congresso

Míriam Leitão: Vida mais curta e outros recuos

Em 2030 ainda se sentirá o efeito da pandemia nas estatísticas brasileiras. As projeções refeitas da população podem registrar de um milhão e meio a três milhões menos brasileiros do que haveria se não tivesse ocorrido a pandemia. A crise sanitária reduziu a expectativa de vida dos brasileiros em 2,2 anos, segundo cálculos atualizados da demógrafa Ana Amélia Camarano, e isso mexe com todas as outras projeções. Há vários efeitos da pandemia na vida das pessoas. A participação da mulher no mercado de trabalho caiu aos níveis dos anos 1990. A morte dos mais velhos pode impactar fortemente a renda de milhões de famílias.

Há muito tempo os demógrafos calculam o momento em que o número de habitantes do país passará a diminuir anualmente, em vez de aumentar. Cada demógrafo ou instituto faz um cálculo diferente, dependendo das premissas. Mas uma coisa é certa: o encolhimento vai acontecer mais cedo e de forma mais intensa por causa da redução da expectativa de vida que está ocorrendo agora.

— Comparando a projeção que eu fiz em 2018 para a população brasileira com a que faço diante da diminuição da expectativa de vida, concluo que haverá um milhão e meio de brasileiros a menos na população. Na projeção do IBGE, o número pode ser de três milhões de brasileiros a menos. Alguns dados ainda nem se conhece, como a queda da taxa de fecundidade — diz a pesquisadora do Ipea.

Ana Amélia vinha chamando a atenção nos seus artigos e entrevistas para o fenômeno do prolongamento da vida no Brasil, e todas as mudanças decorrentes disso. Os brasileiros vivendo mais mudavam os seus hábitos e isso tem impacto na economia. A demógrafa costuma usar a expressão “os novos velhos” para se referir a pessoas com mais de 60 anos que estão mudando o conceito do que é ser velho:

— A recomendação médica era para a pessoa sair de casa, fazer exercício, encontrar os amigos para ter uma velhice saudável. O mercado de trabalho começava a rever seus conceitos, aceitando pessoas mais velhas. Um mercado de consumo de viagens, turismo e entretenimento se voltava para esse segmento. A pandemia mudou tudo isso.

As pessoas com mais de 60 anos são o alvo principal de um vírus que tem matado no Brasil numa intensidade alarmante. Para permanecer vivos, eles precisam abandonar os bons hábitos:

— Os idosos precisam mesmo se proteger porque 77,6% das mortes ocorrem na faixa com 60 anos ou mais. É justamente o grupo que tem um impacto crescente no consumo de lazer, turismo. Quem ainda estava no mercado de trabalho saiu pelo medo de se contaminar ou foi demitido porque aumentou o preconceito contra os idosos. A pessoa saiu da ideia da “melhor idade” para a do “grupo de risco”.

A população idosa continua sendo a que mais cresce, porque no passado nasceu muita gente, mas ela vai crescer menos. Aumentou para quase oito anos a diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres. A desigualdade de expectativa de vida entre negros e brancos deve aumentar.

— E é a população preta e parda que está mantendo o Brasil funcionando, mesmo no isolamento social — lembra a pesquisadora.

São muitas as consequências e as sequelas desta pandemia. Há a mortalidade indireta. Muitas pessoas não puderam ser tratadas de outras doenças porque os hospitais estavam lotados pela Covid ou porque adiaram exames preventivos. O número de mamografias no SUS, segundo o alerta feito pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, na Globonews, foi menos de 50% em 2020 comparado a 2019.

— O câncer de mama é o que mais mata mulher no Brasil — lembra Ana Amélia.

Existem outras consequências. Há 21 milhões de domicílios nos quais a renda dos idosos é mais da metade da renda da família:

— Nesses domicílios há seis milhões de crianças com menos de 15 anos. Quando morre o idoso, a família não fica apenas órfã, ela fica mais pobre.

E ainda encolheu o mercado de trabalho para a mulher:

— A participação da mulher no mercado de trabalho voltou aos níveis dos anos 1990. Muitas tiveram que deixar o emprego para cuidar dos filhos, outras foram demitidas, as mulheres trabalham muito nos serviços e no comércio. Houve queda forte também no número de vagas para empregadas domésticas.

Depois da pandemia haverá muito trabalho para combater todos os efeitos desta tragédia que vivemos.


Carlos Andreazza: Um modo de privatizar

O Parlamento esteve paralisado — por mais de semana — em decorrência do caso Daniel Silveira; escada para que Arthur Lira pusesse em marcha o trator que pretendeu alargar a câmara de blindagem que distingue a casta política brasileira. Afinal, a PEC da Impunidade não prosperaria. Mas foi a agenda legislativa do Brasil — ainda sem Orçamento para 2021, ainda sem solução para a volta do auxílio emergencial — na semana em que o país bateu o recorde de mortos pela peste em um só dia.

Nada mais se moveu no Congresso, desde a prisão do deputado, senão a tentativa corporativista de subverter o princípio da imunidade parlamentar para que crimes como o de Silveira — contra a ordem democrática — restassem autorizados. O Parlamento, à cata de escudar seus investigados por corrupção, quase aceitou dar guarida à fábrica de conflitos que ataca a própria democracia representativa. Exemplo perfeito do que produz a sociedade entre bolsonarismo e Centrão. Exemplo também de por que a natureza — para o golpismo — da base social que elegeu Bolsonaro contamina e interdita qualquer pauta reformista.

Avalie-se a constituição da persona do presidente e do fenômeno reacionário que encarna — exercício que mostra como sempre foi improvável crer que um seu governo pudesse reformar o Estado. Um sujeito cuja ignorância econômica forjou-se na segunda metade da década de 1970; péssimo militar cujos rudimentos sobre economia beberam do fetiche de um Brasil Grande induzido pelo governo central.

O apego ao tamanho da superfície estatal aumentaria com a chegada a Brasília. No curso de três décadas, Bolsonaro — aboletado nas bordas fartas (aquelas recheadas de catupiry) da pizza do establishment — se estabeleceria como bem-sucedido líder classista, agente contra qualquer esboço de diminuição do território em que ergueu frutífera (sim, laranjas) empresa familiar.

Um tipo que, para acrescentar complexidade ao reformismo impossível, tornou-se competitivo nacionalmente ao incorporar a demanda de ressentimentos variados contra o sistema de que sempre foi parte, eleito presidente associado a (e dependente de) um ímpeto por ruptura institucional, movimento desestabilizador em essência, que tem personificação em Daniel Silveira e efeito materializado na revolução dos caminhoneiros que travou o país em 2018.

Um presidente — com cabeça de sub-Geisel, que, agora desde o Planalto, orienta-se em função dos interesses dos mesmos grupos de pressão (armados, não raro amotinados) de quando era vereador — que é o próprio núcleo provedor da instabilidade avessa ao mais mínimo programa de reformas do Estado. Isso, claro, se houvesse projetos para reformar o Estado. Não há. Porque a Bolsonaro se juntou — para compor este raro espetáculo de estelionato eleitoral — um ministro da Economia incompetente como gestor público e que, politicamente autoritário, apaixonou-se pelo populista autocrata que o chefe é. Reformas?

Não se iluda mais, amigo liberal. Daqui até 2022, com algumas migalhas para as viúvas de um Guedes de fantasia, a parceria entre iguais — Bolsonaro e Lira — trabalhará por proteção e reeleição; o que significará mais Estado, contida na ideia de proteção a defesa das mamas em que os presidentes da República e da Câmara engordam há décadas. (Mas você pode acreditar que os estudos modais para a capitalização da Eletrobras avançarão celeremente até que a operação esteja pronta, a ser realizada à véspera ou no próprio ano eleitoral.)

Veja-se a maneira como vai humilhada a tal PEC Emergencial, prioridade de Paulo Palestra. Um projeto que se tentou requentar socado como contrapartida à retomada do auxílio; transformado, porém, numa frondosa árvore de jabutis perversos, a ponto de se haver condicionado a retomada urgente do auxílio ao fim dos pisos constitucionais para Saúde e Educação. Uma aberração. Que não prosperará — felizmente. Mas de cujo impasse se insinua, tocado pela pressa, o improviso. Tem método. O bolsonarismo depende de volubilidades.

O ciclo da fortuna bolsonarista, beneficiado e acelerado pela peste, consiste em prolongar — pela inação calculada — a circulação do vírus, provocar o caos (pela falta de vacinação em massa), atribuir responsabilidades a inimigos artificiais (governadores) e colher créditos extraordinários, para os gastos populistas que financiarão 2022, liberados pela urgência em enfrentar problemas deliberadamente gerados pelo governo Bolsonaro.

Porque o auxílio voltará — sempre se soube, mesmo quando se apregoava a mentira de que o vírus cedia, e a economia se recuperava em V. E a PEC Emergencial avançará, tudo indica, como síntese do liberalismo do amanhã de Guedes; minguando no Senado até resultar num corpo de compensações fiscais desprovidas de impacto imediato. Isso se o auxílio não regressar sem o estabelecimento de qualquer resposta fiscal — nem mesmo as empurradas ao futuro. A pandemia — que é sustentada no Brasil — desculpa e justifica. Reaja-se.

É o que querem Bolsonaro e seus parceiros do Centrão: um cheque especial, à margem do teto de gastos, para investir em popularidade e apaniguados — e que se dane a dívida pública. O minion Guedes topa. O presidente informa que as privatizações devem ficar para 2023. Não mente. A autocracia é um modo de privatizar. Guedes fica. Sabe bem ao que serve.


Andrea Jubé: A pandemia pela cartilha do coronel

Para Randolfe Rodrigues, últimos fatos precipitam CPI da covid

O Coronel Emílio é um chefe político de prestígio local, cujos domínios se estendem pelas fazendas de gado e metade da vila. Certo dia, ele recebe a notícia do assassinato de Bento Porfírio, um de seus capatazes, que estava de chamego com a prima De-Lourdes, casada com o Xandão Cabaça.

Quando o marido descobriu a traição, espreitou o detrator em uma pescaria, golpeou-o pelas costas com uma foice e fugiu sem deixar rastro.

Ao ser informado pelo sobrinho da tragédia envolvendo um de seus empregados mais antigos, Tio Emílio reagiu com fleuma: “Boi sonso, marrada certa”.

Perplexo, o sobrinho cobrou compaixão: “O senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim?”

De súbito, entretanto, o coronel bateu na testa, saltou da cadeira, e ordenou que os jagunços fossem ao encalço do fugitivo da lei.

O objetivo da ordem, entretanto, não era fazer justiça à vítima. O coronel estava preocupado em mitigar danos eleitorais. “Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco!”, desabafou com o sobrinho.

Pela cartilha do velho coronel político, retratado por Guimarães Rosa em “Sagarana” (1946), uma vida vale um voto. No Brasil da pandemia, a impressão que se tem é que a vida não vale nem isso mais. Se valer, os políticos já perderam pelo menos mais de 200 mil votos.

A diferença entre o Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real é que pelo menos o personagem se preocupava com a preservação da vida de seus eleitores, ainda que por razões pragmáticas.

No Brasil, a perda de centenas de milhares de vidas, vítimas da covid-19, não despertou empatia em segmentos da classe política nem em segmentos da população. As aglomerações em bares e outros locais públicos, e festas clandestinas, ocorrem à luz do dia. Políticos e populares ainda resistem à adesão aos cuidados mais comezinhos, como uso de máscaras e distanciamento social.

Um dos papéis das autoridades na pandemia deveria ser a conscientização dos brasileiros quanto à relevância de seguir os protocolos sanitários para coibir a disseminação do vírus.

A pandemia está em escalada galopante, mas os números não assustam. Um ano depois, chegamos ao pior momento da pandemia, com uma média móvel de 1.208 mortes diárias. São cinco Boeings caindo por dia, pela metáfora do neurocientista Miguel Nicolelis.

Contabilizamos mais de 10 milhões de contaminados, e mais de 255 mil óbitos. É como se enterrássemos de uma vez a população de uma cidade inteira do tamanho de São Carlos (SP), ou Foz do Iguaçu (PR), sem direito a velório. As UTIs estão lotadas em todos os Estados.

O comportamento dos políticos que se omitem, ou que propagam discurso negacionista, estimula a conduta de uma parcela de brasileiros que resiste a encarar a pandemia.

Ontem a doutora Ludhmila Hajjar, cardiologista e intensivista da Rede D’or, alertou em entrevista à “Globonews” que estamos à beira de um colapso nacional. Ela atribuiu o quadro dramático também a uma parcela de brasileiros que se esbaldou no carnaval em festas clandestinas, favorecendo o contágio.

Na quinta-feira, quando o Brasil atingiu um recorde de mortes por covid-19 (1.582), o presidente Jair Bolsonaro criticou, sem base científica, o uso de máscaras, em um comportamento que estimula seus seguidores a imitá-lo.

Ontem o correspondente no Brasil do “The Washington Post” alertou que a tragédia em curso no Brasil pode ter “implicações globais”. Ele afirmou que se o Brasil não controlar o vírus, vai se transformar no “maior laboratório aberto do mundo para o vírus sofrer mutação”, favorecendo a “disseminação de variantes mais letais e infecciosas”.

Em outra frente, governadores e políticos independentes, ou da oposição, buscam saídas para driblar a lentidão do Programa Nacional de Imunização, e também para cobrar responsabilidade das autoridades que podem ser acusadas de negligência.

Mais da metade dos governadores enfrentam a ira de empresários, de seus opositores e de segmentos da população por adotarem “lockdown” ou medidas restritivas, como toque de recolher, no esforço de conter o vírus. Ontem o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) defendeu imediato “lockdown” nos Estados com mais de 85% de ocupação de leitos, e de um toque de recolher nacional.

Sob ataque de Bolsonaro, hoje os governadores reúnem-se em Brasília com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Na base eleitoral de Lira, em Arapiraca, segunda cidade mais importante de Alagoas, causou comoção na semana passada a morte de uma enfermeira vítima da covid-19. Ela se recusou a tomar a dose da Coronavac, a que tinha direito por ser profissional de saúde, por duvidar da comprovação científica do imunizante, embora autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Lira perdeu a oportunidade de se manifestar para condenar a disseminação de “fake news”, mazela que contribuiu, pelo menos lateralmente, para a morte de sua conterrânea, quiçá eleitora.

Diante dessa conjuntura, no Senado, alguns parlamentares voltam a carga contra o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), nesta semana para pressioná-lo a instalar a CPI da covid.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirma que os fatos mais recentes sobre a pandemia “precipitam a instalação da CPI”. Ele cita, por exemplo, o depoimento modificado do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, à Polícia Federal; o embate do presidente com os governadores; a persistência do discurso negacionista.

O Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real têm em comum a falta de empatia pelo semelhante, ou seja, a incapacidade de se colocar no lugar do outro, de compartilhar a dor do outro. Mas, ao contrário do personagem, também falta a alguns políticos uma dose de pragmatismo para que se movimentem para salvar seus eleitores. A Justiça Eleitoral não instala urnas no cemitério.


Ricardo Noblat: Quem desconhece o passado é incapaz de enxergar o futuro

Que país é o Brasil?

Que país é este onde a Independência foi proclamada por um estrangeiro e a República por um general monarquista? Onde um presidente se suicida para não ser deposto, outro renuncia na esperança de voltar nos braços do povo e não volta, e um terceiro baixa ao hospital 24 horas antes de tomar posse e morre?

Que país é este onde militares cancelam a democracia a pretexto de defendê-la, implantam uma ditadura que dura 21 anos, expulsam do Exército um capitão que planejara atentados a bomba a quartéis, e depois de marginalizá-lo por décadas o ajudam a se eleger presidente da República, a governar e a comandá-los?

Que país é este onde a maior parte do povo, ou parte expressiva dele, ameaçada de morte por um vírus há mais de ano, dá ouvidos e poderá em breve dar seus votos para reeleger um presidente que só faz mentir desde que assumiu o cargo, e que prefere sacrificar vidas a reconhecer e corrigir a tempo os erros que comete?

Que país é este onde a assaz louvada maior operação de combate à corrupção jamais vista no mundo desmorona à luz da descoberta de que seus condutores violaram princípios do Direito aprendidos nos bancos escolares e ultrapassaram limites impostos pelas leis que tinham a obrigação de respeitar com o máximo rigor?

Este país é o nosso, que se dizia antigamente o país do futuro, há séculos dividido entre os poucos ricos e os milhões de pobres, entre os brancos que ocupam os postos mais elevados na órbita dos poderes e os pretos contados que conseguem chegar lá, entre os que toleram o intolerável e os que a ele resistem a duras penas.


Luiz Carlos Azedo: O retrato da (in)governança

“A crise sanitária escancara a incapacidade de o governo pôr em movimento, de forma coordenada e a partir de amplos consensos, as políticas públicas do país”

A foto divulgada pelo presidente Jair Bolsonaro no Twitter, na noite de domingo, com as sete pessoas mais importantes da República –– excluídos o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, e vice-presidente Hamilton Mourão ––, após uma reunião fora da agenda no Palácio da Alvorada, diz muito mais sobre o que se deixa de fazer do que sobre qualquer outra coisa. Embora os assuntos tratados, segundo o post, fossem muito relevantes: vacina, auxílio emergencial, emprego e situação da pandemia. As conclusões da reunião são um mistério.

Quem são as autoridades na foto? Além de Bolsonaro, os generais Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Eduardo Pazuello (Saúde), todos sem máscara, a atitude mais negativista possível em relação à pandemia; os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, esses com máscaras. Evidentemente, a foto sinaliza força política, os pilares da governabilidade: a união entre os generais do Palácio do Planalto e os chefes do Legislativo, além do homem que toma conta do cofre da União, em torno do presidente da República.

Mais governabilidade, impossível. Entretanto, a foto é o retrato da crise de governança em que o país está sendo lançado. A reunião não apontou um rumo. Muito pelo contrário, a crise sanitária se agrava, a escassez de vacinas retarda a imunização em massa, permanece o impasse sobre a PEC Emergencial, a economia desanda. Não foi à toa que o dia de ontem foi pautado pelas manifestações de governadores e prefeitos cobrando mais responsabilidade do governo federal e do Congresso no enfrentamento da crise sanitária. Na semana passada, como em outras, não era essa a prioridade de Bolsonaro e das principais lideranças do Poder Legislativo.

Há uma grande diferença entre governabilidade e governança. A expressão “governance” é uma invenção do Banco Mundial (Bird), focada na existência de um “Estado eficiente”. É a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de um país visando ao desenvolvimento, ou seja, a sua capacidade de planejar, formular e implementar políticas e cumprir funções. Ao formular o conceito, o Bird considerou dois aspectos: o desenvolvimento sustentado, o que inclui equidade social e direitos humanos, e os procedimentos governamentais, entre os quais a articulação público-privada e a participação dos interessados nas decisões.

Pintando meio-fio

A alta burocracia do governo federal foi treinada para operar os dois conceitos, com os quais Bolsonaro não tem intimidade. Demorou para valorizar a governabilidade, que se refere à dimensão estatal do exercício do poder, suas condições sistêmicas, como as relações entre os poderes e a intermediação de interesses. A governança, porém, ainda é como aquele caviar do samba de Barbeirinho e Marcos Diniz, consagrado na voz de Zeca Pagodinho: “Nunca vi, nem comi/ eu só ouço falar”.

A governança não se restringe aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado. Refere-se a padrões de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais, coordenação e regulação de transações dentro e através das fronteiras do sistema econômico e do mundo social, como o consórcio que prefeitos estão formando para fazer o que o governo não faz: comprar vacinas. A crise sanitária escancara a incapacidade de o governo pôr em movimento, de forma coordenada e a partir de amplos consensos, as políticas públicas do país.

Infelizmente, os generais que comandam o Palácio do Planalto não trabalham com os demais entes federados e a sociedade na base da cooperação e coordenação (como recomenda a moderna doutrina militar). Sob o comando de Bolsonaro, operam de forma prussiana, vertical, hierarquizada, de cima para baixo, como quem manda pintar de branco o meio-fio dos quarteis ou tomar ivermectina e cloroquina contra a covid-19. Além de um centro, essa visão das coisas tem um método: manda quem pode, obedece quem tem juízo. O resultado é que o país está paralisado, sem rumo, como o coelho hipnotizado pela serpente.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/o-retrato-da-ingovernanca/

Bruno Carazza: Governar é inaugurar estradas

Ajuste fiscal da PEC emergencial foi esvaziado

Coribe (BA), Propriá (SE), Cascavel (PR), Florianópolis (SC), Alcântara (MA), Sertânia (PE), Campinas (SP), Rio Branco (AC), Foz do Iguaçu (PR), Tianguá (CE) e Fortaleza (CE). Nos últimos 40 dias, o presidente da República visitou 12 cidades brasileiras. Além das críticas à promoção de aglomerações no período em que a pandemia atinge seu ápice, o roteiro também deixa claro que Bolsonaro já está em campanha para ser reeleito em 2022.

Com a exceção de Rio Branco, para onde se dirigiu com os justos propósitos de sobrevoar as áreas atingidas pelas enchentes e acompanhar a ação das Forças Armadas e dos órgãos de Defesa Civil, os outros deslocamentos tiveram motivação meramente política.

Reagindo à queda de popularidade e aos ataques intensos que vem recebendo pela condução do país durante a crise de covid-19, Bolsonaro botou o pé na estrada. Afinal, é preciso manter o entusiasmo em regiões que o apoiaram massivamente em 2018 (como Santa Catarina e o oeste do Paraná) e prestigiar grupos cativos como os militares, ainda que a visita seja apenas para desejar boa sorte a novos cadetes no seu curso de formação em Campinas.

Todavia, chama a atenção o destino preferencial de suas viagens. Em cinco das últimas seis semanas o presidente voou para inaugurar obras no Nordeste, seu calcanhar de Aquiles nas últimas eleições e onde ele tem seu pior desempenho nas pesquisas. Não por acaso, na maioria das vezes ele aterrissou em Estados governados por partidos que lhe fazem oposição.

Entregar trechos de estradas, pontes e ações contra a seca faz parte do jogo político. Como todos os seus antecessores desde que Fernando Henrique Cardoso inventou a reeleição, Bolsonaro está utilizando os recursos de que dispõe como chefe do Poder Executivo para agradar eleitores cativos e ampliar sua base de apoio visando se manter no poder até 2026.

Essa antecipação do clima eleitoral, porém, emite sinais claros a respeito de como será conduzida a economia na metade final de seu primeiro mandato. Tanto a teoria quanto nossa história indicam que é bastante improvável que um governante resolva adotar políticas fiscais restritivas quando está em campanha.

A vitória de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco para as presidências da Câmara e do Senado foram comemoradas por muitos no mercado como um indicativo de que o governo passaria a ter à sua disposição uma ampla base capaz de aprovar uma agenda econômica mais ambiciosa.

As muitas semelhanças e afinidades entre Jair Messias e a maioria dos parlamentares que compõem essa massa amorfa que chamamos de Centrão deram esperança de que as propostas fiscais de Paulo Guedes poderiam avançar de modo mais fluido. A hipótese faz sentido; pena que as condições para a sua concretização estavam presentes há dois anos - e foram desperdiçadas.

Reformas econômicas abrangentes, que rompam estruturas, são implementadas mais facilmente em início de mandato, quando ainda não se verifica o desgaste natural de todo presidente. Além disso, precisam contar com o empenho dos líderes no Congresso, de preferência se comungarem do mesmo apetite por mudanças.

Quando tomou posse, Bolsonaro tinha em mãos todos esses ingredientes: um alto índice de popularidade, um Congresso que é a sua cara e, na presidência na Câmara, Rodrigo Maia, que desde o governo Temer conduzia uma agenda liberalizante, com a aprovação do teto de gastos e a reforma trabalhista. A rápida aprovação das novas regras da Previdência mostrou que essa parceria poderia render, mas depois disso a química com Maia desandou - e as propostas foram colocadas em banho-maria.

O contexto atual é bastante diferente, a começar pela interminável pandemia, que exige cada vez mais recursos para lidar com seus imensos custos sociais e econômicos.

Bolsonaro também não é mais o mesmo, pois em exatos dois anos, sua desaprovação subiu de 17% para 42%, segundo a última pesquisa XP/Ipespe. Essa piora tem literalmente um preço: além de todas as emendas extraordinárias liberadas para eleger seus aliados para a presidência do Congresso, o envio da nova MP da Eletrobras trouxe consigo um agrado de R$ 8,75 bilhões para as bancadas do Nordeste, da Amazônia e de Minas Gerais destravarem o processo de privatização. Outras faturas virão.

A maior prova, porém, de que o novo arranjo entre Bolsonaro, Lira e Pacheco não resultará em medidas econômicas de impacto está no novo relatório da PEC emergencial, apresentado na semana passada pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC).

Comparando-se o substitutivo do relator com a proposta inicial, encaminhada por Paulo Guedes, a PEC nº 186/2019 foi bastante desfigurada. Além de autorizar, sem parâmetros ou limites, uma nova rodada do auxílio emergencial, Bittar busca cristalizar na Constituição um regime fiscal extraordinário para calamidades públicas, suspendendo-se travas relativas a contratação de pessoal, obras e serviços, abrindo-se a possibilidade de se criar despesas sem prévia previsão orçamentária e dispensando a observância da regra de ouro do endividamento público.

Para contrabalançar, o substitutivo propõe compensar o aumento de despesas seguindo a velha tática de impor ônus sociais em lugar de desagradar grupos de interesses bem identificados.

O acordo entre Bittar e a equipe de Paulo Guedes (ou seja, entre o Centrão e Bolsonaro) tem uma lógica clara. De um lado, desobriga o Estado de gastar um percentual mínimo com educação e saúde; de outro, preserva os servidores públicos de terem seus salários reduzidos e blinda os empresários que se aproveitam dos benefícios fiscais da Zona Franca de Manaus, do Simples, das entidades sem fins lucrativos, dos produtores de bens da cesta básica e da bolsa empresário dos fundos de desenvolvimento.

Com Bolsonaro em clima eleitoral e o Centrão no comando do Congresso, é muito pouco provável que uma reforma fiscal de verdade seja aprovada antes de 2023. De emergencial, só sobrou o auxílio.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bernardo Mello Franco: Impunidade parlamentar - Lira recuou, mas não desistiu

Por duas semanas seguidas, os deputados esticaram o trabalho e se reuniram para votar numa sexta-feira. O surto de produtividade nada teve a ver com a pandemia. O objetivo era despachar o aloprado Daniel Silveira e evitar novas prisões de parlamentares.

Assim que a cabeça do bolsonarista foi entregue, a Câmara passou a discutir a chamada PEC da Imunidade. A proposta muda a Constituição para reforçar a blindagem de deputados e senadores. Com a regra atual, prender um congressista é muito difícil. Com a nova, passaria a ser uma missão impossível.

O articulador da ideia foi o novo presidente da Câmara, Arthur Lira. Em defesa da mudança, ele disse que “proteger o mandato é garantir que os parlamentares possam enfrentar interesses econômicos poderosos ou votar leis contra organizações criminosas perigosas”.

O deputado não é conhecido por contrariar empresários ou combater quadrilhas. Ele responde a duas ações no Supremo, por corrupção passiva e organização criminosa.

Discípulo de Eduardo Cunha, Lira se inspirou no mestre e tramou uma aprovação a toque de caixa. Na terça, seus aliados começaram a recolher assinaturas para apresentar a proposta; na quinta, o texto estava pronto para votação em plenário.

Pelo rito tradicional, toda PEC precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça e por uma comissão especial. O presidente da Câmara pulou as duas etapas, mas não conseguiu consumar o tratoraço.

Na sexta, o deputado admitiu, a contragosto, que não tinha os 308 votos necessários para mudar a Constituição. Ele se disse “muito triste e preocupado”, com as críticas à emenda. “Essa não merece ser chamada PEC da Imunidade. Deveria ser chamada PEC da Democracia”, reclamou. Lira foi generoso com a própria obra. Outros parlamentares preferiram acrescentar um P, rebatizando-a de PEC da Impunidade.

O chefe do Centrão usou um argumento fajuto para proteger os colegas na mira da polícia. A Constituição afirma que os congressistas são invioláveis por “opiniões, palavras e votos”. O texto foi redigido para defender a democracia e o livre exercício dos mandatos. Não pode ser usado como escudo para a prática de crimes.

Se a proposta de Lira já estivesse em vigor, o deputado Daniel Silveira não teria sido preso e a deputada Flordelis não teria sido afastada por ordem da Justiça. Ela é acusada de mandar matar o marido, executado com 30 tiros em Niterói.

A pastora foi denunciada por homicídio triplamente qualificado, associação criminosa, falsidade ideológica, uso de documento falso e tentativa de homicídio por envenenamento. Ela se tornou ré há seis meses, mas escapou da prisão preventiva graças à imunidade parlamentar.

O marido de Flordelis foi assassinado em junho de 2019. O Conselho de Ética da Câmara só instalou um processo disciplinar contra ela na terça passada, como parte do teatro para justificar a votação da PEC. Lira foi obrigado a recuar, mas já deixou claro que não desistiu.


Alon Feuerwerker: Curva de aprendizagem na Câmara. E como funcionam as coisas por aqui

E o novo comando da Câmara dos Deputados vai percorrendo sua curva de aprendizagem. Ela tem um formato de leves semelhanças com os trechos inicial e intermediário da curva epidemiológica, agora popularizada pela Covid-19. De início, a proficiência acelera-se, depois desacelera e em seguida caminha para a estabilização. No caso específico da política brasileira, a estabilidade pode resultar em situações de equilíbrio estagnado ou de produção consensual. Vamos esperar para ver que bicho dá.

Na eleição para a mesa da Câmara, os vitoriosos perceberam que têm votos ali para impor derrotas eleitorais internas às correntes hegemônicas da opinião pública – ou publicada (copiei do Roberto Campos). Já nas votações do caso Daniel Silveira, até o momento, pôde-se notar um Legislativo independente apenas até o limite em que ouse um avanço decisivo contra a influência do eixo hegemônico construído ao longo dos últimos quase oito anos. Desde as “jornadas de junho” de 2013, e consolidado com a Operação Lava-Jato e a captura da política pelo Judiciário.

Os deputados até tentaram uma manobra inteligente, na teoria. Aprovaram por larga margem a prisão de Silveira (PSL-RJ). Com a condição de, em seguida, avançar a regulamentação da imunidade parlamentar. Vamos ver como caminha na comissão especial, foi a válvula de escape encontrada quando faltaram votos em plenário (mesmo no virtual) para aprovar qualquer coisa com significado prático. Mas, na semana que termina, os deputados e deputadas não resistiram a 72 horas do noticiário negativo que introduziu um “p” em “imunidade”.

Ou seja, neste início de 2021, a política mostra ter energia suficiente para definir suas relações internas e criar alguns constrangimentos para os ainda musculosos adversários. Mas não anda tão forte assim para poder traçar seus próprios caminhos, também porque sempre surge algum tipo de divisão interna. Como agora, quando o PT, na vigília à espera do juízo da Segunda Turma sobre as condenações impostas a Luiz Inácio Lula da Silva, revela-se um repentino defensor do Supremo Tribunal Federal na arenga em torno da imunidade parlamentar.

Desse relativo equilíbrio na correlação de forças nasce um certo empate. Que se expressa, por exemplo, na dura resistência dos senadores a desvincular recursos orçamentários como compensação a estender o auxílio emergencial.

Tem lógica. Por que o parlamento vai ficar contra o senso comum popular se na hora "h" os operadores da opinião pública acabam apoiando toda e qualquer violência contra o Legislativo? Não seria esperto.

Donde se conclui que as prometidas reformas administrativa e tributária, para não empacar, vão precisar atender a requisitos capazes de produzir consensos legislativos, que necessariamente implicarão lipoaspirações. Até onde as propostas originais vão se enfraquecer? É a pergunta no ar.

A discussão da reforma administrativa talvez seja menos complicada, porque os efeitos práticos dela só serão sentidos muito lá na frente. E sua votação oferecerá a tradicional photo-op para deputados e senadores aparecerem nas imagens celebratórias. Já a tributária é um enrosco maior, pela vigência quase imediata. Então, ou parte-se para uma versão simplificada, e simplificadora, ou também se jogam os efeitos dela para um futuro distante. A primeira opção é a mais viável. Mas, como sempre, será prudente aguardar.

E tem aquele outro detalhe. Estamos em plena segunda onda feroz da Covid-19, que leva jeito de querer consumir boa parte do que resta do semestre. Quando se abrir a segunda metade do ano, acelerar-se-á o processo eleitoral para 2022, inclusive porque eventuais mudanças nas regras precisarão ser aprovadas até outubro. E os candidatos a candidato já estão aquecendo na pista. Roncando os motores e queimando a borracha no asfalto.

É como funcionam as coisas por aqui.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Merval Pereira: Os extremos se encontram

O conselheiro da Petrobras Marcelo Mesquita, em entrevista à GloboNews, fez um comentário lateral sobre a crise na estatal, com a tentativa do governo Bolsonaro de controlar os preços dos combustíveis, que se torna fundamental quando se olha o quadro de maneira mais abrangente. Disse ele que “se fosse o PT, nós sabemos que teríamos esse problema há dois anos”, referindo-se à política do governo Dilma Rousseff na mesma direção.

Não é à toa que o PT está defendendo a intervenção do governo, e até mesmo o ex-ministro Aloizio Mercadante elogiou o general Joaquim Silva e Luna como “um militar nacionalista”. Há muitos pontos de contato entre visões de mundo autoritárias. Lula deu uma entrevista recente apoiando Bolsonaro quando ele critica o jornalismo profissional. Os dois se sentem atingidos pelas críticas e denúncias.

Tanto Bolsonaro quanto o PT consideram que o indutor do crescimento nacional é o governo e usam as estatais com tal objetivo, mesmo que já tenha sido provado na prática que o resultado é nulo. Mesquita lembrou que a Petrobras teve que pagar US$ 3 bilhões para encerrar uma ação de investidores internacionais (class action), quando o governo Dilma segurou o preço dos combustíveis com o intuito de conter a inflação.

Noutros governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, houve essa tentativa, frustrada, uma das vezes quando o ex-ministro José Serra era candidato à Presidência em 2002 e queria que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, segurasse os aumentos de combustíveis durante a campanha.

Agora o presidente Bolsonaro anuncia que vai “colocar o dedo” na eletricidade, o que geralmente dá choque nos governantes que tentam. Também a ex-presidente Dilma controlou o preço da eletricidade na canetada, e o resultado foi que, mais adiante, o repasse teve que ser feito de maneira mais acentuada, e até hoje a Eletrobras ainda sofre com o rombo provocado naquele tempo.

Na medida provisória que permite ao BNDES estudar a privatização da estatal de energia — o que parece mais um gesto simbólico do que realidade —, há o sistema de capitalização com a intenção desfazer o rombo nas tarifas das usinas da Eletrobras da época de Dilma. Com isso, a empresa pode vir a recuperar sua capacidade de investimento. Mas técnicos admitem que um impacto para cima nas tarifas haverá, seja ela privatizada ou não.

As trapaças da sorte levaram a que tanto Bolsonaro quanto o PT tivessem inimigos comuns, como o ex-ministro Sergio Moro, e métodos semelhantes para tentar se livrar das acusações de corrupção que atingem Lula e Flávio Bolsonaro. O caminho da anulação de provas, ou de julgamentos, leva ao mesmo objetivo: conseguir nos tribunais superiores (STJ e STF) a alforria dos seus.

A razão pela qual a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou as provas contra o hoje senador Flávio Bolsonaro, uma justificativa insuficiente do juiz de primeira instância para autorizar quebra de sigilo, é uma tecnicalidade semelhante à que levou à anulação do processo conhecido como Castelo de Areia, que envolvia empresários e políticos: a investigação se originou numa denúncia anônima.

Mas, quando se quer beneficiar alguém, aceitam-se até provas ilícitas, como no processo que julga uma denúncia de parcialidade contra o então juiz Sergio Moro. A decisão da 2ª Turma do Supremo, que deve ser contra ele, vai anular a condenação do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá e poderá levar de roldão todos os demais julgamentos em que ele foi condenado. E até outras condenações de réus da Lava-Jato.

Assim como a anulação das provas pode levar a investigação contra Flávio Bolsonaro à estaca zero. É possível ampliar o entendimento da lei, como a Operação Lava-Jato fez durante cinco anos, com bons resultados. Mas também usar provas ilegais, como os diálogos entre os procuradores e o então juiz Moro, para absolver condenados. Mesmo que, sabendo da discutível utilização dessas provas, elas não apareçam nos votos dos ministros da 2ª Turma do STF, elas já foram divulgadas largamente para criar um clima contrário ao juiz. O mesmo que acusam os procuradores e o próprio Moro de ter feito. Desde que Bolsonaro partiu para a confrontação com Moro, surgiu um campo enorme de interesses comuns entre Lula e ele.


Mariliz Pereira Jorge: Instituições barram ímpetos golpistas do presidente, mas não de seus seguidores

Ataques de Bolsonaro a seus opositores empoderaram essa muito gente cafona e, certamente, desocupada

Depois do decreto que pretende flexibilizar o acesso às armas e que só tem o intuito de abastecer milícias bolsonaristas, temos mais um capítulo de “como as democracias morrem”. Um grupo criou uma tal Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil, que nada tem com a OAB, mas com o compromisso de intimidar críticos ao governo.

Por meio de um comunicado nas redes sociais, ameaça processar “todos” que ofenderem Bolsonaro, sua família e integrantes da administração: “vamos derrotar o mal”. O “mal”, como sabemos, é a liberdade de expressão garantida pela Constituição, que dá aos brasileiros o direito de fiscalizar, questionar, desaprovar e esculhambar até o ocupante do cargo mais importante do país.

Os ataques de Bolsonaro a seus opositores empoderaram essa muito gente cafona e, certamente, desocupada, que pretende promover uma cruzada contra políticos de oposição, artistas, professores e, claro, jornalistas, os que estão em primeiro plano na mira da seita criada pelo presidente.

Se o ministro da Justiça usa sua caneta para perseguir profissionais como está fazendo com meus colegas Ruy Castro e Hélio Schwartsman, por que um grupo de gente ressentida e ignorante, mas com diploma de advogado, não faria o mesmo? Sigamos o mestre, devem pensar.

Pode parecer meia dúzia de aloprados, mas é exatamente como têm sido tratados grupos envolvidos em manifestações pró-golpe militar e em disparos de fake news. As instituições, por enquanto, têm barrado os ímpetos golpistas do presidente, mas não podemos dizer o mesmo sobre seus seguidores. Somos testemunhas do como a democracia vem sendo corroída pelas bordas —e por gente aparentemente insignificante.

Sempre bom lembrar do vice-presidente Pedro Aleixo, em 1968, que foi a única voz discordante da atrocidade do AI-5. “O problema é o guarda da esquina.” Como sabemos, este governo está cercado cada vez mais de gente assim, em cada esquina do país.


Bruno Boghossian: Congresso pode afrouxar caixa dois, improbidade e investigações

Câmara faria um serviço ao país se modernizasse regras, mas ideia cria brecha para retrocessos

Poucas coisas movimentam tanto o Congresso quanto a força-tarefa que tenta mudar as leis que mexem com a vida política dos parlamentares. A ideia é reformar regras ultrapassadas e conter abusos, mas o esforço abre caminho para perdoar o caixa dois, blindar deputados e livrar prefeitos que fazem barbaridades com dinheiro público.

Logo nas primeiras semanas de atividade, os parlamentares lançaram um grupo de trabalho para reformar a legislação eleitoral. O Congresso faria um bem ao país se criasse regras modernas para a propaganda e o financiamento de campanhas. Os deputados, no entanto, também querem discutir retrocessos que interessam principalmente à sua sobrevivência política.

Voltaram ao debate monstrengos como o distritão, que enfraquece os partidos políticos e facilita a eleição de aventureiros para o Legislativo, e a flexibilização da cláusula de barreira, que impediria o enxugamento do número de siglas nanicas.

Segundo os deputados, também podem entrar na pauta mudanças para aliviar punições por caixa dois, um sonho antigo de muitos parlamentares. Além disso, eles estudam mexer na Lei da Ficha Limpa –que tem regras defeituosas, mas pode acabar desfigurada.

Os deputados elaboraram ainda a PEC da imunidade. De um lado, ela acaba com aberrações como a possibilidade de um tribunal de instância inferior afastar um parlamentar do mandato. De outro, dificulta prisões e impõe um excesso de restrições nas investigações contra políticos. Na prática, cria uma blindagem e abre caminho para imitadores do golpista Daniel Silveira.

Na Câmara, já se fala também em liberar o nepotismo e em afrouxar as punições contra políticos por improbidade administrativa. Esta mudança pode fazer a festa de prefeitos interessados em gastar dinheiro público sem prestar contas. A ideia tem o apoio de Jair Bolsonaro, que tenta fortalecer sua base eleitoral nos municípios. “Alguma coisa vai ser mudada, pode deixar”, avisou.


Maria Hermínia Tavares: Não é o que eles dizem: o piso de gastos em educação e saúde e seus críticos

Vinculação de receita é a forma possível de garantir prioridades

Na versão de seu relator, senador Marcio Bittar (MDB-AC), a proposta da emenda emergencial à Constituição, entre várias iniciativas para lidar com o presente aperto fiscal, extingue os pisos obrigatórios do gasto público com saúde e educação, assegurados na Carta de 1988.

A discussão sobre o tema não diz respeito ao reconhecimento das severíssimas limitações daquilo que o governo pode desembolsar sem comprometer sua capacidade política e administrativa ou travar de vez o já trôpego andar da economia. Só os nefelibatas —com ou sem diploma em ciências econômicas— podem imaginar que limites fiscais são perversas invenções do neoliberalismo.

Tampouco se trata de debate sobre liberdade de escolha, em que um imaginário prefeito governaria melhor se pudesse decidir, por conta própria, despender mais com a crescente população idosa do que com escolas de primeiro grau cuja clientela minguou. Só pode achar que esse é o dilema quem se imagina no país de Birgitte Nyborg, a simpática primeira-ministra dinamarquesa da série Borgen, da Netflix.

Não é demais lembrar a maneira pela qual instrumentos tão pesados —toscos, em português claro—, como as vinculações mandatórias, adentraram a Constituição. No texto original, saúde, Previdência e assistência social foram reunidas sob o mesmo princípio do direito universal à seguridade, garantido por um Orçamento único. No percurso da teoria à prática, descobriu-se porém que o cobertor era curto demais: para atender à Previdência, era comum deixar a saúde desassistida --em plena montagem do SUS. Por isso, não por uma perversa maquinação antiliberal, a EC (emenda constitucional) número 29 criou o piso de gasto.

Já a vinculação obrigatória de recursos à educação é anterior aos trabalhos da Constituinte: foi introduzida pelas chamadas emendas Passos Porto (EC 23/83) e João Calmon (EC 24/83), ambas visando assegurar recursos permanentes ao sistema público de ensino, nos três níveis da Federação. Incorporada à Carta, a vinculação foi aprimorada com a criação do Fundef em 1996 e sua transformação em Fundeb, dez anos depois. A meta sempre foi assegurar financiamento adequado e prover estímulos para reduzir o vergonhoso atraso educacional brasileiro.

Os pisos de gasto em saúde e educação destinaram-se a proteger as duas áreas da inevitável disputa por recursos quando as demandas são muitas; os interesses, divergentes; e o dinheiro, curto. Ou seja, uma forma de dizer que aquelas devem ser políticas de Estado, com estabilidade e permanência asseguradas, acima —e apesar— das intenções dos governantes de turno.

*Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.