congresso

Fernando Gabeira: Que país é este?

Festas clandestinas, variante do corona, vacina em falta, vacina de vento, às vezes acho que o Brasil se deixa devastar pelo vírus

É importante compreender não só pela pandemia, mas também pela sensação de que somos muito vulneráveis diante de obstáculos futuros. O governo tem uma grande culpa na tragédia. Um estudo divulgado pela “Lancet” afirma que os erros de Trump contribuíram para 40% das mortes nos EUA.

Estudo semelhante no Brasil, certamente, mostraria que a política de Bolsonaro matou muito mais. Trump pelo menos financiou a vacina, Bolsonaro foi o único estadista no mundo a contestá-la.

Quanto ao governo, resta apenas denunciar seus erros, juntar documentos e esperar que os tribunais o julguem.

Mas há algo na própria sociedade brasileira que precisa de uma análise. Tanta gente nas festas de fim de ano, tanta gente nos bailes de carnaval clandestinos, tanta gente sem máscara, é um movimento inevitável. Por que valorizamos tanto a liberdade individual em contraste com um certo descuido pelo coletivo, pela sensação de pertencimento?

Se minha hipótese é verdadeira, não vão adiantar muito lições de moral, campanhas educativas. Elas apenas patinam na superfície do problema. No Brasil, as pessoas sentem que a cidadania traz poucas vantagens; logo, não merece nenhum tipo de sacrifício.

Ali em 2013, o grande movimento espontâneo já parecia indicar uma insatisfação com os serviços públicos que pouco devolviam aos impostos pagos.

No princípio da pandemia, que demandava tanta solidariedade, surgiram notícias de corrupção em diferentes estados. Respiradores comprados em casas de vinho, hospitais de campanha superfaturados; a sensação de que esses fatos transmitiram era que entre os governantes reinava o lema de cada um por si.

Quando surgiu a quarentena, era evidente para todos a impossibilidade de realizá-la no exíguo espaço de algumas moradias. A orientação moral era esta: façam quarentena, inclusive para proteger os outros. Mas fomos incapazes de oferecer uma rede de hotéis, pousadas e abrigos que pudessem ser usados para isso. Da mesma maneira, dizíamos: “Lavem as mãos”. Mas fomos incapazes de pensar um esquema de abastecimento emergencial nas comunidades onde a água é rara, às vezes inexistente.

Não houve uma configuração especial no transporte público para oferecer alternativas para que circulasse mais vazio, com álcool disponível e até máscaras para quem não as tinha.

A educação e a cultura passaram a depender do mundo virtual. Mas não foi feito um grande esforço para estender a conexão de qualidade para que as crianças tivessem algumas aulas, e os adultos, alguma diversão e arte.

É nesse quadro que nossas campanhas se movem. Teríamos muito mais eficácia se houvesse mais proximidade, se as pessoas sentissem que os conselheiros também buscam soluções para atenuar a aspereza de suas vidas.

Tudo isso não impediu ações de solidariedade nos morros do Rio e uma atividade assistencial intensa em Paraisópolis, uma região que foi sacudida antes da pandemia por uma violenta ação da PM.

Mas, de um modo geral, creio, a raiz da nossa vulnerabilidade está na distância entre os dirigentes e as pessoas. Não há partidos, organizações intermediárias; os indivíduos se sentem sós e aprofundam a ilusão de uma existência isolada. Acreditam que estão arriscando apenas sua vida, mas, na verdade, levam muitas consigo.

Enquanto não nos livrarmos de um tipo de governo e buscarmos uma correção de rumos, o Brasil poderá até escapar do coronavírus, mas será sempre um país vulnerável, quase indefeso.

Talvez essas reflexões sejam mais adequadas para depois da pandemia, mas sinceramente ninguém sabe quando acabará: melhor é aceitar que o próximo desastre já começou, sem que nos déssemos conta.


Correio Braziliense: 'Não podemos deixar Bolsonaro sozinho na pista', diz Haddad

Ex-prefeito de São Paulo anuncia que o partido não vai esperar 2022 para pressionar pela vacinação, pela volta do auxílio emergencial e pela geração de empregos, áreas em que considera que o governo fracassou

Luiz Carlos Azedo e Denise Rothenburg, Correio Braziliense

Liberado pelo ex-presidente Lula para desfilar como pré-candidato do PT à presidência da República, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que representou o Partido dos Trabalhadores na última eleição presidencial, dá a largada à sua pré-campanha acusando o empresariado brasileiro de ter "contratado o caos" em 2018 ao apoiar Jair Bolsonaro em "troca de dinheiro miúdo" e alguns por "dinheiro graúdo", referindo-se à expectativa de privatização da Eletrobras e da Petrobras,que faziam parte dos planos de Paulo Guedes.

Nesta entrevista ao Correio, ele anuncia que o partido não vai esperar 2022 para pressionar pela vacinação, pela volta do auxílio emergencial e pela geração de empregos, áreas em que avalia que o governo fracassou. "Não podemos deixar Bolsonaro sozinho na pista", afirma Haddad, que considera Bolsonaro uma pessoa "perigosa". Quanto à rejeição ao PT, que levou o partido à derrota em 2018, ele considera que passou: "A rejeição ao Bolsonarismo já superou essa. Hoje, mais de 50% da população não quer a continuidade dessa loucura que virou o país, que é um país necrófilo, cultivando a morte, o desemprego, o desalento", diz. A seguir os principais pontos da entrevista.

O senhor já é o pré-candidato ou o PT pode apoiar outro partido?

Eu acredito que é natural que uma pessoa que tenha ido ao segundo turno de uma eleição presidencial seja lembrada pelo próprio partido. Mas nós sabemos que estamos lutando há muitos anos para provar a parcialidade do juiz Sergio Moro no julgamento do Lula. Entendemos que conseguimos recolher mais do que evidências. Recolhemos provas cabais de que o Moro agiu como chefe da acusação, o que é vedado por lei. Quero crer, até pela declaração de vários ministros, de que querem Justiça e não perseguição, que nós temos uma possibilidade de resgatar a democracia no Brasil. Não podemos abdicar da democracia. Não se trata de nomes, se trata de Justiça. Agora, o Lula, realmente, me pediu, conforme revelei, que não aguardemos isso. Não temos o mando dos prazos judiciais. Sabemos que a Justiça será feita, mas não sabemos quando. Temos que ter clareza que o Bolsonaro não pode ficar sozinho, em campanha, com um plano de ação atroz, que tem trazido tanta desgraça para o povo brasileiro. Esse é o sentido do meu afastamento da sala de aula para me colocar à disposição do PT até as eleições de 2022. Esse é o sentido, não deixar Bolsonaro só.

O senhor já deve ter uma proposta de programa esboçada. Quais seriam as três prioridades de debates nesta pré-campanha eleitoral?

Não podemos aguardar 2022 para pressionar o governo a vacinar as pessoas. Essa sabotagem que o governo Bolsonaro fez com a vacina e com o isolamento social, que trouxe tanto desemprego e sofrimento para as famílias brasileiras, será uma agenda das caravanas já em 2021, não vamos aguardar 2022 para discutir isso, emprego, renda e saúde pública. Não podemos deixar Bolsonaro sozinho na pista. Vamos discutir com a população a vacinação e o auxílio emergencial imediatamente. Agora, evidentemente, a economia brasileira está totalmente desorganizada e temos uma situação de queda brutal do investimento público, temos que encontrar espaço orçamentário para gerar emprego. É uma ilusão imaginar que vamos poder contar com o investimento privado em substituição ao público. Isso nunca aconteceu. Está aí o Joe Biden lançando um plano de US$ 2 trilhões para recuperar a economia americana, contrariando toda a cartilha neoliberal. Temos que ter clareza que precisamos gerar empregos no país e o PT é um partido que mais gerou empregos na história do Brasil. Foram 20 milhões em 12 anos, sabemos fazer isso. Obviamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem que ser reforçado, porque provou que é o instrumento que temos de política pública na área da saúde. E, lamento dizer, vamos encontrar a educação, que pouco se fala no Brasil, em situação de extrema penúria.

Como assim?

O Bolsonaro destruiu o sistema educacional brasileiro. Até como ex-ministro da Educação, teremos uma tarefa enorme de reconstruir o sistema educacional brasileiro. O Ministério da Educação se negou a coordenar ações das secretarias estaduais e municipais. Cada um está dando um tiro para um lado. Provavelmente, vamos ter uma pandemia de crianças e professores, que estavam antes resguardados. Não houve planejamento para a volta às aulas presenciais. O Ministério da Educação não deu nenhuma entrevista coletiva organizando o país na área educacional. Bolsonaro tem nomeado interventores nas universidades e institutos federais ao arrepio da lei, está cortando verba de ciência e tecnologia. O corte já chega a 70% do pico do nosso investimento. E a cultura está destruída no país. Não há financiamento para geração de empregos na área da cultura. Então, temos um desafio enorme nessas áreas que dialogam com o futuro, ciência, educação, artes, cultura.

Não seria tarefa dos estados organizar a volta às aulas presenciais nas escolas de ensino médio e fundamental, uma vez que esses níveis são atribuição deles?

A Constituição não diz bem isso. A Constituição diz que a União tem o papel de coordenador em todas as ações federativas. E, no caso da educação e da saúde, isso é textual: o governo federal nunca pode lavar as mãos. Nunca. Em área nenhuma. Na educação e na saúde tem uma recomendação expressa na Constituição. Os apoios técnico e financeiro são obrigações constitucionais da União frente ao SUS e aos sistemas educacionais.O governo Bolsonaro não fez nem uma coisa, nem outra. Nem o Pazuello, nem o ministro da Educação. Estamos no quarto ministro da Educação. Jamais se dispuseram a coordenar as ações com equipes de sanitaristas, epidemiologistas que pudessem fazer uma programação coerente. Estamos falando de um quarto da população que está em sala de aula. Não estamos falando de pouca gente. Mais de 50 milhões de brasileiros são estudantes, professores e funcionários de escola. Se somarmos as universidades, estamos falando de quase um terço da população.

Para 2022, seu principal concorrente é o juiz Sergio Moro, o único que, nas simulações de segundo turno, ultrapassa Bolsonaro. Isso deixa evidente que essa variável da Lava-Jato ainda tem peso nas eleições. Como lidar com isso?

Há uma confusão proposital entre combate à corrupção e o que aconteceu em Curitiba. No meu ponto de vista, o que aconteceu em Curitiba também pode ser classificado como corrupção. Do sistema de Justiça. Você não pode simplesmente perseguir politicamente uma pessoa como projeto político, não pode fazer isso. Eu, se fosse juiz, não perseguiria Bolsonaro por crimes ficcionais. Ele tem que responder pelos crimes que cometeu porque tem prova. Por exemplo, quando a gente acusa Flávio Bolsonaro pelo desvio de verba pública em gabinete, não é uma acusação feita ao léu. Você tem lá a conta-corrente, o dinheiro sendo transferido de uma conta para outra, inclusive envolvendo a esposa do presidente da República. Você tem um acúmulo de patrimônio que jamais uma pessoa como Bolsonaro conseguiria amealhar, patrimônio imobiliário, loja de chocolate. Ou seja, está feito um nexo entre uma coisa e outra. Agora, você não pode usar, corromper o sistema, para fazer política. É isso que juristas do mundo inteiro e, não sou eu que estou dizendo isso, condenam a maneira como o juiz Sergio Moro se comportou. Agora, toda a legislação anticorrupção é do nosso governo, todo o fortalecimento da polícia, do Ministério Público, é do nosso governo. Esse governo está fazendo o contrário. Está enfraquecendo o combate à corrupção. Então, não vai ser o juiz Sergio Moro que vai me ensinar uma coisa que eu sei de cor. Passei pelo Ministério da Educação com R$ 100 bilhões de Orçamento, passei pela prefeitura de São Paulo, com R$ 60 bilhões de orçamento, e você nunca ouviu de ninguém que não foi feito um combate pesado contra a corrupção. Inclusive, em São Paulo, desbaratei uma máfia do INSS, recuperei quase meio bilhão de reais para a cidade. O Moro é que tem se explicar.

Embora o senhor diga que Sergio Moro extrapolou, há uma rejeição ao Partido dos Trabalhadores. Como o senhor vai lidar com isso?

Primeiro, acho que a rejeição ao bolsonarismo já superou essa. Hoje, mais de 50% da população não quer a continuidade dessa loucura que virou o país, que é um país necrófilo, cultivando a morte, o desemprego, o desalento. Então, acho que vai crescer esse sentimento na sociedade, de que nós não podemos continuar assim. Como vai crescer também a compreensão sobre o que de fato aconteceu. Do meu ponto de vista, houve, efetivamente, a partir de um cartel de empreiteiras, a captura da direção da Petrobras, e, diga-se de passagem, diretorias que eram ocupadas por pessoas de carreira, com mais de 30 anos de casa. Não foi gente de fora da Petrobras que organizou o cartel das empreiteiras. Agora, se foi possível desbaratar aquele cartel, só foi possível pelo fortalecimento das instituições promovido pelos nossos governos, que é o oposto do que está sendo feito hoje. Então, acho que a gente tem que falar com muita transparência. Não podemos cair no erro da criminalização generalizada. Às vezes ouço falar, ah, a imprensa brasileira é uma porcaria. De que jornalista está falando? De qual veículo. Sabe? Quando começa a generalizar…

O senhor é a favor do impeachment?

Não fui a favor do impeachment em 2019, não falava disso. Agora, fui a favor quando ele cometeu crime de responsabilidade, e dois muito graves: um, participar de atos antidemocráticos. O presidente da República não pode fazer isso. É expresso na lei do impeachment: não pode atentar contra o exercício dos outros Poderes. O presidente da República não pode constranger os outros Poderes na base da violência, tem que argumentar. Não pode intimidar os poderes da República. Isso é crime previsto em lei e ponto. Tem que afastar. Dois, o que fez na crise sanitária. Para mim, é crime de lesa-humanidade. Se nós tivéssemos um presidente decente, teríamos menos de um terço das mortes que tivemos, seguindo recomendações de qualquer epidemiologista, qualquer sanitarista. Então, ele é, sim, responsável pelas mortes.

Na hipótese de impeachment, assume Hamilton Mourão. Qual seria sua posição em relação a um governo dele, que, de certa maneira, assumiria com o seu apoio?

Não, veja bem: quando fomos a favor do impeachment do Collor, à época, todos os partidos votaram a favor. O PT não aderiu ao governo do Itamar, embora o Itamar fosse uma pessoa proba e responsável. Assumiu a Presidência legitimamente. Não aderimos ao governo, com exceção da Erundina, que foi um caso isolado e que contrariou a orientação partidária. Permanecemos na oposição, mas sempre a favor da democracia. O PT não faz toma lá dá cá com governos liberais, de direita. A gente respeita a direita. É uma força política que tem total condição de disputar hegemonia na sociedade. O PT é o maior partido de centro-esquerda e não de direita. A direita tem todo o direito de existir, como nós temos o direito de existir. O impeachment não pode ser negociado na base do toma lá dá cá, tem que ser aprovado ou não seguindo a regra constitucional: cometeu crime de responsabilidade? Está matando brasileiros? Se insurgiu contra a democracia? É crime previsto em lei. Teríamos poupado, pelo menos, 150 mil vidas, se Bolsonaro fosse afastado há um ano. Em primeiro lugar, falamos, esse senhor não tem condição de gerir essa crise, vai arrebentar esse país. E olha o que aconteceu. Tudo o que dissemos no começo do ano passado, demonstrou ser a mais pura verdade. Ele é um homem destrutivo. Tem prazer nisso. É impressionante.

A preços de hoje, Bolsonaro tem uma vaga no segundo turno em 2022. O que leva o senhor a crer que o resultado será diferente de 2018?

O Bolsonaro só ganhou com base numa mentira: de que eu era o extremista que ele era. Mentiram para a sociedade. Vocês me conhecem há muitos anos. Comparar a minha biografia de professor, democrata, lutei pelas diretas, lutei pela Constituinte, fui para a sala de aula estudar o Brasil, estudar o mundo. Fui ministro da Educação, fui prefeito de São Paulo.

E na esquerda, uma eventual candidatura de Guilherme Boulos lhe ajuda ou atrapalha?

É óbvio que se nós pudermos estar juntos no primeiro turno, estaremos. Não há dúvida de que faremos o esforço necessário para estarmos juntos, mas quero lembrar que, em 2018, tinham quatro candidatos até o dia da inscrição de chapa e nós só conseguimos fazer aliança com o PCdoB e mais ninguém. No domingo da inscrição de chapa, às 23h, faltando uma hora para o término do prazo. Obviamente, a situação hoje é melhor, porque temos mais tempo para sentarmos à mesa e discutir. A situação está mais clara sobre o que de fato acontece no Brasil do que estava em 2018. Muitas informações foram reveladas e a solidariedade a Lula é muito maior hoje por parte dos partidos de esquerda do que foi em 2018. O drama que estávamos vivendo. A compreensão desse drama por parte das forças políticas é maior. E, quando falo maior, falo da centro-direita, que acordou para as ameaças que estamos vivendo. Então, acho que o quadro é outro. E podemos fazer um grande entendimento de que o candidato que for ao segundo turno, terá o apoio dos demais. E aí, um leque mais amplo do que o de 2018. É o que eu espero que aconteça. As pessoas têm todo o direito de ter o seu projeto e apresentá-lo no primeiro turno. É um direito. É para isso que tem dois turnos, para a pessoa se apresentar da forma mais adequada que considera, mas com o compromisso de, no segundo turno, derrotar o governo de extrema-direita que está no Brasil.

O senhor vislumbra um cenário de muitos candidatos em 2022?

Em 2018, tivemos 13 candidatos. Imagino que, com um ano e meio pela frente, a gente consiga ter menos do que isso, se a gente conversar e se conseguir se entender sobre o que está em jogo no Brasil. Digamos que podemos cair para seis candidatos. Mas o acordo de segundo turno precisa ter mais atenção da imprensa. É a sugestão que eu faço: ou seja, aqueles que votaram no Bolsonaro no segundo turno, em 2018, fariam o mesmo em 2022? A gente acha que precisaria explorar isso melhor para saber quem é democrata e quem não é no Brasil. Na minha opinião, quem apoia Bolsonaro hoje não tem grande compromisso com a democracia. Em 2018, poderia alegar ignorância, mas hoje não dá para alegar ignorância de quem é o Bolsonaro.

Na disputa pelo Senado, o PT apoiou Rodrigo Pacheco. Na Câmara, a decisão de apoiar Baleia Rossi foi disputadíssima na bancada. Outros partidos se dividiram. Como lidar com essas forças que implodiram?

Não acho que implodiram. Rodrigo Maia estava de saída. Achamos que ele perdeu muitas oportunidades de liderar o processo de contenção do bolsonarismo. Acredito que ele tenha, realmente, desperdiçado essas oportunidades. E hoje entendo melhor o porquê. Seu próprio partido o rifou. Ele deve estar de saída do DEM no próximo período. E o PT, então, de forma bastante disputada internamente, resolveu fazer um gesto, de ter um presidente da Câmara que não fosse bolsonarista para conter os ímpetos autoritários e antiestado do Bolsonaro. Fizemos um gesto que, na minha opinião, foi pedagógico. O que esse gesto demonstrou? Que a direita, na hora H, vai para o lado do Bolsonaro. Não aceitaram nem um deles para presidir a Câmara. Preferiram correr para o colo do Bolsonaro. Ficou muito escancarado que a direita não tem esse compromisso com a democracia, que ela batia no peito em 2018 para justificar não votar em mim. No Senado, foi algo bem diferente. Rodrigo Pacheco é um advogado, garantista, um cara centrado, que era o melhor candidato. Não era o candidato do Bolsonaro, como falam. In pectore, jamais o Bolsonaro escolheria uma pessoa como ele para presidir o Senado, mas acabou se rendendo à articulação que foi feita pelo Davi Alcolumbre, em torno de uma pessoa que agregava mais do que um candidato bolsonarista agregaria. Não foi propriamente uma vitória do bolsonarismo, ao contrário da Câmara, onde o fenômeno foi outro: o PT fez o gesto e a direita correu para o lado do Bolsonaro. Mas isso foi pedagógico, porque a população vai enxergando quem de fato é oposição a esse governo. O maior partido de oposição a este governo é o PT, não tenho a menor dúvida. É um partido grande, com mais de 50 deputados, que ainda tem densidade para se insurgir contra o Bolsonaro.

O Congresso está diante de dois fatos que vão balizar as duas Casas. Uma é a CPI da Saúde, que precisa ser instalada no Senado. E o outro é o caso Daniel Silveira. Qual sua opinião sobre essas duas questões?

A gente sempre testa as pessoas no cargo. A gente nunca sabe o que vai ser de alguém antes de a caneta estar na mão. Às vezes, o cara diz antes o que vai fazer, como o Bolsonaro disse. Mas é raro alguém dizer tudo o que vai fazer, infelizmente, porque as pessoas deveriam ser muito transparentes antes de assumir cargos de comando no país. Eu acredito que uma CPI da Saúde é necessária, porque a gente tem que estimar quantas pessoas morreram, quantas vidas foram ceifadas por absoluta responsabilidade do governo. Aí, vai se discutir a cadeia de responsabilização, se foi o Bolsonaro ou o Pazuello. Pelo menos, o ministro tinha que cair, porque ele é diretamente responsável pelo que fez. Comprar cloroquina, distribuir cloroquina, combater a vacina, não promover as encomendas necessárias para a gente estar em patamar de vacinação, não ter um gabinete de crise até hoje instalado, não coordenar as ações federais. Se isso não é improbidade, é melhor rasgar a lei, porque ninguém vai responder mais por improbidade nesse país, depois do governo Bolsonaro. Não existe improbidade mais. Ou a gente leva a sério o Brasil, ou vamos ladeira abaixo, como estamos indo. Por isso, acho a CPI da Saúde imprescindível e espero que ele (Rodrigo Pacheco) instale.

E em relação ao caso Daniel Silveira?

Prisão de parlamentar é sempre uma coisa delicada. É óbvio que esse deputado, em especial, está fustigando o Supremo talvez para provocar essa situação. Ele deu um palanque virtual bastante considerável, ele é uma pessoa das sombras, parece que já foi 90 vezes preso, segundo ele próprio. Se entendi bem o discurso dele, é uma pessoa que tem orgulho de ter sido presa 90 vezes. É uma pessoa das sombras que vem fustigando a Suprema Corte há muito tempo. Não sei se a medida mais correta é a prisão, mas, com certeza, a medida mais correta é a cassação do mandato. A quebra de decoro está caracterizada, de acordo com toda a legislação. Compreendo também que a decisão judicial da Suprema Corte tem que ser respeitada. Esse cidadão está nessa campanha, de promover ódio, de promover atentados contra a democracia, há muito tempo. Praticamente desde que tomou posse. Não sei o tipo de ameaça que os ministros vêm recebendo. Eu sei que vêm recebendo ameaças, contra a sua própria vida muitas vezes. Se amanhã se descobrir uma pessoa que está fomentando um atentado contra a vida do presidente da República, que é alguém que eu considero desprezível, sou a favor de que essa pessoa saia de circulação. Isso não é uma atitude de quem respeita a democracia. Existe lei e você não pode fomentar nenhum ato de violência contra uma autoridade constituída.

Como o senhor avalia o decreto das armas?

É outro caso que o Congresso tinha que sustar, via decreto legislativo. Onde vai parar isso? As pessoas precisam de vacina para salvar a economia. E a pessoa está preocupada em armar milicianos? Esse sujeito que foi preso, investiga a vida dele: deve ter algum parentesco ou ligação com o Adriano, que foi morto na Bahia; com o Queiroz, escritório do crime, essa turma. É muito sério o que está acontecendo. A gente precisa ler o livro do Bruno Paes Manso, sobre a república das milícias, para saber o que está acontecendo no Brasil. Temos na Presidência da República uma pessoa muito perturbada, que não tem nenhum compromisso com a democracia. Uma pessoa perigosa. Estamos falando de uma pessoa muito perigosa. Não sei se as pessoas estão atentas para isso, mas o perigo está à espreita. É muito grave.

Agora, ele tem dito que essas afirmações são feitas para tirá-lo da Presidência em 2022...

Semana passada falou em tirar de circulação os jornais. Ou seja, não tem dia que ele não atente contra a democracia. Foi passar o carnaval, com mais de mil mortos por dia, e passear em jet-ski em Santa Catarina. Que exemplo edificante ele dá sobre qualquer assunto? Está há dois anos e dois meses na Presidência da República. Não consigo ver um exemplo que se diga, aqui foi uma postura de presidente, aqui representa a alma do brasileiro. O que eu vejo é ameaça o tempo todo.

Como lidar com isso, num processo eleitoral que será tenso?

O empresariado brasileiro que apoia o Bolsonaro até hoje precisa botar a mão na consciência. Se o empresariado brasileiro não botar a mão na consciência e reconhecer que contratou o caos ao ocupar a Presidência da República com essa figura, a tensão vai aumentar. Eles precisam entender o que eles fizeram. Eles contrataram o caos. Contrataram o caos e por dinheiro miúdo. Alguns por dinheiro graúdo, Eletrobrás, Petrobras. Alguns estão de olho na compra na bacia das almas do patrimônio nacional. Mas eles contrataram o caos.

Além de ter que convencer o empresariado a pôr a mão na consciência, o PT também precisa convencer esse empresariado de que aquela situação que vivemos lá atrás, com petrolão e mensalão, não vai se repetir?

Vamos pegar o caso dos tucanos aqui de São Paulo, que governam o estado desde os anos 1990. Você tem Metrô, Rodoanel, Dersa, tudo capturado, todas essas empresas foram capturadas, você pode deduzir daí que uma figura que eu até defendi publicamente, o governador Geraldo Alckmin, estava envolvido com a captura dessas empresas? Se aparecer uma prova de que ele estava envolvido, prendam. Agora, você não pode supor que tudo o que aconteceu com aquele Paulo Preto foi sob o comando de uma liderança tucana, a não ser alguns que tinham contas no exterior. Esses precisam ser presos. Tem várias lideranças tucanas que precisam ser julgadas, porque há evidências absurdas, cartões de crédito e contas no exterior. É outro departamento. A questão do gabinete do Bolsonaro, estão lá as provas… Nada contra combater a corrupção. Mas vamos fazer isso de maneira adequada, de acordo com a lei, sem política, sem ideologia. Juízes imparciais, juízes honestos, não tem nenhum problema em avançar nessa agenda.

Em relação ao PT também?

Não tem nenhum problema, você tem milhões de filiados. Vamos pegar a igreja, um padre saiu da linha. Você defende a punição. Se você respeita a Igreja, sim. Eu respeito o meu partido, por isso defendo a punição. Tem prova contra um filiado do meu partido, paciência, eu lamento, mas eu não tenho compromisso com a coisa errada. Isso vale para a minha igreja, vale para o meu partido, vale para a minha família, vale pra todo mundo, pode ser meu filho, meu primo, meu sobrinho, errou, paga. Se eu defendo isso para a minha família, como é que eu não vou defender para a minha igreja e o meu partido? Essa coisa não existe comigo, essa questão não é partidária. Defendo que as pessoas do PSDB que não sejam culpadas, sejam absolvidas. Não posso desejar a punição para um adversário se ele não cometeu algum erro. Não quero isso para ninguém, seja de que partido for. Não quero saber, errou, paga; não errou, não paga. Tem uma lei, tem que cumprir a lei, ponto. Se você é contra a lei, lute para mudar a lei, mas enquanto a lei estiver em vigor, cumpra a lei.

E o ex-presidente Lula, qual será o papel dele daqui pra frente?

Lula nunca desrespeitou o Poder Judiciário, é bom que se diga isso. Ao contrário, ele isolava o que estava acontecendo em Curitiba do que estava acontecendo no resto do país. A briga do Lula é por justiça, não é contra A, B ou C. E o Lula, assim que estiver vacinado, está louco para se vacinar, ele já está com 75 anos, está esperando a vez dele, deve acontecer nas próximas semanas, ele se colocará à disposição do país, como sempre se colocou, para ajudar a construir uma saída.

Como fica a questão se o Lula for liberado pela Justiça para disputar as eleições?

Primeiro, vou seguir com as minhas ideias e o meu partido, independentemente da missão que me for dada. Segundo, se a Justiça chegar é muito justo que o PT reabra a discussão e o Lula possa ser candidato, que é o desejo de 100% da militância do PT. Por fim, não acho que vamos chegar ao que aconteceu em 2018. Eu estou saindo à rua, como todos os pré-candidatos, todo mundo está colocado. É um direito de cada cidadão se deslocar com segurança pelo país com uma mensagem, não sei no que isso pode prejudicar quem quer que seja, prejudicar as pessoas.

O senhor é considerado um petista light, o Lula não, é o Lula, é o PT raiz 100%, puro-sangue. Isso faz muita diferença numa disputa de segundo turno?

O único partido ao qual me filiei foi o PT e isso já tem bastante tempo. As pessoas conhecem o meu trabalho, sou a favor de que o homem público tenha sua vida passada a limpo, uma coisa é uma novidade, estou chegando agora; outra coisa é uma pessoa que tem 20 anos de vida pública. Não estou chegando agora, tenho 20 anos de experiência. Passei por cargos muito importantes, por um ministério que não era tão importante quando cheguei, mas deixei um dos maiores ministérios, mais importantes, senão o mais importante do país. Foram 8 anos só de MEC, mais quatro anos na maior cidade do país. Minha vida está aí para quem quiser virar do avesso, as decisões que eu tomei, polêmicas, não polêmicas, mas que eram polêmicas e deixaram de ser, porque se mostraram correta, a minha família, onde eu moro, os meus filhos, a educação que eu dei, tudo... O homem público tem que estar à disposição, com toda a transparência. Se eu sou mais light ou menos light, as decisões que eu tomei falam mais do que um discurso. Lula não saiu com 80% de aprovação por outra razão que não fosse a sua capacidade de diálogo, é um homem do diálogo, um homem que nunca se negou a sentar à mesa com quem quer que fosse para discutir o interesse nacional. Não me vejo dissociado disso. Não existe isso de o Haddad ser moderado, o Lula, não, como se pode inferir da pergunta. Ele é um homem de diálogo.

O senhor já tem uma experiência eleitoral em disputa com João Doria, no caso da Prefeitura de São Paulo, na qual o senhor foi derrotado. O que o senhor aprendeu com essa experiência e como o senhor lidaria com o Doria em 2022?

Em 2016, eu tive dois problemas muito graves: a situação em que estava o PT nacionalmente, que perdeu 60% dos votos no país, e na cidade de São Paulo, tinha duas concorrentes que foram prefeitas do PT, que deixaram o partido. A Luiza Erundina concorreu pelo PSol; e a Marta Suplicy, pelo MDB, que tomou o poder em 2016, a partir do afastamento da presidente Dilma Rousseff. Esse cenário foi único e as pessoas não conheciam o Doria, que se vendeu bem. Eu não acho que esse cenário vá se repetir, menos ainda no Brasil. Uma coisa é a cidade de São Paulo, outra coisa é o Brasil. E eu acredito que as pessoas tenham se dado conta também do que ele representa em termos de compromisso social e democrático, das dificuldades que sofre dentro do próprio partido. Não acho que esse cenário tenha qualquer plausibilidade em 2022.

E o Luciano Huck?

Há sempre aquela solução do bolso do colete. Olha, celebridade é celebridade, às vezes, tem o carinho da população por ser celebridade. Mas eu acho que a política, mais ainda a Presidência da República, falo isso com toda a fraqueza. Eu sempre recomendaria tranquilidade. Obviamente, uma pessoa ter popularidade em razão de um programa de auditório, ser da Rede Globo, é uma coisa; presidir o país é outra bem diferente. Mas, conhecendo a direita como eu conheço, eles são especialistas em embarcar em coisas que pra mim soam como uma aventura. As pessoas acham que para representar o Brasil num campo de futebol tem que saber jogar bola, mas pra ser presidente da República não precisa entender de economia, direito, filosofia, não precisa entender de nada disso. Eu acho o contrário, acho que as pessoas têm que se preparar. Eu acompanhei muito uma pessoa extraordinariamente inteligente, que se preparou muito para chegar à Presidência, conversou com as maiores intelectualidades do país. Lula se preparou décadas para poder ser o maior presidente da história do país, segundo todas as pesquisas. Não dá, sinceramente, não acho prudente.

E o Ciro Gomes, há conversas ou já se afastaram a um ponto que não tem mais diálogo?

Fiz um esforço enorme, no primeiro semestre de 2018, para que ele se aproximasse mais do Lula. Infelizmente, fiz quatro tentativas, duas com o próprio Ciro, uma com o Carlos Luppi e uma com o Mangabeira Unger. Não foi possível. Acho que foi um erro. Depois, no segundo turno, houve aquela atitude de sair do país e não houve mais contato. Recentemente, Camilo Santana, que é um grande governador do PT, conseguiu promover uma primeira conversa lá no Instituto Lula, tomara que as coisas mudem pra melhor.


Vinicius Torres Freire: Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Em um ano, o óleo de soja ficou 96% mais caro. O óleo diesel, 2% mais barato, segundo o IPCA de janeiro. Nas contas da Agência Nacional do Petróleo, o diesel encareceu 2% de fevereiro de 2020 para cá.

Talvez um ano apenas não conte bem a história da carestia do combustível. Considere-se então o que aconteceu desde outubro de 2016, quando a Petrobras passou a reajustar seus preços com mais frequência, com base na cotação internacional. O óleo de soja ficou 123% mais caro. O óleo diesel, 23%. O arroz, 67%. O quilo de alcatra, 41%.

O problema não seria apenas o preço alto do combustível, se diz por aí, mas sua variação excessiva. No entanto, os preços do diesel ou da gasolina são menos voláteis do que os de arroz, feijão, alcatra ou óleo de soja, pelo menos desde 2016.

Jair Bolsonaro vai intervir nos preços da comida, como ameaça fazer com a Petrobras? Mais difícil. Não existe uma Vacabrás ou uma Arroz Pátria Amada S.A. Por falar nisso, assim como ferro e petróleo, grãos e carnes têm preços definidos no mercado mundial.

Não há Vacabrás nem tampouco grande grupo organizado de protesto daqueles que não podem comprar arroz. O povo definha quieto, ainda mais em tempo de esquerda semimorta. Mas existem movimentos caminhoneiros e empresariais fortes o bastante para quase levar o Brasil ao colapso rodoviário. Alguns são falanges de Bolsonaro, animador do caminhonaço de 2018.

Obrigar a Petrobras a cobrar abaixo do preço de mercado não apenas diminuiria seu faturamento, os dividendos que paga ao governo, elevaria seu custo de financiamento e limitaria seu crescimento. Se a crise ficar barata, a Petrobras vai perder dezenas de bilhões de reais (centena?).

Por ora mais relevante, a mera percepção de que o governo possa vir a meter a pata em empresas tende a elevar custos de financiamento (juros mais altos, inclusive para o governo) e limitar investimentos na economia em geral.

Bolsonaro partiu para a demagogia econômica explícita. Abriu mais um buraco no Orçamento ao isentar gás e diesel de impostos, embora ainda gaste menos do que Michel Temer no pagamento desse suborno-resgate. Cometerá crime fiscal caso não corte outro gasto ou não aumente algum imposto para compensar.

A história de que o governo “responsável” procurava compensações para a nova despesa com o auxílio emergencial se torna assim mais ridícula. O auxílio está à beira de passar no Congresso com compensações apenas para inglês ver, mais uma promessa como o trilhão das privatizações de Nostradamus de Paulo Guedes (acontecerão em algum momento dos séculos por vir). Por falar nisso, quem vai comprar refinaria da Petrobras quando o governo mete a mão nos preços?

Sim, esta análise tem a perspectiva limitada da gerência elementar de uma economia de mercado e seus requisitos mínimos de funcionamento. É o máximo que se pode esperar sob o governo militar bolsonariano.

Como um projeto de tirano aloprando em um bunker ou porão, Bolsonaro não dá a mínima para o risco de arruinar o país: ele é capaz de tudo, e incapaz também. Corre agora risco maior de implodir seu próprio governo e prestígio, popularidade que poderia manter à tona vacinando em massa e obedecendo ao menos à mediocridade habitual de sua equipe econômica. Mas, se um quarto de milhão de cadáveres e outras ruínas não o derrubaram, por que não dobrar a aposta na monstruosidade ignorante e tocar o golpe por outras vias?

Donos do dinheiro grosso vão reagir ou continuam achando que Bolsonaro ainda está no preço?


Míriam Leitão: Risco ao capital e à democracia

A Petrobras está sob intervenção de militares. O presidente da empresa e do conselho são um general e um almirante, o ministro da área, um almirante. A empresa perdeu R$ 50 bilhões de valor, no pregão de sexta-feira e no after market, e a governança foi violentada. Jair Bolsonaro alimentou a especulação, anunciou a mudança pelo Facebook e o fato relevante veio só depois. O general Joaquim Silva Luna foi um dos redatores da nota de ameaça ao Supremo em 2018. O ministro da Economia, Paulo Guedes, virou um fantasma dentro do governo.

Acionistas podem entrar na Justiça porque tiveram prejuízo por ato temerário do acionista controlador. Várias regras das empresas de capital aberto e do estatuto da Petrobras foram feridas por Bolsonaro. O golpe foi executado em detalhes. Ao anunciar que indicava Silva Luna também para ser um dos membros do Conselho de Administração, o governo convocou uma Assembleia Geral Extraordinária. A Lei das S/A de 2001, artigo 141, parágrafo terceiro, diz que sempre que houver a destituição de um membro do conselho todos os outros estão destituídos. Assim, o governo preparou o bote. Se houvesse resistência ao nome do general Luna, entre os seus representantes no Conselho de Administração, todos os nomes restantes seriam trocados. À noite, o governo informou que os reconduzia. Contudo, ficou sobre eles a espada.

Bolsonaro fez atos explícitos de populismo fiscal e de intervencionismo. Numa penada, aumentou em quase R$ 5 bilhões as despesas públicas, eliminando impostos sobre combustíveis fósseis, quando a equipe tenta cortar R$ 10 bilhões de um orçamento exaurido e ainda não aprovado. Paulo Guedes terá que fazer mais um truque ilusionista para fingir que cumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal. A pandemia exigiu gastos extras e suspendeu limites legais, mas o presidente tem cometido crime de responsabilidade fiscal e não é por aumentar gastos na saúde. Ele ignora a tragédia sanitária que atinge o país. A gestão de Bolsonaro elevou o número de mortes do Brasil.

Os tumultos criados pelo presidente e seus histriônicos radicais feriram a economia e a política. Por eles, o país desperdiçou mais uma semana que deveria ter sido dedicada à luta por saúde, auxílio aos mais pobres e reajuste das contas públicas. O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), que falou em dar uma surra nos ministros do Supremo, “até o gato miar”, está fora do jogo. A Câmara aprovou o ato do STF de prendê-lo. Ele provavelmente será cassado.

Silveira ameaçou o Supremo. Bolsonaro, também. Silveira defendeu o AI-5. Bolsonaro, também. Silveira é truculento e ameaça os adversários de eliminação física. Bolsonaro, também. Silveira praticou crimes na internet. Bolsonaro, também. Silveira foi preso. Bolsonaro governa o país. Do posto, conspira contra a democracia, a economia e a saúde dos brasileiros. Na sexta-feira, ele, de chapéu de couro, fazia demagogias no Nordeste. No sábado, numa escola militar, falou uma frase dúbia sobre o regime democrático.

A Petrobras será presidida pelo general Silva Luna, o Conselho pelo Almirante Leal Ferreira e o ministro da área é o almirante Bento Albuquerque. Eles agora farão juras à economia de mercado e à governança da empresa. Será mentira. Alguns do mercado vão fingir acreditar. Há muita liquidez na economia global procurando ativos.

No Alto Comando do Exército, em 2018, quando o general Villas Bôas postou as mensagens para intimidar o Supremo no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, estavam o general Eduardo Ramos, o general Braga Netto, o general Fernando Azevedo e Silva. O próprio Villas Bôas, mesmo no momento final de uma doença degenerativa, ajudou a História ao informar que os integrantes do Alto Comando foram ouvidos. O general Silva Luna era ministro da Defesa e também soube. Perguntei ao atual ministro da Defesa, Azevedo e Silva, através da sua assessoria, se ele havia visto a nota. “O ministro não vai comentar. O conteúdo do livro cabe ao seu autor”, respondeu o Ministério.

A governança da Petrobras foi atacada por Bolsonaro para impor o controle de preços. Nem isso contentará os caminhoneiros. Bolsonaro é inimigo do liberalismo econômico e derrubou o valor da ação da Petrobras. Mas isso se recupera no futuro. O bem mais caro que Bolsonaro ameaça é a democracia. O país sabe o alto preço que pagou por ela.


Janio de Freitas: A Folha merece corrigir seu caminho

Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 anos do jornal

Nos 100 anos da Folha, estendi por 40 anos, completados em novembro de 2020, um equívoco que se desdobrou em incontáveis outros. Um telefonema de Boris Casoy, então diretor de Redação, com um convite para minha colaboração no jornal, dava seguimento a uma sugestão de Flávio Rangel a Otavio Frias Filho, que procurava novo ocupante para a coluna fina da página 2.

Não ia durar mesmo, então comecei, não com os esperados seis textos por semana, três cabiam. Não se conversou sobre o gênero de coluna. Meu antecessor viera de décadas como editorialista de política, com estilo e temática dessa linhagem. Esperavam de mim, supus, a continuação assim. Nem tentei: em São Paulo com o nome de Janio, jornalista do abominável balneário do Rio e incapaz de fazer o que não sabia, na certa seria o horror dos leitores experimentais. Corri para uma crônica de fundo político, com temperos improváveis e cardápio variado.

O oposto do que Otavio desejava, vim a saber não muito depois. O convite foi um equívoco. De Otavio nunca ouvi uma referência positiva a artigo meu. A rigor, ouvi dois elogios: um, ao artigo “Cuba ida e volta”, quando me disse sentir-se em culpa por me haver retido no trabalho estiolante da coluna; outro, no artigo sobre a Grécia do mar Egeu, onde me emocionara muito. Um elogio para cada 20 anos é ao menos uma média original.

Quando Frias pai quis me passar para um espaço próprio e fixo, seis dias na semana, relutei muito comigo mesmo. Fui vencido por outro equívoco. Ano a ano, o canto alto e junto à dobra da página 5 recebeu e entregou um assunto exclusivo, em geral relevante e um tanto atrevido. O ponto final de uma coluna sinalizava o início do trabalho para a seguinte, ou as seguintes. Uma insensatez. Que pressenti, porém não aliviei, como é mais comum, pelo orgulhoso fascínio desta profissão imprópria para os países de falso “em desenvolvimento”.

Frias pai é merecedor de um reconhecimento ainda não feito pelo jornalismo. Nem mesmo na Folha. A extensão peculiar da liberdade informativa, base da identidade que o jornal veio a formar, só foi possibilitada por um fator contrário à pressão tradicional do poder econômico para conter o jornalismo entre limites estreitos. Tem um nome: é o fator Octavio Frias de Oliveira.

O jornal já se tornara o polo da rejeição pública à ditadura, com a campanha das Diretas Já induzida por Otavio. No regime civil, manteve a posição privilegiada com o jornalismo crítico aos problemas governamentais da abertura. E “esse movimento [do jornal] veio acompanhado do exercício do jornalismo investigativo”, como disse a O Globo, sobre o centenário da Folha, o presidente da Associação Nacional de Jornais, Marcelo Rech. “A Folha não inventou o jornalismo investigativo, mas a denúncia da fraude na licitação da ferrovia Norte-Sul (...), em 1987, foi um divisor de águas.”

Deu-se uma corrida obcecada às revelações do jornalismo investigativo. O que só foi possível porque Frias acionou uma capacidade extraordinária de reduzir ressentimentos e obter o convencimento dos atingidos, nos interesses e no prestígio, pelas revelações da Folha. Aos atos traumáticos do jornalismo, foi comum seguir-se imediata operação de Frias, regada a simpatia natural e completada com a oferta de espaço à resposta do atingido —argumento definitivo da inexistência de qualquer propósito que não o jornalismo democrático. A Folha compunha uma identidade única.

Os olhares de mútuo entendimento entre mim e a Folha macularam-se no governo Fernando Henrique. Desde a campanha eleitoral, toda a “mídia” serviu a ele, não só ao Plano Real e sua eficácia anti-inflacionária. O senso crítico e a responsabilidade social e institucional reprimiram-se. Houve muita ilegalidade e muita imoralidade, mas o comprometimento político e partidário contrapôs-se, com mais força, à crítica necessária e ao jornalismo investigativo.

O governo Fernando Henrique foi um período tão nefasto para a “mídia” —não considerado o aspecto financeiro, de grandes benefícios— que essa influência vigora até hoje. Mostrou-se em todas as campanhas eleitorais desde aqueles anos 1990. Fez o grande espetáculo da barragem protetora às violências judiciais e políticas da Lava Jato de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Mostra-se na complacência com a corrupção dos Aécios do PSDB. Já se entorta para a eleição presidencial de 2022.

Das crônicas de fundo político, o anteparo da Folha me levou a uma coluna de informações quentes e buriladas. Daí, isolado, passei à reação ao deletério fernandismo-peessedebismo. Por fim, terceirizado, a expor percepções perdidas ou relegadas no afundamento do país em crise total e mortal.

Quarenta anos que sinto sem divisões anuais, volume uniforme de tempo, nada que desejasse reviver. Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 da Folha: logo aos primeiros textos, tratar o assunto militares como qualquer outro, contra o velho tabu; aproveitar os desequilíbrios de Gilmar Mendes e invadir a intocabilidade do Supremo, com mais um tabu que caía; e revelar, com a Norte-Sul e muitas outra fraudes desvendadas e anuladas, a corrupção que é a alma do “desenvolvimento” no Brasil.

A imprensa está em crise, mundo afora. A Folha merece corrigir seu caminho para vencer mais essa pressão.


Ruy Castro: O porquê de tanta macheza

Bolsonaro não pode mais deixar o poder, daí as armas, a blindagem e os jagunços, dentro ou fora da lei

Sem essa de maricas no seu quintal. Jair Bolsonaro gosta de se cercar de rapazes fortes, marombados. Daniel de Tal, ex-PM e YouTuber federal, é um deles. Há dias, para impressionar Bolsonaro, o bofe gravou um vídeo pregando o fechamento da democracia e ameaçando bater com um gato morto nos 11 senhores do STF, que, juntos, passam de 700 anos de idade. Outro favorito de Bolsonaro era o também ex-PM e também he-man Adriano Nóbrega. Mas a vida dá voltas. Daniel tornou-se um estorvo para Bolsonaro e foi jogado ao mar. E, por motivo de força maior, em 2020, na Bahia, Adriano foi convencido a ir para o céu.

Por sorte, abundam reposições. Bolsonaro, como se sabe, prestigia qualquer formatura de PMs e bombeiros. Não apenas se sente bem entre aqueles coletes e coturnos, como admira a constância com que as duas corporações suprem a milícia —três forças com que um dia precisará contar numa eventualidade. Para se garantir e não correr riscos, Bolsonaro igualmente não perde as formaturas de cadetes, certo de que os jovens oficiais lhe serão mais eficientes do que os generais puídos e babões que hoje o avalizam.

Completando seu fascínio pelos homens de ação, Bolsonaro tenta a todo custo “flexibilizar” os decretos que restringem armas de fogo. Por ele, qualquer bonitão capaz de aguentar no braço o tranco de um fuzil ao disparar deve ter o direito de portar esse fuzil e usá-lo contra os inimigos da pátria, como os globalistas, constitucionalistas, jornalistas e outros comunistas que ameaçarem sua perpetuação no poder.

Sim, porque esse é o objetivo de tanta macheza. Bolsonaro já foi alertado de que não pode mais deixar o poder. Precisa dele —blindando-se, armando-se, cercando-se de jagunços, dentro ou fora da lei— para não ser levado ao banco dos réus.

Do qual, se se sentar, pode nunca mais se levantar. Só a contagem de seus crimes levará décadas.


Bruno Boghossian: Ministros querem evitar que processo de Silveira saia do STF em caso de cassação ou renúncia

Integrantes do tribunal acreditam que deputado tem menos chances de ser condenado se ação mudar de instância

Mesmo com a prisão mantida pela Câmara, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) ainda tem chances de escapar de uma punição definitiva. Ministros do STF lembram que, se o parlamentar for cassado ou renunciar ao mandato, o processo contra ele pode ser remetido a um tribunal de primeira instância.

No Supremo, o ambiente é evidentemente desfavorável ao deputado, como mostrou a sessão da última quarta (17). Até o decano Marco Aurélio Mello, famoso por ficar isolado nas votações, aderiu à maioria e ressaltou que “ninguém coloca em dúvida a periculosidade do preso”. É praticamente certo, portanto, que o tribunal deve tornar Silveira réu.

Ainda assim, o processo pode sair das mãos do STF. As regras do foro especial determinam que uma ação muda de instância se um político perde o cargo antes da conclusão da fase de depoimentos. Em caso de renúncia ou de cassação do mandato por seus colegas da Câmara, ele pode responder em Petrópolis (RJ) pelas ameaças ao Supremo.

Alguns ministros consideram improvável que Silveira seja condenado em sua cidade natal. Um dos juízes federais que atuam no município já citou Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo radical, ao rejeitar uma denúncia de estupro contra um militar da ditadura. Ele escreveu que direitos humanos não devem ser “meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas”.

Ainda que a Câmara prefira não cassar Silveira, o deputado pode renunciar para encontrar um terreno mais confortável. De quebra, ele escaparia de se tornar inelegível e poderia disputar eleições em 2022.

Integrantes do Supremo querem parar o chamado “elevador processual”. Um dos ministros defende uma questão de ordem para que o processo continue no tribunal em caso de cassação ou renúncia, sob o argumento de que não é possível escolher o órgão julgador. O próprio STF manteve essa brecha no confuso processo que atropelou a lei e mudou à força as regras do foro especial.


Elio Gaspari: Daniel Silveira errou o tiro

Deputado, que se dizia “cagando e andando” para as opiniões do STF, pensou em criar uma crise institucional; deu errado, fosse qual fosse a intenção

Daniel Silveira é um ex-PM do Rio. Em seis anos na corporação, pagou 26 dias de prisão, com 14 repreensões. Antes de entrar para a polícia, ele se valia de falsos atestados médicos fraudados por um faxineiro para faltar ao serviço. Preso na semana passada, manteve dois celulares na sala da Polícia Federal onde ficou, por decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Esse personagem, que dias antes se dizia “cagando e andando” para as opiniões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pensou em criar uma crise institucional no Brasil. Ele foi o estuário de uma visão nascida em 2018, quando o deputado Eduardo Bolsonaro disse que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal”. Não bastam.

Ao seu estilo, Daniel Silveira usou a repercussão do depoimento do general da reserva Eduardo Villas Bôas para atacar, em nome de sua agenda pessoal, os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Os inquéritos sobre mobilizações antidemocráticas propagando mentiras estão na mesa de Moraes. Fosse qual fosse a intenção de Silveira, deu errado.

Na última terça-feira, quando os ataques do deputado chegaram ao conhecimento de ministros do Supremo, vários deles discutiram o caso com Moraes. À noite, ele mandou prendê-lo. Silveira sustenta que o flagrante citado por Moraes não se sustenta. O que não se sustenta é sua jurisprudência. Enquanto uma mensagem está postada pelo autor, o delito está em curso. (Depois que Silveira foi em cana, o vídeo foi apagado.)

Pelo andar da carruagem, ainda nesta semana o doutor poderá passar para um regime de tornozeleira, com limitações cautelares. A partir daí, tudo dependerá do seu comportamento.

A julgar pela sua conduta respeitosa durante a audiência de custódia de quinta-feira, o que foi combinado ficará de pé. Caso Silveira tenha uma recaída, saindo por aí “cagando e andando” por onde bem entende, cairá de novo na jurisdição de Alexandre de Moraes.

Villas Bôas também esperou três anos

O general da reserva Eduardo Villas Bôas ironizou o arroubo do ministro Edson Fachin, que considerou “gravíssima” sua revelação dos bastidores da preparação do famoso tuíte de 2018. Nele, o então comandante do Exército prensou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado em favor de Lula.

Villas Bôas foi breve: “Três anos depois”.

Na mosca. Fachin demorou para ficar indignado, e não foi por falta de exemplo, porque o ministro Celso de Mello repudiou o tuíte no dia seguinte.

“Três anos” também foi o tempo que Villas Bôas demorou para contar como produziu o texto, colocado na sua conta pessoal do aplicativo. Com uma diferença: Fachin demorou, mas pôs a cara na vitrine; Villas Bôas terceirizou parte da iniciativa.

Nas suas palavras:

“O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília. No dia seguinte — dia da expedição—, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente.”

O general fez dois tuítes, somando 75 palavras. Se elas tomaram todas as horas do expediente, cada uma foi medida. A certa altura, Villas Bôas assegurou que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”. Deu no que deu.

Em outros tuítes, Villas Bôas havia louvado o “soldado Luciano Huck” e uma apresentação de Sabrina Sato na Academia das Agulhas Negras. Noutra ocasião, defendeu o desempenho da atriz Regina Duarte, então secretária de Cultura, numa entrevista, por sua “grandeza, perspicácia, inteligência, humildade, confiança, doçura, (e) autoconfiança.”

Ao revelar detalhes da edição do tuíte, Villas Bôas compartilhou sua gênese. Chefe militar pode ouvir seus comandados por respeito e até mesmo por cortesia, mas não revela isso três anos depois.

Imaginar comandantes como Leônidas Pires Gonçalves ou Orlando Geisel contando que suas palavras foram submetidas e discutidas com subordinados equivale a imaginá-los de boné num show do cantor Belo na Maré.

Nunca é demais lembrar o papelzinho que o general Dwight Eisenhower guardou no bolso em 1944, durante o dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, caso a operação fracassasse:

“Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha”.

Deu tudo certo, e em 1953 ele se tornou presidente dos Estados Unidos.

Nunes Marques

Na noite de quarta-feira, os ministros do Supremo achavam que no dia seguinte a Corte sustentaria a decisão de Alexandre de Moraes por 10x1.

Ficaria vencido o ministro Nunes Marques. Feitas as contas do outro lado, entendeu-se que esse resultado seria pior. E assim chegou-se à unanimidade.

Ricardo Boechat

Completaram-se dois anos da morte do jornalista Ricardo Boechat, e o laboratório Libb, que o havia contratado para uma palestra em Campinas, interrompeu as negociações amigáveis para custear a continuidade do tratamento médico de uma das filhas que deixou, estimado em R$ 15 mil a R$ 20 mil mensais. Enquanto viveu, Ricardo Boechat arcou com essa despesa.

Boechat morreu quando caiu o helicóptero que o trazia de volta a São Paulo, depois de uma palestra no Libb, em Campinas.

Contratualmente, o transporte de Boechat era de responsabilidade do Libb. A aeronave estava bichada, e a empresa contratada não tinha autorização para fazer esse tipo de serviço.

Depois de quatro meses de negociações amigáveis, o laboratório Libb resolveu judicializar a questão. Ele é o oitavo maior do mercado, com o slogan “empresa inspirada pela vida”.

Numa conta de padaria, uma decisão de primeiro grau poderá demorar mais de um ano. Com recursos, pode-se ir a cinco anos.

Turismo irresponsável

Disposto a mostrar que não é um “maricas”, Jair Bolsonaro passou o carnaval na praia, festejando curiosos, sempre sem máscara.

Seu governo lançou a campanha “Turismo Responsável”, criando um selo para agências de serviços e empresas.

Quem vê os vídeos da propaganda do selo pode pensar que está na Nova Zelândia. Lá, sob o comando da primeira-ministra Jacinda Ardern, morreram 26 pessoas, cinco para cada milhão de habitantes. Na terra das palmeiras, onde canta o capitão, morreram mil para cada milhão de brasileiros.

Perseverança

Depois de cinco meses de viagem, o robô Perseverance pousou em Marte.

Completaram-se 14 meses do dia em que o repórter Aguirre Talento revelou a existência de um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)que torraria R$ 3 bilhões na compra de equipamentos eletrônicos para escolas públicas. Os 244 alunos de um colégio mineiro receberiam 30.030 laptops.

Ainda não se sabe quem botou esse jabuti na burocracia do FNDE.

A perseverança da Nasa é coisa de principiantes.


Bernardo Mello Franco: O caminho do Capitólio

No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.

Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.

Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.

No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.

O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.

“Bolsonaro incentiva abertamente a formação de milícias privadas. Esta é a principal ameaça à democracia no Brasil, junto da politização das forças policiais”, afirma a pesquisadora. Neste cenário, milícias que já elegem deputados e vereadores podem ser usadas para subverter a corrida presidencial.

Em entrevista recente à “Folha de S.Paulo”, o ministro Edson Fachin manifestou “preocupação agravada com a corrupção da democracia” no país. Entre os sintomas da doença, listou a “remilitarização do governo civil”, o “incentivo às armas”, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto” e os ataques ao Judiciário e à imprensa.

O ministro desenhou o caminho para uma invasão do Capitólio tupiniquim. Ele assumirá o comando do TSE em fevereiro de 2022, a oito meses da eleição presidencial.

Velhas novidades

O Partido Novo se diz liberal, mas não perde uma chance de lustrar as botas do capitão. Das 24 legendas na Câmara, foi a única a votar unida contra a prisão de Daniel Silveira.

O deputado Marcel van Hattem ousou comparar o bolsonarista ao ex-deputado Márcio Moreira Alves. Um defende a ditadura e queria surrar ministros do Supremo; o outro denunciou as torturas e foi cassado pelo AI-5.

Van Hattem foi o campeão de votos do Novo em 2018 e se tornou o primeiro líder da sigla em Brasília.


Merval Pereira: Preparando o futuro

Sem entender, ou se preocupar, com a importância de cada palavra sua, especialmente em questões sensíveis como a administração de uma estatal como a Petrobras, que tem acionistas em várias partes do mundo, o presidente Bolsonaro prometeu que na próxima semana teremos mais surpresas como a que derrubou o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e colocou em seu lugar mais um general.

A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.

Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.

O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.

Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.

Nenhuma questão tomou mais a atenção da administração bolsonarista do que esta, com mais de 30 decretos e  regulamentações com o mesmo objetivo,  ampliar o uso e o acesso de armas de fogo ao cidadão comum, e o relaxamento do controle que anteriormente era feito pelo Exército ou pela Polícia Federal, e que passa a ser responsabilidade de clubes de tiros, ou liberado de uma burocracia que, nestes casos, servia para manter sob o controle de organismos do Estado o rastreamento de munições e o uso de armamentos e equipamentos antes restritos aos militares.

Como adverte o ex-ministro da Defesa Raul Jungman, agindo assim o presidente incorre em problemas sérios: está quebrando o monopólio da violência legal, fator constitutivo do Estado nacional, cuja existência se dá a partir do momento em que ele controla esse monopólio. As Forças Armadas, lembra Jungman, são a base desse monopólio, e com isso perdem o papel de garantidor da democracia.

Política de tal teor “está levantando o espectro terrível de uma guerra civil entre os brasileiros”, lamenta Jungman, que lembra que as milícias e o crime organizado saem vitoriosos desse afrouxamento de regras sobre o armamento, fazendo letra morta o Estatuto do Desarmamento. Os grupos protofascistas dos quais faz parte o deputado federal (ainda?) Daniel Silveira só cresceram em audácia pelo ambiente permissivo de violência, verbal e física, instalado no país por Bolsonaro.

A militarização dos quadros do Estado, que leva um general a substituir outro na binacional Itaipu, por exemplo, mistura o que deveria ser óleo e água, com políticos e militares disputando lugares na administração federal, cada qual garantindo a Bolsonaro imunidades a seus alcances. Quando um presidente da República anuncia que o regime democrático não é o que ele gostaria, está declarando que sua preferência é outra, deixando no ar que prepara um futuro mais adequado às suas inclinações ideológicas.

Cabe às forças democráticas barrarem esses delírios, como fizeram no caso do deputado parlapatão, e como anunciam que farão com os decretos de armas.


Já está no ar edição 28 da Revista Política Democrática Online

Edição de fevereiro destaca entrevista com o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga. Reportagem especial analisa como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil

Já está no ar a edição 28 da Revista Política Democrática Online. Armínio Fraga é o entrevistado especial desta edição, que teve a participação de Raul Jungmann e Caetano Araújo como entrevistadores.

Clique para acessar a edição 28 da Revista Política Democrática Online

Nesta edição você também pode conferir a reportagem especial escrita pelo jornalista Eumano Silva, que faz uma análise de como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil, com as incertezas aumentadas pelo fim do auxílio emergencial e as falhas na vacinação da população brasileira pelo Ministério da Saúde do Governo Bolsonaro.

A RPD 28 traz, ainda, artigos dos articulistas Mauro Oddo Nogueira, Ivan Accioly, Lilia Lustosa, Henrique Brandão, Nelson Tavares, Dora Kaufman, José Gomes Temporão, Luiz Antonio Santini, Dawisson Belém Lopes e André Amado, além da charge de JCaesar. Confira, também, o editorial da Revista Política Democrática Online.

Leia também:

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Cristovam Buarque: Labirinto de espelhos

Brasil está ficando para trás na marcha do progresso

Por nossos erros ao longo de décadas, o Brasil está ficando para trás na marcha do progresso. Em decadência pela desigualdade social, pobreza, fracasso educacional, sem produtividade nem inovação, um Estado esgotado fiscal, gerencial e moralmente, sistema de ciência e tecnologia insuficiente, democracia e instituições políticas frágeis, sociedade violenta e armada, cidades “monstropolitanas”. Para agravar, com governo despreparado, desumano, sem bússola, antidemocrático, antissocial, sem empatia, reacionário, armamentista, preconceituoso, negacionista do valor do conhecimento, desmoralizado no cenário internacional.

O Brasil precisa de um rumo para orientar-se no seu terceiro centenário, que se inicia no próximo ano. Mas antes mesmo de formular este rumo, o Brasil precisa de coesão no presente e evitar o desastre previsível para os próximos. Ao observar os movimentos dos candidatos a presidente em 2022, a sensação é de que eles estão passeando em um labirinto de espelhos: nenhum sabe o caminho e cada um olhando para si ou seu partido, não para o país. Não reconhecem os erros cometidos que levaram à derrota em 2018, nem assumem responsabilidade pelas consequências de reeleição do atual presidente. Ao final do labirinto de espelhos, os candidatos imaginam a cadeira presidencial lhes esperando, sem perceberem que os caminhos labirínticos podem levar a um abismo.

Além de não perceberem o labirinto de espelhos, os candidatos não estão buscando construir uma base eleitoral capaz de vencer e impedir à maldição de um segundo mandato de Bolsonaro. Evitando ficarmos ainda mais divididos e desiguais internamente, isolados internacionalmente, armados miliciamente, enganados pelo negacionismo. E ainda ameaçados de reforma constitucional para permitir mais de uma reeleição depois.

Nossa função imediata consiste em unir os candidatos e escolher aquele com mais condições de atrair o voto do eleitor, com a menor rejeição. Na tormenta, a âncora é mais importante que a vela. Precisamos de quatro anos que permitam o debate entre os candidatos, buscando um projeto de nação para o terceiro centenário da independência. Até lá, precisamos quebrar os espelhos: os candidatos olharem menos para seus partidos e mais para o país, se preocuparem menos com seus programas, visões e interesses pessoais e mais com a tarefa do presente, menos divisão personalista e ideológica e mais unidade democrática, desde o primeiro turno.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador