer afeto social em nome da promessa de liberdade. Vacina assim não é qualquer Pfizer que fabrica.
Essa é a versão otimista da história. A versão cínica e menos autoindulgente diria que a liberdade do "eu sozinho", a liberdade do "eu primeiro", a liberdade do "e daí?", somadas às liberdades do "eu mereci", "sou engenheiro civil formado" e "todo mundo vai morrer mesmo", liberdades brasileiras por excelência, casaram com Jair.
Nosso liberalismo à bala foi gestado por proprietários de escravos. O litígio por essa herança ainda reúne muita gente. Partido Novo e Paulo Guedes, o liberal de Bagé que trata maricas com joelhaços, só tentaram furar a fila.
A versão cínica ou a otimista da história, somada às imposições da pandemia, talvez expliquem a letargia social diante da enormidade dos fatos de autoria intelectual ou material de Bolsonaro em 24 meses. Recordar é sobreviver:
Há uma agência de inteligência (Abin) trabalhando para defender filho do presidente de acusação criminal; R$89 mil foram transferidos por operador de rachadinha na conta da primeira-dama; uma família inteira (três filhos e ex-esposa) comprou imóveis com dinheiro vivo; funcionários-fantasmas e assessores de gabinete tiveram salários confiscados por anos a fio. Nem o presidente nega: "Queiroz pagava minhas contas e está sendo injustiçado".
O quarto filho, jovem empresário, troca hora marcada na agenda presidencial por serviços gratuitos de empresas contratadas pelo governo federal. O pai segue lutando para acelerar colapso climático, para isentar polícia da responsabilidade por matar crianças negras e facilitar armamento de milícias (ou você achava que reduzir fiscalização era para te proteger?).
O circuito da delinquência se encerra na pandemia, agora no estágio da vacinação: contra a lei, presidente incita medo e defende a não-obrigatoriedade da vacina; cioso de seu papel de educar pelo exemplo, afirma "não vou tomar!"; encomenda campanha sobre perigos da vacina e pede termo de responsabilidade; boicota vacina que supõe beneficiar adversário eleitoral; está pelo menos seis meses atrasado na construção de plano de vacinação.
Bolsonaro calcula que postergar até 2022 as condições sociais de insegurança, incerteza e apreensão da pandemia o beneficia eleitoralmente. Está certo de que a responsabilidade por 200 mil mortes, número que deve seguir em alta com a inoperência do projeto de vacinação, será atribuída ao Congresso, ao STF, a governadores e prefeitos. Até ao capeta, mas não a ele.
Bolsonaro aposta que, quando a vacina enfim chegar, será recompensado. Melhor que aconteça perto da eleição. Ele pode estar certo.
Mais angustiante que buscar explicação para a letargia social, porém, é decifrar e justificar um torpor institucional e partidário tão duradouro. Afinal, o "instinto assassino", o "descaso homicida" e o "instinto sabotador", qualificativos de editorial recente da Folha, precedem à pandemia. Estavam lá desde o começo.
O negacionismo político que normaliza gratuitamente o projeto de Bolsonaro nasceu com a posse do governo e, depois de tudo, continua a suspirar nos tribunais superiores, nas Casas legislativas e até no jornalismo. Enquanto isso, o centrão se bolsonarizou, fez o presidente mergulhar na fisiologia venal que jurou combater e o tornou ainda mais perigoso.
Nessa conjuntura, a coalizão de partidos democráticos, formada para disputar a presidência na Câmara dos Deputados, é novidade promissora no horizonte. O tom e a cor das palavras, pelo menos, mudaram: "esta é a eleição entre ser livre ou subserviente; ser fiel à democracia ou ser aliado do autoritarismo". A união nasce para rechaçar "projeto de poder que menospreza as instituições e que por inúmeras vezes sugeriu fechamento desta Casa".
As dezenas de crimes de responsabilidade estão aí, escolha seu preferido. Para que crime de responsabilidade resulte em impeachment, porém, vamos ter que elaborar algum antídoto contra a vacina da revolta.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Conrado Hübner Mendes: O centrão se bolsonarizou, não o contrário
Bolsonaro, calado, não vira poeta; moderação está nos olhos de quem não vê
Bolsonaro não foi ao centro. O centrão foi a Bolsonaro. Centrão só é centro para o idiota da literalidade, que dá as mãos ao idiota da objetividade e olha o país desde sua câmara hiperbárica de análise política.
Na biologia do Planalto, centrão é um animal invertebrado que parasita o interesse público e o desfigura. Não é centro pois não tem substância nem de centro, nem de qualquer coisa. Esse corpo sem alma abraça Deus e o Diabo se Deus e o Diabo o deixarem se locupletar.
Produziu-se nesses anos vasta literatura sobre riscos à democracia. Relatórios e livros explicaram que o golpe saiu de época e foi substituído por técnicas menos espetaculares de fechamento. No lugar do tanque, a demolição gradual, parede por parede. A desconstrução, não a implosão, mostrou-se mais eficaz nessa onda de autocratização pelo mundo.
Para surpresa geral, Bolsonaro parecia jogar à moda antiga e insinuava intervenção militar no STF. O golpe fraquejou e se encerrou na notinha de Heleno advertindo sobre "consequências imprevisíveis". Muitos dos que alertavam que o golpe não era o verdadeiro risco agora respiram aliviados e anunciam "risco superado".
Afinal, o golpe falhou. E, se não há golpe, há triunfo democrático. O raciocínio não tem lógica mas agrada o coração. Foram só 20 meses de governo e a análise política voltou a adotar a certeza categórica como estilo retórico. A pílula tranquilizadora saiu até em capa de revista. A ciência política, escaldada, não recomenda tamanha confiança.
Se foi manobra de genialidade política ou sorte, não importa. Funcionou bem. Bastou gesto tático do presidente, receoso com os casos criminais que o implicam, e proclamaram vitória da "democracia risco zero". A profecia se autorrealizou com o toque do centrão.
A democracia com déficit de atenção se acalmou, mas os fatos narram história diversa: à medida que a morte se espalha e o negacionismo pandêmico se reforça, o autocrata amplia popularidade e chance de reeleição (momento-chave no script da autocratização).
Continua a incitar o crime na Amazônia e a assegurar leniência fiscalizadora; está vencendo na política de armamento e na inviabilização do direito à segurança pública; multiplicam-se candidaturas eleitorais de policiais e militares e não se cogita regulação a respeito; a militarização e damarização do Estado se aprofundam.
Na política pública não se vê moderação. Florestas continuam queimando e Salles sorrindo, Damares continua a colocar recurso público nas suas ONGs sem licitação, o país continua a se alinhar à Arábia Saudita contra direitos das mulheres na ordem internacional; instituições de Estado têm sido avaliadas por sua lealdade à nova era; já se pode falar em juízes bolsonaristas e promotores bolsonaristas, não só em policiais bolsonaristas.
Moderou-se nas palavras? Justo as palavras, com as quais poucos se importaram enquanto Bolsonaro celebrava golpe de 1964, defendia tortura, torturador e ditadura? Ou agredia negro, homossexual, jornalista, cientista, professor e estudante? Ou ameaçava enviar militante para a ponta da praia, local de desova de corpos assassinados na ditadura?
Faltam só algumas bombas que Bolsonaro precisa desarmar: a CPMI das fake news, sob o poder de agenda de Alcolumbre; o inquérito das fake news no STF, sob comando de Alexandre de Moraes; e as pendências criminais de Flávio Bolsonaro, Queiroz e Wassef no STF, reunidas no gabinete de Gilmar Mendes, o maestro do centrão magistocrático.
Gilmar Mendes demorou a se reacomodar no tabuleiro desde 2018. Teve até que chamar Bolsonaro de genocida e amansar generais antes de voltar a ser o eixo gravitacional do xadrez de Brasília. Pela sua sala de jantar passam hoje a reeleição de Alcolumbre e Maia na presidência das Casas do Congresso e a nomeação de novos ministros do STF. Bolsonaro foi lá pedir a bênção ao ministro que julga seus interesses.
O bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, é a mais agressiva ameaça à democracia brasileira. Bolsonaro, calado, não vira poeta. Se o estilo de governo mudou, suas ações e inações seguem esvaziando políticas públicas, intoxicando o espaço cívico e combatendo os canais de produção da verdade. Pode chegar a hora em que Bolsonaro se torne dispensável.
Moderação está nos olhos de quem não vê.
*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Conrado Hübner Mendes: A democracia não é para sempre, e a revolução autoritária não será promulgada
O negacionismo político é mais perigoso que o sanitário
Pioneiro do rock russo, Andrei Makarevich contou em suas memórias que nunca lhe ocorrera que "qualquer coisa pudesse mudar na União Soviética". Recordava-se do conforto de pensar que "tudo era para sempre", de "viver num Estado eterno". O colapso não cabia na sua imaginação.
O mesmo se passa com democracias. A ideia de que nada é tão ruim quanto parece, ou de que a história está do seu lado, pouco importa o que fazemos, tende a produzir resignação e passividade em democratas.
Dois séculos atrás Alexis de Tocqueville chamou a atenção para esse "fatalismo democrático". David Runciman o chamou de "armadilha da confiança": quanto mais se confia na permanência, maior o risco de pôr tudo a perder.
Democracias do mundo, nos últimos 20 anos, sofreram significativa queda de qualidade. A quantidade de cidadãos insatisfeitos com o regime não parou de crescer. Relatório do Centro para o Futuro da Democracia, da Universidade de Cambridge, mostra que a proporção de insatisfeitos atingiu o pico de 57,5% em 2020, marco da "recessão democrática".
O ano de 2020 também nos levou ao pico da "terceira onda de autocratização" no mundo, segundo relatório do Centro V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. Pela primeira vez desde o relatório inaugural, de 2001, há mais países autocráticos que democráticos no mundo. O Brasil, descrito como país "em via de autocratização", é um dos destaques negativos.
Apesar de tudo isso, logo após as eleições de 2018, surgiu aqui a legião dos profetas da democracia risco-zero. Vieram para nos proteger contra os alarmistas, aqueles que acenderam a luz amarela ao olhar não só para as palavras e atos de Bolsonaro em 30 anos de carreira, mas para a violência concreta e simbólica do movimento que ele incita.
Os profetas, grupo eclético que reuniu de Ives Gandra a FHC, de Luís Roberto Barroso a Aloysio Nunes, e um pequeno grupo de acadêmicos, afirmavam que tudo não passava de "choro dos perdedores".
O cientista político Carlos Pereira não nos poupou de provocação assim que o governo Bolsonaro completou seu primeiro ano. Em texto com título jocoso —"Ih... a democracia não ruiu"— voltou a nos ensinar que "as chances de erosão da democracia brasileira são quase nulas", uma "quimera".
Sua evidência científica era um famoso estudo da década de 1990, que relacionava estabilidade democrática e faixa de renda. Foi só. Não se deu sequer ao luxo de ouvir o que os autores daquele estudo, Fernando Limongi e Adam Przeworski, dizem hoje. Não permitiu a nuance, nem a dúvida.
O negacionismo político, que desfila cheio de soberba e verniz retórico, não foi só precipitado. Ao se apressar na resposta, não teve tempo de entender a pergunta. Não olhou para os lados, não ouviu os gritos dos fatos, dos números e das redes. Não observou as ruas, as periferias, as terras indígenas; nem as salas de aula, os laboratórios, as Redações de jornal. Mal examinou a integridade das instituições.
A deterioração democrática não chegou com Bolsonaro, mas ganhou com ele magnitude e velocidade desconhecidas. O presidente não só continua a apoiar o pedido de golpe militar e o fechamento do Congresso e do STF, como embarcou sem volta no negacionismo sanitário, contra tudo que diz a ciência e a experiência mundial. É negacionismo estratégico, pois lhe interessa o destino político, não as mortes.
Há duas maneiras de instituições responderem. Uma é repousar no negacionismo político e emitir notas de repúdio. Outra é explorar vias políticas e jurídicas para preservar o mínimo democrático que nos resta, acima de projetos eleitorais de curto prazo. Ou alguma combinação criativa que não estamos vendo.
A revolução autoritária não será promulgada. Nem sairá no Diário Oficial.
*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Conrado Hübner Mendes: O STF inventou o ministro contramajoritário, que joga contra a maioria da corte
Falta palavra para classificar liminar monocrática que passa por cima de outra liminar monocrática
Uma suprema corte tem função indispensável na democracia. Impor contrapeso a eventuais arroubos de maiorias eleitorais e legislativas, preservar a institucionalidade e proteger valores constitucionais acima do conflito político cotidiano são papéis delicados. Para que sobreviva como instituição que se respeita e se obedece, precisa investir na fina construção e manutenção de sua autoridade.
O STF se autoliberou desse penoso exercício.
Prefere um tribunal libertino, leve e solto. Presume que sua autoridade brota da natureza, ou das palavras da Constituição, pouco importa o que ministros fazem ou deixam de fazer dentro ou fora da corte. A libertinagem procedimental põe em risco a liberdade de todos nós, à esquerda e à direita. Não descobrimos isso em janeiro de 2020, mas o mês inovou.
A figura do “juiz das garantias”, aprovada pelo Congresso um mês atrás, determina divisão de trabalho entre o juiz que conduz produção de provas e o juiz que toma a decisão final. Inspirada em outras cortes do mundo, o modelo tenta potencializar as condições não só para uma decisão imparcial, mas para a imagem de imparcialidade. Gerou gritaria pública, sobretudo em entusiastas do selo Lava Jato de combate à corrupção.
Você pode ser contra ou a favor do juiz das garantias. Há argumentos dignos do nome dos dois lados, ainda que uns sejam mais convincentes que outros (debate que fica para outra coluna). Mas você não pode apoiar a arbitrariedade judicial só porque ela atende sua opinião hoje. Amanhã o afetado por manobra monocrática poderá ser você. Atenção aos métodos, não só aos resultados.
Liminar de Toffoli durante o recesso judicial ampliou prazo legal para implementação do juiz das garantias de 30 para 180 dias. Fux, outro plantonista do recesso, revogou a decisão de Toffoli e suspendeu, sem prazo definido, esta e diversas outras disposições do “pacote anticrime”. Ressaltou que tomava essa decisão com “todas as vênias possíveis” a Toffoli.
É provável que esse caso não volte mais à pauta do tribunal nessa geração. Afinal, desde 2012 esperamos que a gaveta de Fux solte para plenário o julgamento dos penduricalhos de juízes fluminenses (que a lei chamou de “fatos funcionais”); desde 2014, sua gaveta sonega do plenário o caso do auxílio-moradia. Para ficar em dois exemplos. A história não tem registro de voto de Fux que contrarie a magistocracia.
Foi um “descalabro” que “desgasta barbaramente a imagem do STF”, nas palavras do ministro Marco Aurélio. Para Gilmar Mendes, Fux “deveria entregar a chave do Parlamento” à equipe da Lava Jato. Soa bem, mas sabemos o que Marco Aurélio e Gilmar Mendes fizeram em verões passados.
Liminar é decisão de urgência. Justifica-se à luz do risco de a demora judicial causar prejuízo irreversível.
Num tribunal, liminar deve ser concedida pelo colegiado. Apenas por razão excepcional, pode ser tomada de forma monocrática.
Em controle de constitucionalidade, nem por razão excepcional (a lei 9.868 não autoriza, mas o STF a ignora). Apenas por razão excepcionalíssima, pode ser tomada dentro do recesso judicial.
Liminar monocrática em recesso, portanto, é decisão triplamente qualificada.
Fux rompeu a barreira. No glossário dos abusos judiciais, falta palavra para classificar liminar monocrática que passa por cima de outra liminar monocrática, ambas dentro do recesso.
O pensamento constitucional emprestou o mito de Ulisses para simbolizar a tarefa de cortes. Democracia que se sujeita a limites agiria como Ulisses. No mito, Ulisses se amarrou ao mastro para resistir ao canto das sereias. Na política moderna, democracias se amarraram às barreiras constitucionais. No STF, Fux não resistiu e se amarrou às sereias. “O mastro às favas”, poderia ter dito.
Uma suprema corte também se diz “contramajoritária” porque busca represar impulsos de maiorias. O STF inventou o ministro contramajoritário: aquele que joga contra a maioria do STF. Isso só se conhece no STF. Não é jabuticaba, pois a saborosa fruta não merece ser metáfora de nossos vícios e patologias. É aberração mesmo.
*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.