congresso

Maria Hermínia Tavares: Acolhida assegurada

O jornal registrou com destaque a grande manifestação coletiva da comunidade acadêmica contra o regime militar

"Com 6 mil inscritos, SBPC abre sua reunião", foi a chamada de primeira página da edição de 6 de julho de 1977 desta Folha, anunciando a 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. O destaque se explica por não ser aquele mais um evento como os que a organização promovia para discutir, com reduzido grupo de iniciados, trabalhos geralmente ininteligíveis para os leigos.

Proibido de se realizar na Universidade Federal do Ceará, o encontro foi transferido para a PUC de São Paulo, onde se tornaria a primeira grande manifestação coletiva de repúdio da comunidade acadêmica ao regime militar, dando assim a partida ao seu engajamento aberto na luta pela democracia.

Durante uma semana, nenhum tema relevante para o país foi esquecido: do acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha, alvo de críticas da Sociedade Brasileira de Física, à desigualdade de renda produzida pela política de arrocho salarial da ditadura; do papel do Estado na economia ao modelo político autoritário; das mudanças demográficas ao surgimento de novos movimentos e demandas sociais. Ao longo desse período, os principais debates foram registrados por este jornal. Podem ser lidos no seu arquivo digital.

Foi um momento importante da década de transição do autoritarismo para a democracia. A ele se seguiram outros como os protestos estudantis, as greves operárias no ABC paulista, pronunciamentos empresariais, as eleições de 1982 e a campanha das Diretas Já. Mas o episódio da SBPC, importante em si mesmo, marcou também a abertura de espaço neste diário para o debate de ideias e para os intelectuais que as vocalizaram. Até então, eram território quase exclusivo da imprensa chamada nanica —em semanários como O Pasquim, Opinião ou Movimento. Abrigados pelos grandes veículos, ganharam outra ressonância. Produziram ideias e valores que iriam desembocar na visão generosa de país plasmada na Constituição Cidadã de 1988 e nas políticas sociais das décadas seguintes.

O restabelecimento do regime de liberdades, depois de 20 anos, foi uma obra tocada a muitas mãos e em diferentes palcos, erguidos na sociedade e na esfera da política. Assim também a defesa do sistema democrático hoje ameaçado pela extrema direita virulenta, cujo mentor, de arminha apontada para o direito à informação sem mordaça, vocifera que "o certo" seria "tirar de circulação" os principais órgãos da imprensa. Eis por que o debate informado e acessível a um público amplo é uma dimensão desse interminável empreendimento coletivo, com acolhida assegurada em um jornal centenário.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. 


Roberto Macedo: Sistema político passou ao incentivado presidencialismo de cooptação

Parlamentares ficam soltíssimos para defender interesses pessoais e grupais

Há o presidencialismo de coalização, descrito como uma combinação do presidencialismo com o apoio de uma coalizão multipartidária no Legislativo. Segundo o cientista político Sérgio Abranches, que criou esse conceito, “... é um requisito imprescindível da governabilidade no modelo brasileiro. Nem todos os regimes presidenciais multipartidários dependem tanto de uma coalizão majoritária. No Brasil, as coalizões não são eventuais, são imperativas. Nenhum presidente governou sem o apoio e o respeito de uma coalizão. É um traço permanente de nossas versões do presidencialismo de coalizão”.

E há o presidencialismo de cooptação. Nele o presidente busca o apoio de parlamentares por meio do toma lá verbas e cargos e o dá cá apoio parlamentar. Outra diferença relativamente ao de coalização é que essa troca se dá com parlamentares específicos, ou um grupos deles, e pode ser feita mesmo contrariando a orientação das lideranças e dos programas partidários.

A recente eleição para a presidência da Câmara e a do Senado foi bem mais na linha da cooptação do que da coalizão. Meu artigo anterior neste espaço destacou a reportagem deste jornal Por eleição, Planalto libera R$ 3 bi a parlamentares, publicada em 29 de janeiro. Nela, o que chamou a atenção foi a grande dimensão desse valor, a coincidência dos entendimentos com o período pré-eleitoral nas duas Casas e o amplo alcance de negociações individuais. O ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, que tentou articular uma candidatura em oposição à apoiada pelo Executivo, até reclamou quanto à cooptação praticada.

O senador Tasso Jereissati, em entrevista ao jornal O Globo digital no domingo passado, afirmou: “... esse período agora é diferente, (...) todos os partidos, todos, foram triturados (...) pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. (...) Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. (...) o processo (...) nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual”.

A cooptação individualizada envolveu grupos de tamanho relevante no contexto das organizações partidárias, mas também houve dentro delas grupos contrários à cooptação, com o que vieram rachas partidários marcados por posições opostas na eleição. O mais evidente foi no DEM, de Rodrigo Maia, onde alcançou o grupo dele em contraposição ao do ex-prefeito de Salvador Antônio Carlos Magalhães Neto. Os dois até trocaram impropérios em declarações à imprensa.

Outro racha muito citado foi no PSDB. Aí a liderança do governador João Doria alcançava deputados que votaram em Baleia Rossi, o candidato articulado por Rodrigo Maia. Mas houve também quem optasse por Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro. O deputado tucano Aécio Neves, uma liderança em evidente declínio nacional, ainda assim foi apontado por Doria como um dos mobilizadores desse apoio, novamente com troca de insultos entre as partes.

Esses dois partidos terão enorme trabalho para recuperar sua identidade programática, e arregimentar seus membros em torno dela, se quiserem ter uma influência de peso nas eleições de 2022. Tudo isso tem como pano de fundo um sistema partidário e eleitoral que cria incentivos para os parlamentares buscarem as cooptações. Não havendo o voto distrital, eles não são cobrados pelos eleitores ao longo de seus mandatos, nem tomam por si a iniciativa de relatar o que fazem, ficando assim soltíssimos para defender interesses pessoais e de grupos que os pressionam. Esse comportamento é também aético, pois se desvia do que, como representantes do povo, e não de si mesmos ou desses grupos, deveria marcar as atitudes parlamentares, a defesa do bem comum.

Temas como a retomada do crescimento econômico, o enorme tamanho e a disfuncionalidade do Estado brasileiro, as carências educacionais, sanitárias, ambientais e tecnológicas, a imagem do Brasil no plano internacional, onde está bem atrás dos países que mais avançam, nada disso parece despertar seu interesse e o empenho em ações corretivas. Salvo exceções cada vez mais excepcionais, o que os move mesmo é o interesse em renovar seus mandatos, para o que focam nas distribuições de benesses, sem ponderar seus custos, e no apoio político inquestionado a quem tem o poder de financiar seus projetos eleitorais.

No contexto desse poder, tem papel importante a enorme quantidade de cargos governamentais a oferecer e a liberação de verbas de interesse exclusivo dos parlamentares e de seus apoiadores, as quais constituem financiamento público indireto de campanhas eleitorais, em prejuízo de candidatos não incumbentes.

Mas a Constituição não diz que todos são iguais perante a lei? Ora, no Brasil é costume dizer que leis são como vacinas: umas pegam, outras não. Assim, o momento atual, o das vacinas previamente testadas, deveria servir para o País buscar vacinas legais eficazes contra nossos muitos males político-institucionais.

*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP. É consultor econômico e de ensino superior


Ricardo Noblat: Acordão para salvar o mandato de Silveira será testado hoje

Silêncio de Bolsonaro não significa indiferença

A princípio, Jair Bolsonaro pouco estaria se lixando para o destino do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), preso por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal depois de atentar contra o Estado de Direito. Faz parte do DNA do presidente largar no campo de batalha aliados que se tornam incômodos. Para os filhos, suspeitos de crimes, a regra não vale. Por eles, mata e é capaz de morrer.

Mas Silveira, a essa altura, por tudo que já disse e fez, espelha melhor do que ninguém a extrema direita que apoia Bolsonaro desde que ele se elegeu vereador pelo Rio e passou quase 30 anos como deputado federal. Bolsonaro teme perder parte desse apoio se nada fizer em favor de Silveira, e, pior: se sua turma mais radical, por medo, deixar de se opor com estridência ao Supremo.

Bolsonaro nada disse ainda sobre a prisão de Silveira, mas por interpostas pessoas, agiu em sua defesa. Aprovou a iniciativa de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, de acionar o desativado Conselho de Ética da Casa para aplicar algum tipo de punição a ele que não seja a cassação do seu mandato. Quem sabe assim o Supremo não se daria por satisfeito e relaxaria a prisão?

Aprovou também a iniciativa da Procuradoria-Geral da República de denunciar Silveira por quatro crimes: praticar agressões verbais e graves ameaças contra ministros do Supremo em direito próprio; incitar o emprego de violência e grave ameaça para tentar impedir o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário; e incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo.

O diabo, porém, mora nos detalhes: a Procuradoria não pediu a prisão preventiva de Silveira apesar das pesadas acusações que lhe fez. Pediu que ele seja monitorado por meio de uma tornozeleira, que se recolha em seu domicílio à noite e que seja proibido de frequentar as dependências do Supremo. Que tal? É uma isca para que haja um acordo entre o tribunal e a Câmara.

Quando o ex-ministro Sérgio Moro acusou Bolsonaro de intervenção na Polícia Federal, a Procuradoria requereu ao Supremo a abertura de inquérito contra o presidente. O ministro Celso de Mello autorizou. As investigações se arrastam há meses. É pule de 10 que a Procuradoria concluirá pela inocência de Bolsonaro e arquivará o inquérito. Assunto encerrado.

Está marcada para esta tarde a audiência de custódia do deputado. Nela, o ministro-relator, Alexandre de Moraes, pode decidir se a detenção será mantida, se ele será libertado ou se a prisão será revertida em medida cautelar do tipo: uso de tornozeleira eletrônica, afastamento do mandato, proibição de se relacionar com outros investigados no mesmo inquérito.

Uma vez que os 11 ministros do Supremo concordaram com a prisão de Silveira, por que relaxá-la 24 horas depois? O que ontem pareceu tão grave a ponto de se mandar a Polícia Federal atrás de um parlamentar, hoje simplesmente deixaria de ser? Justiça é para aplicar a lei, não para participar de tenebrosas transações. O que está em questão é o Estado de Direito. Foi ou não violado?

Que fique com a Câmara, inoculada pelo germe do corporativismo, o ônus de livrar a cara de Silveira se assim preferir. A coleção de vídeos gravados por ele, e mensagens postadas nas redes sociais servirão como provas de que neste país se pode desrespeitar a Constituição e ferir o decoro e, no entanto, escapar sem sofrer maiores danos. Por falar em decoro…

Seja bem-vindo de volta ao Congresso o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) que entrou de licença por 121 dias depois que a Polícia Federal o flagrou com mais de 30 mil reais escondidos dentro da cueca. Seu caso não foi analisado até hoje pelo Conselho de Ética da Casa. O Senado passou os últimos quatro meses com 80 integrantes. Vida que segue, como se nada tivesse acontecido.


Merval Pereira: A que ponto chegamos

Nossa mais recente crise institucional, não a derradeira, é consequência da leniência com que as instituições vêm tratando os frequentes abusos autoritários do presidente Bolsonaro e de seus radicais seguidores. Chegamos a essa situação, e não é a primeira desse tipo, porque o Congresso aceitou que deputados bolsonaristas e milícias digitais promovessem, como continuam a fazer depois da prisão do deputado federal (ainda?) Daniel Silveira, ataques às instituições, e que as Forças Armadas aderissem acriticamente ao governo Bolsonaro e aceitassem, algumas vezes com o endosso tácito até mesmo do ministro da Defesa, diversas tentativas de transpor as linhas da legalidade, contra a democracia.

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo encarregado das negociações com os parlamentares, quase nunca fundadas em bases republicanas, declarou que não se envergonha dessas negociações. Deveria, pois assumiu, na sua faceta civil, a parte apodrecida das relações políticas, a mesma tática que o leva, e a outros generais, a repudiar o lulopetismo e, anteriormente, o próprio Centrão. Lembram-se do general Heleno cantando na campanha eleitoral “se gritar pega ladrão, não sobra um no Centrão?”.

A revelação do general Villas Bôas de que a nota de pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) na véspera do julgamento de um habeas corpus a favor do ex-presidente Lula foi feita não em caráter pessoal, mas pelo Alto-Comando do Exército, é muito mais grave do que já parecia há três anos. Não importa se você gosta do Lula ou não, se acha que ele merecia o habeas corpus ou não. É um absurdo que o Alto-Comando do Exército respalde uma declaração daquelas às vésperas de um julgamento do STF.

É por isso que gente como esse deputado bolsonarista se acha em condições de fazer o que fez, de afrontar o Supremo. É inexplicável, também, a ironia atual do general em relação à nota que o ministro Edson Fachin soltou, de repúdio à revelação. Fachin não falou há três anos porque falou pelo STF o decano Celso de Mello, rebatendo vigorosamente a tentativa de pressão ilegal.

Esta crise que estamos vivendo, política e institucional, vem da aceitação de um governo autoritário, antidemocrático, que usa as Forças Armadas para se respaldar nessas ações e usa milícias digitais, que podem se transformar em milícias reais com os decretos de liberação de armas. Bolsonaro está armando a população claramente com o intuito de ter uma militância armada para se impor, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.

Trump tinha milícias armadas que desfilavam pelas ruas. Nos EUA é mais comum o porte de arma, então os militantes andavam altamente armados nas ruas e invadiram o Capitólio por incitação do ex-presidente Trump, que agora será processado civilmente por essa atitude, já que, politicamente, o Partido Republicano não permitiu que fosse impedido de continuar atuando na política.

Estamos chegando ao ponto em que as autoridades terão que tomar uma decisão, porque a democracia está permanentemente sob ataque neste governo Bolsonaro. O mais importante hoje é saber como a Câmara se comportará. No caso de Delcídio do Amaral, o Senado aprovou imediatamente a decisão do STF. Neste caso, há muita resistência, inclusive na base bolsonarista radical que está atuando e continua atacando o Supremo e a democracia, continua atacando os representantes das instituições que consideram agir como agentes da esquerda internacional, numa das várias teorias conspiratórias que espalham.

O importante é saber se a nova base do governo Bolsonaro vai se impor, a ponto de não aceitar a prisão do deputado (ainda?), um sujeito desqualificado, já investigado em dois outros inquéritos no STF, por atitudes antidemocráticas e por espalhar fake news. Saber se o corporativismo que protege uma deputada acusada de homicídio e outro, um senador, apanhado em flagrante com dinheiro escondido nas suas partes íntimas, chega ao ponto de acobertar ataques antidemocráticos de um autoritário que, ironicamente, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional da ditadura militar que tanto venera.


Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro ganha circo e Lira perde o pão

Daniel Silveira ajuda o presidente da República com pauta diversionista que tira o foco da pandemia

Se o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) pretendia encabeçar uma manobra diversionista com o vídeo em que afrontou o Supremo Tribunal Federal, foi bem-sucedido. E não apenas por ter dividido as atenções da plateia em relação às responsabilidades do presidente da República numa quarta-feira de cinzas que amanheceu sem vacinas em várias cidades do país. Também tirou o foco de outro personagem-chave da conjuntura, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Ao contrário de Bolsonaro, porém, o diversionismo atuou em prejuízo das pautas que alimentam Lira.

O presidente da Câmara tem como prioridade zero de sua gestão a consolidação do desmonte lavajatista com a desidratação das instituições de controle. Basta ver o grupo de trabalho por ele instalado na semana passada que tem por objetivo promover mudanças na legislação eleitoral. Quinze entidades de combate à corrupção lideradas pela “Transparência Partidária” se insurgiram em carta contra o procedimento por entenderem que a discussão seria mais condizente com os ritos de uma comissão especial, como prevê o regimento, do que com um grupo de trabalho.

Nas entrelinhas da carta está o temor de que a gestão de um presidente da Casa que é réu no Supremo e exerce seu mandato com base numa liminar, tenha como resultado um afrouxamento da Lei da Ficha Limpa, da improbidade administrativa e nas prerrogativas da Justiça Eleitoral. Paradoxalmente, Daniel Silveira só não se encaixa na mesma condição de Lira porque, como mostrou Sérgio Ramalho, do “The Intercept”, o deputado acumulou licenças na Polícia Militar para não responder a processo cujo resultado o tornaria inelegível.

O plenário da Câmara que se debruçará sobre a decisão unânime do Supremo de confirmar a prisão de Daniel Silveira ainda é caudatário da folgada eleição de Lira por 302 votos. O presidente da Casa é o maior eleitor desta decisão sobre o deputado do PSL, mas a enfrenta emparedado. Se acatar a decisão do Supremo, afrontará suas convicções e de seus aliados que temem abrir a porteira para a prisão em flagrante de parlamentares. Se for na direção contrária, afrontará a Corte em que é réu e com a qual pretende construir pontes para o desmonte do que resta de lajavatismo.

Por isso, ganhará tempo. A Constituição submete a decisão do Supremo ao plenário da Câmara, mas o regimento da Casa prevê um longo trâmite por instâncias que nem instaladas estão, como a Comissão de Constituição e Justiça. Se estivesse em funcionamento sob a presidência da correligionária de Daniel Silveira, Bia Kicis (PSL-DF), Lira teria menos margem de manobra. Como não há CCJ, o processo é remetido à Mesa Diretora da Casa e, só então, ao plenário da Câmara. O regimento prevê deliberação secreta, mas o Supremo já firmou jurisprudência pelo voto aberto.

Aliados de Lira lembravam ontem a previsão regimental de apresentação de Silveira à Câmara para que o deputado permaneça sob sua custódia até a deliberação do plenário por um prazo de até dez sessões. Ao longo desse período, luminares do Centrão esperam que a pressão sobre a Casa possa vir a se diluir com o andamento do processo resultante da denúncia da Procuradoria-Geral da República que sugere até prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica a Silveira.

A denúncia, que pode ser acolhida pelo Supremo sem prévia autorização da Câmara, daria, na expectativa de alguns parlamentares, uma satisfação à opinião pública, aliviando as pressões sobre a Casa. O presidente da Câmara pode, ainda, ganhar tempo se comprometendo com a análise do processo pelo Conselho de Ética e depois, tendo em vista as emergências cotidianas, deixar o tema cair no esquecimento. O deputado Eduardo Bolsonaro, por exemplo, é alvo de dois processos de um conselho que mal funcionou nesta legislatura. A deputada Flordelis de Souza (PSD-RJ) também transita longe dos holofotes e do conselho.

Ao repassar a denúncia para o vice-procurador-geral, Humberto Jacques, Aras livrou-se do embate direto com o bolsonarismo a cinco meses da vacância da cadeira do ministro Marco Aurélio Mello. Ficou claro, porém, na denúncia, que a PGR já tinha motivos para denunciar o deputado desde os primeiros vídeos de 2020. Só o fez agora porque já não havia como contorná-la. Foi Rodrigo Janot quem pediu a prisão do então senador Delcídio do Amaral, em 2015. Ao Supremo não restou alternativa senão decretá-la. Já a letargia de Aras é tamanha que Moraes acabou acomodando a prisão num inquérito polêmico do qual o Supremo é vítima, investigador e julgador.

Com o inquérito, a Corte mantém a corda esticada com Bolsonaro. A sanfona de prazos facultada pela tramitação dos inquéritos no Supremo facilita o jogo de morde e assopra. Seu andamento pode obedecer ainda à conveniência das prioridades comuns a Lira na desidratação do controle da corrupção.

De todos os personagens deste enredo, aquele a quem o imbróglio Daniel Silveira deixou em posição mais confortável foi o piloto de jet-ski do feriado de carnaval. O presidente Jair Bolsonaro engatou um diversionismo com os decretos de liberação de armas e a promoção do spray nasal israelense contra o coronavírus, mas Silveira superou a todos. A novela sobre seu destino dividirá as atenções com o desastre governamental na pandemia.

O protagonismo de Silveira ainda ofereceu ao general Eduardo Villas Bôas o melhor parceiro para o enredo com o qual, desde sua posse no comando do Exército, reabriu o porão. Antes do carnaval, o ex-comandante colocou na pista o livro-entrevista no qual volta a defender o tuíte ameaçador ao Supremo no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A escola evoluiu na avenida vazia com a nota do ministro Edson Fachin, a ironia de Villas Bôas sobre a demora da reação e o tuíte duro do ministro Gilmar Mendes contra o deboche do general. Antes que as cinzas da quarta-feira chegassem, Silveira demonstrou que no porão destravado por Villas Bôas, não há apenas reformados fantasiados de generais, mas cidadãos cada vez mais armados de ódio à democracia. O mesmo que elegeu Bolsonaro e o mantém no poder.


Luiz Carlos Azedo: O que está em jogo?

A revogação da prisão do deputado Daniel Silveira ganharia ares de impunidade para um comportamento inaceitável numa ordem democrática, à qual se opõe

O Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, manteve a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), aquele que na campanha eleitoral destruiu uma placa de rua com o nome da vereadora Marielle Franco (PSol), assassinada por milicianos do Rio de Janeiro. Na terça-feira, o parlamentar, em live de quase 20 minutos, fez ameaças ao STF e a diversos ministros da Corte, com afirmações caluniosas e atentatórias ao Estado de direito democrático. À noite, foi preso pela Polícia Federal, que cumpriu mandado de prisão em flagrante expedido pelo ministro Alexandre de Moraes.

Ex-policial militar, várias vezes punido por mau comportamento, Silveira deixou a corporação ao se eleger deputados federal na onda bolsonarista, em 2018. Está sendo investigado nos inquéritos que apuram as fake news contra o Supremo e os responsáveis pelas manifestações em favor de uma intervenção militar, sob responsabilidade do ministro Moraes. É suspeito de supostas ligações com as milícias do Rio de Janeiro e de ser um dos líderes dos grupos de extrema-direta que pregam a volta do regime militar.

O pretexto para gravação do vídeo por Silveira foram as declarações do ministro Édson Fachin a propósito do depoimento do ex-comandante do Exército Eduardo Villas-Boas, ao Centro de Pesquisa e Documentação (CPDoc) da Fundação Getulio Vargas (FGV), no qual o general afirma que o texto de seu Twitter sobre o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio da Silva, em 2018, fora discutido no Alto-Comando do Exército. No vídeo, Silveira também defende a volta do Ato Institucional nº 5, que levou à fascistização do regime militar implantado após o golpe de 1964 , que destituiu o presidente João Goulart.

O vice-procurador-geral da República Humberto Jaques de Medeiros, ontem mesmo, denunciou Silveira por instigar a ruptura institucional e a animosidade entre o Supremo e as Forças Armadas. A decisão unânime do Supremo cria também jurisprudência sobre esse tipo de manifestação, nas redes sociais, que prega a ruptura da democracia e a violência contra seus poderes constituídos. Hoje, haverá audiência de custódia de Daniel Silveira, mas dificilmente sua prisão em flagrante será revogada por Moraes.

A prisão de Silveira pegou de surpresa o Congresso, principalmente o presidente da Câmara, Arthur Lira, que recém-assumiu o cargo e já está no epicentro de uma crise política provocada por um de seus aliados. A decisão de Moraes gerou polêmica sobre a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar, principalmente, na Câmara, onde aliados de Silveira protestaram contra a decisão por afinidade ideológica. Outros parlamentares, porém, por convicções políticas e jurídicas, consideram que a prisão em flagrante, nas circunstâncias que se deram, é uma afronta à imunidade parlamentar.

Narrativa fascista
Presidente da Casa, Lira havia convocado uma sessão plenária para discutir a questão hoje à tarde, mas a suspendeu. Em seu lugar, marcou uma reunião de líderes. Tenta, ainda, negociar a conversão da prisão em flagrante em prisão domiciliar, para evitar um confronto entre a Câmara e o Supremo, mas essa possibilidade ontem era muito remota. É prerrogativa da Câmara revogar ou não a prisão de deputado. Por mais que se faça uma discussão técnica na Casa, qualquer decisão será política.

A defesa do instituto da imunidade tem forte apelo entre os pares de Silveira. Muitos já são favoráveis à punição do parlamentar pela própria Casa, onde já foi apresentado, pelos partidos de oposição, um pedido de cassação de mandato, por quebra de decoro parlamentar, na Comissão de Ética da Câmara. Nos bastidores, cresce a avaliação de que a revogação da prisão de Silveira não vale um confronto com o Supremo, que seria muito desgastante para os dois Poderes e a antessala de uma grave crise institucional. A manifestação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), foi no sentido de evitar essa crise.

No sábado de Carnaval, os decretos do presidente Jair Bolsonaro sobre venda de armas, uma espécie de “liberou geral” para quem gosta de andar armado, invadiram as prerrogativas do Congresso e geraram apreensão entre os parlamentares, porque os grupos de extrema-direita que Silveira e outros deputados representam estão se transformando em milícias políticas armadas. A truculência desses grupos, principalmente nas eleições, é uma ameaça à democracia.

Foi essa truculência que Daniel Silveira escalou ao ameaçar os ministros do Supremo, pois já tinha dado mostras desse comportamento em diversos episódios, desde a sua eleição. A revogação de sua prisão, em termos políticos, ganharia ares de impunidade para um comportamento inaceitável numa ordem democrática, à qual Silveira se opõe; legitima uma narrativa política de características fascistas na tribuna da Câmara. A imunidade parlamentar tem outras dimensões, que precisam ser consideradas.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-que-esta-em-jogo-2/

William Waack: Divisor de águas?

É tudo muito diferente daquela vez quando a Câmara proibiu que um deputado fosse processado pelo regime militar

A história que se repete para nós não é uma farsa, tragédia, nem sequer uma rima tem. Em 1968, o AI-5 foi decretado para punir uma Câmara dos Deputados que impedira que fosse processado um deputado que defendia liberdades cerceadas pelos militares no poder. A atual Câmara dos Deputados – depois de uma ditadura, uma redemocratização e uma Constituição – vai se ocupar da situação de um deputado que usa das liberdades reconquistadas por gerações de brasileiros para propor acabar com essas liberdades. 

Do ponto de vista do estado de direito e do funcionamento de suas instituições era mais fácil então identificar onde estava o “bem” e o “mal”. Não, não é a questão da “liberdade de expressão” consagrada na imunidade parlamentar: essa proteção não é absoluta nem existe para a prática de delitos penais e o incitamento do golpe e destruição da ordem democrática. O pano de fundo muito mais preocupante é o da legitimidade das instituições envolvidas. 

Começa pelo STF. Uma parte relevante da “insegurança jurídica” que caracteriza as relações na sociedade brasileira se deve à atuação política desse órgão. E do entendimento, entre seus integrantes, de qual seria o melhor efeito político ao tomarem decisões que fizeram da Constituição (que cabe ao STF zelar) uma questão de interpretação dependendo das circunstâncias do momento. Com ministros dando rasteiras em ministros. 

Essa noção (a da instabilidade causada por canetadas de magistrados), mais a situação de caos social com a greve dos caminhoneiros, é o que estava na raiz do “pronunciamiento” em 2018 do então comandante do Exército, general Villas Bôas. Na prática, o coletivo do STF aceitou o que dizia o oficial. Naquele mesmo ano assumiu um novo presidente da Corte e, num entendimento peculiar com o próprio general, aceitou-se como um dos principais assessores do presidente do STF quem até ali fora o chefe de Estado-Maior do Exército (e hoje é o ministro da Defesa). Tudo em nome da pacificação e estabilização da atmosfera política. 

A franja aloprada do bolsonarismo, eleita com expressiva votação na onda disruptiva daquele ano, dedicou-se desde sempre a atacar qualquer instituição ou nome entendido como obstáculo ou adversário do “mito”, em boa parte incentivada por ele mesmo. Para efeitos práticos, foi acompanhada por alguns militares que, de fato, passaram a enxergar no STF um tolhimento inconstitucional dos poderes do chefe do Executivo. Até ele entender-se prazerosamente com o “Centrão”, esse velho conjunto de forças políticas em parte conduzido por gente notória por colidir com a ética, a moral e o Código Penal. 

Legislativo brasileiro, a quem cabe a relevante decisão política sobre o deputado aloprado bolsonarista, vem perdendo qualidade e sofre com extraordinária fragmentação. São resultados muito evidentes de décadas de desgaste do sistema político. No topo desse desgaste figura exatamente a questão da representatividade, ou seja, do distanciamento entre quem elege e quem foi eleito – como ocorre com outros fenômenos do populismo moderno (como Trump), há mais do que um grão de verdade na denúncia que esses movimentos fazem “disso tudo que está aí”. 

Em 1968, a decisão da Câmara de proibir que um deputado fosse processado pelo regime militar foi um divisor de águas na nossa história política. Não é o que se prenuncia agora, pois a palavra de ordem em Brasília é “acomodação”. Fora os estridentes aloprados e suas redes sociais, não há forças relevantes dispostas a partir para qualquer coisa remotamente parecida a um tudo ou nada. Os militares se acomodaram no governo, que se acomodou com o Centrão, empenhado desde sempre em acomodar seus interesses às custas dos cofres públicos, por sua vez esticados ao limite para acomodar as visões antagônicas de garantir ajuda emergencial e respeitar o teto de gastos. 

Todos confortáveis com a ideia de que o próximo embate é só para 2022. 


Igor Gielow: Prisão de deputado mostra os custos do bolsonarismo para os Poderes

STF confirma decisão de Moraes em momento de tensão da corte com militares

A decisão do Supremo Tribunal Federal de manter preso deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) demonstra a extensão dos danos do bolsonarismo à relação entre Poderes no Brasil.

Num preâmbulo, a decretação da prisão pelo ministro Alexandre de Moraes deu oxigênio a uma fogueira cujas brasas foram animadas pelo general Eduardo Villas Bôas, jogando no mesmo escaninho de confusão institucional temas que são imiscíveis —embora guardem raízes genéticas, por assim dizer.

A tensão na praça dos Três Poderes havia sido reduzida consideravelmente no país após a prisão do faz-tudo do clã Bolsonaro Fabrício Queiroz, que levou o presidente a recolher-se e estabelecer uma dança com o centrão que acabou no baile dado por Arthur Lira (PP-AL) ao conquistar a Câmara dos Deputados.

Claro, impropérios seguiram sendo ditos e descaminhos trilhados, em especial na condução da pandemia da Covid-19, mas as palavras Planalto, golpe, Supremo e militares pararam de frequentar conversas como ocorria de forma quase ligeira até junho do ano passado.

Agora, o flagrante contra Silveira após um vídeo de baixo calão que só não é inacreditável porque trata-se de um bolsonarista de quatro costados na tela, evidencia o custo da associação institucional com o movimento ideológico que tem no presidente o líder.

Aliados de Bolsonaro correm para dizer que ele não é Silveira, mas parecem não ter visto o tuíte do filho presidencial Carlos lamentando a prisão do amigo.

Com a previsível confirmação da prisão pelo plenário do Supremo, sobraram a Lira duas opções para a análise do cargo.

A do fígado, usar o corporativismo e relaxar a prisão de Silveira, que alguns especialistas apontam como de difícil justificativa no modo flagrante, embora o crime seja evidente.

Para quem tem a deputada Flordelis (PSD-RJ), acusada de assassinato, solta nos corredores da Câmara, não é um preço moral alto.

A outra saída, cerebral, seria compor um acordo que talvez poupe Silveira da cadeia, mas que o coloque no patíbulo do Conselho de Ética imediatamente.

Seria uma forma de dar alguma satisfação extra corporis. Como lembrou o decano Marco Aurélio Mello, agora Lira terá de analisar não uma decisão monocrática, e sim do plenário por unanimidade.

Seja como for, o presidente da Câmara não tem nem três semanas no cargo e já paga o preço institucional de associação com o bolsonarismo extremado. Silveira inclusive envolveu o Senado em suas críticas.

"Lá no Senado tem muito senador na mãozinha de vocês. E vocês estão nas mãos de muitos senadores", esbraveja o deputado seu monólogo direcionado ao Supremo.

Como não se vê de Bolsonaro disposição de promover uma versão política da Noite das Longas Facas, quando em 1934 Adolf Hitler eliminou a cabeça das SA (Tropas de Assalto) que lhe pavimentaram a chegada ao poder para então consolidar sua aliança condicional com o establishment alemão, a questão que fica é outra.

Lira irá apenas colocar mais um item na fatura apresentada ao Planalto por seu apoio ou começará a ponderar o custo de sua adesão?

Até aqui, pautas bolsonaristas mais explícitas já sofrem bombardeio no Congresso, disposto a tocar agendas econômicas simpáticas ao Planalto. Mas ele também viu temas caros ao centrão, como o enterro da Lava Jato, sendo levados em frente.

Mas há dimensões adicionais à crise em plena data que já foi conhecida como Quarta-Feira de Cinzas.

É indissociável do contexto da decisão confirmada pelos ministos do STF o braseiro mexido pelo general Villas Bôas ao revisitar a confecção do tuíte em que tentava emparedar a corte a não impedir a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva em abril de 2018.

O ex-comandante do Exército, em livro-depoimento lançado pela Fundação Getúlio Vargas, traça claramente o cenário em que discutiu a nota com o Alto-Comando da Força em um ambiente de crescente antipetismo e adesão à candidatura Bolsonaro.

Afinal, como a Folha mostrou no domingo (14), o texto de admoestação era ainda mais duro e segundo Villas Bôas foi lido por três generais que são ministros de Bolsonaro —ao menos um, Luiz Eduardo Ramos, nega ter participado.

Essas revelações precipitaram a reação do ministro Edson Fachin, que levou Silveira a produzir o chorume virtual contra o Supremo, que por sua vez horrorizou outros membros da corte.

Na quarta (16), pelo menos três deles conversaram, inclusive dois críticos de Fachin, levando ao pedido de reação por parte de Moraes —que adota linha dura contra os radicais do bolsonarismo desde o ano passado. O presidente do Supremo, Luiz Fux, não participou da articulação.

Para os militares, a saída até aqui foi o silêncio. Repercutiu mal, mesmo entre oficiais-generais que apoiam a posição de Villas Bôas, ele ter tripudiado de Fachin ao questionar no Twitter por que ele demorou três anos para ver na postagem de 2018 uma ameaça.

Os militares, o comandante do Exército Edson Leal Pujol à frente, riscaram uma linha no chão e tentaram de alguma forma dissociar-se do dia-a-dia de um governo que tem 9 fardados entre seus 23 ministros, inclusive o contestado general da ativa Eduardo Pazuello (Saúde).

Inexequível como fato, deu mais ou menos certo como imagem. Agora, tudo isso é colocado em xeque, com o bônus de verem Silveira, que simboliza um radicalismo ao qual os generais dizem ter asco, no mesmo lado do ringue que eles.

O problema adicional é que a narrativa de Villas Bôas no livro explicita que, no berço, muito da espuma produzida pela hidrofobia bolsonarista tem DNA verde-oliva: o ódio ao PT, ao politicamente correto, ao que percebiam como revanchismo de esquerda.

Agora caberá à surradas instituições, testadas o tempo todo sob Bolsonaro, acharem uma acomodação para mais esse espasmo. A bola está com Lira.


Metropóles: MPF denuncia deputado Daniel Silveira ao Supremo por agressões à Corte

Denúncia foi resposta da Procuradoria-Geral da República (PGR) a ataques contra integrantes do Supremo feitos pelo deputado federal

Flávia Said, Metropóles

O Ministério Público Federal (MPF) denunciou nesta quarta-feira (17/2) o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) ao Supremo Tribunal Federal (STF). A denúncia acusa o deputado de três crimes: 1) praticar agressões verbais e graves ameaças contra ministros da Corte para favorecer interesse próprio, 2) incitar o emprego de violência para tentar impedir o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário e 3) incentivar a animosidade entre as Forças Armadas e o STF.

A denúncia, assinada pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, foi apresentada minutos após o Plenário do Supremo manter, por unanimidade, a prisão em flagrante do parlamentar por crime inafiançável.

A prisão foi determinada após o parlamentar divulgar vídeo em que dispara ataques aos integrantes da Corte, com especial destaque a Edson Fachin, que subiu o tom contra declaração de 2018 feita pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas.

No vídeo, Silveira afirma que os 11 ministros do Supremo “não servem pra porra nenhuma pra esse país”, “não têm caráter, nem escrúpulo, nem moral” e deveriam ser destituídos para a nomeação de “11 novos ministros”. Ele também fez apologia ao Ato Institucional nº 5 (AI-5), mais duro instrumento de repressão da ditadura militar (1964-1985).

Mais sobre o assunto

“Neste último vídeo, não só há uma escalada em relação ao número de insultos, ameaças e impropérios dirigidos aos ministros do Supremo, mas também uma incitação à animosidade entre as Forças Armadas e o Tribunal, quando o denunciado, fazendo alusão às nefastas consequências que advieram do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, entre as quais cita expressamente a cassação de ministros do Supremo, instiga os membros da Corte a prenderem o general Eduardo Villas Bôas, de modo a provocar uma ruptura institucional”, descreve a denúncia.

Resposta da PGR às declarações do deputado federal, a denúncia é uma acusação formal feita na Justiça que, se recebida, torna réu o investigado e dá início a uma ação penal. Como o deputado tem foro privilegiado, cabe ao Supremo analisar o caso.

Prisão em flagrante

Silveira foi preso em sua casa, em Petrópolis (RJ), pela Polícia Federal (PF) no fim da noite de terça, dia em que compartilhou nas redes sociais o vídeo com os ataques ao Supremo. Ele está detido na Superintendência da PF no Rio.

O parlamentar já é investigado pelo STF em dois inquéritos: o que investiga a propagação de fake news e o que mira o financiamento e organização de atos antidemocráticos em Brasília.

Em junho, ele foi alvo de buscas e apreensões pela Polícia Federal e teve o sigilo fiscal quebrado por decisão do ministro Alexandre de Moraes, que é o relator dos inquéritos.


O Globo: Por unanimidade, STF mantém prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira

Decisão foi expedida pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news

Carolina Brígido, O Globo

BRASÍLIA — Por unanimidade, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmaram nesta quarta-feira a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), determinada ontem pelo ministro Alexandre de Moraes. No início da sessão, antes de iniciada a votação, o presidente da Corte, Luiz Fux, fez um breve discurso em prol da harmonia entre os Poderes e em defesa do STF.

— Compete ao Supremo Tribunal Federal zelar pela higidez do funcionamento das instituições brasileiras, promovendo a estabilidade democrática, estimulando a construção de uma visão republicana de país e buscando incansavelmente a harmonia entre os Poderes. Por esses motivos, esta Corte mantém-se vigilante contra qualquer forma de hostilidade à instituição. Ofender autoridades além dos limites permitidos pela liberdade de expressão que nós tanto consagramos no STF exige necessariamente uma pronta atuação da Corte — disse Fux.

Apoiador do presidente Jair Bolsonaro, Silveira é investigado no inquérito dos atos antidemocráticos, que apura a organização e realização de manifestações com ataques ao Legislativo e ao Judiciário, e também no inquérito das fake news, que apura ataques aos ministros da corte. A prisão ocorreu por flagrante delito por crime inafiançável e foi determinada de ofício pelo ministro dentro do inquérito das fake news, sem pedido da Polícia Federal ou da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Antes de determinar a prisão, Moraes consultou alguns ministros, de quem obteve apoio para colocar a medida em prática. O presidente da Corte, Luiz Fux, foi um dos que concordaram com a ideia de Moraes. Portanto, a expectativa já era de que o plenário mantivesse válida a ordem de prisão. A medida foi determinada porque o parlamentar publicou um vídeo com ataques aos ministros do Supremo. Em um dos trechos mais agressivos, ele diz que gostaria de ver ministros da Corte “na rua levando uma surra”.

— Por várias e várias vezes, já te imaginei (Fachin) levando uma surra. Quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime. Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência após a refeição, não é crime — afirmou Silveira.

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Ao votar em plenário, Moraes defendeu a manutenção da prisão em flagrante ordenada contra Silveira. O ministro considerou “gravíssima” a conduta do parlamentar.

Veja: A íntegra da decisão do STF que mandou prender em flagrante o deputado Daniel Silveira

— As suas declarações (do deputado), a sua incitação à violência não se dirigiu apenas a diversos ministros da Corte, ofendidos pelas mais abjetas declarações, mas muito mais do que isso: suas manifestações dirigiam-se a corroer a estrutura do regime democrático e do Estado de Direito, fazendo apologia à ditadura, ao AI-5, pleiteando o fechamento do STF, incitando a violência física, nos limites inclusive da morte de ministros, porque não concorda com posicionamentos — disse, acrescentando:PUBLICIDADE

— Muito mais do que crimes contra a honra praticados contra ministros do STF e a instituição, muito mais do que ofensas pesadas, aqui as manifestações tinham o mesmo intuito de corroer o sistema democrático brasileiro, de abalar o regime jurídico do Estado Democrático de Direito brasileiro.

O ministro lembrou a vida pregressa recente de Silveira. Citou que, em 2019, o parlamentar quebrou a placa feita pela prefeitura do Rio de Janeiro em homenagem à vereadora Marielle Franco, que havia sido assassinada meses antes. Ele também entrou à força do colégio carioca Pedro II para denunciar o suposto uso de material de conotação política em ambiente escolar. O deputado só deixou o local quando a escola chamou a Polícia Federal.

Em outra ocasião, se recusou a usar máscara de proteção individual em um avião durante a pandemia do coronavírus. A PF foi acionada e o a aeronave precisou pousar para o parlamentar ser retirado. Moraes ressaltou também que, quando foi preso na terça-feira, Silveira voltou a se recusar a utilizar máscara no Instituto Médico Legal (IML) e desacatou a policial que pediu que ele realizasse o procedimento.

Na decisão de ontem, Moraes escreveu que “as condutas criminosas do parlamentar configuram flagrante delito, pois verifica-se, de maneira clara e evidente, a perpetuação dos delitos acima mencionados, uma vez que o referido vídeo permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores, sendo que até o momento, apenas em um canal que fora disponibilizado, o vídeo já conta com mais de 55 mil acessos”.

Pouco antes de ser preso, Silveira gravou um novo vídeo com provocações a Moraes. O parlamentar relatou na gravação que a Polícia Federal estava naquele momento em sua residência com um mandado de prisão, mas os policiais não aparecem nas imagens. Silveira afirmou que a decisão descumpria sua “prerrogativa constitucional” de deputado federal.

— Ministro, eu quero que você saiba que você está entrando numa queda de braço que você não pode vencer. Não adianta você tentar me calar. Eu já fui preso mais de 90 vezes na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro — disse, em recado a Moraes.


O Estado de S. Paulo: Aliados de Lira avaliam rejeitar prisão de Silveira e enviar caso ao Conselho de Ética

Deputado bolsonarista foi detido após divulgar um vídeo com apologia ao AI-5, além de discurso de ódio e xingamentos contra os integrantes da Corte

Daniel Weterman, Vinícius Valfré e Anne Warth, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), se articulam para rejeitar a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-SP), mas de uma forma que evite passar a imagem de afronta a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A ideia avaliada nos bastidores, principalmente por partidos do Centrão, éderrubar a ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes, referendada, por unanimidade, pelo plenário da Corte. Na tentativa de contornar o desgaste, porém, o grupo tenta construir um acordo para enviar o caso ao Conselho de Ética da Casa, que está parado desde o ano passado por causa da pandemia do novo coronavírus.

Silveira, um dos principais aliados do presidente Jair Bolsonaro no Congresso, foi preso no fim da noite desta terça-feira, 16, por ordem de Moraes. A decisão ocorreu após o deputado divulgar um vídeo com apologia ao Ato Institucional nº 5 (AI-5), além de discurso de ódio e xingamentos contra os integrantes da Corte.

Moraes considerou que a postagem feita por Silveira configurou desrespeito à Lei de Segurança Nacional ao atentar contra a independência dos Poderes e contra a democracia. Pela Constituição, um deputado só pode ser preso por “flagrante de crime inafiançável”, devendo a Câmara ser comunicada em um prazo de 24 horas para confirmar ou rejeitar a decisão.

Em público, líderes partidários mais envolvidos na construção do acordo têm evitado fazer considerações sobre o episódio, mas, a portas fechadas, há articulações para salvar Silveira. A proposta de enviar o caso ao Conselho de Ética, que, em tese, passaria a analisar um processo de cassação contra o deputado por quebra de decoro parlamentar, seria apenas para ganhar tempo e dar uma resposta à opinião pública e ao próprio Supremo.

Na prática, este será o primeiro teste de fogo de Lira no comando da Câmara. O desfecho do processo liderado por ele poderá representar um enfrentamento ao STF ou um aceno a seus pares, que também têm demandas judiciais na Corte e se incomodam com a pressão de ministros sobre eles.

Levantamento feito pelo Estadão sobre a ficha corrida dos congressistas eleitos em 2018 mostrou que um terço deles é alvo de investigações. O próprio Lira responde a inquéritos em tramitação no Supremo: um relacionado a desvios na Companhia Brasileira de Trens Urbanos e outro na Lava Jato, do chamado “quadrilhão do PP”. Agora, ele tenta construir um acordo para que a crise não se torne uma afronta ao mesmo STF que o tornou réu.

Para barrar a prisão de Silveira, parlamentares devem argumentar que, embora considerem graves as declarações do deputado, Moraes exagerou ao determinar a prisão “em flagrante” após a postagem do vídeo. Nos bastidores, há um temor de que a confirmação da decisão do ministro abra um precedente.

O primeiro vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), afirmou que Silveira cometeu crimes, mas que é preciso avaliar tecnicamente a necessidade de prisão. “A despeito dos ânimos exaltados, o julgamento não deve ser sobre quem falou e o que falou, mas sobre a existência ou não do flagrante. Lembremos que essa decisão gerará precedente”, disse Ramos.

Na mesma linha, o deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP), também aliado do Palácio do Planalto, alertou para uma brecha no futuro. “Não concordo com o perfil do deputado, mas o STF não é o dono do Brasil. Hoje foi Daniel, amanhã pode ser qualquer um de nós”, escreveu o parlamentar.

Para o líder da bancada do Novo, Vinícius Poit (SP), houve abuso na decisão de Moraes porque Silveira deveria ser processado antes pelos ataques, como qualquer outro cidadão. Embora não concorde com o teor das declarações do colega, Poit disse que a tendência é a bancada da sigla rejeitar a prisão.

“Estamos tendendo a votar pela rejeição da prisão. A gente tem que pontuar que não concordamos com o que ele falou, mas estamos estudando se cabe alguma coisa no Conselho de Ética ou não. Liberdade é liberdade. Não podemos aplicar a lei só quando nos convém”, afirmou o líder do Novo.

A estratégia para trocar a prisão de Silveira por providências internas enfrenta, porém, resistência mesmo entre integrantes do grupo mais próximo ao governo e a Lira. O receio desses parlamentares é de que uma eventual abertura de processo no Conselho de Ética seja interpretada como tentativa de ludibriar a opinião pública e o STF. O colegiado está desativado por causa da pandemia e ainda nem começou a analisar o caso da deputada Flordelis (PSD-RJ), acusada de mandar matar o marido.

Um dos principais aliados de Lira, o deputado Jhonatan de Jesus (Republicanos-RR) disse que sua posição ainda não está definida. “Que a decisão do ministro Alexandre vai além do artigo 53 da Constituição Federal (sobre a prisão em flagrante), ela vai. Mas a forma como o colega deputado abordou é humilhante para os ministros da Suprema Corte”, admitiu ele.

Já na avaliação do deputado Fábio Trad (PSD-MS), a decisão de Moraes não ofende direitos dos parlamentares e está correta sobre a prisão em flagrante. Para o parlamentar, um “meio-termo”, com envio do caso ao Conselho de Ética, seria uma mensagem negativa da Câmara à sociedade.

“São 19 minutos de ofensas que estão sendo reportadas e chegando ao conhecimento do público pela postagem. As consumações se perpetuam no tempo. Não vejo violação de prerrogativas do Parlamento”, destacou Trad. “Até ele ter o direito, a tramitação, a ampla defesa, o contraditório (no Conselho de Ética), qual a mensagem que o Parlamento transmite à sociedade? Isso não pode. Não há liberdade para a prática de crimes. E ele praticou”.

Oposição defende cassação de Daniel Silveira

Enquanto os partidos aliados a Lira se movimentam para rejeitar a prisão de Silveira, a oposição quer marcar posição e cassar o mandato dele, sob o argumento de quebra de decoro.

O líder do PT na Casa, Ênio Verri (PR), disse que o partido vai se posicionar a favor da cassação do mandato de Silveira. “Vou me posicionar a favor da instalação do Conselho de Ética, que é quem deve decidir. Mas sou a favor da cassação do mandato dele, pelo histórico, não apenas pelo fato. Ele é reincidente, e uma pessoa que não honra o que jurou sob a Constituição tem de responder por isso”, afirmou.

A primeira vice-líder do PCdoB, Perpétua Almeida (AC), disse que Silveira “confunde imunidade parlamentar com impunidade” e abusa da liberdade de expressão para cometer crimes. “O deputado atenta contra a Constituição e os pilares da Democracia, diminuindo a autoridade do STF e a independência dos Poderes”, observou ela. “O Parlamento não pode assistir a tudo isso e não puni-lo. Precisamos manter a prisão, levá-lo ao Conselho de Ética e cassar o mandato dele.”

O PSOL entrou com representação para cassar o mandato do deputado no Conselho de Ética da Câmara. Aliados de Lira, no entanto, dizem ser preciso reativar o colegiado para avaliar eventuais punições mais leves a Silveira, entre elas a suspensão.

O líder do PSDB na Câmara, Rodrigo de Castro (MG), não antecipou qual será a orientação à bancada na votação sobre manter ou não a prisão, mas reprovou os ataques feitos por Silveira aos ministros do Supremo.

“As declarações são estarrecedoras. Trata-se de um dos ataques mais ultrajantes que a Suprema Corte já sofreu”, observou Castro. “No âmbito da Câmara, o foro para apurar as infrações cometidas pelo deputado é o Conselho de Ética, mas, ainda assim, todas as penas que possam ser aplicadas contra ele são insuficientes frente ao que a sociedade espera”.

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Fernando Exman: A vacina foi a ilusão do Carnaval de 2021

Governo deveria viabilizar produção local do imunizante

Quarta-feira de Cinzas, dia em que as ilusões de Carnaval se tornam menos turvas, a realidade se impõe, nada mais serve de desculpa para adiar novamente a execução do que foi planejado ou ignorado. Ilusões de Carnaval em tempos de pandemia têm lá suas particularidades.

Em Brasília, o devaneio foi do governo local. Acreditou que conseguiria inventar por meio de decreto uma nova modalidade de folia, o Carnaval sentado. Bares e restaurantes foram autorizados a funcionar, desde que não houvesse passistas nos salões ou nas ruas. Impossível controlar. Os próximos balanços do Ministério da Saúde dirão se a estratégia funcionou ou foi apenas para autoridade sanitária ver.

O governo Bolsonaro também vai criando suas histórias de Carnaval. No primeiro ano, a data ficou marcada pelas publicações escatológicas do presidente. Este deve passar a ser conhecido por aquele em que apenas o Centrão e os armamentistas tiveram motivos para jogar confete.

Depois de muito resistir e criticar quem o fez, Bolsonaro acabou cedendo o Ministério da Cidadania a partidos aliados. Outras mudanças no primeiro escalão devem ocorrer durante a Quaresma - para quem crê na Bíblia, um período de penitência e reorientação.

Bolsonaro descumpriu o compromisso feito durante a campanha de manter-se afastado das práticas tradicionais da política, mas, em contrapartida, na sexta-feira editou uma nova leva de decretos para flexibilizar o acesso a armas e munições. Era uma promessa antiga, adiada há tempos. Já havia, inclusive, virado motivo de deboche entre seus apoiadores em razão da demora e de sucessivos adiamentos.

O governo esperou a nova cúpula do Congresso tomar posse e se estabelecer no comando da Câmara e do Senado. Agora é menor o risco de aprovação de um decreto legislativo que suste esses atos normativos do Executivo, tanto que a oposição já decidiu judicializar. Mesmo assim, será interessante ver como o governo vai se equilibrar entre dois de seus pilares de sustentação: a bancada da segurança pública e a bancada evangélica.

Contudo, provavelmente a vacina seja a maior ilusão do brasileiro nesta Quarta-Feira de Cinzas. Estados e municípios registram problemas no fluxo de imunização da população. Crescem as reclamações dos entes federativos quanto aos critérios de divisão das doses e à demora no envio das próximas levas. Governadores que fazem oposição ao governo indagam se haveria algum tipo de desprestígio proposital em relação às suas administrações.

Tem sido lenta, também, a mobilização do setor público no sentido de construir as condições necessárias para o desenvolvimento e a produção em massa de vacinas nacionais.

O registro de novas cepas do coronavírus comprova a necessidade de o Brasil ter como garantir, a longo prazo, uma autonomia nesta frente de batalha contra a covid-19. Isso envolve a estruturação de uma cadeia que assegure o desenvolvimento e a capacidade de produção em massa de imunizantes, testes para a detecção de novas variantes, assim como pressuponha a autossuficiência no abastecimento de insumos farmacológicos ativos (IFAs), substâncias que só ganharam notoriedade do público em geral depois que começaram a faltar.

Não por culpa do setor privado, é ainda tímida a interação entre a indústria e o governo. A indústria farmacêutica depende da inovação, se não quiser vender apenas produtos existes e acabar caindo numa guerra de preços cujo resultado óbvio seria manter no jogo apenas quem tiver muita escala.

O Estado, por sua vez, deve adotar práticas regulatórias mais amigáveis e exercer seu poder de compra - inclusive dividindo os riscos, para que a iniciativa privada consiga avançar no sentido de dominar as tecnologias e processos fundamentais para o cumprimento desta missão. Por isso são tão bem-vindos instrumentos como o da encomenda tecnológica, corretamente utilizada nesta primeira fase do combate à covid-19.

Reginaldo Arcuri, presidente executivo do Grupo FarmaBrasil, associação da indústria farmacêutica de capital nacional e de pesquisa, conta que a entidade tem mantido contato com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, BNDES e Ministério da Economia. A ideia é mapear o que é necessário fazer para que se tenha uma vacina brasileira.

O que é preciso para enfrentar esse desafio com sucesso? Arcuri responde: “Clareza do governo do que ele quer. Segundo, coordenação dos órgãos de governo. Não pode começar o processo e lá na frente a Receita Federal ou a Advocacia-Geral da União (AGU) dizer que não pode... Em terceiro, dinheiro. Tem que ter dinheiro. Mas, não é dinheiro para jogar para o alto e ver quem pega”.

Ele cita como exemplo a análise do custo de uma etapa pré-clínica. Nesta fase, argumenta, as empresas devem dizer quanto estão dispostas a desembolsar, mas o governo também precisaria fazê-lo. “Isso é compartilhamento de risco. Está na legislação brasileira e pode ser feito. Não há problema nenhum. E a fundo perdido, não é empréstimo.”

Previsibilidade e segurança jurídica entram na equação. “Tudo leva tempo”, acrescenta o presidente executivo do Grupo FarmaBrasil, segundo quem a indústria nacional demoraria entre um e dois anos para produzir um imunizante local, se todas as condições ideais forem construídas. “Correr risco com dinheiro público não é dar dinheiro para bandido.”

Informações oficiais do governo apontam que algumas vacinas nacionais já estariam em fase de desenvolvimento, inclusive com testes em animais e com a possibilidade de começarem logo a testagem em seres humanos. A velocidade que isso vai se desenrolar ainda é uma incógnita.

Talvez o Carnaval do ano que vem seja marcado por marchinhas e sambas-enredo críticos à atuação do governo. Os foliões não costumam perdoar. Nem mesmo o médico sanitarista Oswaldo Cruz escapou das ironias na época da Revolta da Vacina, mesmo estando do lado certo da história.