conquistas
Revista online | O que a luta LGBT pode cobrar do novo governo?
Eliseu de Oliveira Neto*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Para responder a essa pergunta, precisamos relembrar a história da luta LGBT. Nunca tivemos um governo que realmente tivesse isso como prioridade. Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro presidente a segurar a bandeira do arco-íris, mas isso porque um militante colocou-a na mão dele durante um ato. É inegável que a quebra de patentes que José Serra fez no combate ao HIV foi uma das melhores políticas para a população, mas também se dirige aos héteros.
Luiz Inácio Lula da Silva fez eventos, conselho lgbt (por decreto), criou o plano de combate à homofobia, mas nada que eu veja como significativo. Ao menos dialogava com a sociedade civil organizada, tinha atenção com as organizações não-governamentais (ONGs), mas poderia e deveria ter lutado pelo casamento homoafetivo, pela criminalização da lgbtfobia e muitas outras pautas, ainda mais com a força que tinha no Congresso e popularidade, mas sua base evangélica e católica segurava os avanços.
Dilma Rousseff foi decepcionante, teve Marco Feliciano na comissão de Direitos Humanos, o governo se colocou contra a criminalização e ainda fez manobras para derrubar o PLC122. Retirou material escolar para ajudar professores a lidar com a homofobia e teve a infeliz ideia de ir à TV, dizendo que não faria “propaganda de opção sexual”, como se alguém pudesse escolher sua orientação.
O governo de Michel Temer não tinha essa pauta como prioridade, mas, como sua base já era conservadora, foi muito menos cobrado, e pudemos avançar em alguns pontos, como o pacto pelos direitos humanos na educação, o programa de combate à lgbtfobia e a criação da diretoria LGBT no Ministério de Direitos Humanos (que foi restaurado em seu governo).
As grandes conquistas foram feitas pelo movimento social. Passamos de um país que nem nos considerava família (cidadãos) para um dos países com mais direitos lgbts do mundo, mas tudo via Judiciário.
Depois, veio o grande desastre: uma ideia de que queríamos privilégios, e os reais privilegiados (homens, ricos, brancos ,cisgêneros) elegeram alguém que fez sua carreira atacando a comunidade. O presidente Jair Bolsonaro destruiu tudo que conseguiu, fechou a diretoria de Direitos Humanos do Ministério da Educação (MEC), atacou o turismo LGBT, que é altamente rentável no Brasil, e tornou praticamente nulo o conselho nacional LGBT.
Teremos muita luta pela frente, um congresso ultraconservador e uma série de mentiras que foram distribuídas para a nação, como a tolice de ideologia de gênero, mamadeira de piroca. Os fundamentalistas sabem exatamente que a escola é o grande campo dessa destruição. Projetos como homeschooling são justamente para evitar a diversidade nas escolas, ensinar criacionismo, transmitir lgbtfobia.
Na educação, precisamos que as escolas sejam um lugar acolhedor, sem violência e sem discriminação, aplicando a lei 13185/2014, que prevê uma equipe multidisciplinar em cada escola para atender aos casos de violência e discriminação.
Somente em 2017, foram apresentados em 35 municípios do Brasil, por 47 vereadores de 10 partidos, projetos que visem proibir e coibir explicitamente qualquer ação ou termo educacional que evoque a discussão sobre gênero e/ou sexualidade nas escolas municipais, estaduais e privadas, inclusive em municípios que já tinham projeto de leis em combate ao bullying nas escolas. Isso demostra uma contradição ideológica em relação ao entendimento sobre o real objetivo de combater a violência no âmbito escolar, que já vinha ocorrendo com intuito de combater o preconceito e a discriminação em relação a gênero, sexualidade e raça.
O bullying pode ser considerado uma ação de violência física ou psicológica, intencional e repetitiva, que ocorra sem motivação evidente, praticada por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. Esta ação muitas vezes ocasiona às suas vítimas doenças psicológicas e físicas, como depressão aguda, suicídio, abandono escolar, mutilações corporais leves ou graves, coerção, esquizoidismo, baixa alto-estima, acidentes por mortes, assassinatos entre outras causas. Em sua maioria, as violências estão direcionadas às pessoas que demonstram ter algum tipo de referencial de diferença expressa nos aspectos físico, intelectual, cognitivo, de raça/etnia, sexual e/ou de gênero, os quais não estão aparentemente dentro das normas estabelecidas como normativas na sociedade ou na cultura vigente.
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A relação de poder pode ser evidenciada por meio de uma cultura em que prevalece a masculinidade, a branquitude e a cisgeneridade heterossexual como quesitos de superioridades entre os humanos, colocando-os no ápice da pirâmide social como preponente às benesses da vida cotidiana. Portanto, as mulheres, os homens femininos, as masculinas mulheres, deficientes físicos e/ou intelectuais, os negros e as negras, as(os) homossexuais, as(os) bissexuais e/ou os transgêneros são associados como pessoas de menor valor social.
Por isso, nos projetos que envolvem trabalhos de combate ao bullying, devem estar incluídas, com maior atenção, ações contra as violências e violações de direitos que envolvem as relações de gênero, sexualidade, raça/etnia, classe, expressão e identidade de gênero de crianças e adolescentes em âmbito escolar, por estarem inseridas em uma sociedade que prioriza a cultura de direitos pela garantia da diversidade humana. É preciso garantir a solidariedade, a cidadania, o respeito e a dignidade humana em relação à multiculturalidade existencial, que compõe as diferenças sociais.
Em 2010, a Unesco promoveu uma grande campanha “Quebre o silêncio” com objetivo de evidenciar o mutismo que envolvia as questões sobre o bullying homofóbico e suas consequências na humanidade. É evidente que isto deve ser a prioridade máxima do novo governo.
Bolsonaro destruiu o programa de HIV/Aids, retirou orçamento, cortou medicação. As escolas não falam do tema. O resultado pode ser visto na pesquisa divulgada recentemente pelo Ministério da Saúde que aponta para fatos ainda mais tristes: o número de casos de HIV em jovens de 15 a 24 anos apresentou maior aumento. Em dez anos, a taxa mais que dobrou nesta faixa etária.
É urgente retomar e ampliar o programa de HIV, garantir orçamento, medicação e atendimento pelo SUS (que já foi modelo mundial). Além disso, é necessário retomar o debate nas escolas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional preconiza que se educa para a vida. Os pais não são donos dos seus filhos, são responsáveis por eles, junto ao estado e à sociedade (artigo 245 da Constituição Federal). Assuntos como Infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), sexualidade, profilaxia pré-exposição (prep) e profilaxia pós-exposição (pep) devem ser debatidos dentro das escolas. É um caso de saúde pública.
Precisamos de um “cumpra-se” para as leis que conquistamos, treinar delegados, orientar magistrados e cartórios, além de inserir o assunto na formação dos professores. Leis têm que ser assimiladas para, de fato, funcionarem.
O primeiro secretário de educação de Bolsonaro pediu demissão porque o governo proibiu filmes sobre a pauta. A cultura tem um papel tremendo para combater os preconceitos e transformar pensamentos. É fundamental um grande esforço para reconstruir o Ministério da Cultura (Minc), desaparelhar a Agência Nacional de Cinema (Ancine) e apoiar projetos que versem sobre o tema.
Outros temas atingem a população, a baixa empregabilidade, deixando-os totalmente vulneráveis. O governo precisa oferecer capacitação gratuita e inserção de pessoas transgêneras (transexuais, travestis, não binários) no mercado de trabalho da tecnologia, buscando ser uma ponte entre pessoas trans e empresas.
No recorte mais vulnerável das pessoas trans, percebemos que muitas estão em situação de vulnerabilidade porque não tinham conseguido terminar os estudos, e a prostituição acaba se tornando um mecanismo de geração de renda justamente pela baixa escolaridade. Estimativas apontam que 96% das trans que se prostituem dizem que a prostituição é a única forma de sustento.
Pesquisa realizada pelo partido Cidadania23, em parceria com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), realizada com mais de mil profissionais LGBT e heterossexuais no país, revela que metade dos que se declararam gays assumiram sua orientação sexual no ambiente de trabalho. Desse mesmo total, cerca de 35% alegaram terem sofrido algum tipo de discriminação sexual. Outros 25% decidiram não assumir a orientação sexual. Deste total, 32% optaram por não revelar sua orientação por receios de represálias.
Outro dado preocupante revela que 33% dos heterossexuais pesquisados afirmam ter presenciado algum tipo de discriminação com algum profissional LGBT no ambiente de trabalho. Deste total, 17% revelaram que o episódio teria ocorrido nos últimos seis meses anteriores à entrevista.
Outro estudo utilizado no artigo aponta que 82% dos entrevistados LGBT destacam a existência de um longo caminho para que as empresas os acolham melhor. Por outro lado, apenas 38% dos heterossexuais afirmam que colegas LGBTs se sentem devidamente acolhidos no trabalho.
Ao serem questionados sobre o atual governo, 64% dos entrevistados LGBT afirmaram que a atual gestão não se preocupa com a diversidade no Brasil. Além disso, para 67%, a promoção de igualdade entre gêneros é uma responsabilidade governamental. Em relação à homofobia, 76% dos pesquisados afirmaram que o Brasil é uma país homofóbico.
Dados do Instituto Ethos apontam que mulheres são pouco mais de 10% em posições de conselho – excluindo as herdeiras, o número é ainda menor. Pessoas negras, que é como 54% dos brasileiros se reconhecem (IBGE), não chegam a 5% dos cargos diretivos. Pessoas com deficiência ainda são contratadas sob uma perspectiva meramente legalista, de cumprimento da Lei de Cotas. Em relação a pessoas trans, quantas delas você já viu liderando grandes equipes?
Dos respondentes LGBT, apenas 13% afirmaram ocupar ou ter ocupado, anteriormente, um cargo de diretoria ou C-level. Outros 15% ocupavam ou ocupam cargos de coordenação e gestão, enquanto a grande parte (54%) representa cargos de entrada, isto é, analistas, assistentes ou estagiários.
Confira, a seguir, galeria:
Direito ao emprego é dignidade, sustento, e gera saúde mental. O próximo governo pode lutar por incentivos nas empresas e investir em campanhas publicitárias contra a discriminação, além de lutar contra essa disparidade
Pesquisas mostram que LGBTs são 8% dos moradores de rua. São graves a exclusão familiar e o desamparo. É fundamental criar abrigos preparados para esta população, pois, muitas vezes, idosos LGBTs têm que voltar para o armário, já que há muito preconceito em asilos e abrigos.
Voltando para a saúde, precisamos de médicos capacitados, que usem o nome social e tenham sensibilidade. Imagine uma mulher lésbica sendo examinada por um homem?
Temos muita luta pela frente e um total retrocesso para enfrentar. Precisamos cobrar do próximo governo um compromisso real e não sermos mais usados como moeda de barganha.
Sobre o autor
*Eliseu de Oliveira Neto é psicólogo, psicanalista, educador, membro da executiva do Cidadania, coordenador nacional do Diversidade23 e integrante da Aliança Nacional LGBTI.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de novembro/2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Folha de S. Paulo: Direitos são conquistas dos povos e comunidades tradicionais
É preciso integrar a política de conservação da natureza aos territórios de uso comum
VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)
No último dia 12 de abril, a Fundação Florestal (FF) e a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (Sima) do estado de São Paulo vieram a público manifestar seu respeito e apoio às comunidades tradicionais, em artigo publicado nesta Folha ("Manifesto sobre a Jureia").
No texto, são elencados o que chamam de “projetos e ações concretas” dos órgãos ambientais paulistas em prol das comunidades. Contudo, o tom de benevolência que paira sobre a lista de ações que teriam beneficiado as comunidades tradicionais se traduz, na verdade, na tentativa de manipulação de uma história de luta e conquistas dessas populações.
Promovem o apagamento da nossa história ao se apropriarem dessas árduas conquistas para autopromoção e, ainda, se utilizam delas para justificar as violências cometidas contra outras comunidades, como no caso das comunidades caiçaras e indígenas da Jureia. As “ações concretas” enumeradas no referido artigo não são dádivas, mas obrigações e deveres impostos a estes órgãos, em respeito a direitos historicamente conquistados pelos povos e comunidades tradicionais.
Foi a nossa mobilização e articulação política-comunitária em defesa da vida em nossos territórios ancestrais, da nossa cultura e dos nossos projetos de conservação socialmente justos que levou ao reconhecimento desses direitos e, ainda, que nos possibilita estar aqui hoje, novamente resistindo. Eis que essas violências e criminalizações por parte do Estado continuam sendo promovidas.
Enfrentamos gestores públicos e grandes ONGs ambientalistas que buscam efetivar formas de controle sobre os nossos territórios, invisibilizando ou enfraquecendo a presença de nossas comunidades, lutas travadas nas mais diversas esferas de debate, inclusive na esfera judicial e com apoio da Defensoria Pública do Estado e do Ministério Público Federal.
Por isso, reiteramos nosso apoio às famílias caiçaras da Jureia, detentoras de saberes ancestrais e de direitos territoriais ainda hoje negados pelos órgãos ambientais em uma política marcada pelo racismo ambiental. Sabemos que nossos direitos, saberes e práticas ancestrais, cada vez mais reconhecidos, inclusive cientificamente, como congregados em modos de vida que respeitam a conservação, são pedras no caminho de megaprojetos de governos associados à mercantilização da natureza por meio de concessão e privatização dos territórios em que vivemos.
Mesmo que as “dádivas” mencionadas constituíssem benefícios construídos com as comunidades, não caberia instrumentalizá-las como discurso para justificar a violência sistemática contra outras comunidades.
É preciso reconhecer a tradicionalidade da comunidade no território caiçara do Rio Verde e Grajaúna, já amplamente atestada em laudos antropológicos, e garantir seus direitos territoriais expressos, inclusive, na lei que cria o Mosaico de Unidades de Conservação Jureia-Itatins. Lá, como em muitos outros territórios, o que chamam de “mata virgem” é onde vivemos há séculos, comprovadamente.
Por fim, convocamos os órgãos ambientais a solucionarem os conflitos socioambientais históricos na mata atlântica, buscando construir projetos de conservação socialmente justos com as comunidades tradicionais. Rever as políticas ambientais caracterizadas pelo racismo ambiental exige escuta e diálogo com aqueles que foram e continuam sendo o objeto do preconceito e da discriminação. É preciso um novo paradigma que integre a política de conservação da natureza aos territórios de uso comum e aos modos de vida dos povos e comunidades tradicionais.
Adriana de Souza de Lima
Caiçara da Jureia e representante da Coordenação Nacional de Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC)
Rafaela Eduarda Miranda dos Santos
Quilombola da comunidade de Porto Velho e advogada na Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (Eaacone)
Tatiana Mendonça Cardoso
Caiçara representante da Comunidade da Enseada da Baleia, na Ilha do Cardoso, e integrante do Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira (FPCTVR)
Timóteo Karai Popyguá
Cacique da Tekoa Takuari e representante da Comissão Guarani Yvyrupá (CGY) Regional Vale do Ribeira
* Os autores integram o Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira