congresso

Cristina Serra: Onde estaremos daqui a um ano?

O Brasil, hoje, nos sufoca de indignação e vergonha

A pergunta do titulo foi feita pelo jornal El País em recente entrevista com o bilionário norte-americano Bill Gates, que há tempos investe parte de sua fortuna em pesquisa científica. Em 2015, ele alertou que a próxima guerra travada pela humanidade seria contra um inimigo invisível, um vírus muito infeccioso, que se propagaria pelo ar e mataria milhões de pessoas. Por isso, era urgente que os países se preparassem para o combate.

Obviamente, constatamos da pior forma possível que isso não aconteceu. Em pouco mais de um ano, a pandemia já matou dois milhões e meio de pessoas no mundo. Apesar da perda colossal, Gates estima que no começo de 2022 os efeitos mais dramáticos do contágio estarão superados e os países terão de volta algum nível de normalidade, desde que 70% das populações sejam vacinadas.

Ao ler a entrevista, me fiz a mesma pergunta pensando no Brasil. O ritmo atual da vacinação não nos autoriza uma perspectiva positiva para o futuro próximo. O neurocientista Miguel Nicolelis, sempre objetivo nas suas análises, disse que "começa a ser real" a possibilidade de não ter Carnaval em 2022. Chegaríamos, portanto, a dois anos de pandemia, com mais mortes e a população pobre tocando a vida aos trancos e barrancos.

Como já alertaram importantes cientistas brasileiros, Bill Gates também adverte que o tempo está se esgotando para que a humanidade conjugue esforços no enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas, "muito piores" que os da pandemia. É um desafio para gigantes, que só pode ser vencido com a confluência de interesses de governos e mercados e com muito investimento em ciência.

Décadas de reconstrução democrática prepararam o Brasil para ser uma voz respeitada globalmente em saúde e meio ambiente, temas intimamente relacionados. Sob um governo de gente orgulhosa de sua ignorância, o Brasil, hoje, nos sufoca de indignação e vergonha. Amá-lo tornou-se um martírio doloroso e inútil.


Pedro Fernando Nery: De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família

Seja via o benefício ou por novo programa social, a população infantil deve ser prioridade do governo

De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família. Embora efetivo em combater a extrema pobreza, o programa só recebe 2% das despesas primárias do governo federal. Para ser expandido, diante da grave restrição fiscal, precisa ocupar espaço de outras políticas mais caras e menos voltadas aos mais pobres – sejam elas pagas pelo Estado diretamente (gasto) ou indiretamente (renúncia de tributos). Poderá a pressão por mais recursos pelos órfãos do auxílio emergencial mobilizar as reformas que permitam a expansão do Bolsa?

Cerca de 50 milhões dos beneficiários do auxílio emergencial não eram beneficiários do Bolsa Família. Como possuem dificuldade de acessar o mercado de trabalho formal – afinal um pré-requisito do auxílio é não ter emprego com carteira –, não são tão alcançados pelo gasto com benefícios previdenciários ou trabalhistas. Eles pressionarão pelo aumento da cobertura da assistência social. Já os beneficiários do Bolsa Família receberam pagamentos bem maiores com o auxílio emergencial. Eles pressionarão pelo aumento do tíquete médio (de R$ 190 por família, mas com piso de meros R$ 41 mensais).

Na pesquisa do Poder360, a rejeição do presidente caiu a 30% no auge dos pagamentos do auxílio. Ele foi reduzido e depois encerrado. Agora, semanas após o encerramento, a rejeição já subiu ao patamar de 50%. Essa trajetória acompanha a montanha russa na renda dos beneficiários, que em alguns casos subiu muito em 2020 e agora cai ao menor nível em anos.

Assim, um desdobramento do auxílio emergencial poderia ser uma mudança no gasto público no Brasil. Esse legado se soma a outros – o mais comentado é o aumento expressivo da dívida pública com os pagamentos. Há ainda um legado positivo, decorrente da elevação temporária da renda dos mais pobres. Como a variação não resultou apenas em aumento na compra de alimentos, pelo menos parte do auxílio de 2020 tem efeitos mais duradouros. É o caso da aquisição de remédios ou do desenvolvimento da infraestrutura do domicílio (gastos com eletrodomésticos e construção que podem melhorar na habitação condições de saúde, de desenvolvimento infantil e de inclusão digital).

Ugo Gentilini, líder global para assistência social do Banco Mundial, analisa o legado que os benefícios temporários da pandemia podem deixar para a rede de proteção social permanente dos países que os implementaram. Condizente com as curvas de popularidade no Brasil e a pressão de um ano pré-eleitoral, Gentilini especula: “O fato de a covid-19 ter alcançado pessoas anteriormente sem cobertura – incluindo grandes parcelas de trabalhadores do setor informal – pode gerar um novo eleitorado exigindo proteção social, possivelmente aumentando a sustentabilidade política de programas de grande escala”.

O economista avalia ainda que a pandemia testou preconceitos associados a transferências de renda, o que pode ter desmistificado os benefícios para segmentos da sociedade. Afinal, a academia e a tecnocracia já sabem há tempos que não procede que os pagamentos sejam mal utilizados e que sejam relevantes para desincentivar o trabalho ou estimular o aumento de famílias.

Para o Bolsa Família, é especialmente importante o reajuste dos valores do benefício variável e da linha de pobreza que dá acesso a ele. Este é o benefício voltado para ajudar crianças. Seja via Bolsa Família ou por novo programa baseado nele, a população infantil deve ser prioridade. Há um notório elevado retorno para a sociedade de garantir o desenvolvimento destes futuros trabalhadores – e o Brasil gasta muito menos de seu PIB do que países ricos com benefícios a famílias com crianças.

Os Estados Unidos, uma exceção, agora discutem seriamente um benefício universal infantil, com apoio inclusive de republicanos estrelados.

Nenhum outro benefício se mostrou no Brasil tão capaz de chegar aos mais pobres, nem de perto, o que dá azo à revisão de outras políticas para que uma transferência de renda como o Bolsa ocupe mais espaço. Não apenas os gastos diretos deveriam ceder recursos, como também os indiretos: as políticas públicas baseadas em corte de tributos para segmentos específicos tidos como “estratégicos”. Como provocou recentemente Carlos Góes, estratégicos são os pobres.

Poderia o auxílio emergencial ser um catalisador dessas reformas, antes associadas apenas à pauta de ajuste fiscal? Gentilini reflete que os avanços na proteção social historicamente aconteceram diante de inesperadas janelas de oportunidade – mas elas se fechariam rapidamente. O debate atual não deve se limitar apenas à renovação temporária do auxílio, mas a mudanças profundas no Orçamento que permitam a expansão da proteção social com responsabilidade fiscal. Quem sabe os mais pobres ganhem mais um ou outro centavo.

*Doutor em economia 


Ricardo Noblat: Intervenção na Petrobras une PT a Bolsonaro

E quem pensava que já assistira a tudo....

Além da Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo, onde pulsa o coração do mercado financeiro, quem mais votou em Jair Bolsonaro para presidente por acreditar na sua súbita conversão ao liberalismo de Paulo Guedes, seu futuro ministro da Economia?

A massa gigantesca de votos que quase o elegeu direto no primeiro turno pouco ou nada entende de liberalismo e de economia, juntos ou separados. Havia um desejo gigantesco de mudança e uma repulsa generalizada à política tradicional.

Então se escolheu um até então desconhecido deputado federal do baixo clero que se dizia não político e contra tudo o que ali estava. Portanto, não se diga agora que ele traiu seus eleitores ao intervir na Petrobras. Pode ter traído, se muito, a Brigadeiro Faria Lima.

É no que dá acreditar naquilo que não é, mas que se gostaria que fosse. O capitão que repetia o pouco que Guedes lhe ensinou revelou-se outra vez o estatizante que sempre foi. É curioso que até aqui somente o PT tenha saído em seu socorro.

Bolsonaro e PT, tudo a ver em alguns pontos: ambos anti-mercado, anti-capitalismo e pró-estatizante. Ambos populistas com um forte viés autoritário que pelo menos Lula, em seus dois governos, tentou por sabedoria amenizar, mas Dilma mão de ferro, não.

Filho de um general nacionalista que morreu, o economista Aloizio Mercadante (PT-SP), que foi ministro da Educação e da Casa Civil do governo Dilma, apressou-se eufórico em mandar um recado para os militares brasileiros:

– Não se rendam ao mercado financeiro e aos interesses especulativos. Parem a privatização das refinarias, defendam uma Petrobrás forte e tragam uma política de preços justa para o povo, para os caminhoneiros e para os motoristas de aplicativos.

Saudou o general Joaquim Silva e Luna, o futuro presidente da Petrobras, como “um militar nacionalista”. Lembrado de que Bolsonaro extrairá dividendos eleitorais caso controle os novos reajustes de preços dos combustíveis, justificou-se:

– Ao contrário daqueles que nos golpearam, não apostamos no quanto pior, melhor. Assim como defendemos o auxílio-emergencial, temos que defender uma Petrobrás para os brasileiros. O povo brasileiro está sofrendo agora.

De fato, está, e não só por conta do vírus que continua matando, e da falta de vacina que se agrava, mas também porque a intervenção na Petrobras tornou o Brasil mais caro para os que vivem cá, e mais barato para os estrangeiros. Na vida real é isso.

Foi de 21,6% a queda do preço das ações preferenciais da Petrobras no primeiro dia útil após anúncio da intervenção, e de 20,4% nas ações ordinárias. O Ibovespa perdeu 4,87%. O dólar subiu 1,30%, O preço das ações do Banco do Brasil caiu 11,64%.

Investidores da Petrobras preparam uma ação coletiva para questionar as perdas. A troca de presidentes fez a empresa perder 102,5 bilhões em valor de mercado. Até a semana passada, quem tomava emprestado 100 reais pagava 110. Ontem, pagou 120.

“Ninguém vai interferir na política de preços da Petrobras”, declarou Bolsonaro ante a reação do mercado. No último final de semana, ele afirmou que vai reduzir em 15% o preço do diesel e da gasolina. O que ele diz não se escreve, mas produz estragos.

O economista Roberto Castelo Branco, que passará o cargo ao general Luna, era bem tratado pelo governo até outro dia. Se a política que ele conduzia na Petrobras não sofrerá nenhum tipo de alteração, por que mandá-lo embora?

Certamente não será porque Bolsonaro queria que ele investisse numa campanha milionária de propaganda do governo a ser veiculada no SBT e na Record, emissoras que fazem parte do Sistema Bolsonarista de Televisão. Castelo Branco não quis.

Em queda nas pesquisas de intenção de voto, sem que a economia se recupere como ele havia prometido, com a inflação em alta e com o índice de desemprego se aproximando dos 18%, o problema de Bolsonaro não é Castelo Branco, mas Guedes.

No fundo, para seguir sonhando com a reeleição, Bolsonaro precisa libertar-se das amarras do ministro da Economia para gastar mais e fazer negócios. A Petrobras é uma mina de negócios como demonstrado por governos anteriores.

O Brasil só não quebrou ao fim do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso porque Bill Clinton, à época presidente dos Estados Unidos e amigo dele, socorreu-o com um empréstimo. Reeleito, Fernando Henrique desvalorizou o Real.

O ciclo da valorização das commodities evitou que o Brasil quebrasse durante a crise financeira mundial de 2008. Lula, o presidente, cambaleava sob os efeitos do escândalo do mensalão do PT e as contas públicas desarrumadas. Sobreviveu.

Para reeleger-se, Dilma segurou o reajuste de preços dos combustíveis e da energia elétrica, causando um rombo nas empresas envolvidas que repercutiu em toda a economia. Depois, quando quis voltar à ortodoxia, não teve mais tempo.

Sem risco de impeachment e com o apoio militar que Mercadante tanto preza, Bolsonaro poderá ir no rastro de Dilma na esperança de se dar bem. Quanto à Brigadeiro Faria Lima, não passa de “um rebanho eletrônico”. Foi o general Mourão quem disse.


Míriam Leitão: Bolsonaro escancara populismo econômico

A interferência na Petrobras é mais grave do que o mercado refletiu ontem no banho de sangue dos pregões. Ao fim, a Petrobras tinha perdido R$ 98 bilhões em dois dias. Outras estatais também caíram. O que Bolsonaro quer? Ele busca ganhos políticos. Faz demagogia com os caminhoneiros para usá-los politicamente, faz populismo com todos os que sentem no bolso o preço da gasolina ou do diesel, cria um inimigo e ainda manipula o imaginário brasileiro com a frase “o petróleo é nosso”. São estratégias conhecidas.

A ditadura chilena dos anos 1970 usou os caminhoneiros como arma política. A ditadura da Venezuela usou a gasolina barata, o inimigo externo e o nacionalismo para se eternizar. O jogo é conhecido dos candidatos a ditador.

Enquanto isso, para acalmar os investidores locais e internacionais, a equipe econômica tenta usar uma arma de destruição em massa de princípios da Constituição. A proposta é aprovar uma PEC como condição para dar o auxílio emergencial. Pela versão divulgada ontem ela elimina todas as vinculações constitucionais para saúde e educação. Veja-se este ponto que parece incompreensível. “Revogar o caput e os §§ 1º e 2º do art. 212 da Constituição.” Isso mata o Fundeb. Simples assim. E está lá como se fosse inofensivo no item quarto do artigo quarto da PEC. Todo o esforço brasileiro de criar um fundo de valorização do ensino básico, que foi debatido intensamente no ano passado, seria apagado com uma penada. Ora, senhores da equipe econômica, na democracia uma mudança dessa profundidade não pode ser feita na chantagem da necessidade de um auxílio emergencial, nem no afogadilho de uma votação marcada para daqui a dois dias.

Mas há outras encrencas nas últimas decisões de Bolsonaro que vão bater no bolso do contribuinte. Pela Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 14) qualquer aumento de subsídio tem que ser compensado com elevação de imposto. Não basta cortar uma despesa. Está na lei que a compensação tem que ser: “aumento de receita proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributos.” Então aqueles R$ 4 bilhões a R$ 5 bilhões a mais de gasto pela redução dos tributos do diesel e do gás de cozinha terão que ser compensados com novo imposto. E mais. Pela Lei das Estatais, se qualquer estatal tiver prejuízo por uma medida tomada pelo governo, o Tesouro terá que compensar a empresa. Se a Petrobras tiver perdas de caixa com uma nova política de preços o Tesouro terá que compensá-la. No fim, quem pagará a conta do populismo econômico de Bolsonaro é o contribuinte.

Trocar presidente de estatal é natural. Passar por cima de leis, normas e estatutos e ainda acusar o que sai de “jogar contra o país” não é natural. A ironia é que Roberto Castello Branco fez parte do trio inicial do programa econômico do candidato Jair Bolsonaro. Era Paulo Guedes, ele e Rubem Novaes, ex-Banco do Brasil. Castello Branco entregou exatamente o que foi pedido a ele. Isso é que deixou economistas do mercado perplexos:

— Se Bolsonaro fizer metade do que ele falou nos últimos dias, o risco fiscal vai aumentar e o BC será forçado a subir juros em março pela confusão causada pelo presidente da República — avaliou um economista que influencia muita gente no mercado.

O consumidor está bravo porque o combustível subiu muito este ano. Gasolina 34%, e diesel, 27%. Mas no passado, com a pandemia, houve queda de 13% no diesel e redução de 4% na gasolina. Em parte, os preços estão subindo agora por causa do câmbio. O real é uma das moedas que mais perdem valor diante do dólar e isso é resultado direto das crises criadas pelo próprio presidente. O dólar sobe e bate em diversos preços que batem no bolso dos consumidores. Veja-se o caso da energia de Itaipu até agora presidida pelo general Joaquim Silva e Luna, que vai para a Petrobras. A energia de Itaipu subiu entre 35% e 40%. Ela é corrigida pelo dólar. O assunto não gerou polêmica porque Itaipu reajusta os preços automaticamente, a distribuidora repassa para o consumidor, que culpa a concessionária. A Itaipu do general Luna subiu seus preços pela mesma lógica que Castello Branco.

Bolsonaro desde o início sabotou o projeto liberal que vendeu na eleição. Agora foi além no estelionato. Ele escancarou seu populismo econômico, um caminho que sempre termina em crise.


Carlos Andreazza: O Daniel Silveira da Faria Lima

Bolsonaro passou a faca na Petrobras. Queria dar um recado aos irmãos caminhoneiros. A mensagem: “Vocês não me chantageiam. Chantageamos juntos”. E então mandou cortar, sem qualquer estudo, e sem que o combustível ficasse mais barato para o consumidor, os impostos federais sobre o diesel. Interveio para pressionar os governadores, os vilões do ICMS — alguns dos quais potenciais adversários em 2022. Em suma: “Fiz a minha parte. E vocês?”.

O presidente fez a sua parte: contratou rombo bilionário na arrecadação de um Tesouro que — vem aí o auxílio emergencial — terá aumento nos desembolsos. (É claro que se pode acreditar nas compensações fiscais — sempre do futuro — prometidas pelo Ministério da Economia; o sócio Centrão topa, mas só ali na frente, com as privatizações.) Essa é a austeridade de Bolsonaro, rigorosíssimo em sua campanha pela reeleição. Paulo Guedes que a viabilize, já muito testada a flexibilidade de sua cervical, embora não exibida para recolher do chão a cabeça do CEO da Petrobras.

(Caso à parte é a confiança em que Guedes — bolsonarista mais apaixonado que Weintraub — pudesse domar e educar liberalmente alguém como Bolsonaro, autocrata cuja mente econômica é produto do Brasil Grande. Já seria improvável se houvesse projeto e capacidade de executá-lo. Com palestras, incompetência e adesão ao conspiracionismo, impossível.)

Inicia-se, pois, o show de Luna na Petrobras. Avança a pazuellização do Brasil, o que equivale a dizer que progride a inépcia em meio ao recrudescimento da peste. Multiplicam-se os generais a se prestarem de cavalo para o mito; agora também — já era ministro da Saúde — comandante da petroleira. E que já prometeu mostrar que dirige as Minas e Energia. Guedes — este minion — não é militar, mas desde há muito se oferece como montaria; e sem relinchar. Bolsonaro — historicamente hostil à Lei de Responsabilidade Fiscal — é o ministro da Economia; e é também um populista que só pensa em se reeleger. Conta que não fecha.

Jaca não vira cereja. Com poder, será jaqueira. Bolsonaro é Bolsonaro. Uma vez presidente da República, o líder corporativista será um presidente da República líder corporativista. Ou já teremos nos esquecido de como procedeu, em prol de interesses de classe, na reforma da Previdência? Ou da forma como operou para que a reforma administrativa minguasse?

Mas há os que descobrem somente agora que Bolsonaro — porque meteu a mão na Petrobras — jamais será presidente de um governo reformista. “Oh! Meu Deus, ele não é liberal. Fui enganado.” Oi? Estava onde nos últimos 30 anos? Estava onde, amigo do mercado, para crer que o sujeito — há três décadas mamando o leite do Estado — promoveria uma cirurgia para reduzir o tamanho das tetas em que engorda a si e aos seus? (Isso no caso de o amigo não ser um entre os tantos que usam o fetiche liberal-guedista para dissimular o que outra coisa não é que atração pelo autoritarismo bolsonarista.)

Estava onde, em abril de 2018, quando Bolsonaro apoiou a revolução dos caminhoneiros, aquela que, motivada por insatisfações com o preço do combustível, paralisou criminosamente o Brasil, provocou desabastecimento e nos deu vislumbre do que seria um processo de venezuelização? O então deputado federal, candidato do ente mercado já no primeiro turno, não teve dúvida na hora de se associar a um movimento delinquente cujo potencial desestabilizador do país servia à ascensão de seu projeto de poder antiestablishment.

Mesmo sendo um baixo clero padrão, cuja existência deriva de haver se aboletado, para constituir bem-sucedida empresa familiar, nas bordas gordas do sistema, Bolsonaro soube explorar o sentimento reacionário — a mentalidade miliciana — que arrebanha ressentidos e violentos à margem; a paixão rompedora da qual emergem golpistas armados como Daniel Silveira, corruptores da democracia liberal, agentes revolucionários que, eleitos, se valem da legitimidade do espaço político-institucional para degradar as instituições da República.

Aqui, uma questão conceitual a expor a estupidez dos que acreditaram ser possível existir governo reformista de um presidente cuja base de apoio fundamental é antiliberal e prospera no confronto, na forja de inimigos, no estímulo do caos; como se fosse possível promover reforma estrutural do Estado num chão de instabilidade cultivado pelo chefe do governo dito reformista. O caso Silveira é exemplar. Seu crime — atentado à ordem pública, produto do bolsonarismo por excelência — travou e transtornou a atividade legislativa num momento em que o país nem sequer tem orçamento para 2021.

O estado paralelo, que aparelha o governo, não pode reformar o Estado. Só dilapidar as instituições que compõem a ordem democrática.

Bolsonaro é um estelionatário eleitoral. Guedes lhe serve, conscientemente, de escada. Já não pode mais haver desavisados pelo liberalismo do amanhã. Está dado que o populismo por 2022 abrirá campo ao golpismo se a reeleição vier — e são boas chances de que venha. O regime do peito de Bolsonaro é outro. Quem — diante de todas as evidências — ainda financia este governo já sabe ao que serve. Está cheio de Daniel Silveira na Faria Lima.


Luiz Carlos Azedo: Guedes foi abduzido

O governo deu uma guinada populista e estatizante para agradar a base eleitoral de Bolsonaro e consolidar o poder dos generais do Palácio do Planalto

A troca de comando na Petrobras — o executivo civil Roberto Castello Branco foi substituído pelo general Luna e Silva na presidência da empresa — provocou uma queda de 21% das ações da companhia, o que representa uma perda no seu valor de mercado que já supera R$ 100 bilhões. Ameaças de troca de comando na Eletrobras e no Banco do Brasil também tiveram muito impacto no mercado financeiro, o que fez a Bovespa cair 5% e o dólar, fechar cotado a R$ 5,45, uma alta de 1,26%, mesmo com o Banco Central (BC) vendendo US$ 1,5 bilhão em linha direta.

O mercado não está só especulando, o que é normal quando há mudanças desse tipo. Está mesmo à beira de um ataque de nervos, porque a situação geral do país é complicada: (1) o Brasil está isolado internacionalmente, na contramão da política de Joe Biden; (2) a segunda onda da pandemia está fora de controle em várias cidades do país, com a média de mortes acima de 1.000 óbitos/dia; (3) a manutenção da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) pela Câmara mostrou que o Centrão não apoia Bolsonaro para o que der e vier (os bolsonaristas podem não chegar a 130 deputados); (4) o presidente da Câmara, deputado Artur Lira (PP-AL), em entrevista à Veja, deixou claro que seu acordo com o Palácio do Planalto não incluiu a reeleição de Bolsonaro em 2022.

O governo deu uma guinada populista e estatizante para agradar a base eleitoral de Bolsonaro e consolidar o poder dos generais do Palácio do Planalto, com a militarização da direção das principais empresas estatais. Com isso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, corre o risco de virar um “anão de jardim” na Esplanada dos Ministérios. Ninguém sabe o que Guedes pretende fazer, mas o mercado financeiro o considerou uma figura ornamental nessa troca na Petrobras, ou seja, perdeu a credibilidade. Numa reunião com empresários, ontem, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), indagado sobre eventual saída de Guedes, respondeu com indiferença: paciência. Caso isso ocorra, o Centrão já tem candidato: Rogério Marinho, o ministro da Integração Nacional, que é economista e foi o negociador das reformas trabalhista, no governo Michel Temer, e previdenciária, no primeiro ano de mandato de Bolsonaro.+

Pau mandado
Nos bastidores, Guedes fez chegar a interlocutores que sua aposta é a aprovação da PEC Emergencial. O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC, propõe o fim do piso para a educação e a saúde, o que coloca em risco o recém-aprovado Fundeb e o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). No substitutivo da emenda constitucional, incluiu a chamada “cláusula de calamidade pública”, com os acionamentos de gatilhos para gastos extraordinários, ou seja, despesas acima do teto de gastos, sem infringir a Lei de Responsabilidade Fiscal. O ministro Paulo Guedes tem ressaltado a necessidade da votação dessa matéria para viabilizar o auxílio emergencial.

A nomeação do general Luna e Silva, que já foi diretor de Orçamento e Finanças do Exército e ministro da Defesa, não passou pelo ministro da Economia, foi uma indicação dos generais do Palácio do Planalto. Guedes foi abduzido pelos militares, mas minimiza os efeitos da troca de comando na Petrobras e vê a queda das ações como um fenômeno normal no mercado financeiro, no qual sempre atuou. Avalia que a aprovação da PEC pelo Senado será uma conquista mais importante do que os efeitos da intervenção na Petrobras. A equipe econômica também estaria elaborando um novo programa de privatização, que incluiria a criação de um fundo destinado à transferência de renda, o que agradaria o presidente Bolsonaro. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), pretende votar a PEC Emergencial na próxima quinta-feira.

O general Luna e Silva terá de convencer os acionistas da Petrobras de que não é um pau mandado do presidente da República, como acontece com o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que atua na base do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O problema do governo é que os acionistas da empresa podem entrar na Justiça exigindo indenização da companhia, principalmente os estrangeiros, em razão dos prejuízos causados pela intervenção indevida do governo na política de preços de combustíveis. Com ações na Bolsa de Nova York, a Petrobras já cortou um dobrado com esses acionistas, que processaram a empresa nos Estados Unidos por causa do escândalo do petrolão.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-guedes-foi-abduzido/

Eliane Cantanhêde: ‘Engodo liberal’

Persio Arida alertou que o liberalismo de Bolsonaro era uma farsa e Guedes não mandaria nada

Não foi por falta de aviso. Desde a campanha eleitoral, em 2018, as vozes mais brilhantes da economia, com grandes serviços prestados ao Brasil, já alertavam para o autoengano do mercado com o liberalismo improvisado do corporativista Jair Bolsonaro, que usou o “Chicago Boy” Paulo Guedes para “enganar um bobo, na casca do ovo”. 

Foi assim que Bolsonaro venceu e, presidente, joga pela janela a “nova política”, a Lava JatoSérgio Moro, as reformas, as privatizações e as regras de mercado. Só falta jogar o próprio Guedes e... a democracia. Quanto ao ministro, é considerado questão de tempo. Quanto à democracia, é melhor prevenir agora do que (tentar) remediar depois. 

Persio Arida, um dos pais do Plano Real e assessor da campanha do tucano Geraldo Alckmin, não grita, não é histriônico, nem sequer é político, mas alertou o tempo todo para exatamente tudo o que está acontecendo agora. Banqueiros, empresários, economistas e metidos a entendidos, não venham dizer que não sabiam e estão perplexos. O passado condena. O passado de Bolsonaro já dava todas as pistas do que viria por aí. 

Em entrevista inesquecível à repórter Renata Agostini, no Estadão, Arida disse que o capitão Bolsonaro era um “engodo liberal”, como o coronel Hugo Chávez na Venezuela, e alertou para a esquizofrenia da campanha bolsonarista: um candidato estatizante e corporativista escudando-se num “Posto Ipiranga” privatizante e reformista. Sua aposta: o “mitômano” Guedes não ia mandar nada. Afinal, “quem tem a caneta manda”. 

Foi um momento “Mãe Dinah” de Persio Arida? Não, ele apenas disse o óbvio, mas o capital e grandes parcelas da população estavam cegos pelo ódio ao PT e foram facilmente manipulados por uma profecia autorrealizável: só Bolsonaro venceria o ex-presidente Lula ou o candidato dele. As pesquisas diziam o contrário, mas as redes sociais tanto martelaram isso que virou verdade. A facada fez o resto e veio “o mito”. 

Cadê o R$ 1 trilhão de Guedes com a venda de estatais? Bolsonaro é contra privatizações e o gato comeu. Cadê a promessa de Guedes de zerar o déficit público em um ano? Bolsonaro nunca quis cortar nada e, quanto mais 2022 se aproxima, menos ele quer. A reforma administrativa? Bolsonaro trancou na gaveta, em favor do corporativismo e do populismo. E a tributária? Ele não entendeu nada, mas não gostou. Dá muito trabalho. E não rende voto... 

Teimoso, obtuso, o capital segue com Bolsonaro contra tudo e contra o bom senso, mas seus argumentos, ou melhor, pretextos, vão lhes escorrendo pelos dedos. Quando já não sobrava quase nada a dizer, muitos ainda tentavam manter a pose: “Ah! Deixa o Bolsonaro para lá, o importante é deixar o Guedes trabalhar”. Ainda tentam? 

Gurus e “gabinete do ódio” estão tendo um trabalhão para providenciar algum discurso para o capital e as tropas bolsonaristas da internet, depois de Bolsonaro entrar de sola na Petrobrás e rasgar o que restava dos seus compromissos de campanha. Desta vez, a um altíssimo custo: a mais simbólica companhia brasileira derreteu R$ 100 bilhões até esta segunda-feira, 22. 

A bomba na Petrobrás enterra o “engodo liberal”, humilha o “mitômano” Guedes, chacoalha o cinismo do mercado, deixa o Banco do Brasil e as estatais de barbas de molho e obriga os bolsonaristas renitentes a dar um salto mortal: de endeusadores da Lava Jato, viraram algozes de Sérgio Moro; de adeptos de Guedes, terão de virar inimigos do liberalismo. O bolsonarismo segue os passos do petismo. 

Como efeito colateral, Bolsonaro vai cooptando um general atrás do outro e, assim, embaçando a visão estratégica das Forças Armadas. Aliás, outro alerta certeiro de Persio Arida parece cada vez mais atual: “Bolsonaro é um risco à democracia”, já dizia em 2018. 


Alon Feuerwerker: Cabo de guerra

O mercado reagiu como esperado, e como previsto, ao anúncio da troca no comando da Petrobras. A queda nas ações da companhia estendeu-se a outras estatais e impactou o desempenho do mercado de capitais.

Um temor do mercado é quanto as pressões do governo para a suavização dos reajustes dos preços dos combustíveis vão refletir nos resultados da empresa, e portanto também nos dividendos distribuídos aos acionistas. Outra dúvida é sobre a continuidade dos planos de desinvestimento, especialmente das refinarias.

Aparentemente, ao precisar decidir entre um cabo de guerra com o mercado e o risco de uma greve de caminhoneiros em plena pandemia, o presidente da República preferiu a primeira alternativa. Agora que conseguiu estabilizar a relação com o Congresso, especialmente com a Câmara, Jair Bolsonaro parece querer fugir do risco da queda abrupta de apoio social.

Recorde-se, por exemplo, o mergulho de popularidade de Dilma Rousseff causado pelas manifestações de junho de 2013, e que foram apenas isso, manifestações. Qual seria o efeito, para o apoio ao presidente na população, de um colapso do abastecimento em plena pandemia e com a economia projetando recuo neste primeiro trimestre?

Ontem, a pesquisa CNT/MDA mostra ótimo+bom presidencial algo estável na ordem de grandeza de um terço do eleitorado (leia). Sem base orgânica de apoio no Legislativo, Jair Bolsonaro certamente não deseja sofrer uma corrosão de popularidade como a de Dilma na largada do segundo mandato. Seria a senha para uma crise política grave.

Michel Temer também viu o apoio popular mergulhar num certo momento, mas ao contrário de Dilma e de Bolsonaro mantinha base congressual sólida . Sem isso, um presidente impopular ou vira pato manco, como dizem os norte-americanos, ou cai.

Mas não convém tampouco apostar numa radicalização sem limites. Mais provável é o novo presidente da Petrobras procurar um caminho de conciliação, intermediário, entre os objetivos dos acionistas minoritários e os do majoritário. Resta acompanhar como será essa operação.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Carlos Pereira: A improvável frente de oposição

Busca por protagonismo faz parte do DNA de partidos, e importa na escolha da trajetória política

Na ausência de blocos e troças carnavalescas nas ruas nesse carnaval da pandemia, o que predominou foi a melancolia de seus foliões. Por outro lado, para diminuir o vazio no coração dos seus brincantes, o que não tem faltado são partidos querendo cacifar seus candidatos a presidente para as eleições de 2022. 

Insatisfeitos com o governo de Jair Bolsonaro têm defendido a necessidade de formação de uma frente suprapartidária de oposição ao presidente. O objetivo seria viabilizar uma candidatura única capaz de derrotá-lo. Acredita-se que se os partidos de oposição se apresentarem pulverizados, cada um com seu “bloco” (ops! candidato) à presidência, Bolsonaro teria maiores chances de se reeleger. Mas a viabilidade de uma frente única de oposição é improvável. 

Partidos políticos em ambiente institucional que combina presidencialismo e multipartidarismo vivem um dilema de difícil resolução: seguir uma trajetória protagonista/majoritária, ao apresentar um candidato à Presidência; ou jogar o jogo de partido coadjuvante, tentando exercer o papel de pivô ou de mediano do Legislativo. 

Se o partido for vencedor na trajetória majoritária certamente terá acesso aos maiores retornos políticos. Mas se perder, terá que estar preparado para comer “o pão que o diabo amassou” e amargar a condição de majoritário perdedor com os piores retornos pelos próximos quatro anos, nutrindo a expectativa de se tornar majoritário vencedor nas próximas eleições. Por outro lado, se o partido decidir seguir a trajetória de legislador mediano e ocupar a posição de âncora no Legislativo, pode auferir retornos intermediários entre os obtidos pelos majoritários vencedor e perdedor. 

A escolha de uma determinada trajetória não é uma camisa de força. Partidos podem mudar de trajetória, mas estas mudanças geram custos não triviais. 

Por exemplo, um partido pivô no Legislativo que decide mudar de trajetória para jogar o jogo majoritário corre o risco de perder a próxima eleição presidencial e assim obter uma recompensa menor do que obteria se tivesse continuado a jogar o jogo coadjuvante. Da mesma forma, se um partido trilha a trajetória majoritária e fracassa, pode mudar de trajetória e começar a jogar o jogo do partido coadjuvante. Mas, dependendo de quão amarga e competitiva foi a campanha presidencial, pode levar mais tempo para que o perdedor majoritário envergonhado construa pontes de confiança e de cooperação com o vencedor majoritário. 

racha ocorrido com o DEM na eleição do Presidente da Câmara expressa muito bem esse dilema. Rodrigo Maia tentou alçar o DEM a um voo rumo ao protagonismo, talvez com a candidatura de Luciano Huck à presidência. Mas a bagagem pesada — sua trajetória mediana — obrigou o partido a uma aterrissagem de emergência num descampado no interior da Bahia... A maioria do DEM, sob a liderança de ACM Neto, simplesmente preferiu continuar na sua trajetória coadjuvante. Os riscos e custos de mudança de trajetória seriam altos demais. O mesmo comportamento se espera do MDB, PSD, PTB, PSB, PC do B e aos partidos que compõem o Centrão

Por outro lado, partidos como o PT e PSDB, que têm trilhado de forma consistente a trajetória majoritária desde o seu nascimento, seja na condição de perdedor ou de vencedor, fatalmente terão candidatos à presidência em 2022. Raciocínio semelhante a aplica a partidos como PDT, PSOL, Novo e Rede. 

Partidos têm muita dificuldade de abrir mão de suas ambições individuais, ainda que legítimas, e se engajar em um projeto coletivo que, supostamente, beneficiaria a todos. A busca pelo protagonismo faz parte do DNA desses partidos, daí ser improvável a mudança de trajetória.

*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)


Ricardo Noblat: Pacheco dá tempo ao governo para barrar a CPI da pandemia

Depende do preço a ser pago

Depois de protocolado há mais de 10 dias, o requerimento de criação da CPI da Pandemia continua com o mesmo número de assinaturas, cinco a mais do que o necessário para que fosse instalada. Mas Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, que posa de independente do governo, só observa.

Por que será? Ora, porque ao governo tudo interessa, menos uma CPI que investigue a fundo sua responsabilidade na tragédia que já consumiu quase 250 mil vidas, deixando pouco mais de 10 milhões de brasileiros doentes. A situação tende a piorar porque falta vacina e sobre incompetência no Ministério da Saúde.

Pacheco está dando tempo ao governo para que consiga convencer pelo menos 6 senadores a retirarem suas assinaturas do requerimento. Não será impossível que isso aconteça dado o sortimento de cargos e outras sinecuras a serem oferecidas aos mais receptivos. Mas não será fácil.

Houve um senador que morreu contaminado pelo vírus. Senador que viu a mãe entubada. Além de senadores que perderam muitos amigos.

Bom dia, Venezuela! Ou bom dia, Brasil, um país sem sossego!

Perguntas à espera de respostas

Dê-se crédito ao presidente Jair Bolsonaro. Quando se sabe o que quer e não se perde o foco, demitir o presidente da maior empresa da América Latina, com ações negociadas nas principais bolsas de valores do mundo, é tão fácil como passear de jet-ski em qualquer parte do litoral do país para atrair devotos.

O economista Roberto Castelo Branco foi demitido por meio de um curto post nas redes sociais. No próximo mês, completaria dois anos à frente da Petrobras. Os acionistas estavam felizes com sua administração. Ele navegava em mar de almirante até que Bolsonaro acordou um dia e decidiu mandá-lo embora.

Simples assim. O preço do diesel havia sido reajustado porque variava de acordo com o câmbio e o preço do barril de petróleo. É assim nas chamadas economias de mercado. Quando não é, dá no que aconteceu com a Venezuela, onde o ex-presidente Hugo Chávez interveio na Petrobras de lá e depois disso ela quebrou.

Bolsonaro sempre se apresentou como o inverso de Chávez e do seu sucessor Nicolás Maduro. Serviu ao ex-presidente Donald Trump como uma espécie de posto avançado contra o chavismo por essas bandas. Na verdade, revela-se tanto ou mais populista do que Chávez e Maduro. E, como eles, conta com apoio militar.

A Petrobras perdeu em 24 horas R$ 28 bilhões de seu valor. Hoje, tão longo abra a Bolsa de Valores, perderá muito mais com a desvalorização do preço de suas ações. A levar-se a sério o que disse Bolsonaro quando demitiu Castelo Branco, “o mercado fica irritadinho com qualquer negocinho”, e ele pouco liga.

Na ocasião, saiu-se com a mais fina pérola da demagogia ao afirmar que os operadores financeiros não “sabem o que é passar fome”. Ele e seus filhos não sabem, todos criados com recursos da União. Como não querem abrir mão da vida boa que levam, a saída é perpetuar-se no poder enquanto der. Reeleição! Reeleição!

Os caminhoneiros ameaçavam com uma greve em protesto contra o reajuste do diesel? Adeus, Castelo Branco, que levava a sério a política de recuperação da Petrobras desde quando ela quase afundou no período dos governos do PT. Nomeie-se para o cargo mais um militar acostumado a bater continência ao chefe.

O general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa do presidente Michel Temer, será a voz do dono e não o dono da voz. Como é o general Eduardo Pazuello, notável especialista em logística, ministro da Saúde. Como são todos os militares que em troca de polpudos salários se tornaram serviçais do capitão.

Missão dada é missão cumprida. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Quem desobedece ou ensaia discutir ordens perde o emprego. Foi o caso do general Rego Barros, porta-voz de um presidente que não carece de quem porte sua voz. Foi também o caso do general Santos Cruz, vítima do gabinete do ódio.

A semana começa com uma série de perguntas nervosas. Se Luna, como garantem os apagadores de incêndio da presidência da República, não mudará a política realista de preços da Petrobras, ora, diabos, então por que Bolsonaro despachou Castelo Branco? Só para engabelar os caminhoneiros por mais algum tempo?

A troca de comando na Petrobras significa o rompimento definitivo de Bolsonaro com os fundamentos do liberalismo econômico ou mais uma vez ele recuará? Bolsonaro, agora, quer meter o dedo no setor de energia elétrica. Foi o que prometeu. E Paulo Guedes, ministro da Economia, até quando ficará onde está?

Bom dia, Venezuela! Ou bom dia, Brasil, de um presidente tresloucado que não concede ao país um só dia de calma!


Demétrio Magnoli: Bolsonaro 3.0

Quando Bolsonaro anunciou a troca do presidente da Petrobras, recordei as conversas que mantive com figurões do “mercado” no intervalo entre os dois turnos da eleição presidencial de 2018. A turma da alta finança deplorava as ideias políticas do candidato nostálgico pelo AI-5, mas confessava que ele teria seus votos: afinal, diziam, Paulo Guedes garantiria o triunfo de uma política econômica liberal. Pobres liberais ricos de miolo mole...

O governo Bolsonaro original exibia duas faces. Um lado do rosto era Olavo de Carvalho: o reacionarismo delirante de uma ultradireita mística, que almeja restaurar passados diversos, nossos e estrangeiros. O lado complementar era Guedes: um liberalismo econômico de ângulos retos, inculto e inconciliável, extraído de cartilhas de autoajuda para banqueiros de investimento.

Sob pressão do inquérito sem fim do STF, parte da mobília foi lançada fora do caminhão. A famiglia acima de todos! A espada erguida pelos juízes sobre a cabeça dos filhos do presidente dissolveu as lealdades frágeis. O espectro do impeachment fez o resto. Bolsonaro livrou-se, silenciosamente, do “núcleo ideológico”, ou seja, das camarilhas de idiotas e oportunistas que surfaram a onda da “nova política”.

O governo Bolsonaro 2.0 foi inaugurado pelo abraço úmido do Centrão. No lugar da revolução reacionária, a “velha política” de resultados. As eleições ao comando da Câmara e do Senado — em especial, a derrota de Rodrigo Maia — mostraram que a geringonça poderia funcionar. Guedes, porém, continuava lá, no fundo do palco, encenando truques vulgares à luz pálida de um holofote com filtro.

A gestão responsável de Roberto Castello Branco à frente da Petrobras provocou a segunda ruptura. De olho no preço dos combustíveis e, principalmente, na chantagem perene dos aliados caminhoneiros, Bolsonaro vestiu a armadura de Dilma Rousseff. A empresa pública de capital aberto será convertida, uma vez mais, em loja de conveniência do Planalto. “Um manda, outro obedece”: um general de pijama transformará os piores instintos presidenciais em política de preços da estatal petrolífera.

O governo Bolsonaro 3.0 foi inaugurado na sexta-feira fatídica da confirmação parlamentar da prisão de Daniel Silveira e da defenestração presidencial de Castello Branco. No Congresso, o Centrão deu as costas ao que resta do “núcleo ideológico” e cantou as glórias eternas da democracia, ignorando o pedido de clemência de um valentão de araque que borrava as calças. No Planalto, o presidente bombardeou o castelo já arruinado de Guedes, humilhando publicamente o fiador de seu governo junto ao “mercado”.

Bolsonaro 3.0 consagra uma aliança nem tão excêntrica assim, entre o fisiologismo do Centrão e o corporativismo militar. Numa ponta, situa-se a base de parlamentares sem preferências ideológicas, mas extensa prática no esporte da captura dos fragmentos lucrativos da máquina estatal. Na ponta oposta, um “Partido Militar” que, simulando falar o idioma da ordem e progresso, busca obter privilégios pecuniários para os homens em armas e empregos públicos de prestígio para generais e coronéis da reserva. O retrato da aliança é o general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, plenipotenciário do presidente no balcão de negócios do Congresso.

A esta altura do jogo, a decisão que Guedes rumina só tem relevância simbólica. O amuleto eleitoral de Bolsonaro, falsamente exibido como czar da Economia, pode renunciar, para fingir que leva para casa o falso brilhante de sua dignidade, ou permanecer como vaso ornamental em meio aos destroços de um jardim clássico. Ninguém mais se importa.

O estelionato eleitoral de Dilma Rousseff foi um experimento na mentira. A presidente que trocou o “novo paradigma macroeconômico” pela ortodoxia de Joaquim Levy renunciava a suas convicções para tentar sobreviver à tempestade. O estelionato eleitoral de Bolsonaro é, pelo contrário, um exercício de restauração da verdade. O presidente fecha o círculo, retornando a suas raízes. Roberto Schwarz tinha razão: no Brasil, o liberalismo não passa de uma ideia fora de lugar.


Vera Magalhães: Militares acima de tudo, Centrão acima de todos

Os últimos meses causaram fissuras profundas na aprovação de que Jair Bolsonaro gozava junto a alguns dos grupos responsáveis por levá-lo ao Planalto em 2018. Ele perdeu completamente os lavajatistas, está com a relação abalada com os fanáticos ideológicos e, diante da intervenção na Petrobras, vê abalada também a confiança (que parecia inesgotável) da elite econômica, composta por integrantes do mercado financeiro e o empresariado industrial e do agro.

Hoje, o governo Bolsonaro é composto basicamente por uma aliança entre o Centrão e os militares (incluindo aqui as polícias militares), uma combinação bastante esdrúxula e preocupante no que pode oferecer de riscos à democracia, em primeiro lugar, e a qualquer ilusão de que se vá promover algum ajuste fiscal.

Paulo Guedes é uma espécie de estranho nesse ninho. No fim de semana, o ministro da Economia permaneceu em silêncio obsequioso diante da intervenção com mão grande de Bolsonaro na Petrobras e o anúncio de que pretende fazer o mesmo com as tarifas de energia elétrica (Dilma, é você?).

Coube a Bento Albuquerque, o ministro de Minas e Energia que Bolsonaro vira e mexe ameaça demitir, tentar colocar panos quentes com os integrantes do Conselho da Petrobras, e à dupla dinâmica da Comunicação, Fábio Faria e Fábio Wajngarten, ir para as redes sociais dizer que estava tudo bem e que o que o presidente fez na Petrobras é apenas um gesto normal numa economia de mercado. O que todo mundo sabe que não, não é.

A tentativa dos dois é evitar o esperado strike nas ações da empresa e nos demais indicadores na abertura dos mercados, nesta segunda-feira. Mas o fato de terem sido eles a sair em defesa do gesto de Bolsonaro mostra que sim, o Centrão ganha espaço mesmo em áreas que antes não se poderia supor. Afinal, o que Faria, um expoente do grupo e responsável por quebrar as barreiras que havia entre o capitão e esses partidos, tem a dizer sobre algo tão complexo quanto a gestão de uma empresa de economia mista?

O avanço do Centrão é tal que ninguém tenta mais nem disfarçar. Em entrevista ao GLOBO, o presidente da Câmara, Arthur Lira, não usou de meias palavras: o objetivo do grupo é ter o controle do Orçamento.

Diante disso, da militarização inclusive de postos-chave da área econômica e da evidência de que Bolsonaro descambou de vez para o populismo reeleitoreiro, resta a Paulo Guedes a pergunta que fiz aqui na sexta-feira: até quando, ministro?

A pergunta não se aplica só a ele. Sondagem da XP com investidores institucionais no fim de semana mostrou a esquizofrenia que reina no mercado: mesmo 80% dizendo que Bolsonaro voltará a intervir na economia, 76% esperam a continuidade da política fiscal, como se isso fosse um fator de permanência da confiança. Mas qual política fiscal quando o que se decide é uma nova cláusula de calamidade que permita pagar o auxílio emergencial (absolutamente necessário, mas que não se encaixa nesse discurso) e o Centrão se prepara para tomar conta do Orçamento?

Da mesma forma, outros agentes institucionais, inclusive o Conselho da Petrobras, assistem a cada avanço de Bolsonaro na supressão da democracia e ampliação de seus poderes e da presença de militares em lugares que nada têm a ver com sua missão constitucional e fazem o mesmo balé: se chocam, ameaçam reagir, mas cedem. Cedem sempre.

A cada concessão a fatos como a nomeação do general Joaquim Silva e Luna para a empresa é uma casa que Bolsonaro avança num tabuleiro que leva a 2022. Quando se tentar reagir a alguma dessas investidas, o presidente estará fortalecido demais e com o controle de áreas que poderão dar a ele o que nem mais esconde: a possibilidade de ao menos tentar "mudar o regime", como ele deixou claro que gostaria de fazer em mais uma fala sincericida neste fim de semana.