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Dorrit Harazim: Cidadão radioativo

A vida pós-presidencial de Donald Trump não será menos desviante das normas e da tradição política do que seus anos no poder. Com apenas 13 meses de intervalo, encerrou-se ontem o segundo processo de impeachment que o alcança na aposentadoria em Mar-a-Lago. Desta vez, a acusação foi por “incitamento à insurreição” de sua horda de militantes armados, que desembocou na selvagem invasão do Capitólio de 6 de janeiro. Atiçado pelos longos meses de retórica incendiária do comandante-em-chefe, o bando tentara impedir a ratificação burocrática, pelo Legislativo, da vitória eleitoral de Joe Biden. Naquele surto de terrorismo messiânico a peito aberto, com torcida na Casa Branca, viu-se a face do horror possível.

Os democratas que impulsionaram esse impeachment nº 2 sabem fazer contas. Sabiam, portanto, da dificuldade de obter junto à geleia desfibrilada de senadores republicanos os votos necessários para a condenação de Trump. Talvez por isso, ao longo de 14 horas, apresentaram seus argumentos de acusação visando a atingir também duas audiências cruciais, ambas fora do plenário: a opinião pública mundial e os anais da história. É essa minuciosa reconstituição dos fatos que passará a constar como registro oficial, indelével, da primeira tentativa de sedição de um presidente dos EUA contra as leis democráticas do país.

Absolvido de impeachment pela segunda vez, o cidadão Trump ainda é capaz de causar grandes estragos à nação, avalia seu sucessor. Biden já sinalizou que quebrará uma norma de cortesia e confiança republicana em vigor desde o século passado: não franqueará ao antecessor aposentado o privilégio de receber o boletim diário ultrassecreto reservado ao chefe da nação. O famoso PDB (sigla para President’s Daily Briefing) é a compilação de informações e análises sobre segurança nacional preparada a cada 24 horas para o presidente. Entre as centenas de relatórios diários produzidos pelas 19 agências de inteligência dos EUA, apenas o PDB é elaborado para um único cliente — o comandante-em-chefe. E não chega a 10 o número de altos funcionários com acesso a seu conteúdo.

Talvez o mais célebre PDB de todos os tempos, tornado público em 2004, tinha por título “Bin Laden determinado a atacar nos Estados Unidos”. Fora dirigido ao republicano George W. Bush, 43º ocupante do cargo, com data de 6 de agosto de 2001. Deveria ter recebido a atenção que merecia. Pouco mais de um mês depois, os ataques de 11 de setembro derrubariam as Torres Gêmeas e colocariam o país de joelhos.

Além do PDB convencional, um analista em carne e osso também aponta ou esclarece algum outro elemento-chave do boletim, na suposição de que o informe já tenha sido lido. Suposição frustrada no caso de Trump. Ao longo de seus quatro anos no poder, ele nunca demonstrou interesse pela papelada. Simplesmente não tinha paciência para ler, além de não distinguir o que vinha assinalado com um “S” (de secreto). Colocava-se acima das picuinhas de segurança nacional para poder impressionar seus pares mundiais, arrostando segredos.

Suas transgressões foram inúmeras. Certa vez, no próprio Salão Oval, compartilhou com o chanceler russo uma peça de inteligência ultrassecreta sobre o Estado Islâmico, produzida por Israel; doutra vez, copiou com celular não criptografado a raríssima imagem obtida por satélite de uma base de lançamento de foguetes do Irã. Sem contar as célebres reuniões com a raposa russa Vladimir Putin, sem a presença de qualquer assessor. Numa delas, Trump chegou a confiscar as anotações dos intérpretes, fazendo com que os EUA não tenham qualquer registro do que ali foi falado.

Biden avaliou tudo isso, além do que chamou de “comportamento errático” do antecessor, para não estender ao cidadão Trump acesso a esses briefings, tradicionalmente disponibilizados a todo ex-ocupante do cargo. Atualmente, tanto Jimmy Carter como Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama têm passe livre aos PDBs. Isso porque a utilidade da cortesia e da confiança interessa às duas partes. Não é incomum a Casa Branca recorrer a presidentes aposentados para missões especiais no exterior, conferindo-lhes uma representatividade oficiosa, sem precisar ser oficial. E, quando a viagem é de caráter privado, todo ex tem interesse em saber se marcou encontro com alguém que anda sabotando a política dos EUA. Também lhe interessa estar atualizado com os bastidores de negociações em curso, para não dizer besteira.

À luz do currículo que deixou na Casa Branca, o cidadão Trump não preenche nenhum requisito dessa confiabilidade. “Todo ex-presidente é, por definição, um alvo e representa um risco. Mas o ex-presidente Donald Trump é particularmente vulnerável a más intenções por parte de maus atores”, alerta Susan M. Gordon, que, na qualidade de vice-diretora de Inteligência Nacional entre 2017 e 2019, participou de incontáveis briefings com o chefe.

Pela primeira vez na história dos EUA, um ex-presidente é visto como risco potencial à segurança do país. Sua teia mundial de negócios e dívidas o tornam tão vulnerável a chantagem quanto um espião com esqueletos brabos no armário. Sem falar no risco de ele fazer uso indevido por conta própria, com material tão valioso em mãos.

Melhor não arriscar. O cidadão Trump continua radioativo em seu próprio país. Sua militância radical também.


Afonso Benites: Direita se engalfinha e desfaz alianças enquanto Haddad, Huck e Moro seguem entre apostas para 2022

Eleição de presidente da Câmara expõe guerra interna do DEM e PSDB e embaralha xadrez para próxima eleição. Bolsonaro premia Centrão com ministério da Cidadania enquanto PT testa primeiro nome da esquerda à sucessão presidencial

Sem lideranças políticas naturais, a direita brasileira está esfacelada em compasso de espera pelas eleições de 2022. E a esquerda também, depois que o PT lançou a candidatura de Fernando Haddad como um balão de ensaio para testar o eleitorado. O presidente Jair Bolsonaro foi incapaz de criar sua própria legenda, a Aliança pelo Brasil, mas alcançou a proeza de embaralhar a miríade das outras composições partidárias que pretendem disputar sua sucessão. Com um cenário de candidaturas diluído, a máquina governamental nas mãos e um apoio na casa dos 30% da população já colocariam o presidente em um segundo turno.

Nas últimas semanas, Bolsonaro cooptou com cargos e recursos da União o Centrão, o fisiológico grupo de centro direita que atua no Congresso Nacional, implodiu o direitista Democratas e acabou estimulando um racha na sigla de centro-direita PSDB. Todo o processo tem como pivô a disputa pela Presidência da Câmara dos Deputados no início do mês, que terminou com a vitória do candidato bolsonarista e expoente do Centrão Arthur Lira (PP-AL).

Nesta sexta-feira, Bolsonaro concretizou parte do acordo firmado com o Centrão em troca de seu apoio por Lira. Ele nomeou o deputado federal João Roma, do Republicanos, para o Ministério da Cidadania em substituição a Onyx Lorenzoni (DEM-RS), que foi deslocado para a Secretaria-Geral da Presidência da República. Roma é amigo e ex-assessor de Antônio Carlos Magalhães Neto, o presidente do Democratas que se aproximou do Planalto rompendo com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ). Com o movimento, o mandatário começa a pagar a sua fatura em troca de uma base de sustentação legislativa. Ainda restam entre dois e três ministérios a serem entregues ao Centrão, o que deve ocorrer nas próximas semanas.

Os movimentos no xadrez político de Bolsonaro ocorrem a um ano e 8 meses da eleição. Mas, de pronto, já começaram a minar alianças que estavam sendo planejadas pelo campo autodenominado “direita democrática”. A principal delas foi a articulação feita por DEM, MDB, Cidadania e PSDB. As quatro legendas rascunhavam um acordo para seguirem juntas em 2022. Seu candidato seria João Doria (PSDB), o governador paulista que já foi aliado de Bolsonaro, ou Luciano Huck, o apresentador da maior emissora de TV do Brasil, a Globo, que paquerava uma filiação ao DEM ou ao Cidadania.

Implosão do DEM e racha no PSDB

A implosão do DEM afastou Huck dos democratas, mas há ainda a esperança do Cidadania de tê-lo em suas hostes. Além disso, dos 27 deputados do DEM, 6 disseram que apoiarão a reeleição de Bolsonaro, 14 não descartaram apoiá-lo e apenas dois disseram que não se aliarão ao presidente. Os dados foram levantados pelo jornal O Estado de S. Paulo. “O que o DEM tem dito é que não fechará nenhuma porta, nem mesmo a Bolsonaro. Se o presidente se moderar nos próximos dois anos, o DEM consegue se justificar e seguir com ele, caso contrário, pode tomar outro rumo”, avalia e cientista política Lara Mesquita, que é pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio Vargas.

No PSDB, Doria se sentiu forçado a marcar território. Tentou controlar diretamente a Executiva Nacional do partido, atualmente comandada pelo seu então aliado o ex-deputado Bruno Araújo. Mas os figurões da sigla reagiram e estenderam o mandato de Araújo para 2022. De pronto, Doria se enfraqueceu no processo, sinalizou que pode deixar a legenda e viu outro tucano despontar como potencial presidenciável: Eduardo Leite, o governador do Rio Grande do Sul que quer ser uma nova oposição a Bolsonaro. “O Doria é uma liderança de luz própria. Os velhos elefantes do partido não o veem com bons olhos. Ele é uma das pessoas mais pragmáticas da política brasileira. Tanto que se aliou a Bolsonaro para se eleger governador”, diz a cientista política Mariana Borges, pesquisadora em Oxford.

Outra legenda de centro-direita que está em busca de um nome que agregue outros apoios é o Podemos. Os dirigentes esperam que o ex-juiz da operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, anuncie sua filiação até o início do próximo ano. As conversas estavam adiantadas. Mas, nas últimas semanas, o que menos Moro tem feito é se preocupar com a política partidária, já que corre o risco de ter sua biografia ainda mais manchada, quando o Supremo Tribunal Federal está em vias de invalidar as decisões que ele tomou contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Para as duas pesquisadoras consultadas pela reportagem, ainda é cedo para os partidos definirem qualquer cenário. “Tudo ainda depende da economia e de como o Governo vai reagir à pandemia [de coronavírus]. Também tem de ser levado em conta a avaliação da população sobre os processos judiciais contra os filhos do presidente”, diz Lara Mesquita. A narrativa que Bolsonaro empregou na eleição de 2018, de ser um político antissistema também será posta a prova. “Ele está claramente adaptando o seu discurso extremista. Vamos ver até onde isso vai durar”, afirma Mariana Borges.

Da mesma maneira que a direita anti-bolsonaro, a esquerda também enfrenta severas dificuldades de articulação interna. O PT já colocou em prova sua hegemonia nesse campo na última semana, quando o ex-presidente Lula lançou a candidatura do ex-prefeito de São Paulo Haddad e disse para ele percorrer o Brasil em uma espécie de pré-campanha. O PDT se aproxima de uma aliança com o PSB para relançar o ex-governador do Ceará Ciro Gomes. E o PSOL sinaliza que deve seguir com o professor universitário Guilherme Boulos. Ou seja, seria a repetição dos três candidatos que foram derrotados por Bolsonaro na disputa passada. A diferença agora é que Boulos ganhou projeção nacional ao disputar o segundo turno com Bruno Covas pela prefeitura de São Paulo, a maior cidade do Brasil. “Os partidos estão se movimentando porque sabem que se não começarem a se movimentar, eles não terão um candidato do dia para a noite. O Bolsonaro, mesmo, ficou quatro anos fazendo campanha”, diz a pesquisadora Lara Mesquita.

Para Mariana Borges, uma das falhas da esquerda brasileira, especialmente do PT, é manter-se focada no Estado de São Paulo na hora de falar em candidatos, ignorando outras regiões brasileiras. Ela cita que, ao escolher Haddad, Lula deixa de lado lideranças baianas do partido, como o senador Jaques Wagner ou o governador Rui Costa. “Talvez apresentar um nome que não seja tão ligado ao Lula seria a alternativa para atrair os outros partidos de esquerda”, diz.

Outra conta que tem sido feita pelas legendas é a da cláusula de barreira. A partir de 2023, só terá acesso aos fundos públicos eleitoral e partidário quem atingir 2% dos votos válidos para a Câmara em nove Estados ou eleger ao menos 11 deputados. Atualmente, a doação eleitoral privada é proibida no Brasil. E é quase consenso entre os partidos que, sem uma candidatura presidencial como uma vitrine, dificilmente se elegem tantos deputados federais. Como o Brasil tem 33 partidos registrados, sendo que 24 têm representação na Câmara, a tendência é que haja uma disseminação de candidaturas presidenciais.


Tasso Jereissati: 'Partidos foram triturados no Congresso'

Tucano atribui o racha em sua legenda às eleições na Câmara e no Senado, marcadas, segundo ele, pela ‘captação individual de votos’

Julia Lindner, O Globo

BRASÍLIA - O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) afirmou, em entrevista ao GLOBO, que seu partido, assim como os demais, foi “triturado” durante a eleição para as presidências da Câmara e do Senado e agora tem a oportunidade de se reconstruir.

Para ele, o melhor nome para disputar a eleição de 2022 será aquele que conseguir unir as legendas de centro, da esquerda à direita, a fim de evitar a polarização como a que ocorreu no segundo turno do último pleito, entre Jair Bolsonaro e petista Fernando Haddad.

Como o senhor avalia o cenário atual do PSDB? O partido está rachado?

O PSDB está num momento de transição, de reconstrução, procurando manter os seus princípios iniciais e fundamentais. Ao mesmo tempo, esse período agora é diferente, em que todos os partidos, todos, foram triturados ou tratorados pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. Em uma olhada panorâmica, o DEM rachou, PSDB trincou, PSD teve problemas... Isso porque o processo que se instalou nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual.

Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. Isso fez com que pessoas, de bolsonaristas a petistas, votassem nos mesmos candidatos. Essa questão de não haver uma coesão absurda não é privilégio do PSDB, todos os partidos estão vivendo problemas.

É possível encontrar uma saída?

É um bom momento para o PSDB se reconstruir, estávamos vivendo isso... Tínhamos uma candidatura natural (à Presidência da República) do governador de São Paulo (João Doria), que só pelo fato de ser governador de São Paulo já o torna presidenciável, e se abre uma nova perspectiva trazendo ao cenário mais um outro candidato de uma parcela do PSDB, o Eduardo Leite (RS), que traz uma perspectiva extremamente democrática para voltarmos às discussões dos nossos ideais, dos nossos princípios. E vai prevalecer aquele que se identificar mais com esses princípios. Tem que ser um princípio que junte mais os partidos de centro.

Considerando os nomes de Doria e Leite, qual deles tem o melhor perfil hoje para unificar o centro? Avalia que Doria tenderia mais para a direita do que para o centro?

Eu acho que antes de definirmos o nome, temos que definir o que queremos. Estamos vivendo um momento que, além dos partidos, vivemos uma crise de valores, uma crise sanitária, econômica e social. Então, eu acho que aquele que tiver capacidade de unir desde o centro mais à direita até o mais à esquerda, com o propósito de acabar a polarização em que (entre) a extremíssima esquerda e a extremíssima direita, o ódio é que está prevalecendo... Esse que tiver mais capacidade de fazer essa união será o candidato ideal.

Mas ainda não está na hora de definir (um nome), e sim o que queremos e conversar com outros partidos, inclusive com a possibilidade de aparecer outro nome com poder de agregação.

O senhor vê Luciano Huck com uma dessas alternativas?

Tem essa possibilidade. Não estou dizendo que seja ele, estou colocando. É um rapaz novo, não vejo problema no fato de não ser político, existem vantagens e desvantagens. Ele tem feito um esforço enorme de aprender, captar soluções e ideias que estão pairando pelo mundo. É um rapaz de centro.

A situação na Câmara e no Senado mostrou a bancada dividida e em parte apoiando o nome de Bolsonaro à presidência das Casas. Não é um sinal de que é difícil unir o partido e fazer oposição?

Essa definição de oposição em relação ao governo está tomada. É uma definição que está sendo reforçada com a ratificação do nome de Bruno Araújo (ao comando do PSDB). A diferença que houve durante as eleições não é um desafio só nosso, e sim de todos os partidos e democratas. Houve uma manipulação profunda que dizimou a unidade dos partidos.

O PSDB tem um alinhamento na área econômica com o governo. Como fazer essa diferenciação em relação a outras pautas?

Olhando em uma visão geral nós temos, sim, uma identidade muito grande, não total, na área econômica, mas nas outras questões temos uma distância enorme. Se for para falar de política externa, é o oposto da apresentada pelo ministro de Relações Exteriores, que é incompreensível. Se formos falar de tendência ao autoritarismo, somos um partido que nasceu da redemocratização. Enfrentamento da pandemia, coronavírus e Ministério da Saúde... É um desastre que chega a ser quase criminoso. As coisas que aconteceram e estão acontecendo beiram a irresponsabilidade total.

A nossa identidade é nessa questão da pauta econômica mais liberal, porém não é 100%. Nada nos impede quando as pautas econômicas chegam no Congresso de apoiarmos o governo. Fomos oposição ao (ex-presidente) Lula e à (ex-presidente) Dilma e nunca fizemos o quanto pior melhor. Se vier, por exemplo, uma proposta muito boa para a Saúde vamos aprovar.

Pensando em 2022, o senhor teme um cenário como o da última eleição, com Bolsonaro e o candidato do PT no segundo turno? Isso colocaria o PSDB numa situação difícil?

O Bolsonaro ganhou as eleições porque havia um forte sentimento antipetista na população brasileira. Eu costumo dizer que o Bolsonaro nasceu do PT. Quando o PT começou a dividir o Brasil entre nós e eles, dividiu o Brasil e acabou levando para a radicalização. Isso se transformou na extrema direita. Isso (cenário de 2018) só vai se repetir se nós, do centro, centro-direita, centro-esquerda, formos muito divididos novamente para a eleição. Porque você tem um nicho certo de eleitores na extrema esquerda e na extrema direita.

Se esse centro que é a maioria ficar todo subdividido, pode ser, como aconteceu, que a subdivisão leve a uma reedição de uma maneira piorada dessa polarização que só gerou ódio, dividiu a população. As pessoas não querem saber de argumentos. Tenho grande esperança de que possamos construir uma candidatura de centro mais sólida.

Como o senhor vê a sinalização, por exemplo, do ACM Neto não descartar um apoio a Bolsonaro lá na frente?

Eu acredito que o Neto disse isso mais como uma figura de linguagem, tipo “não estou descartando algum cenário”. Porque todas as vezes em que eu conversei com ele, além de negar de maneira muito veemente qualquer aproximação com Bolsonaro, não é da índole dele, da criação dele, qualquer aliança maior com um governo com esses defeitos.

O senhor falou do antipetismo. Avalia que a oposição do PSDB ao PT e especialmente a postura na eleição de 2014 de questionar o resultado contribuiu para esse ambiente?

Não foi nem a oposição do PSDB ao PT. Quando o PT fez o ‘nós e eles’ visou principalmente o PSDB, demonizou os nossos governos, neoliberalistas, os nossos candidatos, todo o primeiro governo do Lula tinha o negócio da herança maldita. Tudo era feito para demonizar o PSDB. Isso fez com que os eleitores do PSDB acabassem nas mãos da extrema direita, que criou o Bolsonaro.

Aécio Neves (MG) influênciou na eleição da Câmara no apoio ao candidato de Bolsonaro. A permanência dele atrapalha a imagem do PSDB?

Esse assunto está morto. O Aécio não está influindo, está calado lá. Ele não é mais uma liderança do partido, não tem relevância dentro das discussões. É um assunto morto e não tem por que abrir essa ferida. Temos outros assuntos tão importantes agora que isso seria sair do foco.

O que achou das explicações de Eduardo Pazuello ao Congresso? Ainda vê necessidade da CPI da Covid?

A grande maioria do PSDB assinou a CPI da Pandemia e estamos defendendo principalmente depois do depoimento do ministro da Saúde, que não respondeu as questões fundamentais. Alguém de governo tem que ser responsabilizado para que isso não volte a se repetir.

A situação em Manaus evidenciou mais a crítica que se faz ao governo na pandemia?

Claro. Aquilo foi um caos, um conjunto de crimes em relação à total falta de sensibilidade com o que estava acontecendo em Manaus, pessoas morrendo asfixiadas no meio da rua e o governo distribuindo cloroquina. E não só em Manaus. Cidades estão parando de vacinar por falta de vacina. É um conjunto de crimes, e alguém precisa ser responsável por isso. Não é possível que centenas de milhares venham a falecer e essa negligência fique impune. Até para que não volte a acontecer.


Cristovam Buarque: O Fator Confiança

Independência do Banco Central

Quatorze deputados votaram pela independência do Banco Central, contrariando orientação de seus partidos.

Deram voto lúcido, porque a história do Brasil mostra o desastre de anos do Banco Central sob a vontade do capitão, do general ou do líder civil no governo. O resultado é conhecido: somos campeões em juros altos, inflações demoradas, número de moedas. Qualquer dirigente, sobretudo na véspera de eleição, é tentado a usar política monetária para financiar os gastos de seu governo, deixando de respeitar os limites fiscais. Alguns podem usar os recursos para bons projetos, outros para financiar mordomias, privilégios, subsídios, corrupção. Jogando a conta para o povo e as gerações futuras. Desorganiza a economia, sacrifica aos pobres, aos assalariados e aos aposentados e engana aos eleitores. .

A história mostra a lucidez do voto, mas o presente e o futuro mostram a responsabilidade do voto. Algumas décadas atrás, a economia dependia dos fatores Capital, Trabalho e Recurso Natural. Depois a Tecnologia, como fazer, passou a ser um novo fator, recentemente, a Inovação, o que fazer, virou outro. Nos últimos anos, devido à globalização, a Confiança dos consumidores e dos investidores passou a ser um fator fundamental para o crescimento. A inflação, taxas de juros, endividamento são causas para perda de confiança em uma economia A moeda de um país deve ser um patrimônio do povo, da nação, não do governo. Por isto, a independência do Banco Central é uma questão de responsabilidade com o valor da moeda.

Apesar disto, por crendice ou imaginando que um dia serão governo e querem poder nomear o guardião do valor da moeda, alguns partidos tomaram posição contrária à independência do Banco Central, exigindo coragem dos seus parlamentares com lucidez e responsabilidade.

Estes deputados demonstraram lucidez, ao entenderem a importância da decisão para o futuro; responsabilidade com os interesses do pais na frente dos interesses partidários; e coragem por enfrentarem os seus partidos que têm visão atrasada na economia, irresponsabilidade social ao sofrimento com inflação, e olham para a próxima eleição, não para as próximas gerações.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Marcus Pestana: Regulação, privatizações e crescimento

Além da universalização da imunização para superarmos a pandemia, há um desafio central que é a retomada do crescimento econômico visando a geração de renda e emprego. Quem pode desencadear a retomada são os investimentos. E como sabemos, o setor público brasileiro encontra-se mergulhado em grave fiscal. Ou seja, a resposta virá majoritariamente dos investimentos privados. E não basta para atrair investimentos possuir bons fundamentos macroeconômicos. É preciso um ambiente de confiança e credibilidade ancorado em previsibilidade, bons marcos legais e regulatórios, estabilidade de regras e respeito aos contratos.

Ao longo dos séculos XIX e XX, o papel do Estado esteve no centro das discussões sobre modelos de intervenção e desenvolvimento. Há uma dimensão ideológica que coloca liberalismo versus estatismo, mas há também a questão da eficiência global da economia e sua produtividade e dos impactos no orçamento público e suas prioridades.

As tarefas necessárias para o funcionamento da sociedade e da economia podem ser supridas pela ação direta do Estado, pelo terceiro setor, como hospitais filantrópicos e as APAES, por exemplo, ou pela iniciativa privada. O desfaio é conseguir o melhor e mais eficiente mix que potencialize a efetividade das ações e a produtividade dos recursos.

Na atual crise fiscal e diante da evolução da economia, o papel do Estado no Brasil deve ser muito mais de regulador, coordenador e estimulador. Não faria o menor sentido em pleno século XXI ter uma VALE estatal produzindo minérios ou uma EMBRAER produzindo aviões. Quando o serviço é público ou há monopólio natural e se delega à iniciativa privada, devem existir agências regulatórias robustas, fortalecidas e eficientes para defender os usuários e a estabilidade contratual, oferecendo segurança tanto à sociedade, quanto aos investidores.

O Governo Federal almeja privatizar a Eletrobrás e os Correios. O Governo de Minas pretende vender a CODEMIG e o do Rio, a CEDAE, entre tantas outras propostas de privatização.

Na última semana, foram tomadas atitudes contraditórias. Por um lado, aprovou-se a autonomia do Banco Central, medida positiva para blindar o agente que defende a nossa moeda de intervenções políticas voluntaristas e desastrosas. Por outro lado, a ofensiva política contra a autonomia da ANVISA na questão das vacinas, abala o prestígio de nossas agências regulatórias como um todo. Para a privatização da Eletrobrás ou dos Correios, que apoio, precisamos de uma ANEEL e de uma ANATEL transformada em ANACOM, fortes, autônomas, profissionalizadas e prestigiadas. A população não quer saber se o fornecimento de energia ou o abastecimento de água é feito por uma empresa estatal ou privada. Quer, na verdade, eficiência, qualidade e preço justo.

Quanto à CODEMIG, tenho minhas dúvidas. Ela gera soluções, não problemas. Tem uma estrutura levíssima para administrar os direitos minerários da exploração do nióbio, minério do futuro, que será cada vez mais valorizado. É uma das poucas fontes de financiamento de investimentos públicos em Minas. Ainda mais que se dará o famoso caso de “vender a geladeira para pagar comida”.

A parceria entre Estado e iniciativa privada pode ser, se bem construída, uma importante alavanca para a retomada do crescimento no Brasil pós-pandemia.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)   


Adriana Fernandes: Por enquanto, a reforma tributária vive uma baita crise de identidade

Tributaristas já têm lista de perguntas sem respostas sobre reforma em tramitação no Congresso

A prova maior de que a reforma tributária está sem rumo é a obsessão do presidente Jair Bolsonaro em reduzir a tributação dos combustíveis sem conexão alguma com as propostas que tramitam no Congresso Nacional de mudança no caótico sistema tributário brasileiro.

Uma dessas propostas, enviada pelo próprio governo, cria a Contribuição sobre Bens e Serviços para substituir o PIS/Cofins, os dois tributos que o presidente quer diminuir para diminuir o preço do diesel, uma demanda dos caminhoneiros.

Pelas três principais propostas tributárias em tramitação no Congresso (duas PECs e o PL do CBS) esse movimento desejado por Bolsonaro jamais seria possível tecnicamente. Bolsonaro também avançou em seara que não é a sua e divulgou nesta sexta-feira projeto que altera a forma de tributação do ICMS de combustíveis, imposto dos governadores.

Com uma lista bilionária de isenções tributárias para compensar a redução do PIS/Cofins, o presidente até agora não teve coragem de pegar a sua caneta bic e botar a assinatura para cortar alguma delas e compensar a redução da arrecadação com a medida, uma exigência das leis de Responsabilidade Fiscal e de Diretrizes Orçamentarias (LDO) de 2021. Nada agradou.

A compensação teria de ser ou pela via de aumento de arrecadação ou corte de despesas. No primeiro caso, só há dois caminhos: aumentar alíquota de impostos ou passar a tesoura nas isenções e outros benefícios tributários.

Cortar despesas não dá nem para contar, diante da pouca disposição vista nos últimos seis meses para buscar espaço fiscal para dar o auxilio aos mais pobres do País dentro do Orçamento.

A solução que o presidente Jair Bolsonaro botou a área jurídica do governo para quebrar a cabeça é garantir a medida justamente sem precisar compensar. Tudo isso sem falar no problema central da discussão de prioridades quando o cobertor é curto. Vale a pena perder bilhões de arrecadação com essa desoneração? O próprio presidente disse e repetiu que o Brasil está quebrado. 

Esse tipo de articulação sabota qualquer tentativa de mudança mais profunda da reforma tributária, que continua com um cenário nebuloso mesmo depois do anúncio do “acordo” político entre os presidentes da Câmara e do Senado para ela ser aprovada em oito meses.

O curioso é que, se algo andar na reforma tributária, teremos os mesmos dilemas do ano passado. Afinal, nada foi resolvido ano passado. Cenário que faz com que os defensores da não reforma ganhem espaço. E eles são muitos.

Com esse quadro nebuloso, tem gosto para tudo. Focar na PEC 45 da Câmara, reforçar o substitutivo elaborado pelos Estados, colocar as fichas na PEC 110 do Senado, esquecer as PECs e concentrar no CBS do ministro Paulo Guedes, começar pela desoneração da folha com uma nova CPMF ou dar o pontapé inicial numa reforma que reduza os privilégios dos mais ricos para beneficiar os mais pobres.

Na semana passada, o mercado financeiro tremeu com ruídos sobre aumento da tributação dos bancos.

Os tributaristas que acompanham no detalhe a tramitação da reforma já fizeram até uma listinha das perguntas sem respostas depois do acordo que manteve o funcionamento da comissão mista de reforma, sob o comando do senador tucano Roberto Rocha (MA) e relatoria do deputado Aguinaldo Ribeiro (PB).

É certo que Ribeiro não vai querer apresentar agora o seu relatório para a votação do parecer só em outubro e muito menos deixar que o texto comece a tramitação pelo Senado. Da Câmara ou Senado, o texto terá que seguir.

Na lista: indefinição dos próximos passos da tramitação; incógnita se Aguinaldo vai mesmo apresentar o relatório; ressurreição da PEC 110 e suas marcantes diferenças com a PEC 45; a nova CPMF, que pode vir tanto para bancar aumento de gastos como para reduzir a tributação da folha de salários; a PEC 128 de reforma que corre por fora; a CBS, que é a preferida Guedes, mas tem aumento da carga tributária; e o “esquecimento” da ideia da tributação de dividendos.

Por enquanto, a reforma tributária vive uma baita crise de identidade.


Pablo Ortellado: Auxílio é viável e é urgente

Congresso e governo discutem uma reedição do auxílio emergencial, em nova versão. A medida é viável, no tocante às regras fiscais, e urgente, do ponto de vista social.

A pobreza extrema, que chegou a ser reduzida para 4,5% em agosto de 2020, com a primeira edição do auxílio, subiu para 12,8% em janeiro de 2021. São 27 milhões de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 ao mês. Temos, além disso, 14,1% da força de trabalho desocupados, com os índices do segundo semestre de 2020 atingindo o nível mais alto de toda a série histórica. São 14 milhões de trabalhadores.

Depois de idas e vindas, o governo lançou a ideia de um auxílio enxuto, de R$ 200 e distribuído para cerca de metade dos beneficiários de 2020. Mas Congresso e sociedade podem pressionar o governo a entregar mais.

O auxílio não é apenas despesa, mas também estímulo à atividade econômica, como mostrou estudo da Faculdade de Economia e Administração da USP. Quando recebem o auxílio, as famílias aumentam o consumo, estimulando as expectativas de vendas das empresas e o investimento privado.

O estudo da USP estima que o efeito estabilizador do auxílio sobre o Produto Interno Bruto em 2020 foi o grande responsável pela sua redução em apenas 4,1%, sendo que o mercado chegou a estimar uma queda do PIB de 11% —que, afinal, terminou sendo aproximadamente a redução do PIB na maioria dos outros países latino-americanos.

O governo tem a oportunidade de corrigir e melhorar os instrumentos de implementação da política, aperfeiçoando a integração dos cadastros da Receita Federal, emprego, servidores públicos e óbitos. A falta dessa integração, em 2020, fez com que muita gente que precisava desesperadamente do auxílio não tivesse tido acesso ao benefício, e muita gente que não precisava tanto tivesse ganhado.

O valor também pode ser majorado para R$ 300 ou mesmo R$ 350, já que R$ 200 certamente não é suficiente para enfrentar a pobreza extrema. Esse valor proposto, de R$ 200, é a retomada da velha ideia de Paulo Guedes de fazer um programa que não compita com o Bolsa Família, que paga aproximadamente esse montante por família.

Mas o valor precisa ser maior neste momento em que desemprego e pobreza atingem valores recordes. É preciso também garantir que as famílias monoparentais recebam outra vez uma cota dupla.

Há preocupação de operadores do mercado de que um programa mais amplo comprometa o teto de gastos e, com isso, ponha ainda mais em risco o equilíbrio fiscal. Mas a solução que está sendo encaminhada — fazer o novo auxílio por meio de uma combinação da concessão de crédito extraordinário (que está fora da regra do teto) e uma revisão da meta de déficit primário — permite implementar a medida sem modificar as regras fiscais vigentes.

O auxílio emergencial não é a solução de política social de que o Brasil precisa. Em algum momento será necessário reformular amplamente o Bolsa Família. Até lá, precisamos apoiar os brasileiros mais vulneráveis — e podemos fazer isso atendendo todos os que precisam e combatendo a pobreza extrema.


Ascânio Seleme: O fura fila, nenhuma surpresa

Somos um país egoísta, que esconde sua natureza com uma alegria contagiante, musical, dançante, calorosa

Escrevi os três parágrafos abaixo no início da pandemia de coronavírus, a pedido da filha de um amigo que coletava impressões sobre como sairíamos da crise sanitária que se espalhava pelo mundo:

Muita gente acha que o Brasil será melhor, que o trauma da pandemia tornará os brasileiros mais tolerantes, solidários e amigáveis. Tenho sérias dúvidas sobre isso. Somos um país egoísta, que esconde sua natureza com uma alegria contagiante, musical, dançante, calorosa. Quem nos vê rapidamente, durante uma semana de carnaval, por exemplo, acha que somos os melhores seres do planeta, amáveis, tolerantes, misturados. Trata-se de um engano. Não somos, nunca fomos e jamais seremos modelo para o mundo.

“Farinha pouca, meu pirão primeiro” é um velho adágio popular que mostra bem como pensa o brasileiro. Uma outra máxima, conhecida como a “Lei do Gerson”, foi expressada em um comercial dos anos 1970, em que o velho craque da seleção e do Fluminense afirmava que “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo”. Verdade. Somos isso mesmo, não adianta querer negar. E temo que esse modo degenerado de ver o mundo seja intensificado depois da pandemia de coronavírus. Os bons exemplos são poucos, é necessário garimpar muito fundo para encontrar casos que mereçam destaque. Quando os encontramos, batemos bumbo, fazemos festa, damos prêmio.

Não somos solidários, não somos caridosos, não somos filantropos e também não somos voluntários. Alguém certamente dirá que estou sendo rigoroso com o brasileiro, que há muitos generosos e amorosos entre nós. É verdade, mas nem por isso dá para ser complacente com os demais. O futuro mostrará se estou errado, mas acho que sairemos dessa mais egoístas e sectários. Nossa xenofobia e nosso racismo serão ainda mais escancarados, porque o brasileiro não terá que se desculpar ao ultrapassar os limites, pois entenderá, equivocadamente, estar se defendendo. A máscara da cordialidade se esgarçará mostrando melhor a verdadeira face do brasileiro.

Exagerei? Talvez pudesse fazer esta pintura com menos tintas. Mas veja agora o caso dos fura filas da vacina. Eles estão espalhados pelo Brasil, são milhares os até aqui descobertos, deve haver muitos mais. São o retrato mais fiel do malandro, que está sempre procurando uma brecha para melhor se encaixar e ter alguma vantagem em relação a todos os outros. São impulsionados pela cultura nacional do jeitinho, do golpe, da maracutaia, do manda quem pode. Você sabe como a coisa funciona. Se olhar ao seu redor, vai rapidamente identificar alguns desses espertalhões.

Em alguns casos, pode-se até entender, embora não justificar, o esforço de muitos brasileiros em superar obstáculos para chegar antes, para obter alguma vantagem. Num país tão desigual como o nosso, em que 55 milhões vivem abaixo da linha de pobreza, há os que fazem qualquer tipo de malabarismo para levar meia dúzia de pães e um litro de leite para casa. Estes lutam pela sobrevivência, mas acabam cometendo crimes previstos no código penal, o que obviamente é inadmissível.

E então chegamos aos fura filas da vacina. Além da já mencionada cultura brasileira que enaltece e valoriza o malandro, o que se vê nos dias atuais é a negação sistemática do politicamente correto pregada pelo presidente Jair Bolsonaro, seus zeros e sua tropa cega e burra. O exemplo de cima é excelente para quem quer chegar antes ao fim do jogo pulando casas. No episódio em que quis nomear o zero fritador de hambúrguer para a embaixada nos EUA, Bolsonaro disse o seguinte: “Lógico que é filho meu, pretendo beneficiar filho meu, sim. Se puder, dou filé-mignon para meu filho”.

Se o presidente decide questões de Estado puxando a brasa para o seu filé, imagine como seu povo reage. Estimulado, tende a seguir o exemplo do mito. E, já que não pode nomear seus filhos para uma embaixada, vai dando jeitinhos aqui e ali, furando uma filinha de vez em quando, buscando vantagens para si, para parentes e amigos, se lixando para os demais. Este é o Brasil que construímos ao longo dos anos e cujas estruturas reforçamos elegendo Jair Bolsonaro.

Sua majestade

O que Arthur Lira quer é conforto. Uma sala maior, com uma vista mais agradável. O gabinete atual da presidência da Câmara é pequeno, a sala privada do presidente é até acanhada. Então, ele resolveu remover a imprensa, retirando mais de cem veículos credenciados na Câmara do seu local tradicional de trabalho para lá instalar-se majestaticamente. Segundo o vereador Chico Alencar (PSOL), seria como transferir as cabines da imprensa esportiva para o subsolo do Maracanã. Do comitê, os jornalistas têm acesso direto ao plenário e ampla visão do gramado em frente, onde ocorrem as manifestações populares, contra ou a favor de qualquer coisa. Somente presidentes pequenos como Lira, Arlindo Chinaglia e Eduardo Cunha cogitaram esta mudança. O maior de todos, Ulysses Guimarães, presidiu a Câmara, a Constituinte e a República daquela sala acanhada. Sem reclamar e sem ameaçar os jornalistas.

A quem incomoda

A Lava-Jato incomodou mais por ter alcançado gente graúda do que pelos pecados que cometeu. Que história é essa de prender empreiteiros, recuperar dinheiro desviado e cobrar multas de empreiteiras só porque se serviram dos cofres públicos como se fossem contas privadas? Que desplante. E, depois, como assim prender deputados, senadores e até dois ex-presidentes do Brasil somente porque se valeram de benefícios de particulares enquanto exerciam cargos públicos? Que exagero.

Verdade real

Há um princípio na jurisprudência que poderia servir a Sergio Moro caso o Supremo Tribunal Federal aceite o pedido da defesa do ex-presidente Lula e não rejeite sumariamente a arguição de suspeição do ex-juiz da Lava-Jato. Trata-se da “busca da verdade real”. Por ele, a Justiça não pode se satisfazer com a realidade formal dos fatos, mas sim buscar que o ius puniendi (direito de punir do Estado) seja efetivamente produzido. Neste caso poderia até caber ao juiz orientar o Ministério Público em processos penais.

Resultados

O senador Rodrigo Pacheco, recém-eleito presidente do Senado com o apoio do presidente Bolsonaro, já começa a produzir resultados para o governo. Ele está sentado em cima do pedido para a abertura da CPI da Pandemia, como se não fossem evidentes os erros e as omissões oficiais no combate ao coronavírus. Na quinta, Pacheco disse que esperava o depoimento do ministro Pazuello no plenário da Casa para ver se, depois dele, ainda seria necessária a CPI. Ninguém confunde por acaso um debate no plenário com o poder de fogo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Ciumento

A decisão de não convidar Hamilton Mourão para a última reunião ministerial evidencia mais uma vez como é pequeno o presidente do Brasil. Não se sabe se ele se parece mais com um menino mimado ou um marido ciumento. O que se sabe com certeza é que atitudes como aquela comprovam que o principal líder nacional segue envergonhando o país e seus cidadãos.

O Brasil aguenta

O presidente do STF, Luiz Fux, está enganado. O Brasil aguenta, três, quatro ou quantos impeachments forem necessários. Primeiro porque, pela letra da Constituição, crime de responsabilidade deve ser punido com o afastamento do presidente. Segundo, o Brasil consolidou o seu presidencialismo parlamentar. Já testou e viu que funciona bem a cassação do mandato de um presidente criminoso. Trata-se de um modelo, do modelo brasileiro. O que o Brasil não pode é aguentar mais um golpe de Estado, como aquele sugerido pelo próprio Jair Bolsonaro, que um dia disse que daria um golpe e fecharia o Congresso se fosse eleito presidente. Ou que defendem seus três zeros. Um deles afirmou, Fux deve se lembrar, que para fechar o Supremo não precisa nem de um jipe, bastariam um soldado e um cabo.

Democracia jovem

O sentimento de Fux é compartilhado pelos que dizem que a democracia no Brasil ainda é jovem e precisa de cuidados especiais. Não é e não precisa. Se considerada desde a Anistia, tem 42 anos; desde o primeiro presidente civil, tem 36; da Constituinte, 33; do primeiro presidente eleito pelo voto direto, tem 32 anos. Democracia madura como a nossa se preserva exercitando-a. Ao votar o segundo impeachment de Donald Trump, o Congresso dos EUA está fazendo exatamente isso, fazendo funcionar sua democracia, que tem mais de 230 anos.

Abismo

Quem assistiu na íntegra a transmissão da sessão em que deputados democratas defenderam o impeachment de Donald Trump notou a diferença abissal entre aqueles parlamentares e os nossos similares nacionais. Estavam preparados, com argumentos sólidos, detalhes históricos e denúncias novas. Aqui, como já se viu no passado, as sessões são palanques onde eleitores, amigos e famílias são lembrados e, em muitos casos, exaltados.

Acelerado

O secretário da Fazenda do Rio, o deputado Pedro Paulo, não tem tempo a perder. Ele ouve podcasts por uma hora todas as manhãs. Mas as horas rendem porque os áudios são tocados em ritmo acelerado, de 1.2 ou 1.5 acima da velocidade normal. A coisa é tão grave que até filmes e séries no streaming ele assiste em velocidade alterada. O secretário diz que aprendeu a técnica com o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), que ouve todo tipo de áudio com velocidade até duas vezes maior.

Faz diferença

Luiza Trajano deu um exemplo de cidadania ao propor a participação de empresários no apoio logístico, material e financeiro ao processo de vacinação dos brasileiros contra o coronavírus. Por isso, aliás, começa a ser torpedeada pela tropa bolsonarista. Que tragédia virou essa gangue presidencial.

Saudades do vovô

Incrível a falta de habilidade do ex-prefeito ACM Neto no episódio da eleição para a presidência da Câmara. Ficou evidente a distância que o separa do verdadeiro ACM, seu avô, Antônio Carlos Magalhães, ou do seu tio Luiz Eduardo. Se o tio não tivesse morrido tão cedo, a esta altura Neto seria dono de uma concessionária da Ford em Salvador.

Cantinho do moreno

ACM Neto saiu menor do embate contra Rodrigo Maia e em favor de Bolsonaro.


Demétrio Magnoli: A vacinação como espetáculo

No lugar de imunizar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas

No Brasil, em média, vacinamos menos de 300 mil por dia. Sem escassez de imunizantes, seríamos capazes de vacinar perto de 2 milhões. Mas, mesmo agora, poderíamos vacinar facilmente 600 mil. A lentidão, que amplifica as mortes, não escandaliza quase ninguém. A indignação concentra-se na já lendária figura do fura-fila. É que, de fato, mais que vacinar, queremos colocar todo mundo no seu lugar numa hierarquia de prioridades. Na sociedade do espetáculo, passar julgamento moral vale mais que salvar vidas.

A cidade do Rio reservou um dia inteiro para cada grupo etário de um ano, dos 99 aos 80. Vacinas e enfermeiros despendem horas ociosas, diariamente, à espera do idoso "certo". Legal, isso: garante que o idoso de 89 anos não passe na frente do camarada mais velho, de 93, participante de um grupo de maior risco. São Paulo foi na mesma linha, economizando só um pouco do ridículo: reservou uma semana completa para a faixa dos 90 anos ou mais. Nas unidades de saúde, manhãs inteiras passaram na janela sem a presença de um único "vacinável". Bem planejado: assim, evitamos aglomerações.

A fila perfeita é, claro, imperfeita. Profissionais de saúde, nossos heróis, vêm primeiro. Daí que imunizamos psicoterapeutas de 60 anos que trabalham online antes de gente comum com mais de 80 anos. A parcimônia cumpre função não divulgada: vacinando bem devagar, escapamos do vexame de interromper a campanha por esgotamento das doses —e, portanto, o governo federal oculta seu atraso na aquisição de imunizantes. Por essa via, na sociedade do espetáculo, o negacionismo de direita estabelece uma aliança tácita com o humanismo de esquerda.

"Somos um país só!", gritou o Ministério da Saúde na deflagração da campanha da vacina, dizendo nas óbvias entrelinhas que o comando pertence ao governo federal (Bolsonaro), não ao governo paulista (Doria). Mas, num "país só", a estratégia de imunização em cenário de escassez priorizaria as regiões mais afetadas, que são também os berços de cepas mutantes do vírus. O Amazonas tem cerca de 510 mil habitantes com mais de 50 anos. Já poderíamos ter injetado a primeira dose em todos eles, sem deixar de vacinar os agentes de saúde da "linha de frente" e parcela dos idosos do país inteiro, se o slogan de Pazuello fosse mais que uma peça de propaganda política.

O governador de Nova York, Andrew Cuomo, não desconhece o efeito narcótico da fotografia da fila perfeita. Lá no começo, determinou a imunização exclusiva dos profissionais de saúde —e decretou multa de US$ 1 milhão para quem vacinasse algum fura-fila. Resultado: uma campanha em ritmo de tartaruga manca, em cenário de abundância de doses. Cuomo só mudou de ideia quando emergiram imagens de ampolas descartadas por vencimento de prazo, saltando do zero ao infinito para autorizar a vacinação de todos os idosos com mais de 65 anos. Na sociedade do espetáculo, é a foto errada, não a razão, que provoca correções de rumo.Quantos artigos destinados a envergonhar fura-filas já foram publicados na Folha? Compare o espaço preenchido por eles com aquele destinado a questionar a eficácia prática de nossos critérios de vacinação. O cotejo oferece uma janela para a paisagem banhada de sol da hipocrisia nacional.O julgamento moral, fundamento da cultura do cancelamento, está na moda. Apontar o dedo acusador para o fura-fila legal (a psicoterapeuta online) ou ilegal (o estudante de medicina que nunca entrou num hospital) confere prestígio social, uma almejada recompensa psicológica.

A eficácia da vacinação depende de sua abrangência demográfica, pois todos estaremos imunes se a ampla maioria for imunizada. Mas preferimos esquecer isso para tratar a vacinação como questão individual. Por meio desse truque, no lugar de vacinar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas.


Alberto Aggio: O fim da guerra e a antecipação da batalha por 2022

No início do mandato, movido pela euforia, Bolsonaro optou por uma “guerra de movimento” cujo objetivo era o estabelecimento de um regime iliberal autoritário. Confrontou o STF, o Congresso e um conjunto de instituições. Sem uma milícia realmente atuante nos padrões do fascismo, exagerou e teve que mudar de estratégia: adotou gradativamente a “guerra de posições”.

A mudança necessitava novos arranjos. Mas veio a pandemia e o cenário se complicou. Uma ruinosa gestão sanitária o impediu de ganhar posições significativas, vieram as fraturas no governo e a queda na popularidade. A derrota nas eleições municipais sinalizou que só havia uma saída: aprofundar suas relações com os partidos do Centrão para garantir uma blindagem contra o impeachment, mantendo ainda o discurso reacionário para assegurar suas bases originais.

Bolsonaro versus Doria, um dos embates em torno da eleição presidencial de 2022

A “guerra de posições” dá agora seus primeiros resultados positivos: a vitória nas eleições para as presidências da Câmara dos deputados e do Senado. Na Câmara, venceu com candidato próprio e no Senado com quem não o fustiga diretamente. Mas, o mais importante é que derrotou em campo aberto tanto Rodrigo Maia, ex-presidente da Casa, quanto João Doria Jr., governador de São Paulo, visto por Bolsonaro como seu principal antagonista na corrida presidencial de 2022.

Apesar de ir em sentido contrário à queda na popularidade denotada nas pesquisas, a vitória no Legislativo altera muita coisa. A “aliança” com o Centrão relativiza o discurso bolsonarista como a única voz do poder. Apesar de ensaios, a bolsonarização de políticos do Centrão não parece ter estofo para se manter. Mas a reviravolta dá claros poderes a um grupo político que vive de recursos e cargos. Para se blindar, Bolsonaro cede poder e sua metamorfose ganha nova figuração.

Tudo parece indicar que, com a conquista da Câmara e a neutralização do Senado, a guerra cede lugar à política, a uma política pragmática que pode ir do conluio dos negócios privados à retomada de um discurso da “tradição republicana brasileira” (Werneck Vianna) de elogio à modernização e ao moderantismo. A partir de agora, o poder terá que buscar o equilíbrio entre os atores que dão sustentação ao governo: o Centrão, com sua imensa diferenciação de personagens; os militares governistas, deslizando para uma posição coadjuvante; e o bolsonarismo raiz, em posição secundária. Não à toa projeta-se uma reorganização ministerial que poderá mudar inteiramente a cara do governo, embora não se saiba ainda o que irá prevalecer: se Bolsonaro será capaz de comandar o Centrão ou se o Centrão subordinará Bolsonaro ou mesmo o anulará.

Uma mirada mais ampla, que ultrapasse a conjuntura, poderia apresentar avaliações curiosas. Uma delas diz que Bolsonaro poderia ter estabelecido um “governo militar sem AI5” e que a “alternativa Centrão” salvou o país de um “ensaio fascista”. Assim, o Bolsonaro que deve se apresentar em 2022 carregará as ambiguidades das metamorfoses que sofreu e não tem como ser idêntico ao de 2018.

A crise nas oposições repercute diretamente no PSDB

Desnecessário dizer que o cenário se alterou também para as forças que se mostravam contrarias a Bolsonaro. O comportamento divisionista do Democratas, especialmente na Câmara, quebrou a espinha dorsal do bloco oposicionista que deveria agregar MDB, PSDB além de parte da esquerda. A derrota acarreta duras repercussões às forças do campo democrático, ampliando suas dificuldades de coesão. O Senado escapou da debacle porque o candidato eleito mostrou-se distinto do bolsonarismo e maleabilidade suficiente para não confrontá-lo.

A resultante é de aprofundamento das divisões no interior do “centro político” e entre este e a esquerda, além das discrepâncias internas em cada força política, o que faz emergir um conjunto de novos atritos e dificuldades, tardando a que se encontre um novo rumo. Nesse cenário, se a sedução por um oposicionismo frouxo a Bolsonaro aumenta, a fórmula salvadora da “frente democrática” se mostra de difícil efetivação.

Num contexto de “democracia de audiência” e de aberta competição eleitoral, a ideia de frente democrática só tem sentido se for ressignificada. Sabendo que não partirá do PT – ele nunca aceitou a lógica e a composição das frentes contra o autoritarismo –, só terá lugar se o centro político conseguir formata-la em torno de uma candidatura competitiva que apresente propostas de superação da crise sanitária e econômica, e avance uma pauta concreta de reformas que reorganize o Estado, enfrentando a desigualdade social e recolocando o país numa perspectiva de cooperação mundial, recuperando sua vocação cosmopolita perdida nos últimos anos.

Caso contrário, restarão essas premissas como referencial às candidaturas de perfil democrático contra a de Bolsonaro, na expectativa de que o nosso sistema eleitoral de dois turnos seja terreno para uma competição eleitoral que não impeça a unidade em torno de uma proposta reformista em favor da reorganização política da Nação.


Vera Magalhães: Estranho no ninho

João Doria Jr. é candidato a presidente da República desde 2018, talvez antes. Quando decidiu adentrar a política, o hoje governador de São Paulo traçou uma rota rápida que o levaria, no curto intervalo de seis anos, ao Palácio do Planalto. Até aqui, os passos deram certo. Mas agora o campeonato será jogado numa outra liga, bem mais dura.

A primeira mostra de que o jogo é bruto veio nos primeiros meses após a eleição. Logo depois do Bolsodoria, o tucano passou a ser hostilizado pelo presidente, pelos filhos e pelo entorno radicalizado.

A razão é simples: o bolsonarismo só pensa na reeleição, e a ordem é aniquilar no nascedouro qualquer potencial adversário. Nesta quinta-feira, a milícia virtual do presidente, deputados federais à frente, começou a alvejar ninguém menos que a empresária Luiza Trajano, por ver nela uma potencial candidata, graças a sua campanha pela vacinação imediata de todos os brasileiros. O jogo é bruto.

Doria não é alguém conhecido exatamente pela calma nem por seguir os ritos da política, que incluem muito diálogo antes das ações. Na segunda-feira, foi anfitrião de um jantar que reuniu figurões tucanos, em que o cardápio servido foi a ideia de que ele assumisse o comando da sigla de entrada, sua candidatura presidencial como prato principal e uma nova tentativa de expulsar Aécio Neves de sobremesa.

Caiu como um tijolo no estômago de parte dos presentes, sobretudo nas bancadas de deputados e senadores, que ato contínuo decidiram manter Bruno Araújo na presidência da legenda e lançar o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, como alternativa a Doria internamente.

A surpresa foi que Leite topou o jogo e não ficou no muro, poleiro de predileção dos tucanos desde sempre. Surge, então, o estranho no ninho com que Doria não contava. Ao menos não agora.

Aliados do paulista dizem que o seu objetivo com o jantar da segunda-feira era instar o partido a adotar uma postura firme de oposição a Bolsonaro, e não antecipar a própria candidatura.

Será mesmo? Dados os porta-vozes da ideia (o ex-ministro Antonio Imbassahy e o deputado federal paulista Samuel Moreira, ambos ligadíssimos a ele), ninguém acredita que o script não tenha sido previamente organizado pelo meticuloso Doria.

O tiro saiu pela culatra, mas ainda assim é temerário apostar que ele vá deixar a sigla só porque apareceu um oponente. Doria sempre repete que é “filho das prévias”, numa alusão aos dois processos seletivos internos que venceu, mesmo sem ser versado nas liturgias da política partidária.

Leite, por sua vez, saiu de vez a campo. Além da frase de alta octanagem política que cunhou, ao afirmar que não misturou seu nome ao de Bolsonaro (um tiro no Bolsodoria), aceitou a convocação de deputados e senadores e vai rodar o país. Em entrevista que fizemos com ele ontem na CBN, assumiu a candidatura sem tergiversar e se disse preparado para os ataques que receberá (já está recebendo, corrigiu) dos gabinetes do ódio bolsonaristas.

Se os dois levarem adiante a disposição de se candidatar, o PSDB pode ter primárias pela primeira vez em sua história. Mesmo com guerras internas no passado, algumas com direito a dedo no olho, sempre prevaleceu um arranjo de cúpulas que evitou esse tipo de escolha.

Dada a deterioração programática e o desgaste político do PSDB desde que Aécio Neves enfiou o partido no pântano do JBS Gate, e desde que Geraldo Alckmin foi reduzido a nanico em 2018, uma disputa poderia oxigenar e dar algum rumo a uma sigla que virou coadjuvante apagada no cenário nacional.

Isso depende, no entanto, de que quem perder aceite a derrota, e de que a contenda não se dê em níveis bolsonarescos. É o que vamos começar a assistir a partir de já, porque essa campanha também já começou.


Sergio Fausto: O realismo oportunista do Centrão e a distopia bolsonarista

Violência, boçalidade e patrimonialismo têm um passado vistoso. Terão futuro promissor?

O saldo da primeira metade da Presidência de Jair Bolsonaro é muito ruim. Mas pior do que os resultados é o espírito que preside à gestão do governo em seu conjunto. A sua marca é o ânimo destrutivo.

Nada é mais simbólico desse fato do que a genuína paixão do presidente pelas armas. Bolsonaro banaliza a vida (“a morte é o destino de todos nós”), dá de ombros para as vítimas da covid-19 (“eu não sou coveiro”) e duvida dos benefícios da vacina (“se virar jacaré, não vem reclamar”), mas não esconde seu entusiasmo com o grande aumento do número de armas nas mãos da população civil, objetivo que vem perseguindo desde o início de seu mandato. Segundo reportagem do jornal O Globo publicada em 31 de janeiro, já são mais de 1 milhão de armas, um aumento de 65% em comparação com 2018.

A paixão pelas armas é correspondida pelo desprezo à cultura, outro traço de Bolsonaro, visível nas escolhas feitas por ele para essa área em seu governo. O elo que une a paixão pelas armas e o desprezo pela cultura é a intolerância, pois a cultura reclama pluralidade e valorização da diferença. “Quando ouço falar em cultura, puxo o meu revólver”, diz um personagem da peça Schlageter, do dramaturgo e poeta nazista Hanns Johst, escrita em 1933, logo após a chegada de Hitler ao poder. Bolsonaro não é nazista, mas compartilha com o personagem a mesma ojeriza à transgressão criativa, que é própria da criação cultural.

O uso do polegar e do indicador para simular uma arma é a marca registrada do presidente. Do gesto derivam dois discursos, que não são exatamente iguais, mas convergem no enaltecimento de virtudes viris. Um deles apela ao instinto de autodefesa do cidadão amedrontado: defenda-se você mesmo, pois o Estado não é capaz de fazê-lo (por suposta culpa da “turma dos direitos humanos”, que amarraria as mãos da polícia). O outro aponta para o uso da violência contra adversários políticos. No início deste mês ele mais uma vez voltou a bater nessa tecla ao anunciar novos decretos para facilitar a compra de armas: “Eu não tenho medo do povo armado, me sinto muito bem ao lado de um povo armado, isso evita que o governante se torne um ditador”.

O alvo real da suposta preocupação democrática do presidente não é, obviamente, ele próprio, mas os seus adversários. Não há como esquecer a reunião ministerial de 22 de abril, em que, alterado, disse que “um povo armado” não acataria as medidas de restrição ao comércio adotadas por prefeitos e governadores.

A distopia bolsonarista projeta na tela do imaginário nacional uma espécie de faroeste caboclo, protagonizado por homens rudes, incultos e indomáveis, um mundo onde a saliva cedeu definitivamente lugar à pólvora e no qual manda quem tem a maior pistola.

A referência do presidente não é Adam Smith e A Riqueza das Nações. Não é a mão invisível do mercado que faz Bolsonaro sonhar à noite e despertar com energia na manhã seguinte para desincumbir-se do seu ofício do presidente. Uma economia de mercado requer uma rede complexa de instituições que regule, contenha, sem sufocar, o espírito animal dos empreendedores. Supõe regras estáveis e agentes estatais “neutros” com capacidade jurídica e operacional para fazê-las valer. Exige também o reconhecimento da ciência como parâmetro fundamental da ação reguladora do Estado, a começar pelas questões elementares do que é ou não nocivo à saúde humana. Exige ainda, como ensina Smith na Teoria dos Sentimentos Morais, uma ética da solidariedade, baseada na empatia. Nada disso é compatível com a distopia do “povo armado” e do “negacionismo científico”. Só se for para um liberalismo de fancaria, mero véu para encobrir interesses mesquinhos e grandes preconceitos.

A distopia bolsonarista é também inconciliável com a ordem e o progresso, lema de inspiração positivista inscrito em nossa bandeira com o advento da República e no espírito das Forças Armadas desde então. Não pode haver ordem sem monopólio estatal da violência exercido por forças armadas e policiais regidas pelos princípios da hierarquia e da disciplina e, no Estado Democrático de Direito, submetidas ao império de direitos e garantias individuais. E não pode haver progresso sem reconhecimento da importância da ciência para o desenvolvimento econômico e social. O que já era uma verdade inquestionável no século 19, quando o positivismo desembarcou no Brasil e fez escola entre os militares, é hoje ainda mais verdadeiro.

A distopia bolsonarista não é inconciliável, porém, com a realidade de um Estado patrimonialista, tomado pelos interesses de corporações e clientelas políticas e gerenciado por profissionais da intermediação política cujo principal propósito é maximizar o poder e a renda que a intermediação lhes permite extrair. O impulso destrutivo do bolsonarismo e o oportunismo do Centrão podem se acomodar mutuamente, à custa do que resta de republicano no Estado brasileiro.

A violência, a boçalidade e o patrimonialismo têm um passado vistoso no país. Terão um futuro promissor?

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP