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RPD || Henrique Brandão: Exclusão e preconceito unem Samba e Rap

Forte na construção do mito, documentário do show que o rapper fez, em novembro de 2019, no Theatro Municipal de São Paulo, reivindica para si os lugares da história cultural do país

O documentário “Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem” tem recebido rasgados elogios na imprensa e nas redes sociais, desde que estreou na Netflix, em 8 de dezembro. O filme é o registro do show de lançamento do álbum homônimo do rapper paulista. Assisti-lo vale o ingresso, ou, mais apropriado para os tempos pandêmicos atuais, o clique no canal de streaming.

O local da apresentação é o palco do tradicional Theatro Municipal de São Paulo. Noite histórica. Teatro lotado, não pela costumeira plateia de melômanos de música clássica, mas por pessoas que sabiam na ponta da língua as rimas carregadas de contundência do rapper paulista. O público estava à vontade.

O que poderia vir a ser apenas o registro de um momento de ocupação de um espaço elitista por natureza, nas mãos de Emicida, do roteirista Toni C. e do diretor Fred Ouro Preto, transformou-se em um filme-manifesto muito original. Ao mesmo tempo em que carrega a visão particular de um artista oriundo da periferia de São Paulo, o documentário vai além e procura traçar um panorama da música brasileira de matriz africana e suas ligações com o rap.

Sem pretensões sociológicas, mas com críticas incisivas ao caráter excludente da formação social brasileira, Emicida é o condutor da história. No palco, divide músicas com convidados. O making off revela artistas que participaram da gravação do disco: (Zeca Pagodinho, Marcos Valle, Fabiana Cozza e Fernanda Montenegro). Em off, sua voz costura imagens atuais com cenas do passado, narrando a história do Brasil à sua maneira. Não a história triunfalista, mas o outro lado da moeda, em que a cara impressa é a dos pobres e negros que viveram – vivem – no país que foi o último das Américas a abolir a escravidão.

Emicida comenta: “de alguma forma meus sonhos e minhas lutas começaram muito tempo antes da minha chegada”. É a deixa para o início do passeio pela trajetória musical do país, estabelecendo conexão com o samba, outro gênero que enfrentou preconceitos e dificuldades para ser reconhecido.

Do início do século XX, quando o samba surgiu no Rio de Janeiro, até os dias atuais, muito aconteceu no panorama musical, mas pouca coisa mudou no que diz respeito à criminalização do pobre. “Os artistas de morro foram perseguidos por todos os meios. O Estado Brasileiro [criou] um instrumento jurídico conhecido como Lei da Vadiagem que, ao longo dos anos, aprisionou sambistas. O bizarro é que essa lei segue em vigor até hoje”, diz Emicida. Para comprovar a tese, imagens mostram a polícia reprimindo a gravação de um clipe do artista em uma comunidade da Zona Norte paulistana. É o presente repetindo o passado.

“O samba é o Brasil que deu certo”, exalta o rapper. “Não tem vitória possível para este país distante do samba”, enfatiza. Na tela, vão desfilando personagens que tiveram papel decisivo no gênero: Pixinguinha, Donga e os “Oito Batutas”, Ismael Silva, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Lecy Brandão, Riachão, Nelson Cavaquinho, entre outros.

Para Emicida, o rap e o samba são da mesma cepa. Jovelina, Jackson do Pandeiro, Jair Rodrigues e Wilson Batista “já eram hip-hop antes de nós existirmos”, defende. “Este fruto, ora azedo, ora adocicado que conhecemos como rap, hoje vem de uma grande árvore, e, se você for buscar as suas raízes, vai encontrar o samba.”

Não à toa, Emicida aproxima o rap ao samba. Traz para junto de si Wilson das Neves, ídolo confesso, descoberto em suas garimpagens discográficas pelos sebos, que vira seu parceiro em uma faixa do disco. O lendário baterista, com seu swing peculiar, elegante por natureza, faleceu antes da apresentação no Municipal paulista, para tristeza do rapper.

Em uma conversa com Marcos Vale, Emicida revela sua ambição: fundar um novo ritmo, uma nova linguagem artística: “com o AmarElo, eu tenho chamado de neosamba”.

Pelo sucesso que o disco vem fazendo, (conquistou o Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa”) e com esse poderoso inventário audiovisual, o rapper, com sua postura ao mesmo tempo altiva e serena, é hoje uma figura relevante da música brasileira.

Como mostra com cristalina evidência no documentário, Emicida sabe que, para mudar as coisas que se perpetuam há anos, é necessário juntar forças. “A única coisa que nós temos é uns aos outros”. Este é um mantra que perpassa o filme.

O rap está assentado no sampler, no uso da contribuição de “amostras” de outros artistas. Emicida resgatou versos de Belchior e criou a trilha sonora da pandemia: “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

Que assim seja.

*Henrique Brandão é jornalista e escritor


RPD || Dora Kaufman: A complexidade da decisão da Ford de deixar o Brasil

A pandemia da Covid-19 acentuou a mudança comportamental com impactos no futuro da mobilidade e preocupação com a sustentabilidade. Contexto influiu na crise da Ford e decisão de fechar suas fábricas no Brasil

A 51ª Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial, pela primeira vez realizada virtualmente por conta da pandemia da Covid-19 (janeiro, 2021), teve como tema central “The Great Reset”, compromisso de reconstrução das bases do sistema socioeconômico visando um futuro “mais justo, sustentável e resiliente”.

O Relatório de Riscos Globais de 2021 do Fórum, um dos mais importantes desde sua concepção em 2006, identificou como um dos principais riscos à degradação ambiental (condições climáticas adversas e perda de biodiversidade); a meta é descarbonizar a economia até 2030.[1]

Não por coincidência, o retorno dos EUA ao “Acordo de Paris” foi um dos primeiros atos assinados pelo Presidente Joe Biden. A agenda da sustentabilidade impacta todas as indústrias, particularmente a indústria automotiva. Guiadas pela “economia verde”, as montadoras estão investindo pesado na ampliação de suas linhas de veículos elétricos (EVs - Electric Vehicles).

É interessante observar que a liderança desse segmento pertence à Tesla, empresa de tecnologia e não uma das tradicionais montadoras, detendo 50% do valor de mercado, seguida pela Toyota e Volkswagen. A Ford, atualmente está classificada na posição 15, com planos de eletrificação começando por modelos “populares", como o Mustang Mach-E SUV.[2]

Além dos carros elétricos, com a migração da queima de combustível fóssil para corrente elétrica, eliminando os impactos climáticos negativos. Outros três fatores são responsáveis pela transformação da indústria automotiva: o conceito de acesso substituindo a propriedade, o veículo autônomo e a mudança comportamental. Em 2000, o economista americano Jeremy Rifkin publicou o livro A Era do Acesso e defendeu que a noção de propriedade tende a ser substituída pelo acesso, e a relação entre vendedores e compradores para a de fornecedores e usuários.

Nesse ambiente econômico, as empresas, no limite, entregarão gratuitamente seus produtos apostando no relacionamento com seus clientes, baseado na prestação de serviços. A garantia de acesso ao bem, quando e como preferir, torna-se mais importante do que a propriedade desse bem. Experiências como Uber sinalizam nessa direção estimulando, inclusive, serviços de aluguel de veículos por parte de montadoras.

A comercialização de carros autônomos enfrenta desafios ainda não equacionados - conexão com a infraestrutura das cidades e arcabouço regulatório incluindo a responsabilidade por eventuais danos -, mas as expectativas são promissoras. O relatório [3], conduzido pela KPMG com 751 executivos norte-americanos, inclusive da área de transportes, apontou que 82% dos entrevistados acreditam que os veículos autônomos serão uma realidade nos próximos 10 anos, com 35% prevendo que o fato ocorrerá nos próximos cinco anos.

A pandemia da Covid-19 acentuou a mudança comportamental com impactos no futuro da mobilidade, como aponta estudo da consultoria McKinsey[4], ampliando os canais digitais e as preocupações com a sustentabilidade, favorecendo a mobilidade compartilhada, e a micromobilidade com veículos leves tais como as bicicletas (expectativa de aumento de 5% no uso), as scooters e os ciclomotores. Esse é o contexto para compreender a crise da Ford com a subsequente decisão de fechar suas fábricas no Brasil, ela que foi a primeira montadora a se instalar no país no longínquo ano de 1919. A Ford não conseguiu se posicionar bem neste novo cenário, está atrasada com as soluções inovadoras (carro elétrico, carro autônomo) e, pior, não teve sucesso em concretizar coligações ou fusões com outras montadoras seguindo o movimento global, como bem ilustra a recém constituída Stellantis, fusão entre Fiat Chrysler e Peugeot Citroën.

Adicionalmente, as condições desfavoráveis do Brasil configuram externalidades negativas. O coordenador do Observatório de Inovação da USP, Glauco Arbix, alerta para redução mais acelerada da participação da indústria brasileira no PIB, comparativamente ao resto do mundo, caracterizada por “desindustrialização prematura”, gerando uma economia disfuncional, elevando ainda mais o “custo Brasil”. Esse movimento, segundo Arbix, atinge fortemente o setor automotivo, dentre outros fatores pelo declínio da indústria com base no petróleo.

No caso da Ford, o atrativo do tamanho do mercado consumidor brasileiro não compensou as condições de produção mais favoráveis da Argentina. Em dezembro último, a montadora alemã Mercedes-Benz anunciou o fechamento de sua fábrica em Iracemápolis, no interior paulista, onde produzia os modelos Classe C sedã e o utilitário esportivo GLA. Resta-nos torcer para não virar tendência entre as montadoras.

*Dora Kaufman é doutora em Mídias Digitais pela USP, pós-doutora pela COPPE-UFRJ e pesquisadora dos impactos sociais de Inteligência Artificial em seu pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TID D|PUC-SP), sob supervisão de Lucia Santaella, e participa do grupo de IA do Instituto de Estudos Avançados e do Centro de Pesquisa Atopos, ambos da USP.


[1] (http://reports.weforum.org/global-risks-report-2021/). 

[2] (https://www.visualcapitalist.com/worlds-top-car-manufacturer-by-market-cap/)

[3] "Vivendo em um mundo de IA" (Living in an AI world,https://advisory.kpmg.us/content/dam/advisory/en/pdfs/2020/transportation-living-in-an-ai-world.pdf.)   

[4] (https://www.mckinsey.com/industries/automotive-and-assembly/our-insights/from-no-mobility-to-future-mobility-where-covid-19-has-accelerated-change)


RPD || Dawisson Belém Lopes: A política externa brasileira num labirinto borgiano

Pária mundial “por opção”, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo, o governo Bolsonaro é responsável por um dos piores momentos da política externa brasileira, deixando de perseguir interesses concretos do país

Não faz muito tempo, o Brasil jactava-se de seu universalismo. Era o país que não conhecia inimigos. Alcançava praticamente todo recanto do planeta com sua rede diplomática. Chefiava organismos prestigiosos, como a OMC e a FAO, e cedia seus nacionais para tribunais e cortes internacionais. Orgulhava-se de sua chancelaria. Tinha no Ministro das Relações Exteriores um signo da melhor tradição intelectual. Liderava agendas centrais, como a do meio ambiente, e era consultado em assuntos de direitos humanos, governança da internet, paz e segurança. Nossa República Federativa fazia boa figura no teatro global.

Esse tempo de bem-aventurança, contudo, ficou para trás. O Brasil, hoje, é “pária por opção” – invocando aqui palavras do chanceler Ernesto Araújo. Num contexto de desafios, em que despontam a rivalidade sino-americana e o arrasamento pandêmico, o governo federal vê diminuir a margem para manobrar. Opções estratégicas sobre a mesa vão minguando, à medida que nos indispomos com potências e abdicamos de pretensões de liderança no entorno geográfico, deixando de perseguir interesses concretos do país.

Responsável por mais de 30% do comércio externo brasileiro, a China é quem ajuda a manter as contas no azul. A despeito disso, Jair Bolsonaro e asseclas hostilizam Pequim sem cessar, desde a campanha eleitoral, em 2018, até o presente. Xi Jinping já emite, por meio de seus representantes empresariais e diplomáticos, ameaças de represália. Segundo lugar entre parceiros comerciais, além de maiores investidores no Brasil durante a década de 2010, os Estados Unidos também são fundamentais no grande esquema das coisas. Porém, como o incumbente do Planalto amarrou os destinos da nossa nação a Donald Trump, não se deve esperar atitude benevolente de Joe Biden no porvir.

Entre europeus, nada muito distinto. Terceira parceira comercial, a Holanda rejeitou, pela via parlamentar, o acordo UE-Mercosul, sob argumento de defesa da Amazônia. A Espanha, quinta no ranking do comércio externo, é governada pela esquerda, o que dificulta interlocução mais profícua. A Alemanha vive às turras com o maior país da América do Sul; além do desgaste da imagem, negócios permanecerão parados enquanto as práticas ambientais não forem revistas. A França, outra investidora no Brasil, faz objeção vocal à política ambiental e, como os chineses, planeja deixar de comprar os grãos que movem o agronegócio pátrio.
Na América Latina, a configuração não é menos dramática. Por quase um ano, os chefes de Estado de Brasil e Argentina (esta, a nossa quarta maior parceira comercial) não trocaram uma palavra sequer. O silêncio foi rompido recentemente, por iniciativa de Buenos Aires, mas os canais seguem obstruídos. Já o oitavo lugar no ranking de parceiros comerciais, o México, também é liderado pela esquerda, o que inviabiliza o diálogo – segundo a lógica sectária bolsonarista. México e Argentina coordenam entre si as iniciativas regionais, na ausência do Brasil. Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano, resume o imbróglio: “o Brasil ficará isolado em seu autoritarismo.”

Uma nota sobre a pandemia. O enfrentamento brasileiro ao novo coronavírus foi considerado, numa amostra de 98 países, o pior de todos, segundo think tank australiano. Parte dessa desastrosa condução deveu-se à incompetência nas mediações com o restante do mundo. Com uma indústria farmacêutica que importa 90% de seus insumos e diante da opção por não investir na fabricação de imunizante nacional para controlar o espalhamento da covid-19, o Brasil tornou-se refém de suprimento externo. Em tempos de escassez, porém, cada estado favorece primeiramente a população local. De exemplo em políticas públicas para vacinação em massa, passamos a figurar entre os que, pela incapacidade de lidar com a doença, sabotam o esforço de contenção do vírus.

Diante de fracassos retumbantes na política externa, como reagem o presidente da República e seu chanceler? Em gestos que exemplificam um descolamento de fatos e estatísticas, Bolsonaro e Araújo reúnem a fina flor da direita populista – de Andorra à Ucrânia, passando por Hungria e Índia – para clamar por “liberdade” e “família”, ao mesmo tempo em que flertam com monarquias teocráticas do Oriente Médio. Talvez seja o que lhes tenha restado no tabuleiro geopolítico. Como num conto de Borges, fica para o observador a incômoda sensação de que, quanto mais avançamos por estas sendas, mais se bifurcam os caminhos do labirinto.

*Dawisson Belém Lopes é Professor Associado de Política Internacional e Comparada na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e, desde março de 2018, Diretor-adjunto de Relações Internacionais da UFMG.


RPD || André Amado: Os grandes escritores e o término de suas obras

André Amado analisa, como os grandes autores garantem, por meio da técnica literária, o interesse do leitor até o fim das tramas de suas histórias

Se dependesse de consenso, obra alguma dos grandes escritores terminaria. Vejam só.

Com a autoridade de ter sido o autor de A Room With A View (1908) e Howards End (1910) e reconhecido como o decano dos críticos literários, E. M. Foster estimava que as histórias devessem ter começo, meio e fim. Ilustrava com As Mil e Uma Noites, em que a narrativa seguia a cronologia de o jantar vir depois do almoço; a terça, depois da segunda; e a decadência, depois da morte.

Henry James (1843-1916) chamava o último capítulo de um livro de wind-up (arredondamento), quando se distribuíam prêmios, pensões, maridos, esposas, filhos, milhões, parágrafos acrescentados e comentários alegres. Já Italo Calvino (1923-85) dribla a ironia de James e distingue tipos diferentes de término das narrativas: quando o herói supera as adversidades, morre ou amadurece; e, no caso dos romances policiais, quando se descobre o culpado. De maneira geral, para Calvino, o final de um romance deveria ocorrer sempre que contribuísse para evitar a repetição, na mesma linha do que dissera Jane Austen (1775-1817): o romancista não tem como ocultar o momento em que a história acaba.

Outros escritores seriam até mais contundentes. Atribui-se a Flaubert (1821-80), por exemplo, a sentença de que é burrice querer concluir uma história. Para Ricardo Piglia (1941-2017), sem finitude não há verdade, declaração quase idêntica à de Stephen Koch (1968-): se não houver final, não há história. Carlos Mastronardi (1901-76) arrematou: Não temos uma linguagem para os finais; talvez uma linguagem para os finais exija a total abolição das linguagens.

Alberto Manguel (1948-) acrescenta um complicador. Resgata a Divina Comédia para revelar o truque de Dante – o propósito da peregrinação é contar as aventuras. Vale dizer, a narrativa da viagem consiste em situar no final o começo. É o que também pensa Allan Poe. Em “Assassinatos na Rua Morgue” (1841), o desfecho da história determina a ordem e a causalidade dos eventos narrados no começo. Trata-se da técnica do closure (fechamento), pela qual o escritor se fixa no desfecho e constrói a narrativa de trás para frente, buscando, assim, assegurar-se do controle completo do desenvolvimento da trama e da santidade do mistério, que só poderá ser revelado no último momento, tornando-se quase um personagem invisível da trama.

Tudo bem. Enfim, o consenso parece formar-se: a retenção do segredo da história garante o interesse do leitor. Melhor técnica para o fechamento da obra, impossível. Só que Patricia Merivale e Susan Sweeny (1999) exploraram outras opções que batizaram de história metafísica de detetives, segundo a qual o objetivo da investigação não seria mais encontrar uma resposta clara para o enigma perfeito dado a priori, mas decifrar o sentido do próprio texto. Em “La Muerte y La Brújula”, Jorge Luiz Borges reforçaria a transgressão: desafia a estrutura da narrativa fechada, ao não resolver os mistérios e a suscitar outros mistérios igualmente impenetráveis.

Garcia-Roza (1936-2020) admirava Allan Poe e Borges e, por isso, convidou ambos para enriquecer sua visão da literatura. De um lado, recusou que o autor pudesse sozinho desfazer as intrigas e decodificar a trama das histórias. Para ele, existiriam tantos autores de uma obra quanto leitores. Daí não ser mais possível uma única interpretação. Ao leitor, a tarefa, portanto, de produzir sua própria interpretação. De outro, Garcia-Roza citava Poe (A essência de todo crime permanece oculta, “O homem da Multidão”, 1940) para ressaltar o conceito de inescrutabilidade, significante que não permitia simplificação. Em uma palavra, mistérios podem ser explicados, mas a interpretação de um enigma requer nova interpretação e, assim, sucessivamente, sem fim. Não há, pois, solução para o enigma. Nunca.

Como todo escritor de gênio, Ian McEwan não chega a celebrar o consenso sobre o término de uma obra, mas, de alguma maneira, nos explica porque a alternativa é até mais convincente. Em Atonement (2001), Briony demora a vida toda para entender que não tem como chegar a final algum para a história que está contando, o que, por sua vez, acaba afetando a própria forma final da obra que o leitor tem em mãos, na qual ele tampouco encontra um fim satisfatório, bem fechado, como aqueles das histórias fabulosas em que a Briony acreditava tão piamente, quando criança (Tatiana Souza, tese de doutorado apresentada à Universidade Estadual da Paraíba).

Podem-se encerrar as provocações reunidas neste artigo com a reflexão de Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual um livro sobre a literatura contemporânea não pode ter conclusão, porque o contemporâneo é o inacabado, o inconcluso. Pode-se, ainda, recorrer ao bruxo do Cosme Velho e reviver o final inesquecível de Memórias Póstumas: Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line


RPD ||Luiz Santini e José Gomes Temporão: A falsa guerra contra o vírus da Covid

O negacionismo científico, o reducionismo preconceituoso e ideológico nas relações diplomáticas internacionais e a obsessão eleitoral do presidente Bolsonaro politizaram por completo o processo de combate ao vírus e produção de vacinas no Brasil

Estamos em meados de janeiro de 2021, e o número de vítimas da Covid-19 já ultrapassou a marca dos 210 mil óbitos. Para falar com propriedade sobre a pandemia do coronavírus no Brasil, é preciso datar, pois, a cada dia, surgem novidades, muitas delas ruins.

Mas, felizmente, já temos duas vacinas aprovadas pela Anvisa para uso na população: a da Oxford/Astrazeneca e a CoronaVac. Ambas serão produzidas no Brasil por duas instituições científicas centenárias e respeitadas internacionalmente: a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan.

Nesse contexto, quais são os principais desafios que se apresentam?

O primeiro é dispor da matéria-prima na quantidade necessária para a produção de vacinas e o atendimento das necessidades da população, isso facilitará a redução de casos graves, a internação hospitalar, a mortalidade e, se possível, a transmissibilidade do vírus.

Aqui agigantam-se os riscos. O negacionismo científico, o reducionismo preconceituoso e ideológico nas relações diplomáticas internacionais e a obsessão eleitoral do Presidente Bolsonaro politizaram de tal modo o processo, que travaram as iniciativas de negociação, o que dificulta a aquisição dos insumos necessários à produção das vacinas.

A competição internacional por esses insumos farmacêuticos, em um mercado global em que são pouquíssimos os fornecedores, contribui ainda mais para aumentar a desigualdade no acesso a essa matéria-prima, relegando os países do hemisfério sul ao final da fila na distribuição dos recursos globais, como está sendo verificado. O mito da cooperação internacional está sendo desmistificado. Ocorre, na prática, uma competição desenfreada, com imenso volume de recursos públicos e privados aplicados no desenvolvimento dessas tecnologias pela indústria farmacêutica, seguindo o mesmo padrão desigual de comercialização, acesso e estabelecimento de preços, de outros medicamentos.

Apesar de o Brasil dispor de capacidade produtiva importante nessas duas instituições, ainda não dispomos de autossuficiência tecnológica que nos permita prescindir de buscar esses princípios ativos fora do Brasil. Temos duas vacinas testadas no país e aprovadas pela Anvisa, para uso emergencial, mas não dispomos ainda do número necessário de doses para poder desencadear campanha de vacinação em termos nacionais. Além disso, o plano nacional apresentado pelo Ministério da Saúde não detalha de modo suficiente os critérios para estabelecer a definição dos grupos prioritários a serem vacinados ao longo do tempo. Não se sabe até que ponto houve participação ativa das sociedades médicas e de especialistas em sua formulação, o que, ao longo das últimas décadas, sempre foi uma das marcas do PNI. Outro aspecto, já levantado pelo sanitarista Gonzalo Vecina, é que nosso plano foi copiado de países europeus e dos EUA, não levando em conta as características de desigualdade presentes em nossa sociedade, o que exigiria uma revisão dos grupos prioritários a serem vacinados.

Por outro lado, o Programa Nacional de Imunização (PNI) é mundialmente reconhecido como um dos melhores do mundo, e o SUS tem larga experiência em campanhas de vacinação em massa. Em 2010, por exemplo, em 3 meses, foram vacinadas 80 milhões de pessoas contra o H1N1. No entanto, neste momento, além da fragilidade técnica e gerencial da atual equipe instalada no Ministério da Saúde, o que coloca dúvidas sobre sua capacidade de coordenar e implementar uma campanha de vacinação, o próprio Ministério da Saúde se transformou na principal agência de disseminação de informações falsas e anticientíficas, defendendo tratamentos sem indicação médica, não reconhecidos, portanto, pela comunidade científica.

Assim, se o primeiro desafio era dispor da vacina, o segundo, é conseguir grande mobilização da sociedade para aderir a esse esforço nacional em defesa da vida. O que parece estar também em risco.

O SUS tem se mostrado resiliente, apesar da desastrosa estratégia conduzida pelo governo federal, mas é impossível escapar de desastres humanitários como o que está ocorrendo em Manaus, e que, infelizmente, pode se repetir em outros lugares, quando um processo de tamanha complexidade é conduzido de forma tão arrogante, primária, preconceituosa e incompetente.

Além de todas essas dificuldades conjunturais, há um grande equívoco do ponto de vista conceitual que impacta a estratégia de controle da doença a médio e longo prazos. Trata-se da evolução da história natural da doença no indivíduo e a evolução das epidemias na comunidade e na população. A retórica da guerra contra a Covid-19 talvez seja a mais danosa contribuição, ainda que involuntária, dada pelo discurso corrente, às atitudes negacionistas ou de desprezo pelos efeitos da pandemia para a saúde pública, para a sociedade e para as pessoas.

A metáfora da guerra, embora frequentemente utilizada pela medicina, oferece uma explicação simplista, de fácil compreensão, mas equivocada, pois não dá conta da complexidade envolvida no curso do processo saúde-doença.

Por definição, uma guerra busca a derrota do inimigo e, para tal, irá mobilizar grande quantidade de recursos que, em geral, levará a uma brutal desorganização econômica e social. E, pior do que tudo, pressupõe certo grau de efeitos colaterais aceitáveis em perda de vidas humanas.

A mutação é uma atividade constante do vírus na natureza. E o que leva esse vírus a alcançar toda a humanidade, sem proteção imunológica que barre sua disseminação, são mudanças não só em sua biologia, mas também nas condições ambientais propícias, o modo de vida das populações humanas e as condições econômicas e sociais. Ou seja, determinantes socioeconômicos e ambientais de saúde importam tanto quanto a biologia do vírus na disseminação de uma pandemia.

É claro que uma vez desencadeada uma pandemia, a sociedade deverá ser capaz de responder com a produção de vacinas, medicamentos, organização, infraestrutura e tudo o que estiver ao seu alcance para se desenvolver no plano de novos conhecimentos e tecnologias.

Mas também os governos e a sociedade devem responder com medidas abrangentes de contenção da disseminação da doença. No Brasil, a resistência a essas medidas de contenção, como o distanciamento social e a proteção pelo uso de máscaras, por exemplo, apoia-se na ideia do dano colateral aceitável, baseado numa interpretação equivocada na imunidade de rebanho.

Apesar da inédita alocação de recursos para a produção de vacinas que controlem a doença, continuaremos a contabilizar muitos casos, mortes e consequências ainda desconhecidas, se a epidemia não for controlada. E nada disso evita o risco de uma próxima pandemia, que será fruto desse mesmo desequilíbrio, se nada for feito.
A pandemia, por isso mesmo, é uma oportunidade de se perceber a desigualdade, inclusive no alcance das medidas propostas para prevenir, proteger e tratar das pessoas. As medidas de contenção, por exemplo, como a recomendação de permanência em casa, garantia de hábitos de higiene e o uso universal de máscaras, são incompatíveis com a situação de moradia e saneamento de uma imensa parte da população do Brasil, e de várias partes do mundo.

A pandemia desnudou de forma trágica as contradições do capitalismo contemporâneo, e as fragilidades dos sistemas de saúde em todo o mundo. A desigualdade na distribuição das vacinas, medicamentos e insumos tende a continuar. Já é hora de compreendermos que, sem um novo modelo de desenvolvimento centrado no fortalecimento da democracia, na busca da equidade e no fortalecimento dos sistemas de proteção social, não teremos futuro.

*Luiz Antonio Santini é médico, professor da UFF de Cirurgia e de Saúde Pública, ex-diretor do INCA e pesquisador associado da Fiocruz.

*José Gomes Temporão é médico sanitarista, membro da Academia Nacional de Medicina, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz.


Pedro Venceslau: Aliados apelam para Moro retornar ao cenário eleitoral para 2022

Podemos e PSL tentam convencer ex-ministro e ex-juiz da Lava Jato a se lançar candidato à Presidência

Líderes partidários e defensores da Operação Lava Jato passaram a fazer apelos públicos na tentativa de convencer o ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro a se posicionar como potencial candidato na disputa pelo Palácio do Planalto em 2022

Com um perfil discreto, Moro submergiu desde que se tornou sócio-diretor da consultoria americana Alvarez & Marsal no ano passado, mas tem mantido conversas reservadas “como cidadão” sobre o cenário nacional com parlamentares aliados. 

Nesses diálogos, segundo apurou o Estadão, Moro resiste a dar sinais claros sobre suas pretensões políticas, mas não descarta uma futura candidatura. O ex-ministro demonstra desconforto com o que interlocutores chamam de “progressiva deterioração” do País e dos mecanismos anticorrupção. 

Os entusiastas da candidatura do ex-juiz voltaram a se mobilizar após a decisão da maioria da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de liberar o compartilhamento da íntegra das mensagens vazadas da Lava Jato com a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). 

A expectativa do julgamento sobre a suspeição de Moro no caso do triplex do Guarujá (RJ) deu munição à narrativa dos partidários de Lula, mas também aglutinou as correntes dissidentes do bolsonarismo que apostam no discurso contra a corrupção para formar uma frente eleitoral em 2022. 

“Uma reviravolta (nas decisões da Lava Jato) chocaria a população que votou contra a corrupção em 2018 e beneficiária uma eventual candidatura do Moro, que simboliza esse sentimento. As cartas para 2022 ainda não foram apresentadas em sua plenitude, mas ele já tem visibilidade”, disse o senador Alvaro Dias (Podemos-PR). 

O parlamentar, que disputou à Presidência em 2018, conversou com Moro pela última vez após a eleição para a presidência da Câmara. Na mesma linha, a deputada Renata Abreu (SP), presidente nacional do Podemos, disse acreditar que Moro sai maior a cada “ataque” que sofre. “O povo sabe que ele, sozinho, tem reafirmado seu papel de herói nacional. Mesmo diante de mensagens hackeadas, obtidas de forma ilegal, o conteúdo revela a cautela e a seriedade que fez dele, no auge da operação, um orgulho de todos os brasileiros”, afirmou a dirigente. 

O Podemos está em compasso de espera e considera o ex-juiz o seu “plano A” para 2022. Outra legenda que mantém as portas abertas para Moro é o PSL, que planeja um processo de expurgo da ala bolsonarista. “O PSL é um partido moderado e de centro- direita. Estamos buscando construir pontes com ele. Moro é o nome mais consistente do ponto de vista eleitoral. Ele aglutina os lavajatistas, antipetistas e aqueles que pregam a ética na política. Ou seja: as três vertentes da sociedade que o Bolsonaro abdicou”, disse o deputado federal Junior Bozzella (SP), vice-presidente nacional do PSL. 

Em suas redes sociais, a deputada estadual paulista Janaína Paschoal (PSL) fez um apelo para que Moro entre no tabuleiro eleitoral de 2022. “Haja vista o inferno que estão transformando a vida dele, não vejo outro caminho para Sérgio Moro além de se candidatar à Presidência da República em 2022”, escreveu a parlamentar no Twitter. 

Horizonte

No ano passado, apoiadores de Sérgio Moro no Congresso viram na sua contratação por uma consultoria americana e em manifestações recentes sinais de que o ex-ministro está reticente quanto a uma eventual candidatura em 2022. A interlocutores nos últimos meses, Moro indicou que não está determinado a ser protagonista em um projeto eleitoral neste momento. 

Mas apesar da discrição, ele tem participado de articulações por uma candidatura de centro-direita, em oposição ao presidente Jair Bolsonaro. Em setembro, ele jantou com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Segundo o tucano, foi uma conversa “sem prerrogativa de nomes, mas sim de princípios”. Depois do encontro, Moro se reuniu com o apresentador Luciano Huck, que também se movimenta para disputar a Presidência.

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Vera Magalhães: Acordo entre STF e Câmara é difícil

Nos momentos que antecediam a reunião da Mesa da Câmara para decidir sobre a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) pela Polícia Federal, atendendo determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, deputados e ministros da Corte conversavam nos bastidores sobre a possibilidade de um acordo de procedimentos que evitasse desgaste para os dois Poderes.

Por esse desenho, a Mesa da Câmara faria um aceno ao STF na reunião prevista para começar agora, às 13h, reconhecendo a gravidade dos ataques que o deputado desferiu contra o STF e repudiando os vídeos com ameaças a integrantes da Corte e ao funcionamento do Judiciário. Ao mesmo tempo, encaminharia imediatamente ao Conselho de Ética da Câmara os vídeos com a recomendação de análise, a partir da semana que vem, da possibilidade de abertura de investigação por quebra de decoro parlamentar.

Essas iniciativas viriam juntamente com a manifestação da Mesa contra a prisão em flagrante por crime inafiançável, que, segundo conversei com deputados, é unanimemente condenada por eles, uma vez que, pela justificativa do ministro, segundo eles, qualquer um pode vir a ser preso por vídeos gravados anos atrás, uma vez que o flagrante não se encerra no tempo, no entendimento exarado por Alexandre de Moraes.

A expectativa de deputados é a de que, com esse gesto em reconhecimento ao caráter inaceitável da postura de Daniel Silveira, seria mais fácil obter o relaxamento da prisão do deputado não ainda nesta tarde, quando se espera que o STF referende por unanimidade a decisão de Moraes, mas na audiência de custódia.

Essa audiência será comandada pelo próprio ministro relator do inquérito das fake news e ameaças contra a Corte e seus integrantes, e só deve ser marcada para a manhã de quinta-feira.

Mas não deverá ser tão simples assim obter um acordo entre Câmara e STF. Ninguém bota nenhuma fé na possibilidade de uma investigação contra Daniel Silveira avançar no Conselho de Ética, órgão que está sem se reunir desde o início da pandemia, mas que, mesmo antes, era inerte em relação a sucessivas manifestações antidemocráticas de deputados como Eduardo Bolsonaro, por exemplo.

Além disso, é considerada insuficiente essa iniciativa por parte da Mesa da Câmara, e ministros do Supremo sobre os quais conversei a respeito da possibilidade de uma composição acreditam que, se a Corte ceder agora, haverá uma escalada de ataques à democracia e às instituições.

Por fim, os ministros parecem querer pagar para ver como a Câmara vai se comportar, justamente pelo fato de que há vários outros parlamentares investigados no mesmo inquérito, e nada indica que eles estejam moderando suas ações. Ministros me disseram duvidar que, numa votação aberta, e com voto nominal, a maioria da Câmara vá votar pela suspensão da prisão de Daniel Silveira.

Pode ser que a Corte esteja incorrendo em erro de avaliação, já que é conhecido o espírito de corpo dos parlamentares e há vários deles, inclusive em postos de comando na Casa, com processos em andamento no STF.

Um histórico recente de votações da Câmara e do Senado sobre prisão de parlamentares dá a medida: em 2016, no auge da Lava Jato, o Senado votou, aberto, a favor da manutenção da prisão do senador Delcídio Amaral, por 53 a 13. 

Já no ano seguinte passou a vigorar o espírito de corpo. Por 44 a 26, também em votação aberta, o mesmo Senado rejeitou o recolhimento noturno à prisão de Aécio Neves.

O mesmo precedente valeu para que a Câmara rejeitasse o afastamento do mandato do deputado Wilson Santiago (PTB-PB) no ano passado. Foram 233 votos a 170, e nada menos que 101 abstenções.


Míriam Leitão: STF mira defensor radical do governo

A força dos eventos em torno da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) vai muito além do personagem. O Supremo consagrou duas teses. Primeiro, que a imunidade parlamentar não cobre ataques e ameaças à democracia. Segundo, que a internet alarga o conceito de prisão em flagrante porque nela se pratica crime continuado. O que era no começo do dia uma decisão do ministro Alexandre de Moraes virou de todo o STF após a aprovação por unanimidade. A cúpula da Câmara tentava encontrar formas de amenizar a punição.

Daniel Silveira é reincidente. É investigado no inquérito das fake news e das manifestações antidemocráticas. É um defensor da violência como arma política. Em um dos seus vídeos mais conhecidos, ele ameaça de morte manifestantes antifascistas. Mais importante, ele é um bolsonarista raiz, da ala radical. Ao atacar o Supremo ele estava tentando escalar a crise iniciada pela declaração do general Villas Bôas de que o Alto Comando do Exército participou da redação da postagem que fez em 2018 ameaçando o STF. Três dos integrantes do Alto Comando da época são ministros de Bolsonaro, e o então ministro da Defesa é diretor-geral de Itaipu. Era nessa crise que Daniel Silveira tentava surfar.

Ex-policial militar, defensor da disseminação das armas, propagandista da ditadura e do AI-5, o deputado é fruto também do perigoso fenômeno da politização das polícias militares, uma das bases do atual presidente. O ex-ministro da Segurança Raul Jungmann explica melhor.

— A hiperpolitização das polícias militares acontece pela permissão de que eles saiam, se candidatem e, se perderem a eleição, possam voltar e retomar o serviço ativo. Ganhando ou perdendo pode-se voltar. A possibilidade de ir e vir da política para a PM tem sido um estímulo a que indivíduos liderem rebeliões e motins para depois se candidatarem. A greve é proibida, mas eles entram em greve e depois são anistiados — diz Raul.

E pior, não há um período de desincompatibilização. Ele pode sair da corporação direto para a campanha. E se não for eleito, volta direto. Nada a perder, portanto. Um estudo feito pela newsletter Fonte Segura , do Fórum Brasileiro da Segurança Pública e da Analítica Comunicação, mostra que isso não acontece em outros países. Bolsonaro estimulou ao máximo essa politização e continua cultivando as PMs como uma de suas bases. Em 2018, foram eleitos 77 militares ou policiais militares, 43 deles pelo PSL, partido ao qual o presidente era filiado.

Silveira, ao discutir no IML, para não usar máscara, disse que é um policial. Não é mais. Ficou apenas cinco anos, nove meses e dezessete dias. Não pode voltar, portanto, porque não completou 10 anos. No vídeo em que ameaçou manifestantes, ele também falou como se ainda fosse policial e lembrou que eles andavam armados e “em algum momento um de vocês vai achar o de vocês e tomar um no meio da testa e no meio do peito”. No vídeo que o levou à prisão o deputado fez ameaças físicas aos ministros do STF.

A decisão do STF, independentemente da reação da Câmara, esclarece princípios que o governo de Jair Bolsonaro tentou confundir. A liberdade de expressão não serve para encobrir crimes contra a democracia. Nem mesmo de um parlamentar. Bolsonaro quando era deputado fez apologia da ditadura e da tortura, falou em matar adversários políticos e nunca foi punido. Vejam o preço que o país paga pela leniência das instituições.

O presidente Jair Bolsonaro nos decretos de liberação de armas eleva o perigo extremo que a democracia brasileira corre no seu governo. Jungmann acha que a liberação de armas e a redução do controle do Estado sobre elas levarão a um aumento do crime e a um fortalecimento do crime organizado.

É claro que Bolsonaro está também tentando formar milícias políticas. Em várias ocasiões mostrou que seu objetivo é político. Ele afirmou na famosa reunião ministerial que queria “escancarar” o acesso às armas, alegando que assim resistiriam a ditadores. Disse que pessoas armadas poderiam enfrentar governadores e prefeitos. Por fim afirmou que aqui aconteceria pior do que houve nos Estados Unidos, no ataque ao Capitólio.

Esta crise extrapola em muito a figura medíocre e repulsiva do deputado que a provocou. Se a Câmara proteger o truculento Daniel Silveira, o país afunda mais um pouco no abismo institucional em que entrou desde a eleição de Bolsonaro, um inimigo declarado da democracia.


Adriana Fernandes: Nova PEC deve prever 'waiver' para volta do auxílio emergencial

Nova rodada do benefício é queda de braço entre gastar e gastar com contrapartidas de corte de despesas

Para a concessão de uma nova rodada de auxílio emergencial, com valor das parcelas limitado a R$ 250,00 e custo total de até R$ 30 bilhões, a equipe econômica calcula que a medida de contrapartida já foi dada com o congelamento dos salários dos servidores até o fim deste ano para União, Estados e municípios.

A nova versão da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de orçamento de guerra, que está sendo negociada pelo ministro da EconomiaPaulo Guedes, e lideranças do Congresso, deve prever uma espécie de “waiver” (dispensa) extraordinário para concessão do auxílio durante o vácuo jurídico deixado pelo fim do estado de calamidade em 31 de dezembro do ano passado.

Para acionar o “botão” de um protocolo de guerra e combater o recrudescimento da pandemia, o que exigiria gastos maiores de R$ 30 bilhões, a proposta também vai prever mecanismos que garantam contrapartidas mais duras de ajuste fiscal, como o congelamento de salários dos servidores por mais dois anos. São medidas para serem acionadas no futuro, junto com o arcabouço de um novo marco fiscal para uma cláusula de calamidade pública.

O congelamento de salários começou a valer no final do ano passado depois de uma longa tramitação do projeto que liberou um alívio financeiro total de cerca de R$ 125 bilhões aos governadores e prefeitos durante a pandemia. Como contrapartida, foi incluída na lei a proibição a reajustes e aumento de gastos com pessoal até 31 de dezembro de 2021. A economia com medida na época foi estimada em cerca de R$ 130 bilhões pelos técnicos do Tesouro Nacional.

A ideia que ganha força nas negociações é a de que um aumento de R$ 30 bilhões no endividamento público para pagar mais quatro parcelas do auxílio pode ser absorvido, tendo como contrapartida o congelamento de salários autorizado pelo Congresso. O sacrifício já teria sido feito para abrir caminho a esses gastos extras no período atual, que tem sido chamado pela área econômica de “cauda” da pandemia – uma extensão final dos efeitos mais nocivos da covid-19 na economia, segundo esse entendimento da equipe de Paulo Guedes.

Mas gastos acima do patamar de R$ 30 bilhões necessitariam da aprovação de mais medidas e do funcionamento do Conselho Fiscal da República, colegiado a ser criado com integrantes dos três poderes e do Tribunal de Contas da União (TCU). Caberá ao Conselho acionar a cláusula de calamidade.

O texto da emenda constitucional não vai fixar valores, mas a régua dos R$ 30 bilhões tem sido tratada internamente como um limite para uma liberação mais ágil do auxílio, a partir de medidas de ajuste já adotadas e sem ter de esperar pela formação desse colegiado, num processo que poderia levar mais tempo. Novas medidas, por sua vez, dependeriam de novas contrapartidas fiscais. Sem isso, o texto seria o equivalente a uma reedição pura e simples da PEC do orçamento de guerra – o que a equipe econômica descarta por considerar um “cheque em branco” nocivo às finanças públicas, com consequências graves.

Na semana passada, os presidentes do SenadoRodrigo Pacheco (DEM-MG), e da CâmaraArthur Lira (PP-AL), entraram num consenso de que será preciso aprovar uma nova PEC para pagar a nova rodada de auxílio, com as despesas fora do teto de gastos (regra prevista na Constituição que impede o crescimento das despesas acima da inflação). A edição de apenas um crédito extraordinário, que também ficaria livre do limite, sem a aprovação de uma PEC, foi descartada.

O ministro da Economia cobra das lideranças medidas de contrapartidas fiscais para o futuro, com a criação de um novo regime fiscal que conteria medidas permanentes de ajuste que estavam previstas na PEC do pacto federativo enviada ao Congresso no final de 2019. 

Entre essas medidas permanentes, a equipe econômica acredita ser possível incluir a criação da figura do "estado de emergência fiscal". União, Estado ou município que declarar estado de emergência fiscal, com base em critérios definidos na proposta, poderá acionar medidas de contenção de gastos automaticamente por dois anos. O objetivo é que nesse período eles recuperem a saúde financeira.

Nesse caso, trata-se de uma medida que vai além da pandemia e que foi pensada durante o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, após um grupo de governadores e prefeitos pedir a aprovação no Congresso de travas para conter despesas obrigatórias nos seus Estados, que já se encontravam em difícil situação financeira.

Na proposta original da PEC do pacto federativo, o critério para Estados e municípios acionarem mecanismos como redução de jornada e salários de servidores e suspensão de concursos era que as despesas correntes excedessem 95% da receita corrente.

A nova PEC de guerra pode prever uma cláusula vinculante para que as mesmas práticas cobradas pelo TCU sejam adotadas pelos Tribunais de Contas estaduais e municipais, evitando as maquiagens em gastos que abriram caminho para o desequilíbrio nas contas. A desvinculação de fundos públicos é outra medida em análise para ser incluída na primeira PEC.

Nas negociações, a equipe econômica está pisando em ovos porque teme que se repita o que aconteceu no ano passado, quando as medidas de ajuste antecipadas pela imprensa acabaram sendo rifadas pelo presidente Jair Bolsonaro e por lideranças do Congresso antes mesmo de serem enviadas.

Basta o ministro citar o mantra de que é preciso acionar o “DDD”, para desindexar, desvincular e desobrigar o Orçamento, que sai cada um para um lado, fingindo que não é consigo. Uma queda de braço entre gastar e gastar com contrapartidas de corte de despesas.


Ribamar Oliveira: A preocupação já é com o próximo ano

A nova “cláusula de calamidade” será usada em 2022

O governo ainda não explicitou a sua proposta para o “novo marco fiscal”, que negocia com os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). As fontes consultadas pelo Valor informaram, no entanto, que a preocupação das autoridades é aprovar um marco legal que permita ajustar as contas públicas do próximo ano, principalmente na eventualidade de que a pandemia da covid-19 se prolongue por mais alguns meses.

Algumas notícias desencontradas dificultam a compreensão do que está acontecendo. Em primeiro lugar, a prorrogação do auxílio emergencial, com benefício mensal em valor substancialmente inferior ao concedido no ano passado, não depende de novos cortes de despesas ou de medidas fiscais adicionais. Simplesmente porque elas já foram adotadas para este ano e constam da proposta orçamentária para 2021, que ainda está em análise pelo Congresso Nacional.

A lei complementar 173/2020 proibiu, até 31 de dezembro de 2021, que a União, Estados e municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia concedam aumento, reajuste ou qualquer vantagem salarial aos membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos. A LC abriu exceção para aqueles aumentos que já tinham sido aprovados pelo Congresso anteriormente, como foi o caso do reajuste para os militares.

O presidente da República, os governadores e os prefeitos ficaram proibidos também de criar emprego, cargo ou função que implique aumento de despesa, realizar concurso, admitir ou contratar pessoal a qualquer título, criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus ou abonos, criar despesa obrigatória de caráter continuado e de adotar medida que implique reajuste de despesa acima da variação da inflação.

Todas as proibições estão previstas no artigo 8º da LC 173, que passou a ser conhecido na área técnica como “cláusula de calamidade pública”. Ela foi uma compensação às imensas despesas da União para preservar os brasileiros e a economia dos efeitos nefastos da pandemia. Quando elaborou a proposta orçamentária para 2021, em agosto do ano passado, o governo adotou as medidas definidas no artigo 8º da LC 173. A “cláusula de calamidade pública” está, portanto, sendo cumprida.

O problema é que, embora a pandemia tenha arrefecido no segundo semestre de 2020, se intensificou no início deste ano, apresentando agora uma segunda onda, tão letal quanto a primeira. Discutiu-se muito a prorrogação do decreto de calamidade pública editado pelo presidente Jair Bolsonaro, mas a equipe econômica avaliou que a medida não seria necessária. O número de óbitos não parava de diminuir e a economia estava recuperando em “V”.

Com base nessa avaliação, o governo concluiu que não seria necessário prorrogar o auxílio emergencial. E, por isso, não há previsão, na proposta orçamentária para 2021, de despesa com o benefício. Assim, a meta de déficit primário para este ano, proposta pelo governo em dezembro do ano passado, foi definida sem essa despesa.

Agora, diante da segunda onda da covid-19, o governo decidiu prorrogar o auxílio, que custará algo próximo de R$ 30 bilhões. Com essa despesa, não será possível cumprir a meta fiscal estabelecida. O governo precisa, portanto, de um dispositivo legal que o desobrigue de cumprir a meta. No ano passado, a LC 173 deu essa permissão. Agora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que precisa de uma “PEC de Guerra” com a mesma permissão.

Necessita também, segundo informou, de uma “cláusula de calamidade pública”, que defina as medidas a serem adotadas para conter as despesas, nos moldes do artigo 8º da LC 173, compensando a elevação do endividamento público provocada pelo pagamento do novo auxílio emergencial. Guedes precisa da “cláusula” para elaborar a proposta orçamentária de 2022. Isto significa que, se ela for aprovada, os membros de Poder e os servidores não terão aumento salarial também no próximo ano.

Há uma novidade na proposta de Guedes. Ele quer que a “cláusula de calamidade” seja permanente e mais ampla. Ou seja, que ela possa ser acionada em qualquer calamidade que assole o país, um Estado ou município brasileiro. E que não tenha prazo determinado, como ocorreu com a LC 173, cuja cláusula só vale até 31 de dezembro deste ano.

Não está claro qual será a amplitude do conceito de “calamidade”. A situação de insolvência das contas públicas também está incluída no conceito? Se estiver, qual será o limite de deterioração das contas que será considerado como “calamidade”? Não ficou claro também quais serão as medidas de ajuste. A única indicação obtida pelo Valoré que a relação de medidas será maior do que a lista da LC 173.

A prorrogação do auxílio cria outra dificuldade para o governo. Como não havia previsão de pagamento do benefício neste ano, a equipe econômica não incluiu a despesa no montante de títulos que o Tesouro Nacional será obrigado a emitir neste ano para pagar despesas primárias.

A Constituição determina que o endividamento público não pode aumentar acima das despesas de capital (investimentos e amortizações). O princípio é conhecido como “regra de ouro” das finanças públicas. Para emitir títulos para pagar despesas correntes, o governo necessita de autorização do Legislativo. O pedido de crédito suplementar precisa ser aprovado por maioria absoluta de deputados e de senadores.

A proposta orçamentária deste ano prevê que o governo deverá emitir R$ 453,7 bilhões em títulos para cumprir “a regra de ouro”. Com o novo auxílio, o valor vai aumentar. A despesa com o benefício não está submetida ao teto de gastos da União. Ele será pago com crédito extraordinário, que fica fora do teto.

Por fim, é importante observar que tentar criar uma “cláusula de calamidade pública” abrangente e permanente por meio de PEC é um risco considerável, pois ela precisa ser aprovada por três quintos de senadores e deputados, em dois turnos. Talvez fosse melhor criar a “cláusula” por projeto de lei complementar.


Vinicius Torres Freire: Bolsonarismo e bolsonarices custam caro para economia e pobres

Brucutus causam crises políticas que emperram decisões de governo e Congresso

O bolsonarismo custa caro até para Jair Bolsonaro, embora este governo não seja lá muito capaz de fazer certos cálculos pragmáticos a respeito de sua sobrevivência.

O sururu sórdido causado por esse deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) é um exemplo menor, em termos práticos. Afora imprevistos, essa crise não deve paralisar o Congresso por mais que um par de dias. É pouco, mas o tempo já era escasso para aprovar a emenda constitucional que deve abrigar o novo auxílio emergencial e o Orçamento —é preciso fazê-lo até março. Outras bolsonarices ou suas sequelas podem causar mais tumultos políticos e parlamentares que afetariam até as perspectivas abaixo de medíocres da economia para este 2021.

Dezembro e também janeiro foram meses abaixo das expectativas já limitadas de atividade econômica. A julgar pelo valor das vendas por meio de cartões, janeiro foi parecido com dezembro, mês em que, pela estatística do IBGE, as vendas no varejo caíram 6,1% em relação a novembro de 2020. A confiança do consumidor e das empresas continuou baixando no início do ano. É um efeito óbvio de piora da epidemia e do fim do auxílio emergencial e do benefício de complementação de salários reduzidos pelas empresas.

Em junho, pico desses benefícios, os pagamentos foram de R$ 51,8 bilhões (uma vez e meia a despesa anual do Bolsa Família). Em setembro, baixaram a R$ 27,5 bilhões. Em dezembro, para R$ 19,5 bilhões. Em janeiro, para quase nada, restos. Sem demanda a economia volta a murchar. A segunda perna do “V” da recuperação de Paulo Guedes vira uma língua caída para fora.

A fim de criar um novo auxílio emergencial em seus termos, o governo tem de convencer o Congresso a aprovar uma emenda constitucional de “Orçamento de calamidade” associada a corte de gastos, dado de barato pelo comentarismo político e econômico. Como se diz faz meses nestas colunas, isso dá rolo.

Exemplo. Com muito aperto e ajuda de leis, a despesa com a folha de servidores federais caiu de R$ 333,8 bilhões em 2019 para R$ 331,8 bilhões em 2020 (valores ajustados pela inflação). “Ajuste” de R$ 2 bilhões. Pelas novas contas do governo, o novo auxílio deve custar R$ 42 bilhões em 2021 (quatro parcelas de R$ 250 para 42 milhões de pessoas) —no Congresso, a conta tende a ficar maior.

É fácil perceber que não bastará arrumar conflito apenas com o funcionalismo. De onde vão sair outras “compensações”?

Se o rolo for grande, a emenda do novo auxílio pode demorar ou até passar sem as “compensações”, com o que haverá algum custo financeiro (dólar e/ou juros mais salgados).

Quanto mais rolo político, mais difícil aprovar qualquer coisa além do básico do básico (auxílio e Orçamento).

No entanto, como se não bastasse a baderna da sua milícia de brucutus, Bolsonaro decreta coisas como o dilúvio de armas e munições, por exemplo. Em si mesmo uma selvageria, o decreto pode causar mais confusão no Congresso.

Mesmo que a economia não tenha por ora perspectiva decente no médio prazo, Bolsonaro poderia manter o vento a seu favor se lidasse de modo menos idiota com os problemas de agora (vacina, Orçamento, a ideia de que não haverá explosão fiscal no curto prazo). Por ora, está quieto e assim frustra suas milícias por não dar apoio ao deputado brucutu, o “Daniel de Quê?”, segundo Luiz Fux, do Supremo. Mas o bolsonarismo está sempre à beira de dar um tiro no pé, no mesmo com que pisa no pescoço dos brasileiros.


Bruno Boghossian: Extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto

Extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto

Quando ainda frequentava manifestações que defendiam o fechamento do Congresso e do STF, Jair Bolsonaro trabalhou para proteger os golpistas de seu grupo político. Em abril do ano passado, ele indicou que era preciso mudar o comando da Polícia Federal para frear uma investigação contra deputados que atacavam outros Poderes.

A tentativa de blindagem foi registrada numa mensagem enviada pelo presidente ao então ministro Sergio Moro. Bolsonaro reagiu a uma notícia sobre o inquérito contra seus aliados e escreveu: "Mais um motivo para a troca". Agora preso, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) era um dos integrantes daquele time.

O presidente forçou a troca na PF e produziu uma crise com a demissão de Moro. O governo não conseguiu segurar as investigações, mas o episódio mostrou que Silveira e os demais integrantes daquela tropa de choque não eram um apêndice insignificante do grupo que chegou ao poder depois de 2018.

extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto porque faz parte de um projeto. Em busca de concentração de poder, Bolsonaro investe na corrosão da confiança nas instituições, trabalha para armar apoiadores contra seus adversários políticos e questiona a legitimidade de processos eleitorais, para ficar em exemplos recentes.

Ainda que Bolsonaro tenha fabricado uma trégua com o STF e contratado amigos no Congresso, a máquina golpista continua girando. O presidente pode disfarçar, recusar convites para protestos ou mandar para o exílio um ministro que deixa escapar seus desejos autoritários, mas o vídeo gravado por Silveira ainda reflete a doutrina bolsonarista.

A prisão do deputado é uma ferramenta precária para uma punição necessária. Com boas chances de ser derrubada pela Câmara, a decisão deve ampliar tensões e abastecer os instintos radicais que dão vida ao extremismo político. Para sobreviver, instituições que foram omissas por décadas terão que acordar e reforçar a vigilância."