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Ricardo Noblat: Os fatos teimam em contrariar Bolsonaro e Pazuello

Pandemia avança apesar da brigada da cloroquina

Na Sessão Mentiras das quintas-feiras no Facebook, o presidente Jair Bolsonaro voltou a bater de frente com a verdade ao negar que o governo tivesse encomendado à Fundação Oswaldo Cruz a produção de comprimidos de cloroquina para uso contra a Covid-19. Segundo ele, a cloroquina seria empregada no tratamento de outras doenças como malária e lúpus.

Acontece que a Folha de S. Paulo e a TV Globo tiveram acesso a documentos do Ministério da Saúde, de 29 de junho e de 6 de outubro do ano passado, que mostram a encomenda de 4 milhões de comprimidos de cloroquina, e também de fosfato de oseltamivir (o Tamiflu) a serem distribuídos entre infectados pelo vírus. Não há comprovação científica de que tais remédios sejam eficazes.

“Está uma polêmica muito grande sobre hidroxicloroquina, fabricou a mais, gastou, era dinheiro do Covid, não era”, disse Bolsonaro. “Pessoal, tem a Covid, outras doenças continuam. Não é só ela. A malária continua. O lúpus continua. Nós temos aqui, em média, 200 mil casos de malária no Brasil. Muita gente na Amazônia toma”. Manobra diversionista desmentida pelos fatos.

Outro documento do Ministério da Saúde, este enviado ao Ministério Público Federal no dia 4 de fevereiro, aponta a distribuição de cloroquina produzida pela Fundação Oswaldo Cruz a pacientes com Covid-19, e não dentro do programa nacional de controle da malária, como originalmente previsto. Para sustentar uma mentira, o governo é obrigado a dizer outra, e outra, e outra…

No Facebook, Bolsonaro fica à vontade porque fala sozinho, e o que quer. Os que aparecem ao seu lado estão ali para lhe dar razão e reforçar sua palavra. Entrevistas coletivas ele só concede a grupos de jornalistas e a emissoras de rádio e de televisão que compartilham suas ideias ou que estão sempre dispostos a ajudá-los. Esse, por sinal, é o sonho de consumo de todo governante.

Infelizmente para o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, nem sempre ele dispõe de ambientes tão pacíficos. Como há número suficiente de assinaturas para a instalação de uma CPI no Senado sobre a pandemia, Bolsonaro mandou que ele fosse até lá se explicar. O general foi e pouco ou nada convenceu. Se não houver CPI, Bolsonaro deverá mais um favor ao Centrão.

A certa altura da sua exposição sobre os acertos do governo no combate à pandemia, Pazuello foi aparteado pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM) que reagiu sem disfarçar sua indignação:

– Senhor ministro, não está tudo bem, não está tudo certo e não foi feito tudo que poderia ser feito. Lá no início de dezembro, eu já dizia a vossa excelência que nós iríamos enfrentar uma onda no Amazonas muito grave. Lhe sugeri, inclusive, que assumisse uma unidade hospitalar no Amazonas diante da comprovação da ineficiência do governo do meu Estado quando da primeira onda.

Covardia de Bolsonaro expor seu ministro dessa maneira. Pazuello é especialista em logística militar. Teve a humildade de confessar que só soube o que é o Sistema Único de Saúde (SUS) depois de ter sentado na cadeira de ministro. E, uma vez ali, por melhores que sejam suas intenções, ele se ressente da falta de conhecimentos médicos e administrativos, e sua autonomia é quase nenhuma.

Fala o que os outros o orientam a falar – e, muitos dos que o orientam, são militares como ele, recém-chegados ao Ministério da Saúde. Profissionais da área técnica do ministério, os mais antigos e experientes, estão no freezer. Não são ouvidos pelo ministro e sua turma. E se tentam ser, acabam afastados ou simplesmente calados. Enquanto isso, a pandemia segue em frente.

Dos 5.570 municípios brasileiros, só 135 têm uma população maior do que o número de vidas perdidas para a Covid até agora, segundo a edição de ontem do Jornal Nacional. De quarta-feira dia 10 para a quinta-feira dia 11, foram registradas 1.452 mortes por Covid, o maior número desde 29 de julho. O Brasil tem 236.397 vítimas da Covid e quase 10 milhões de casos confirmados.


César Felício: As buscas por uma nova narrativa

Uma história que pare em pé é o que o mercado quer ouvir

As eleições de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco desviaram os olhos dos protagonistas do mercado para o lado direito da Praça dos Três Poderes: é sobre o presidente Jair Bolsonaro que recaem todas as atenções e é dele que se espera palavras e atitudes que mantenham o país dentro da canaleta cavada pela praça financeira.

Ou o ímpeto de agradar o mercado partirá de Bolsonaro, ou não haverá nada. É dura a vida: fica agora uma missão difícil para o Bolsonaro e o mercado. O primeiro terá a tarefa de ser um guardião da racionalidade econômica e o segundo precisará acreditar nisso.

Para gente que opera forte na Faria Lima, Lira e Pacheco só representam ganho em relação a Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre por serem menos conflitivos em relação ao presidente. Deixam, portanto, a pista livre para que Bolsonaro demonstre se tem algum compromisso com a agenda liberal e de reformas ou não. No tempo de Maia era admissível pensar em uma pauta reformista com o presidente jogando contra ou até atrapalhando, e a votação da emenda da Previdência mostrou isso. Com Lira essa hipótese é inconcebível.

O presidente ganhou pontos com a banca no fim do ano passado, quando deixou o auxílio morrer. Outros eram os tempos, porém. A popularidade de Bolsonaro estava em alta, a segunda onda da covid-19 ainda não tinha começado e a eleição das Mesas não estava definida.

É com o dedo no gatilho, portanto, que operadores assistem a discussão sobre a recriação do auxílio emergencial. A depender da condução do tema, pode ser desencadeada uma queda de confiança, com retirada de capitais, depreciação da moeda, baixa na Bolsa etc.

Aceita-se como um fato consumado a necessidade de se estabelecer uma ajuda temporária de R$ 200. É quase certo, contudo, que este valor vai subir quando chegar ao Parlamento. Ontem o presidente confirmou que a nova injeção de óleo canforado começa em março, dura “três ou quatro meses”, mas nada falou sobre o montante.

Aguarda-se com ansiedade que Bolsonaro compre a tese de negociar com o Congresso o estabelecimento de contrapartidas, que necessariamente serão impopulares. A PEC do Orçamento de guerra, com dispositivos de corte de gastos, pode entrar na estratégia em que o governo entrega à vista a despesa social, pagando o auxílio já, em troca de controle de gastos à prazo, com a aprovação de medidas legislativas.

Não é propriamente um ajuste, é uma sinalização, mas bastaria isso para segurar em um primeiro momento o descontrole das expectativas frustradas. Como disse um gestor de fundos, seria “uma historinha que para em pé”. O problema é não ter nem isso, e não se sente no Congresso Nacional garantia de que isso haverá. Aí agentes do mercado financeiro podem chegar à desagradável conclusão que Rodrigo Maia podia se estapear com os bolsonaristas, mas entregava mais para a banca. Lira é mais silencioso, porém pode ser menos efetivo.

Sergio Moro

O triste fim da Lava-Jato prenuncia a provável suspeição de Sergio Moro no STF e o restabelecimento da elegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Petista de longa data e ator privilegiado de toda voragem política que convulsionou o Brasil por uns anos, o ex-ministro da Justiça José Eduardo Martins Cardozo assiste de camarote.

“A estrutura de combate à corrupção não nasceu com a Lava-Jato e nem terminou com ela. Assim como seria ingenuidade achar que o abuso ao estado de direito começou e terminou ali”, comentou.

Cardozo foi ministro da Justiça entre 2011 e 2016. À frente da pasta, viu a Lava-Jato nascer e não interferiu em seu funcionamento. Dá a entender que não havia condições políticas para tal. “Se tivéssemos interferido na Polícia Federal como Bolsonaro fez no ano passado, teríamos apressado o processo de impeachment. Ficaria configurado o crime de responsabilidade”, afirmou. Naquele tempo, na visão de Cardozo, “ as abusividades tinham grande apelo popular”.

O avanço de Bolsonaro sobre a Polícia Federal foi possível, segundo o petista, porque se deu em uma circunstância de perda de expressão do Moro.

“A ida de Moro para o Ministério da Justiça foi o ponto inicial para se enxergar a politização da operação. Até então a presença dele na magistratura bloqueava essa percepção. O escândalo do vazamento das mensagens com os procuradores fez o desgaste avançar”. Ou seja, Moro já estava em plano inclinado quando entrou em colisão com o presidente. O artífice do vendaval que sacudiu o país teria plantado, assim, a semente da própria destruição.

Como a estrutura de combate à corrupção no Brasil não foi desarmada, na visão de Cardozo, Bolsonaro corre riscos em sua aliança com o Centrão. Não agora, mas em um futuro ainda remoto. “A história pode mostrar que há certas vitórias que são derrotas. Michel Temer se blindou no Congresso, mas não se livrou de problemas ao sair do cargo. Dilma Rousseff poderia ter problemas semelhantes se fizesse o mesmo. Há preços que não se podem pagar”, comentou.

Ele se refere, claramente, à barganha que o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, buscou estabelecer em dezembro de 2015. Se Dilma e o PT o apoiassem no Conselho de Ética, onde enfrentava um processo de cassação do mandato decorrente das revelações da Lava-Jato, Cunha engavetaria o pedido de impeachment. “O governo teria sido preservado, mas a que custo? A um custo que cobraria sua fatura mais adiante”.

Cardozo hoje se dedica apenas à advocacia, mas opina sobre 2022. Afirma que nunca esteve tão afastado da vida partidária como agora, desde que se tornou secretário municipal de governo, na gestão Erundina, aos 27 anos. “O que o PT quer é a candidatura do Lula, isso é o ideal. Porque representa um resgate histórico. Não há como fugir dele”.


Luiz Carlos Azedo: Falta de vacina agrava a crise

No Senado, Pazuello prometeu que 50% da população estará vacinada até junho e mais 50% até dezembro, mas não disse como. O depoimento do general foi sofrível

A campanha nacional de vacinação deveria se chamar operação vaga-lume, porque não tem vacinas suficientes para imunizar a população de forma contínua, no ritmo necessário para conter a segunda onda da pandemia. Há três semanas, ultrapassamos mais de mil mortes por dia; nos últimos sete dias, em média, foram 1.050 mortos. Entre eles, o senador José Maranhão (MDB-PB), de 87 anos, que estava internado no Hospital Vila Nova Star, em São Paulo, e lutou 71 dias contra a doença. O Brasil já ultrapassa a marca dos 9,6 milhões de casos e 235 mil mortes por covid-19.

Ontem, registramos 1.452 mortes em 24 horas, nível equivalente ao auge da crise no ano passado, em julho. Foi nesse contexto que o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, prestou depoimento ao Senado, tentando se explicar sobre suas trapalhadas à frente da pasta, principalmente no caso do colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus, por falta de oxigênio, e do atraso na aquisição de vacinas, que, agora, estão fazendo falta na campanha de vacinação. O SUS tem condições de vacinar até 10 milhões de pessoas por dia, por meio de uma grande rede de postos de vacinação e equipes veteranas em campanhas de imunização.

Apenas 4,3 milhões de brasileiros foram vacinados até agora, a maioria, o pessoal da linha de frente do combate ao novo coronavírus e os mais idosos, sendo que 80 mil já receberam a segunda dose. Isso representa apenas 2,4% da população, muito pouco diante da necessidade de vacinar até 70% dos brasileiros para conseguir eliminar a propagação do vírus, o que corresponderia a 146 milhões de pessoas. Por falta de insumos, a produção de vacinas pelo Butantan e pela Fiocruz está numa escala muito baixa e até intermitente, o que acaba desorganizando a vacinação que já estava programada em diversos municípios, por falta de imunizantes. A importação de vacinas prontas e a liberação do imunizante russo Sputnik V, produzido aqui no Brasil por um laboratório privado, continuam a mesma novela.

No Senado, Pazuello prometeu que 50% da população estará vacinada até junho e mais 50% até dezembro, mas não disse como. O depoimento do general foi sofrível, com informações erradas, afirmações não comprovadas e promessas sem amparo objetivo. O esforço dos aliados do governo no Senado para evitar a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Saúde pode fracassar por causa do desempenho de Pazuello. Por mais boa vontade que tenha o novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), será muito difícil não instalar a comissão, a não ser que o governo consiga convencer pelo menos quatro dos 31 senadores que assinaram o requerimento a desistirem da CPI.

A CPI da Saúde é uma saia justa para o senador Rodrigo Pacheco. O líder da bancada do MDB, Eduardo Braga (AM), que foi governador do Amazonas, fez duros questionamentos a Pazuello. Disse que alertou o ministro da Saúde pessoalmente, em dezembro, sobre o risco de colapso em Manaus. A morte de senador José Maranhão, que tinha amplo trânsito entre os colegas, aumentou ainda mais o trauma. Pacheco tenta evitar a CPI, mas é cobrado pela oposição, que também o apoiou na eleição, como é o caso do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), autor do requerimento de CPI.

Auxílio
Diante da crise sanitária, o presidente Jair Bolsonaro anunciou, ontem, que pretende prorrogar o auxílio emergencial por mais três ou quatro meses, para mitigar o impacto da pandemia. A falta de vacinas fará com que a crise sanitária se arraste o ano todo, com forte impacto nas atividades econômicas, em decorrência do desemprego e da recessão. Por essa razão, Bolsonaro deseja conceder o abono. Ao contrário do que aconteceu no ano passado, quando sua aprovação popular aumentou, por causa do abono, em janeiro, com o fim do auxílio emergencial, a popularidade dele decaiu.

Ontem, o presidente da República anunciou que pretende prorrogá-lo, provavelmente, com parcelas de R$ 200, mas precisa encontrar uma fonte de receita para não estourar o teto de gastos. Por ora, não há recursos no Orçamento. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já cobrou uma definição do governo. O Centrão e a oposição querem aprovar o abono, mas não a criação de um imposto. Preferem, se for o caso, furar o teto de gastos, porém, a equipe econômica não aceita. O governo também não enxuga seus gastos na Esplanada dos Ministérios.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-falta-de-vacina-agrava-a-crise/

Alon Feuerwerker: Governos têm de funcionar

É preciso mostrar serviço. Quem fala de esperança é a oposição

Passada a eleição municipal e empossados os escolhidos, começa a corrida pela vaga de Jair Bolsonaro. Competição da qual participa o próprio, muito disposto a suceder a ele mesmo. As municipais são nossas “mid­term”. Nos Estados Unidos, elas elegem todos os deputados, uma parte dos senadores e dos governadores. Aqui, todos os prefeitos e vereadores. O ponto médio do período de quatro anos é a largada para a eleição seguinte.

O universo da política gira sempre em torno de eleições. Daí haver certa ingenuidade (ou malandragem) quando se diz ao governante, nos diversos níveis, “desça do palanque e governe”. Mais honesto seria admi­tir: quem desce do palanque está arriscado a enfraquecer-se. Pior. Dada a quase impossibilidade, aqui, de o eleito trazer com ele a maioria parlamentar, se descer do palanque, aumenta o risco de ser derrubado.

Quem desce do palanque não governa, ou enfrenta imensas dificuldades, inclusive porque a periodicidade e a assiduidade das eleições exigem o reabastecimento permanente e atento da expectativa de poder, o que pede ao político alimentar uma projeção de futuro. Isso é mais fácil para quem está na oposição. Pois a pergunta “se está dizendo que vai fazer, por que não fez ainda?” vive exposta na prateleira do supermercado mercadológico eleitoral.

É sempre possível, claro, dizer que não fez ainda porque não deu tempo, porque pegou a situação com muitos problemas e precisa de mais quatro anos para completar a obra. Para esse discurso colar, depende de algumas coisas, duas delas muito importantes: a vida dos eleitores estar algo confortável e haver operadores eficientes empenhados na construção da narrativa “as alternativas não são boas, com elas a coisa poderia estar muito pior”.

Mas, regra geral, quem carrega a tocha da esperança é a oposição, então o governo precisa estar sempre mostrando serviço e com uma defesa bem articulada. Para fazer do presente a ponte da esperança de um futuro mais bonito. No caso de agora, Bolsonaro precisa, em 2021, mostrar serviço nas suas duas frentes principais: a vacinação e o suporte econômico aos mais vulneráveis na pandemia. Sem isso, será alvo fácil em 2022.

Todos dizem que é provável termos vacinas em grande quantidade a partir ainda deste semestre, e que isso é certo para o próximo. Se acontecer, colaborará para “retomar a retomada” econômica (até o governo já prevê retração neste começo de ano). O que pode fazer o povo chegar à eleição com um certo alívio. Se a turma estiver vacinada e a economia crescendo, o candidato a continuar terá credibilidade para falar de um futuro melhor.

Também por isso a vitória de Arthur Lira (PP-AL) foi tão estratégica. Permite a Bolsonaro atravessar esses meses mais delicados sem estar ameaçado pela guilhotina do impeachment. Se desse Baleia Rossi (MDB-SP), apesar de todas as declarações apaziguadoras, já se estaria armando o cadafalso habitual no Brasil. Mas, vamos repetir, o governo precisa funcionar. Nada, ou quase nada (na política o “quase” é importante), pode substituir isso.

Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725


Murillo de Aragão: O papel histórico dos “centrões”

Moderados evitam a ruptura institucional e possibilitam reformas

Amaral Peixoto dizia que as grandes questões institucionais no Brasil tinham sempre o centro político como protagonista. Isso porque aglutinava os moderados da direita e da esquerda para evitar rupturas institucionais graves, para promover avanços. Ou, até mesmo, patrocinar tais rupturas, como no caso do movimento de 1964.

Nos anos 80, no fim do regime militar, o centro político se organizou tanto com os moderados de direita do PDS quanto com os moderados de esquerda do PMDB para conduzir a transição política. Na Assembleia Nacional Constituinte, novamente o centro político reapareceu, minimizando a esquerdização radical proposta pelos setores ditos progressistas.

Na época do Plano Real, os moderados de esquerda do PSDB-­PMDB e o PFL se organizaram para aprovar o plano que eliminou a hiperinflação no país e deu início a um período de intensas reformas. Vale lembrar que o PSDB fora formado, anos antes, pela esquerda do PMDB. Adiante, Lula ganhou a eleição em 2002 quando se movimentou para o centro. Trouxe o empresário José de Alencar para sua chapa e lançou a Carta aos Brasileiros, em que se comprometia a não fazer loucuras na economia.

O governo de Lula foi um sucesso quando marchou da esquerda para o centro, buscou apoio na centro-direita e superou graves crises. Quando elegeu Dilma Rousseff, Lula deixou a fórmula pronta: narrativas de esquerda e gestão centrista. Porém, encantada com a própria mediocridade, ela abandonou o centrismo, encalhou e sofreu o impeachment. Com Michel Temer, o centro se organizou com a direita e reiniciou um processo magnífico de reformas que até hoje ainda dá frutos.

Jair Bolsonaro, aproveitando a destruição da política pelo lavajatismo, chegou ao poder propondo uma nova política que nunca — sequer — conseguiu desenhar. Em março de 2020 passou a construir o seu “novo-­velho” presidencialismo de coalizão, conversando com partidos de centro e dando espaço a políticos em seu governo.

O centro político brasileiro é identificado pela mídia, de forma preconceituosa e errada, como “Centrão”. Como se existisse um Centrão que comandasse de forma harmoniosa os movimentos políticos. O Centrão, como imaginado, é uma ficção, já que se trata de grupos que se juntam e se separam de acordo com as circunstâncias. O rótulo de Centrão vem dos tempos da Constituinte, como forma de sugerir que os grupos que os integram eram “retrógrados” e — pecado supremo — “conservadores”. E, quase sempre, clientelistas, fisiológicos e corruptos. A Lava-Jato provaria que o fisiologismo, o clientelismo, o patrimonialismo e a corrupção não são exclusivos dos que integram o centro político do Brasil.

Com virtudes e defeitos, as forças de centros — quando unidas — formam vetores de reformas importantes. O ano que se inicia apresenta uma agenda espetacular de potenciais avanços, que vão exigir dos integrantes do centro político responsabilidade que está além dos interesses paroquiais, partidários e eleitorais, com vistas aos avanços institucionais de que necessitamos para sair da crise da pandemia.

Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725


El País: Bolsonaro busca patrocinadores para 63 milhões de hectares da Amazônia

Governo quer que empresas e pessoas físicas do Brasil e do exterior doem dinheiro para preservar reservas naturais. Ambientalistas consideram a iniciativa como meramente propagandística

Naiara Galarrafa Gortázar, El País

Governo brasileiro quer que empresas, fundos de investimento e pessoas físicas, tanto do Brasil como dos outros países, contribuam com dinheiro para preservar a Amazônia. Para isso, lançou na terça-feira uma iniciativa em busca de patrocinadores para as 120 reservas naturais criadas nas últimas décadas, abrangendo 15% da superfície da maior floresta tropical do mundo em território brasileiro. São 63 milhões de hectares. O programa Adote um Parque ―nome que subestima a exuberância, a extensão e o valor ecológico dessas áreas, que somadas têm o tamanho da França— foi apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro em Brasília. Os ambientalistas o consideram uma iniciativa meramente propagandística.

O Brasil sente cada vez mais a pressão política e comercial pela política de seu Governo para a Amazônia, pressão à qual os EUA de Joe Biden devem somar-se agora. A iniciativa está aberta a patrocinadores estrangeiros, embora, para Bolsonaro e boa parte dos brasileiros, o interesse externo no território amazônico esconda ameaças à sua soberania. O preço difere. Os brasileiros podem adotar uma reserva ecológica por 50 reais (8 euros, 9 dólares) por hectare; os estrangeiros, por 10 euros (65 reais).

Por enquanto, a primeira, e única empresa que aceitou participar é a rede francesa de supermercados Carrefour. O presidente francês, Emmanuel Macron, é precisamente o mandatário que criticou mais duramente nos últimos dois anos o Governo de Bolsonaro por seu desinteresse em preservar a Amazônia, pelo crescimento do desmatamento a níveis recordes e pelo aumento das queimadas. O ultradireitista, que em campanha criminalizou as ONGs e prometeu priorizar o desenvolvimento econômico da Amazônia sobre sua preservação, referiu-se à coincidência: “O que podemos falar para aqueles que nos criticam é o seguinte: ‘Olha, não temos condições, por questões econômicas, de atender nessa área. Venham nos ajudar. E uma empresa francesa foi a primeira que apareceu”.

O Carrefour precisa melhorar sua reputação no Brasil depois que, em novembro, dois de seus seguranças, brancos, espancaram até a morte um cliente negro às portas de um de seus supermercados. A multinacional planeja, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, formalizar a adoção da reserva de Lago do Cuniã, de 75.000 hectares, localizada em Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Esse território, do tamanho de Caracas, tem um estatuto legal que permite a extração controlada de madeira ou a agricultura de subsistência. Outras cinco empresas negociam patrocínios, disse o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, à agência Bloomberg.

A gestão das reservas ―denominadas unidades de conservação― continuará nas mãos de organismos ambientais governamentais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e o Instituto Chico Mendes (ICMBio, concentrado em preservar a biodiversidade). As ONGs e os ativistas ambientais sustentam que seria muito mais eficaz parar de erodir sistematicamente a capacidade dessas instituições. Em um comunicado, o Greenpeace acusou o Governo Bolsonaro de promover “uma nova ação midiática para limpar sua imagem” enquanto “continua destruindo os instrumentos que protegem as unidades de conservação, desmantelando o ICMBio, militarizando suas estruturas e impondo significativos cortes orçamentários”.

Ao Carrefour e a outras empresas que possam estar interessadas, a gestora florestal e ativista Cristiane Mazzeti pediu em um tuíte que parem de usar o meio ambiente para limpar sua reputação e “se apressem em cumprir suas promessas de desmatamento zero”.

As tensões internas no Gabinete de Bolsonaro ficaram expostas também na apresentação do Adote um Parque. O principal interlocutor de diplomatas e fundos de investimento preocupados com a política ambiental do Governo é, desde a crise das queimadas de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão, que não participou da cerimônia, à qual compareceu o ministro Salles. O titular do Meio Ambiente disse abertamente em uma reunião de ministros que iria aproveitar que a pandemia estava atraindo toda a atenção da mídia para aprovar leis que enfraquecessem a fiscalização ambiental e trouxessem facilidades para o agronegócio.

O Governo Bolsonaro verbalizou pela primeira vez a ideia de buscar patrocinadores para a preservação da Amazônia em plena discussão pública com o ator americano Leonardo DiCaprio em 2019, quando as queimadas devoraram milhares de hectares na Amazônia.


Alon Feuerwerker: As fichas vão caindo

E o governo federal vai continuar ajudando as prefeituras em 2021, o segundo ano da pandemia da Covid-19. Foi o que disse hoje o presidente da República (leia). Tem lógica. A doença leva todo o jeito de querer atravessar o ano. A vacina certamente vai ajudar a mitigar, mas é bom ir se habituando à convivência com o vírus até pelo menos 2022.

Outra ficha que já caiu foi a da necessidade de prorrogar o auxílio emergencial, tanto faz se com outro nome, e ainda que falte decidir o valor exato. Os fatos são teimosos. O comércio teve em dezembro a maior retração em duas décadas, mesmo que no acumulado do ano tenha mostrado um pequeno avanço sobre 2019 (leia). Mas o dezembro ruim é prenúncio de números complicados neste começo de 2021.

E chegamos às duas conclusões inescapáveis. A Covid-19 não irá embora tão cedo e o poder público precisará endividar-se para ajudar as pessoas, as famílias e as empresas. E tem uma terceira. Começa a balançar o teto de gastos, previsto para um período de normalidade (ainda que prever 20 anos de normalidade no Brasil tenha sido ousado) e agora confrontado com a vida real.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Adriana Fernandes: Depois do carnaval

Tempo que se perde rodando em círculos significa mais gente passando necessidade em todo País

O recuo de 6,1% das vendas do varejo de novembro para dezembro surpreendeu negativamente e mostrou que a segunda perna da retomada em V da economia está cambaleando. Um carimbo a mais para sinalizar a perspectiva pior para a economia no primeiro trimestre deste ano.

A razão do aumento da pressão pelo retorno auxílio emergencial deriva muito mais desse diagnóstico econômico do que uma preocupação genuína dos parlamentares com a situação de pobreza e dificuldade que passam milhões de brasileiros sem trabalho e renda nessa segunda onda da pandemia, com cepas mais perigosas do vírus, lentidão da vacinação e média móvel de mortes acima de mil pelo 21.º dia seguido.

Fosse o contrário, governo e parlamentares já teriam corrido para dar uma solução para o problema muito antes de o auxílio emergencial acabar. Era tudo previsível. Agora, a solução ficou para depois do carnaval, mesmo após dez dias do resultado das eleições do Congresso. Esse tempo que se perde rodando em círculos significa gente passando necessidade.

Boa parte da pressão a alimentar a movimentação dessa semana pró-auxílio vem de deputados, prefeitos e governadores aliados desesperados por uma injeção de estímulo para a economia. Isso fez o presidente Jair Bolsonaro tirar a fantasia antes mesmo de o carnaval começar e dizer que a medida é para ontem (até então ele se mostrava contrário à prorrogação). O dinheiro do auxílio que foi direto para o consumo sustentou a arrecadação e, agora, a sua redução, a partir do fim do ano, mostra forte impacto econômico.

Todos os políticos que correm agora para defender a urgência do auxílio (parlamentares e administradores públicos de todos os Poderes) deveriam estar preocupados também em reforçar o planejamento das restrições de isolamento para barrar o avanço da covid-19.

Até agora, infelizmente, toda a discussão em torno da prorrogação do auxílio está desconectada de medidas restritivas. Elas só acontecem nos locais quando a situação de colapso e caos se instalou. E mesmo assim meia-boca.

Sem essa conexão, o auxílio, mesmo que necessário e urgente, se revela tão somente como uma medida de transferência de renda aos pobres, que já podia ter sido desenhada desde o ano passado e aprovada pelo Congresso. 

Por que não aproveitar as negociações da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de orçamento de guerra, que o ministro Paulo Guedes exige para dar o auxílio, para cobrar dos prefeitos algum tipo de compromisso nessa direção? 

Se Bolsonaro é contra, o Congresso poderia assumir essa campanha e responsabilidade. A vacinação deu esperança, mas é lenta e tem servido para mais afrouxamento do já escasso isolamento social. Um plano desse tipo resultaria em menos mortes e, com certeza, em menor custo para o governo. Na Alemanha, o governo anunciou que prorrogará o lockdown em vigor até o dia 7 de março. Um acordo fechado entre a chanceler Angela Merkel e os governadores já prevendo de antemão flexibilizações. Aqui no Brasil, seguimos nesse rastro de insensatez. Até locais com restrições mais sérias, como Belo Horizonte, já flexibilizaram.

Por enquanto, é certo que muitos daqueles que nada fizeram para ampliar o nível de isolamento da população vão bater na porta do Tesouro para pedir mais estímulos. Não vai parar no auxílio. Estão sendo cobradas também a retomada do programa de estímulo ao emprego (BEm), mais crédito subsidiado, suspensão de pagamento de impostos...

O ministro Guedes tem tentado segurar a pressão com medidas de antecipação de recursos, com a antecipação do abono salarial, que injetam recursos na economia. É pouco, mas tenta ganhar tempo.

Depois do auxílio, que já está dado, a queda de braço de fato com o Congresso é que vai começar. O Centrão virá com tudo para cima de Guedes. A votação acachapante do projeto de autonomia do Banco Central mostrou força, mas tem seu preço.

A aprovação da PEC de orçamento de guerra para dar o auxílio é inescapável e vai abrir a porta para mais pedidos de estímulos. O que sabemos de antemão é que a PEC vai ficar só na liberação das regras fiscais para gastar mais fora do teto de gastos. As medidas compensatórias cobradas por Guedes e Roberto Campos Neto, do BC, não vão rolar.


José Serra: Haverá futuro sem o SUS?

O momento exige iniciativas que melhorem a qualidade e eficiência das políticas de saúde

Em agosto do ano passado o Estado publicou três editoriais sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), a única tábua de salvação ao alcance da maioria da população brasileira diante da ameaça da pandemia de covid-19. Mais recentemente, em 8 de dezembro, o jornal voltou à carga, citando uma pesquisa de orçamento familiar do IBGE segundo a qual quase dois terços dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS.

Não é nada trivial que um jornal de porte nacional e com o prestígio do Estado dedique sua principal plataforma de opinião a dar destaque ao mesmo tema. Tampouco é trivial um veículo com firme tradição de apoio às políticas de austeridade fiscal empenhar-se em defender o financiamento de uma rede estatal que compete com a rede privada. Pode-se constatar, nas opiniões defendidas nesses editoriais, um pragmatismo que lembra a frase de Deng Xiaoping sobre ideologia e vida real: não importa a cor do gato desde que ele cace o rato.

Até hoje o rato continua personificando a peste, mas o desafio sanitário enfrentado pelos brasileiros é de outra ordem, não se reduz ao vírus, pois afeta, além da saúde, a economia, a organização social e o desenvolvimento humano de toda uma Nação.

O SUS é “seguramente uma das maiores conquistas civilizatórias da sociedade (brasileira) no século passado”, porque retira o sistema de saúde do País da lógica de mercado e o torna direito fundamental. Um direito que em nenhum país do mundo o sistema privado foi capaz de garantir.

De que modo um país com dimensões continentais e em plena retração econômica, em meio a uma crise política de dimensões graves, poderia oferecer um sistema de saúde universal e gratuito que fosse também de qualidade?

Outras duas perguntas estão estampadas no título deste artigo: haveria futuro sem o SUS? O que resultará do teste de estresse a que o SUS está sendo submetido pelas demandas extraordinárias, para as quais teve de improvisar em grande parte, e pelas inseguranças de uma gestão submetida a seguidas mudanças de ministro, em plena crise de confiança e de visões opostas sobre o valor da vida, do conhecimento e da ação governamental?

Tomo a liberdade de tentar responder, escorado em minha experiência de atividade pública na área de saúde, em que me orgulho de ter contribuído para a consolidação do SUS, seja em termos regulatórios e financeiros, seja expandindo sua atuação em tratamentos de doenças específicas, acesso a medicamentos e equipamentos de alta complexidade. Vejo que há dois caminhos para isso, a via legislativa e a das políticas estratégicas.

O momento exige maior sensibilidade do Congresso para iniciativas que melhorem a qualidade e a eficiência das políticas de saúde. Há bons projetos de lei em pleno andamento, como o que autoriza a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a adotar termos de ajuste de conduta como alternativa a penalidades a serem aplicadas pela infringência de normas a responsáveis pela produção e comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária. Isso permitiria corrigir os problemas sem recorrer a custosos procedimentos legais, economizando tempo para a agência e incentivando a melhoria do serviço prestado em hospitais, comércio de medicamentos e outros.

Outro exemplo é o projeto de lei que impede a concessão de patentes sem anuência prévia da Anvisa, mediante comprovação de que os medicamentos não prejudicam a saúde pública nem comprometem a sustentabilidade das políticas de acesso a medicamentos estratégicos no âmbito do SUS.

Quanto às políticas estratégicas, o combate à pandemia de covid-19 é um caso exemplar de consolidação de qualidade, economicidade e eficiência do SUS. As autoridades brasileiras tinham de antemão condições favoráveis para combater a pandemia, destacando-se a de dispor de um sistema de saúde de alcance universal, gratuito, cobrindo desde o atendimento médico, do mais simples ao mais complexo, até o desenvolvimento de pesquisa e a distribuição gratuita de medicamentos essenciais. E que acumulou ao longo de décadas uma bem-sucedida experiência de campanhas nacionais de vacinação.

Porém essas vantagens de nossa gestão da saúde pública não se converteram automaticamente em mecanismo capaz de planejar e gerir uma máquina de guerra de combate a um desastre das proporções da pandemia de covid-19. A começar por planejamento estratégico, elaboração de políticas, implementação de gestão da crise provocada pela pandemia, que vai muito além de seus aspectos sanitários. Por falta de planejamento e de senso estratégico, o Ministério da Saúde deixou que a má condução da gestão orçamentária, em pleno novo surto de covid-19, levasse o SUS a reduzir drasticamente a disponibilidade de UTIs e de equipamentos de ventilação, alegando falta de verbas.

Enquanto isso, o governo federal, com a outra mão, promete renunciar a receita tributária para benefício de um grupo de seus aliados. Falta de planejamento, incompetência da gestão orçamentária ou prevaricação pura e simples?

*Senador (PSDB-SP)


O Estado de S. Paulo: 'Já sou contra privatizar Eletrobrás pelo custo ao governo, melhor vender a Caixa', diz Elena Landau

Economista critica a insistência do governo em atropelar o Congresso e propor uma Medida Provisória para vender as ações da companhia no mercado; segundo ela, privatização perdeu a importância e se tornou 'mero simbolismo'

Anne Warth, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O governo vai acabar tendo que pagar para privatizar a Eletrobrás, diz a economista Elena Landau. Ex-diretora da área de privatizações do BNDES durante o governo Fernando Henrique Cardoso e colunista do Estadão, Landau critica a insistência do governo em propor, mais uma vez, uma Medida Provisória para capitalizar (vender ações no mercado) a companhia. Para ela, será uma tentativa de atropelar o Congresso, já usada no passado sem sucesso, e que vai trazer mais insegurança jurídica ao processo, já que a tendência é que o texto caduque antes de ser aprovado.

Landau afirma ainda que a privatização da Eletrobrás perdeu relevância e se tornou mero simbolismo. “O setor elétrico anda bem sem a Eletrobrás, e o governo vai acabar pagando para privatizar. Eu já sou contra a privatização nesses termos. Isso não me mobiliza mais”, afirmou, ao Estadão/Broadcast. Confira os principais trechos.

O que a sra. achou da ideia do governo de enviar, novamente, uma Medida Provisória para privatizar a Eletrobrás?

Qualquer proposta dentro do programa de privatizações demanda enorme segurança jurídica e aceitação por parte dos investidores e do mundo político. Não pode ser feito por MP, que só tem força de lei enquanto não caducou, e depois que caduca, perde validade e cria uma enorme insegurança jurídica. Se for para simplesmente repetir o que já está no projeto de lei que enviaram ao Congresso, que respeitem e não atropelem o Congresso Nacional. Não podem mandar MP para cortar o caminho. E se for para autorizar a contratação de estudos para a privatização, cai no requisito da inconstitucionalidade, pois uma MP dessa natureza não teria nem urgência, nem relevância. Não tem sentido nenhum. Isso já foi tentado no governo Temer e a MP 814 caducou. Todo mundo viu que ia dar errado e mandaram um projeto de lei. Estão repetindo o erro. Ainda que fosse aprovado, daria uma rigidez muito grande ao processo todo. Se precisasse mudar qualquer item da lei, teria que voltar ao Congresso para ajustar. O projeto de lei deve ser votado apenas depois dos estudos e ter apenas aquilo que realmente precisa de lei, como a descotização. Mas aí dá pra fazer uma lei apenas sobre descotização.

O governo considera que precisa dar uma sinalização positiva ao mercado com a renúncia de Wilson Ferreira Jr. A sra. considera que a MP seria esse sinal?

Não sei como o mercado comprou, em algum momento, que a privatização da Eletrobras iria andar no governo Bolsonaro. No governo Temer até tudo bem, porque privatizaram sete distribuidoras e era uma gestão com agenda claramente liberal e reformista. Era crível acreditar na privatização da Eletrobrás no governo Temer, mas no governo Bolsonaro não tem abertura comercial, não tem reforma administrativa. Como vão acreditar na privatização da Eletrobrás? Por isso a saída de Ferreira Jr é tão significativa, porque era o único empenhado na privatização. A MP é uma resposta atabalhoada a isso.

Na sua opinião, qual seria a melhor alternativa para privatizar a Eletrobrás?

Recuar completamente e fazer um único pedido ao Congresso, que é a revogação do trecho do artigo 31 da Lei 10.848, do governo Lula, que excluiu a Eletrobrás e suas subsidiárias do Programa Nacional de Desestatização (PND). Sou a favor de retomar as privatizações como sempre foi feito. Nesse caso, a ordem dos fatores altera o produto. Definir a modelagem antes da autorização de venda é um erro. Entrega ao Congresso uma competência que é do Executivo, quando o Legislativo não tem estrutura técnica para isso. Politicamente é um erro, você precisa começar o jogo da negociação política com uma série de supostos ganhos, como redução das tarifas, dinheiro para o Norte e o São Francisco, e o Congresso sempre vai pedir mais. Não é mais fácil rever todos os encargos setoriais e subsídios para carvão, fontes renováveis, agronegócio, em vez de abater esse custo das tarifas com outorga? Quem definiu o valor que irá para o São Francisco? É preciso um estudo muito detalhado sobre o valor da outorga (quanto a União receberá na operação), incluindo a questão de Tucuruí. É uma questão técnica, não política.

Como a sra. vê a questão da capitalização?

A capitalização foi decidida em 2018, mas dentro das circunstâncias da Consulta Pública 33, para evitar que a Eletrobrás ficassem de fora e perdesse a oportunidade de descotizar a energia de suas usinas (ou seja, vender a energia a preço de mercado). A partir disso, aproveitando a capitalização, daria para diluir a participação da União na empresa. Veio o projeto de lei e o tempo foi passando. O bônus de outorga contribuiria para o resultado primário de 2018, mas essas circunstâncias fiscais hoje são muito diferentes. Em três anos, poderiam ter feito estudos paralelos de forma a maximizar o retorno ao Tesouro, para avaliar os modelos possíveis, as memórias de cálculo e a outorga. Falta transparência nesse processo, que é algo fundamental no programa de privatizações e no serviço público. E ainda tem a questão de Tucuruí (uma das maiores hidrelétricas da Eletronorte, cuja concessão vence em 2024), que era um futuro longínquo em 2018 e agora está próximo demais para ser ignorado.

Onde estão as resistências à privatização da Eletrobras?

Hoje, na área política, estão concentradas no presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), por causa de Furnas, e na bancada do Norte, nos senadores Eduardo Braga (MDB-AM) e Davi Alcolumbre (DEM-AP). Mas há as resistências de sempre, como os fornecedores, que sempre cobram sobrepreço para vender para a União e usam muitas vezes práticas não republicanas, dos empregados e das corporações.

Como vender a ideia da privatização e vencer a resistência da sociedade?

O discurso da privatização precisa mostrar os benefícios desse processo. A privatização da Gerasul, hoje Engie, mostra o potencial de uma empresa que sai da gestão pública, sem amarras de compras, crédito e recursos humanos. Ela era um pedaço da Eletrobrás e já chegou a valer mais do que a Eletrobrás. A melhor peça a favor da privatização desse governo foi o estudo sobre salários e privilégios das estatais. Vender estatal com o discurso fiscal é muito ruim, ainda mais depois do déficit por causa da covid-19. Os críticos vão fazer uma conta de padaria e dizer que entrará R$ 15 bilhões quando o buraco é muito maior. Além disso, depois da capitalização bilionária que fizeram na Emgepron (estatal militar), o discurso fiscal ficou muito fragilizado. 

Com tantas críticas ao processo, a senhora ainda é a favor da privatização da Eletrobrás?

Para mim, a privatização da Eletrobrás se tornou uma questão de simbolismo, porque não tem mais relevância. O setor elétrico anda bem sem a Eletrobrás. O governo vai acabar pagando para privatizar. Eu já sou contra. Não me mobiliza mais.  Em 2011, a Eletrobrás tinha 34% da geração, hoje tem 30% e em 2024 terá 24%; na transmissão, era 52% em 2011, hoje é 45% e em 2024 será 39%. A empresa não investe mais, está minguando, e os maiores interessados em reverter esse processo deveriam ser os funcionários, pois o investimento se tornou uma questão de sobrevivência para a empresa.

Se a Eletrobrás fica de fora, qual sua lista prioritária de privatizações?

Estou muito mais focada no simbolismo de vender ValecEBCTelebrás, fazer um pente-fino nas empresas dependentes do Tesouro Nacional, ver qual delas se justifica além da Embrapa. Cadê as escolas com banda larga da Telebrás? Para que serve a Valec? A EBC se tornou a TV Bolsonaro e agora compra novela do bispo Edir Macedo, que é um aliado. Se for para comprar novela, comprem da Globo porque é muito melhor. Estou muito mais interessada em vender a Caixa e acabar com o populismo do presidente Pedro Guimarães, que usou o banco para avançar no mercado das fintechs, abrindo agência quando todo mundo está fechando, um cara supostamente liberal fazendo o uso mais populista possível de um banco público. O estrago que a Caixa faz no setor bancário é muito maior que o da Eletrobrás no setor de energia. 

O governo diz que a mudança no comando da Câmara vai fazer a privatização andar. A sra. acredita nisso?

O próprio ministro Bento Albuquerque já falou que a privatização ficará para 2022. Fazer privatização no meio de uma campanha presidencial, com o presidente contra, eu nunca vi. Já vi em 1998, mas Fernando Henrique e todo o governo eram a favor. Alguém acha que Bolsonaro vai apoiar? Só se for em fevereiro, com o Congresso distraído e tudo aprovado em 2021. De qualquer forma, com a mudança no comando da Câmara, a desculpa de jogar a culpa no Rodrigo Maia (DEM-RJ) caiu. Perdemos uma Câmara reformista, Maia era um aliado da agenda liberal. Alguém acha que o PP de Arthur Lira (AL) é a favor? 

Mas as resistências à agenda de privatizações vão além do Congresso?

Não precisa atravessar a Esplanada dos Ministérios para encontrar inimigos da privatização. Eles estão na própria Esplanada. Valec, Ceitec, EBC, todas as estatais militares. Os ministros que comandam essas empresas são os inimigos. O governo se especializou em jogar a culpa nos outros. Bolsonaro ainda é o mais consciente deles, é um mentiroso contumaz, mitômano, que fala com uma seita que acredita em tudo que ele fala e para o resto distribui cargos. Já o ministro Paulo Guedes vive numa realidade paralela, cria e acredita. O mágico não pode acreditar na mágica. Bolsonaro não é maluco, maluco é quem acredita nele. Vai fazer o que quiser e pegou Guedes para ser seu fiador. Como já disse o ministro da SaúdeEduardo Pazuello, “é simples assim, um manda e outro obedece”. É um governo populista e vai dar muito trabalho para explicarmos, no futuro, esse interregno populista que nada tem a ver com liberalismo. Guedes prestou um grande desserviço à causa liberal ao participar desse governo e não implantar nada da pauta liberal. 

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A independência do BC agrada ao mercado, porque garante mais previsibilidade na economia, mas não desenrola a política econômica

A independência do Banco Central (BC) foi aprovada, ontem, na Câmara, por 339 votos a 114, depois de 30 anos de discussão. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), fez da votação uma demonstração de força e uma sinalização para o mercado de que vai retornar à agenda das reformas. A aprovação também é um contraponto à gestão do antecessor, deputado Rodrigo Maia(DEM-RJ), que está sendo responsabilizado por Lira e pelo Planalto pelo atraso na votação das medidas econômicas necessárias para enfrentar a crise. Não é bem assim, a matéria já estava pronta para ser aprovada e contava com ampla maioria. Provavelmente, seria a primeira medida a ser votada caso o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) fosse o eleito.

Na verdade, o que está atrasando a votação das medidas econômicas é a falta de entendimento político entre a turma do Centrão, os militares do Planalto e a equipe econômica em relação à maioria dos assuntos, sem que Bolsonaro tome uma decisão. Por exemplo, a criação do auxílio emergencial, desejo da ampla maioria dos parlamentares, não vai adiante porque toda a Esplanada dos Ministérios se recusa a cortar na própria carne, e a equipe econômica também não quer criar um imposto.

A independência do BC agrada ao mercado, porque garante mais previsibilidade na economia, mas não desenrola a política econômica. Diretores do banco terão mandato de quatro anos, com direito a uma reeleição. Os mandatos não coincidirão com o do presidente da República, que indicará o presidente e demais diretores do BC. Caberá ao Congresso aprovar a indicação e, se for necessário, destituir os diretores do banco.

Em tese, a independência do BC acaba com interferências do Executivo na política monetária. Num regime de metas de inflação, isso garante que a política de juros seja administrada com foco exclusivo na estabilidade da moeda. Alguns analistas acreditam que os juros do mercado futuro, que servem para a rolagem da dívida pública, tenderão a cair com a decisão. A medida é muito criticada pela esquerda e economistas desenvolvimentistas, mas há muitos países governados por partidos de esquerda que têm bancos centrais independentes.

Outro passo importante foi a instalação da Comissão Mista de Orçamento, que estava sendo adiada por causa de uma disputa pelo seu comando entre o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) e o Centrão. A presidente da CMO é a deputada Flávia Arruda (PL-DF), indicada por Arthur Lira. Com 31 deputados e 11 senadores, a comissão instalada, ontem, vai examinar o Orçamento de 2021; em abril, outra composição será feita, para discutir o Orçamento de 2022. O presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ao instalar a comissão, descartou a criação de um novo imposto para financiar a prorrogação do abono emergencial.

Doria versus Aécio
A lavagem de roupa suja em público no PSDB continuou ontem. O governador João Doria praticamente deu um ultimato à cúpula do partido para afastar o deputado Aécio Neves (MG), em nota duríssima; Aécio rebateu. Do jeito que vão as coisas, será impossível a permanência de ambos na legenda. O problema é que Doria tem mais poder político, por causa do governo de São Paulo, mas quem tem maioria na cúpula da legenda é o político mineiro.

É impressionante como a disputa pela presidência da Câmara desagregou a legenda. Mostrou para Doria que uma parte considerável da bancada pode ter derivado para a base do presidente Jair Bolsonaro, comprometendo seu projeto eleitoral. A forma como o governador paulista pretende resolver o problema não está clara. Há três hipóteses: (1) forçar os pares a lhe entregar o comando da legenda; (2) sair do partido para ser candidato por outra legenda; (3) desistir da candidatura, tendo Aécio como pivô da tragédia.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-trem-andou/

O Globo: Novo estudo comprova a 'boiada' de Salles na área ambiental

Pesquisadores compilaram 57 mudanças promovidas pelo governo Bolsonaro em dispositivos legais que enfraqueceram regras de preservação

Rafael Garcia, O Globo

SÃO PAULO - Um grupo de pesquisadores que compilou despachos federais de regramento ambiental no Brasil encontrou durante o governo Bolsonaro 57 dispositivos legais que se encaixam nas categorias de “desregulação” e “flexibilização”, enfraquecendo regras de preservação. Mais da metade das medidas foi expedida após o ministro Ricardo Salles ter dito em reunião que pretendia “passar a boiada” das propostas do Executivo para o setor, enquanto a pandemia de Covid-19 concentrava a atenção da mídia.

A pesquisa, que retrata um quadro de degradação do arcabouço de proteção ambiental no país, foi liderado pelas ecólogas Mariana Vale e Rita Portela, da UFRJ. As cientistas usaram para o estudo informações do projeto de transparência de dados Política por Inteiro, que lê o Diário Oficial da União usando robôs.

O grupo se concentrou nos chamados atos “infralegais”, decisões do Executivo que não dependem de aval do Legistativo, de vários ministérios, mas que tivessem impacto ambiental. Também incluíram no estudo dados de desmatamento e aplicação de multas ambientais. O resultado do trabalho foi descrito em um artigo no periódico acadêmico Conservation Biology.

“Encontramos uma redução de 72% nas multas ambientais durante a pandemia, apesar de um aumento no desmatamento da Amazônia durante o período”, escrevem os pesquisadores. “Concluímos que a atual administração está se aproveitando da pandemia para intensificar um padrão de enfraquecimento da proteção ambiental no Brasil.”

Flexibilização controversa

Entre as medidas destacadas pelos pesquisadores durante o período da pandemia está a que libera atividade de mineração em áreas que ainda aguardam autorização final, publicada em junho de 2020. Outra norma, no mês seguinte, reclassificou 47 diferentes pesticidas como de categoria menos danosa, sem respaldo em literatura científica.

De setembro passado, os cientistas destacam a medida que facilita autorização para pesca industrial. “A autorização sai sem qualquer tipo de triagem ou avaliação dos pescadores e de suas práticas”, afirmam os cientistas.

O estudo também comparou a taxa relativa de multas por desmatamento na Amazônia, e a comparou com o ano anterior.

Quando a área de floresta derrubada atingiu quase 120 mil km² por mês em agosto de 2019, nos dois meses seguintes a quantidade de multas por esse tipo de crime na região oscilou entre 40 e 60 por mês. No auge da primeira onda da Covid-19, o desmatamento também foi alto, com quase 100 mil km² derrubados num mês, mas as multas ficaram abaixo de 10 por mês.

O estudo também analisou mudanças de pessoal no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

— Houve substituição de staff técnico em posições de chefia por staff não técnico, que foi marcada pela retirada de servidores com anos de experiência dentro das autarquias ambientais para serem substituídos, por exemplo, por policiais militares de carreira — afirma Erika Berenguer, ecóloga da Universidade de Oxford e coautora do estudo.

A reportagem encaminhou ao Ministério do Meio Ambiente uma cópia do estudo, mas não recebeu resposta até a conclusão desta edição.