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José Roberto Mendonça de Barros: Totalmente sem rumo

A ausência, por quase 3 meses, dos pagamentos do auxílio amplia a fraqueza da demanda

Estamos perdidos no meio de uma tempestade. Antes de tudo, pelo que aconteceu no ano passado. Desde que a pandemia mostrou sua força, mergulhamos numa crise humanitária, com elevado sofrimento e número de mortos, que nos jogou numa forte recessão. 

Pior que tudo, o negacionismo do presidente da República e a explosiva mistura de arrogância e incompetência de seu terceiro ministro da Saúde tornaram as coisas mais difíceis, com apelo a poções mágicas e negligência na compra de vacinas, a única forma de combater o coronavírus nos dias de hoje.

Além disso, pego de surpresa, o ministro da Economia começou uma longa corrida atrás dos fatos, desde que declarou que “com R$ 5 bi nós matamos o bicho”. Foi o Congresso que desenhou todas as regras e a estrutura do auxílio emergencial (depois apropriado pelo Executivo), que, a partir de junho, elevou a demanda de consumo e resultou numa melhora da atividade no segundo semestre.

Nesta semana, soubemos que a queda do PIB foi de “apenas” 4,1%, e não os 6% a 8% que se anteviam por volta de junho. 

Nesse resultado, merece menção que, do lado da oferta, cresceram apenas o setor financeiro, a agropecuária, os serviços imobiliários e a extrativa mineral. 

Do lado da demanda, a queda foi universal, destacando-se o consumo das famílias. 

O pior é que não se projeta continuidade da recuperação rumo a um crescimento mais sustentável, como mostra a precariedade da taxa de investimento (que ficou abaixo de 16%, quando se corrige o impacto das importações fictas de plataforma de petróleo), a queda abrupta das expectativas de todos os agentes econômicos neste início de ano e as consequências da desastrada intervenção na Petrobrás.

Ao contrário, até o governo já reconhece que não haverá crescimento no primeiro semestre. Para a MB, o PIB, na margem, será negativo em 0,8% no primeiro trimestre e 0,3% no segundo trimestre, configurando uma recessão técnica. E a recuperação era para ter sido em “V”! 

Nada é mais distante da realidade do que declarou o ministro à Veja (23/12/20): “Estamos disparando uma onda de investimentos. O grande desafio de 2021 será exatamente esse. O Brasil será a maior fronteira de investimentos do mundo”.

O conjunto de vetores aponta para um período ainda muito difícil adiante. 

Antes de mais nada, a virulência da segunda onda do vírus está produzindo um colapso em muitos Estados, que piora o ambiente e implica restrições à atividade em muitos lugares. O mercado de trabalho continua extremamente fraco e os dados mostram que a população sacou uma quantia apreciável de suas cadernetas de poupança para cobrir seus compromissos. 

A ausência, por quase três meses, dos pagamentos do auxílio emergencial amplia a fraqueza da demanda. 

Estamos assistindo a uma piora significativa na inflação, que continua puxada pelo custo de alimentação e outras pressões no setor industrial. Isso levará o Banco Central a iniciar uma elevação de juros a partir de março, pressionando a recuperação da atividade através do custo do crédito, já prejudicado pelo avanço da tributação no sistema bancário. 

Uma coisa positiva foi a aprovação da PEC emergencial no Senado, por trazer de volta a ajuda às famílias mais pobres. Entretanto, as contrapartes aprovadas contêm apenas promessas futuras de avanços no equilíbrio das contas públicas, que ainda terão muita dificuldade em se materializar. 

Finalmente, vemos uma diminuição do peso da equipe e a ausência de uma proposta consistente e convincente de política econômica para enfrentar o momento. 

Fica cada vez mais difícil crer que uma aliança do Centrão com o Palácio do Planalto vá resultar em reformas e ajuste fiscal. Mais fácil acreditar em duendes. 

Com o País aflito e desarvorado, podemos bater no muro em futuro relativamente próximo.


Celso Ming: Razões de governo e direito ao luto

Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega o direito ao luto e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade

O presidente Jair Bolsonaro pode ter lá suas razões de governo para julgar “frescura e mimimi” a prostração dos brasileiros pelos mais de 260 mil mortos pela covid-19. Mas, em assim agindo e em assim se manifestando, contraria leis multimilenares, que existem desde que o homem é homem.

A mais representada das tragédias gregas em todos os tempos é a sempre atual Antígona, de Sófocles, encenada pela primeira vez em 441 antes de Cristo. Trata do conflito entre razões de governo e direitos de família.

Creonte, o então todo-poderoso de Tebas, decretou que Polinices, filho de Édipo, não poderia ser sepultado na cidade, por considerá-lo traidor. Seu cadáver teria de ser exposto às intempéries e à ação dos cães e das aves carniceiras. Antígona, irmã de Polinices, se rebelou contra essa determinação “desumana e contrária aos deuses”. Em segredo, recobriu o cadáver do irmão com a veste dos mortos, fez as abluções devidas e o sepultou de acordo com os rituais sagrados. “As tuas determinações não têm força” – justificou-se depois diante de Creonte – “para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis.”

Por sua insubordinação foi condenada à morte. Mas as consequências vieram a galope. Creonte e sua família foram castigados pelos deuses. “Cedo ou tarde, o mal parecerá um bem àquele que os deuses resolveram desgraçar” – canta o coro da peça.

O direito ao luto e a reverência aos mortos são registrados pela literatura clássica e pelos que vieram depois. Na Ilíada, de Homero, Agamenon, o comandante da coligação grega, se submete a sacrificar sua filha Ifigênia para obter ventos favoráveis para a frota paralisada nas areias de Aulis.

Esta é mais uma situação em que razões de governo se sobrepujaram aos direitos de família. Os castigos se sucederam. De volta vitorioso a Micenas e em vingança pelo assassinato de Ifigênia, Agamenon foi decapitado a machado por sua mulher Clitemnestra. Anos depois, o filho de ambos, Orestes, vinga a morte do pai e elimina a mãe.

Nas cenas finais da Ilíada, o rei de Troia, Príamo, arrisca sua vida, transpõe o acampamento dos gregos, ajoelha-se diante de Aquiles, que matou seu filho Heitor em luta diante das muralhas de Troia, e implora a devolução do cadáver para que possa ser pranteado e, depois, cremado. O “animal Aquiles” – na expressão de Christa Wolf, em sua obra “Cassandra” – se comove com a coragem do rei inimigo, devolve o cadáver de Heitor e determina trégua na guerra, até que se completem os funerais.

Quem viveu tempos não muito distantes deve lembrar-se. A morte de alguém envolvia a família, a rua, o bairro, a aldeia inteira. As lojas baixavam as portas em sinal de luto, os sinos dobravam a finados, as bandeiras eram hasteadas a meio pau. Nas solenidades e antes de eventos esportivos, guarda-se um minuto de silêncio em memória do falecido.

Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega essa herança cultural e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade. Como visto pela literatura, coisas assim têm consequências.


Míriam Leitão: Velhos temores que nos rondam

A inflação ronda a economia. O temor até dentro do governo é que ela não caia depois de chegar a 7% em junho. Bolsonaro piora tudo. Ele produz incerteza, isso pressiona o dólar que, num círculo vicioso, atinge os preços. A inflação de alimentos fechou em 11% no ano passado e alguns produtos industriais estão em falta, como papelão e aço. Há outros fantasmas. A dívida é alta e ficará mais cara. Os juros futuros e o risco-país aumentaram e a Selic terá que subir. A equipe finge acreditar que há ajuste fiscal na PEC aprovada no Senado. Ela nada economiza a curto prazo, cria mais rigidez, fragiliza a Receita Federal e propõe a médio prazo o que não conseguirá fazer.

Bolsonaro é a crueldade ostentação. O “vai chorar até quando?” ou o “vai comprar vacina na casa da mãe” foram lançados no rosto de um país que enterra quase dois mil mortos por dia. Ele gostaria de desviar a atenção posta sobre a mansão do filho. O mundo vê, registra e quer distância de nós. Esta semana, dois grandes jornais, um americano e um britânico, fizeram editoriais dizendo que somos fator de risco sanitário global.

Na economia, há uma mistura pesada. Recessão, inflação, desemprego e piora fiscal. A alta dos juros começará ao longo do primeiro semestre apesar da atividade fraca. O mercado financeiro comemorou a aprovação da PEC Emergencial porque acha que ela evitou o pior. O Bolsa Família fora do teto abriria mais espaço no orçamento para despesas populistas. O ganho foi, portanto, evitar o bode voador que apareceu na última hora. No resto, o ajuste é um saco vazio. Ele proíbe o proibido. O salário do servidor civil já não seria reajustado este ano, portanto esse ponto da PEC é inócuo. Ela permite a alta dos salários dos militares e ainda carimbou despesas das Forças Armadas. Ao fim, a emenda engessou mais o orçamento. A única desvinculação afeta a Receita Federal, o órgão que arrecada, combate a sonegação e a lavagem de dinheiro.

O faz de conta fiscal levou o governo a uma situação ridícula. Ele terá que decretar estado de calamidade para acionar os gatilhos, porém os gatilhos nada acionam. O governo precisa gastar mais por causa da pandemia, mas não consegue formular boas políticas de ajuste.

A parte da PEC que trata da redução de subsídios é inexequível. Felipe Salto, da IFI, mostra que ao blindar a Zona Franca de Manaus, o Simples, os fundos constitucionais e as entidades filantrópicas ficou inviável a proposta de reduzir as renúncias fiscais a 2% do PIB. Teria que zerar toda a dedução do Imposto de Renda Pessoa Física, todos os subsídios agrícolas, acabar com a lei de incentivos para a cultura, suspender estímulos à ciência e inovação tecnológica. Salões de beleza caros da Zona Sul do Rio são optantes do Simples, mas o governo ameaça tomar o dinheiro do Microempreendedor Individual (MEI).

Reduzir subsídios é necessário, mas trabalhoso. Exige olhar dentro desses gastos, para separar o justo do injusto. Bolsonaro acabou de criar R$ 3 bilhões de subsídios para o diesel. Não alivia o consumidor, porque o dólar está subindo, e o petróleo, também. Mas pesa para o Tesouro. O benefício é para o caminhoneiro autônomo. Mas também para as empresas que têm frotas de caminhões, os carrões SUV, as lanchas. Todo benefício geral é injusto num país desigual. O trigo subsidiado faz o pão do pobre e o das padarias gourmet. A cesta básica inclui filé mignon, picanha, peixes nobres como salmão e subsidiá-la custou R$ 15 bilhões em 2018. Seria melhor ter dado esse dinheiro diretamente aos mais pobres.

O que se diz até na equipe econômica é que se as expectativas de inflação ficarem sem âncora, os índices não vão cair no segundo semestre, ao contrário do previsto. E isso pode “definir o destino deste governo”. As projeções para o IGP-M já estão em 8%, depois de subirem 23% em 2020. O quadro é este: a economia está instável, a situação social é dolorosa, a pandemia mata cada vez mais e Bolsonaro escala as agressões. O objetivo dele é conhecido. Ele mente dizendo que tem plano pronto contra a pandemia, mas não executa porque o STF não deixa, e que os governadores causaram a crise econômica. Por isso ele adula as Forças Armadas. Bolsonaro é um autocrata trabalhando para uma ruptura, que, segundo o filho 03, não é uma questão de “se”, mas de “quando”. O que a família reinante parece não saber é que a economia em escombros derruba governos.


Vinicius Torres Freire: Nova falha na vacinação vai matar milhares de idosos no Brasil

Novo cronograma federal é em parte ficção; Bolsonaro precisa ser interditado

O atraso da Fiocruz e da importação de vacinas da Índia vai deixar o Brasil sem 15,2 milhões de doses da AstraZeneca/Oxford em março. Seria o bastante para vacinar 7,5 milhões de pessoas do grupo de mais de 60 anos, no qual morrem mais de 74% das vítimas de Covid-19. Levando em conta o número diário de mortes recente, esse buraco de um mês na vacinação vai ameaçar a vida de uns 7.400 idosos. Nem todos seriam salvos, pois a vacina leva tempo para fazer efeito. Mas milhares morrerão porque faltaram essas vacinas.

É um exemplo aritmético do terror, que pode ficar pior. É preciso instalar uma espécie de governo de salvação nacional da saúde, uma articulação de governadores, prefeitos e Congresso capaz de aprovar medidas legais e administrativas a fim de garantir vacinas e providências epidemiológicas coordenadas. Jair Bolsonaro está em campanha contra a República Federativa e contra a segurança nacional sanitária. Como não será impichado, precisa ser neutralizado.

Ainda que o novo cronograma federal de vacinas fosse cumprido, já seria tarde. A economia vai afundar pelo menos até abril. Sem antecipar vacinas, afundará por mais tempo. O vírus pode se espalhar a ponto de causar uma epidemia de variantes incontroláveis. O genocídio de março já está dado. O de abril, quase garantido. Há que se evitar a marca de 400 mil mortes em maio.

Parte do novo cronograma do Ministério da Saúde para março e abril ainda é ficção. Parte é incerteza: houve um problema na produção dos primeiros lotes da Fiocruz, das vacinas que serviriam para um teste antes da fabricação "industrial". Com essa falha, em vez de entregar 15 milhões de doses em março, a Fiocruz vai entregar apenas 3,8 milhões (ainda tentam salvar alguma coisa mais).

Um calendário obtido por este jornalista no governo federal prevê 32 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford em abril. Mas a Fiocruz por ora estima poder entregar 25 milhões, se é que a fábrica não vai quebrar de novo. As doses de AstraZeneca/Oxford que seriam importadas da Índia, do Serum, dependem de boa vontade política: é grande a pressão para barrar a venda para o exterior.

No calendário, o ministério inclui doses da Covaxin, outra indiana, 8 milhões em março e mais 8 milhões em abril. Mas essa vacina não tem licença da Anvisa, que começou a conversar com a fabricante apenas na quinta-feira. Aliás, nem mesmo as vacinas AstraZeneca/Oxford a serem fabricadas pela Fiocruz foram autorizadas pela Anvisa. Espera-se que o sejam até 12 de março.

No calendário federal consta a entrega de um número otimista de doses do Butantan para abril. O instituto espera, sim, antecipar a entrega de vacinas, mas isso não é certo. Ainda para abril, o governo prevê a chegada de 2,9 milhões da Covax e 400 mil doses de Sputnik, que também não foi aprovada pela Anvisa.

Em resumo, o governo espera receber 94,1 milhões de doses em março e abril. Pelo menos 29,3 milhões são promessas ainda mais incertas ou doses de vacinas não aprovadas.

Caso seja cumprido, o calendário federal prevê vacinas para mais de 75 milhões de pessoas até o fim de maio (cerca de 158 milhões de doses). Seria mais do que suficiente para vacinar os maiores de 50 anos e, em suma, todos os grupos das pessoas em que morrem 88% das vítimas de Covid-19 no Brasil. É o equivalente a 49% da população vacinável (maior de 18 anos) ou a 35% da população total. Ainda seria tarde. A fim de evitar genocídio e desastre econômico maiores, é preciso antecipar em quase um mês esse calendário.


Bruno Boghossian : Bolsonaro já sente custo político de choques na economia

Presidente passa a trabalhar quase exclusivamente para conter efeitos sobre popularidade

O aumento da gritaria contra o fechamento do comércio e a investida sobre a Petrobras revelam o que inquieta Jair Bolsonaro no pior momento da pandemia. O presidente sentiu o impacto dos choques da economia e passou a trabalhar exclusivamente para reduzir os efeitos dessa crise sobre sua popularidade.

Sem o amortecedor do auxílio emergencial, os efeitos da inflação e o tropeço da atividade econômica passaram a ter um custo político maior. Embora Bolsonaro se esforce desde os primeiros dias da pandemia para fugir das responsabilidades nessa área, a conta costuma ficar com os presidentes das República.

Os números já apareceram em pesquisas feitas nos primeiros meses de 2021. A reprovação ao governo Bolsonaro cresceu à medida que a população começou a dar sinais crescentes de desconforto em relação aos rumos da economia.

Desde dezembro, o percentual de brasileiros que classificavam o trabalho do presidente como ruim ou péssimo subiu de 35% para 42% nos levantamentos XP/Ipespe. No mesmo período, a proporção de entrevistados que diziam que a economia estava no caminho errado passou de 50% para 57% –e só 30% acham que esse caminho está certo.

Vem desses dados a preocupação de Bolsonaro em transferir para os governadores a responsabilidade pela piora nos indicadores econômicos. Desde o fim de fevereiro, ele ataca quase todos os dias as medidas de restrição à circulação nos estados, omitindo o fato de que elas só são tomadas para conter o colapso de sistemas de saúde e salvar vidas.

Já o malabarismo para reduzir o preço dos combustíveis e a promessa de "meter o dedo na energia elétrica" são tentativas de conter a inflação.

Esse componente do desajuste econômico costuma provocar uma reação imediata do eleitorado –que tende a ser mais intensa com um auxílio emergencial menor. Em janeiro, o Datafolha mostrou que 96% dos brasileiros diziam ver aumento de preços da comida, 86% citavam o gás e 84% falavam da conta de luz.


Hélio Schwartsman: Como explicar os enigmas da pandemia?

Países riquíssimos sofrem, enquanto nações pobres se saem (até aqui) bem

Normalmente, quanto mais pobre um país, pior ele se sai em epidemias. A Covid-19 não é normal. Estamos vendo países riquíssimos, como os EUA e vários membros da União Europeia, comendo o pão que o diabo amassou, enquanto nações muito mais pobres, como o Vietnã e Burundi, se saem (até aqui) bem.

Não estamos falando de diferenças de 300% ou 400% na taxa de mortalidade, mas de variações de milhares de vezes. Na Bélgica, a Covid-19 matou, até aqui, 1.930 de cada milhão de habitantes. No Burundi, cujo PIB per capita é 1/177 do belga, essa taxa é de 0,26. E isso não ocorre porque os países mais pobres foram poupados do vírus. Estudos de soroprevalência mostram que muitos deles foram tão atingidos quanto os ricos.

Como explicar esses enigmas epidemiológicos? Siddhartha Mukherjee, autor do best-seller “O Imperador de Todos os Males”, faz uma bela tentativa em artigo publicado há pouco na New Yorker.

Para Mukherjee, não temos uma só causa, mas um “blend” delas. Há razões para crer, por exemplo, que haja uma subnotificação importante nos óbitos em países pobres, mas não suficiente para resolver a charada. Quando o coronavírus pega de verdade, não há como ignorar os cadáveres. Vimos isso Guayaquil e Manaus.

Bons candidatos a explicações parciais incluem a estrutura demográfica (proporção de idosos), comorbidades, governos mais ou menos eficazes no controle da doença e a imunidade, inata ou ativada por outras moléstias.

Um ponto de Mukherjee que eu quero destacar é que o método científico nos induz a buscar explicações parcimoniosas, de preferência únicas, mas isso pode ser um equívoco. A navalha de Ockham é útil para conter os piores exageros de nossa imaginação fértil, mas não há na natureza nenhum princípio que favoreça o simples em detrimento do complexo. Insistir muito na parcimônia depende de nossa fé num Universo elegante. E ele talvez não seja elegante.


Janio de Freitas: Brasil passou a ser visto como imenso vírus assassino

Com um governo que se alia à morte em massa provocada pela pandemia, país se tornou um perigo para o mundo

O Brasil é um perigo para o mundo. Assim está posta a opinião das autoridades, do jornalismo e dos mais informados mundo afora. Não é Bolsonaro, não é o governo militarizado e desatinado, mas o Brasil. E está certo: é o país que, dividido entre os voltados para seus interesses, os acovardados e a grande massa dos pobres de conhecimento, permite um governo que se alia à morte em massa, constrói por sabotagens a calamidade social e atraiçoa os objetivos do país como trai a população.

O Brasil, visto do mundo, é um imenso vírus assassino, composto pela infinidade de vírus letais que correm, livres, de um brasileiro a outro. E deste seu paraíso deixam-se levar, pelos meios mais insidiosos, para frustrar países que lutam contra a ferocidade pandêmica.

Esse capítulo faltava na história da incivilização brasileira. O seu fim desconhecido, caso não seja abreviado, contém hipóteses terríveis. Uma delas, por exemplo: a contaminação, já com novas e mais perigosas variantes do vírus, continuará aumentando, com reflexo direto nas restrições internacionais ao Brasil.

O medo de contaminação de produtos brasileiros não será surpreendente, resultando em caos alimentar interno e cortes arruinantes de exportações, com desarticulação de toda a economia. O que aí pareça exagero e pessimismo é uma possibilidade já considerada entre técnicos mais lúcidos.

O mundo conhecia o Brasil folclórico, musical, carnavalesco em tudo e imoral não só na corrupção escancarada. Descobre o Brasil propriamente dito, das massas relegadas e impotentes, do servilismo político e administrativo ao militarismo mais primário, da condução nacional conforme ao gosto avaro e ganancioso das classes possuidoras.

Tudo isso sintetizado em 260 mil mortes, tantas delas feitas pelo descaso do governo, e expressado na ameaça ao mundo —uma espécie de Bin Laden em dimensões continentais.Nas duas últimas semanas, o Supremo, atuais e ex-procuradores da República respeitáveis, governadores, prefeitos, secretários, a rediviva ABI, cientistas, médicos e uns poucosparlamentares saíram ao enfrentamento do exército de ampliadores do Brasil mortífero. São um início, uma promessa, se não arrefecerem como é próprio das boas iniciativas do Brasil. Tudo, emnosso futuro, depende disso.

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Bia Kicis na presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, com sua condição de investigada no Supremo por comprovadas pregações contra a democracia e a Constituição, seria um desaforo do seu protetor Arthur Lira e da própria Casa aos cidadãos e, em particular, ao STF.

Aécio Neves na presidência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, como pagamento ao seu golpe no PSDB para ajudar a eleição de Lira, é uma indecência capaz de ser ainda maior. Corrupto múltiplo, gravado em extorsão de R$ 2 milhões a Joesley Batista, do grupo JBS, Aécio continua solto graças a trampolinagens judiciais do PSDB. Não é raro saírem do Oriente Médio pacotaços para cargos que se ocupem de questões relativas à área mais conflitiva do mundo.

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As mulheres de São Paulo podem reequilibrar o confronto com o cafajeste Fernando Cury (Cidadania), que passa por deputado. A elas cabe fazer campanha contra o voto feminino, primeiro, nos membros do Conselho de Ética que aprovaram apenas 119 dias de aparente suspensão para o agressor sexual da deputada Isa Penna (PSOL). Depois, veto aos deputados que impeçam no plenário a perda do mandato de Cury. Façam suas listas.

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Científica: o macaco está para Charles Darwin assim como Bolsonaro está para a Teoria da Involução.


Ricardo Noblat: Bolsonaro, o arquiteto bem-sucedido do caos que o país vive

Criadas as condições para a tempestade perfeita

Na noite de 17 de março de 2019, em sua primeira viagem aos Estados Unidos como presidente da República, Jair Bolsonaro ofereceu um jantar na embaixada do Brasil em Washington para oito expoentes da direita americana, e mais o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, guru dos seus filhos e dele também.

Bolsonaro apresentou-se aos seus convidados como o brasileiro ungido pela “vontade de Deus” para estancar a suposta caminhada do Brasil para “o socialismo, o comunismo”. Reiterou o lema bíblico de sua campanha eleitoral: “Conheças a verdade e a verdade te libertará”, do capítulo 8 do Evangelho de São João.

E, em seguida, antecipou o que pretendia fazer ao longo do seu primeiro mandato, porque desde já, embora não tenha dito isso na ocasião, já pensava no segundo: “Nós temos de desconstruir muita coisa, de desfazer muita coisa para depois começarmos a fazer”. Destruir “o sistema” era seu principal objetivo, diria mais tarde.

Dois anos e três meses depois, o sistema continua de pé. Bolsonaro a ele aderiu com medo de combatê-lo e de ser derrubado. Concentrou sua força destruidora em setores com menor capacidade de resistência – saúde, meio ambiente, educação, cultura, direitos humanos e relações exteriores.

A pandemia da Covid veio em boa hora para ele. Serviu para que demonstrasse sua compulsão pela morte. O caos que toma conta do país onde morreram 10 mil pessoas nos últimos sete dias e quase 265 mil de um ano para cá, tende a se agravar nas próximas semanas com o apocalipse sanitário mais do que anunciado.

Sem a chegada de mais doses de vacinas não haverá como impedi-lo. Acontece que furou a previsão oficial de novas doses. Nos últimos três dias, o Ministério da Saúde diminuiu em quase 35% o número de doses de vacina disponíveis em março. Em três dias, a estimativa inicial de 46 milhões de doses caiu para 30 milhões.

Até este sábado, dia 6, pouco mais de 8.130.000 de pessoas receberam a primeira dose da vacina. Isso equivale a 3,84% da população. A segunda dose foi aplicada em 2.686.500 pessoas – ou seja: apenas 1,27% da população. Má vontade com o Brasil dos fabricantes das 11 vacinas em circulação no mundo?

Não. Falta de interesse do governo brasileiro em comprá-las a tempo. Um ministro da Saúde foi demitido em meio a pandemia, e outro preferiu pedir demissão por discordar da orientação de Bolsonaro de conceder passe livre ao vírus. Uma vez que o vírus infectasse 70% das pessoas, acabaria derrotado.

Esse é o entendimento de Bolsonaro desde o início, e por isso ele sabotou e sabota a compra e a aplicação de vacinas. A história está repleta de exemplos de governantes autoritários com compulsão pela morte, o que os tornava indiferentes à sorte alheia – Hitler, Stalin, Mussolini, Mao Tsé-Tung, Pol Pot, ditador do Cambodja.

Em mais um encontro com seus devotos nos jardins do Palácio da Alvorada, depois de despachar para Israel uma comitiva do governo atrás de um spray contra a Covid sequer ainda bem testado por lá, Bolsonaro declarou como se fizesse uma grande e generosa concessão:

– O que é a vacina? Não é um vírus morto? Eu já tive o vírus vivo. Estou imunizado. Lá na frente, depois que todo mundo tomar, se eu resolver tomar, porque no que depender de mim é voluntário, então tomarei.

A vacina deve ser tomada mesmo por quem já contraiu o vírus – Bolsonaro sabe. Como sabe que estão criadas as condições para uma tempestade perfeita que poderá desabar a qualquer momento. Espera salvar-se politicamente, pouco importa o número dos que venham a ser sepultados. Covas também estão em falta.


Bernardo Mello Franco: A mansão de Flávio Bolsonaro e a profecia de Dom Bosco

Na noite de 30 de agosto de 1883, o padre italiano Giovanni Bosco sonhou que fazia uma viagem pela América do Sul. Entre os paralelos 15 e 20, ele vislumbrou uma “enseada bastante longa e larga, que partia de um ponto onde se formava um lago”. Uma voz divina assoprava em seu ouvido: “Quando vierem a escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível”.

Dom Bosco morreu em 1888, virou santo em 1934 e inspirou os fundadores de Brasília em 1960. A cidade foi erguida entre as coordenadas geográficas do sonho e à beira de um lago artificial, o Paranoá. O sacerdote se tornou onipresente no Planalto Central: batiza igreja, colégio, farmácia e pizzaria. Agora seu santo nome também está associado aos negócios da família presidencial.

Flávio Bolsonaro virou morador do Setor de Mansões Dom Bosco, uma das áreas mais valorizadas da capital. O senador comprou uma casa de 1.100 m² de área construída, com quatro suítes, oito vagas de garagem, piso de mármore e piscina aquecida. Com salário líquido de R$ 24 mil, ele arrematou o imóvel por R$ 6 milhões.

A mansão é o mais novo símbolo do enriquecimento dos Bolsonaro na política. Quando disputou sua primeira eleição, em 2002, o primeiro-filho declarava como único bem um Gol 1.0. Cinco mandatos depois, ele pilota um Volvo XC e acaba de adquirir seu 20º imóvel em 16 anos.

A casa também simboliza a crença da família na impunidade. Em novembro, o Ministério Público do Rio denunciou o senador por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ele fechou o negócio dois meses depois, às vésperas de o Superior Tribunal de Justiça julgar seus recursos contra a investigação.

Seguindo a tradição da família, a transação está encoberta por mistérios. O Zero Um registrou a compra do imóvel na cidade-satélite de Brazlândia, a 58 quilômetros da mansão. O cartório atropelou a Lei de Registro Público e tarjou a escritura pública para ocultar seus dados patrimoniais. O Banco de Brasília (BRB), ligado ao governo do Distrito Federal, financiou parte da operação com juros abaixo do mercado.

Irritado com a descoberta da mansão, Flávio atacou a imprensa e negou irregularidades. Ele disse ter comprado o imóvel com o valor da venda de um apartamento e de uma franquia da Kopenhagen, apontada pelo MP como fachada para lavar dinheiro. “Tá tudo redondinho, dentro da lei e sem problema nenhum”, afirmou, em vídeo divulgado nas redes sociais.

Eleito com a promessa de combater a corrupção, o presidente ainda não falou sobre a casa milionária. Há poucos dias, ele abandonou uma entrevista para não responder sobre as manobras do herdeiro no STJ.

Depois de 138 anos, os Bolsonaro dão novo significado à profecia de Dom Bosco. Ao se instalar entre os paralelos 15 e 20, o clã passou a ostentar uma riqueza inconcebível. A diferença está no detalhe: em vez de leite e mel, a mina do primeiro-filho faz jorrar chocolate.


Dorrit Harazim: Medos múltiplos

No fundo, foram falas de poltrão. Cuspidas pelo presidente da República em tom estudadamente espontâneo esta semana, os disparates não precisam ser repetidos aqui — já ofenderam o suficiente a nesga de autoestima que ainda resiste no país. A necessidade de recorrer a falas tão odientas sugere que Jair Bolsonaro está com medo. Medo de que caia a casa ostentação comprada pelo filho Flávio, medo de seu pacto de morte com a Covid-19, medo de a rua pressionar o Congresso, medo de chegar lanhado em 2022 — ou de nem sequer chegar até lá. Agora está prisioneiro do descaminho escolhido, que não tem volta: por meio da retórica (e da política) sanhosa, procura apenas manter a fidelidade de rebanho dos que o elegeram.

Bolsonaro não foi o único a tratar a Covid-19 com nonchalance suicida. De início, por interesse eleitoral ou estupidez, uma parte do Brasil envergando paletó ou farda, toga ou chinelo de dedo, também não quis ver o tamanho do perigo. Quase sempre correndo atrás do atraso e adotando políticas ciclotímicas de abre/fecha, autoridades estaduais e municipais foram tateando. Hoje 1.703 prefeitos aprendem a formar consórcios para a compra de vacinas. O Congresso, que por um ano se fingiu de adormecido, por fim acorda algo sobressaltado.

Mas o grosso da responsabilidade, pelo imenso poder de liderança, comunicação e recursos que o cargo lhe dá, é do presidente da nação. Exatamente um ano atrás, neste espaço se comentava o registro de 13 casos positivos de Covid-19 entre os 209 milhões de brasileiros. O salto para os quase 11 milhões de casos atuais, com mais de 264 mil vidas perdidas no caminho, nasceu da cartilha manicomial de Jair Bolsonaro, e nada, daqui para a frente, conseguirá apagar esse rastro.

Nem mesmo o “Penguin Book of Lies”, trabalho investigativo-literário sobre as várias formas de mentir publicado em 1990 pelo britânico Philip Kerr, conseguiria dar conta das artimanhas mentais do presidente. Talvez nem Santo Agostinho sou besse fazê-lo. O santo sustentava que “nem todo aquele que diz falsidades está mentindo se crê ou presume ser verdadeiro o que diz...”. Mas como saber se o capitão sequer acredita nas sandices que professa? Possivelmente não, são apenas escapes.

Joseph Goebbels sabia que mentia. Exercitava o ofício da propaganda com total controle e convenceu os alemães da receita nazista. Ronald Reagan, ao contrário, realmente acreditava na “América” de John Wayne e das ilustrações de Norman Rockwell. Convenceu o eleitorado de que representava o país onde sempre é possível enriquecer. Suas crenças eram simples. Foi reeleito apesar de 138 membros de seu governo terem sido investigados, indiciados ou condenados por inúmeras encrencas.

Pensadores de calibre, como Hannah Arendt, já ensinaram quanto esconder a verdade faz parte das ferramentas necessárias e justificáveis não apenas para políticos demagogos, como para estadistas de verdade. Ademais, inexiste a política da autenticidade pura, da sinceridade não contaminada. Nem deve existir, aconselha o visionário George Orwell, cada vez mais lido nos dias de hoje. Para o autor de “1984”, pior do que a hipocrisia na política, é um mundo em que ninguém mais tem sentimentos privados para manter secretos. “Quando ninguém mais tiver nada para esconder, é onde reside o terror”, escreveu. A verdade absoluta, inequívoca, aquela que silencia os que dela discordam e cancela qualquer debate, pode ser tão opressora e inimiga da liberdade humana quanto uma imensa mentira.

Nenhuma dessas considerações nem sequer consegue ser aplicada a Jair Bolsonaro, que é apenas um terrível, lamentável , primitivo e danoso aspirante a chefete do Brasil. Nos primórdios da revista “Veja”, a redação brincava de dividir a chefia do semanário em três categorias: arquitetos do caos, simuladores de produtividade e falsos ecléticos. Bolsonaro consegue ser as três coisas ao mesmo tempo e tantas outras mais.

Apenas não consegue ser humano.


Merval Pereira: Guerra é guerra

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem se mostrado competente na análise prospectiva de nossa economia, embora de nada isso lhe valha para evitar os fracassos que prenuncia. Disse que se fizéssemos muita besteira, o dólar chegaria a R$ 5,00. Chegamos a R$ 5,53 no fim de semana sem que o ministro tenha evitado. Recentemente, disse que poderíamos virar uma Argentina, ou quem sabe uma Venezuela, em poucos anos, se caminharmos para “o lado errado”.

Mais uma vez está certo, e nada indica que consiga frear essa caminhada célere para o abismo que o presidente Bolsonaro lidera. Bolsonaro sabe o que eu penso, eu sei o que ele pensa, disse Guedes durante a crise gerada pela intervenção presidencial nos preços da Petrobras. Só nós não sabemos por que Guedes não sai do governo se não consegue conter os ímpetos intervencionistas do chefe.

Por que, então, não nos transformamos em um Paraguai pelo menos por alguns dias, meses, e não saímos nas ruas até tirarmos Bolsonaro da presidência da República, cargo que ele não merece exercer pela falta de compostura, a incapacidade administrativa, e, sobretudo, a impossibilidade de enfrentar a pior pandemia em um século no Brasil e no mundo?  

“Estamos em guerra”, anunciou o Secretário de Saúde de São Paulo Jean Gorinchteyn. E se estivéssemos em guerra contra outro país, e não contra um vírus, como nos comportaríamos tendo à frente um líder como Bolsonaro, incapaz de oferecer a seus compatriotas “sangue, suor e lágrimas”?

Logo ele, sujeito de maus bofes, que vive procurando briga, irritadiço, violento, agressivo. Uma guerra de ocupação, de conquista ou defensiva, talvez encontrasse em Bolsonaro um comandante aguerrido, mas trapalhão, é o que se depreende de ele ter ameaçado pateticamente os Estados Unidos “com pólvora” numa imaginária guerra para proteger a Amazônia.

Capaz, mesmo tecnicamente sóbrio, de bravatas desastradas como a do General Leopoldo Galtieri, ditador argentino que, bêbado, declarou guerra à Inglaterra por causa das Ilhas Malvinas. Assim como não está preparado para comandar um Exército, pois falta-lhe bom-senso e não concluiu o curso de comando do Estado-Maior, Bolsonaro também não está preparado para exercer a presidência da República, mas foi eleito e tem sob seu comando vários oficiais superiores, que não lhe deixariam comandar pelotões em uma guerra, mas acham que podem ser comandados por um político medíocre, que já demonstrou o mal que pode fazer ao país.

Os militares que se subordinam ao capitão o fazem mais por uma hierarquia militar, que coloca o presidente como Comandante em Chefe das Forças Armadas, do que por amor à democracia.  Pois o amor à democracia os obrigaria a abandonar um presidente  tresloucado, que está levando a morte à população brasileira por caprichos, ignorância e cálculo político.

Em uma guerra, a morte é a regra, e, mesmo assim, o oficial que encaminha seus comandados a atos manifestamente criminosos, ou a excessos, pode ser condenado, mesmo em tempo de paz. Galtieri foi condenado por negligência na guerra das Malvinas, tendo sido anistiado depois por lei especial. A guerra contra a Covid-19, assim como na guerra tradicional, leva a morrer pela pátria, como no caso do pessoal da linha de frente médica, que se arrisca a morrer para salvar vidas. Desde o início da pandemia, segundo dados oficiais, quase mil mortes de profissionais de saúde - médicos, enfermeiros, técnicos - foram registradas.

Defender a saúde pública é dever das autoridades do país, e nenhuma delas, por mais elevado que seja seu cargo ou posto, pode desconhecer o perigo de morte, se omitir ou dificultar o seu combate, segundo juristas. Qualquer autoridade que não lute pela  preservação da vida ameaçada por uma crise de saúde pública comete  “crime de responsabilidade”, e seus atos devem ser apreciados e julgados. Sobretudo quando mais de 260 mil pessoas já morreram, grande parte por negligência governamental.

“Todo mundo vai morrer um dia”, disse o presidente Bolsonaro ao comentar o número de mortes pela pandemia. Mas apressar a morte em uma pandemia por falta de oxigênio, de leitos de UTI, ou de vacinas, é crime.


Marco Aurélio Nogueira: A pandemia, o futuro, a vida que flui

A época atual é de perplexidade, que ofusca o futuro e idealiza o passado. Com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida, incrementando ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. A pandemia do coronavírus agravou um quadro que já era dramático. Partindo desse pressuposto, o artigo procura refletir sobre algumas vias alternativas, que recuperem o diálogo, a cooperação e a solidariedade em escala global, valorizando ao mesmo tempo a democracia e o reformismo incremental

Decifrar o futuro sempre assustou e excitou os humanos. Da mítica Esfinge de Tebas, com seu enigma que exigia um esforço de autoconhecimento e de reflexão sobre os passos da humanidade (a criança, o adulto, o idoso), ao Iluminismo, com sua aposta no racionalismo como motor do progresso, o futuro fixou-se como imagem de desafio, promessa e possibilidade. Prevalecendo a razão, decifrado o enigma, o passado seria ultrapassado inapelavelmente, levando consigo um cortejo de perversidades acumuladas, sofrimentos ingentes e vidas desperdiçadas.

Utópicos variados floresceram, idealizando construções que conteriam em si a felicidade e a harmonia futura. Mas tarde, com o predomínio crescente da ciência e da técnica, defensores do progresso técnico e econômico inexorável e futurólogos se multiplicaram, convictos da capacidade que teriam de antecipar o que se teria pela frente. Com os avanços obtidos após a Segunda Guerra Mundial -- o Estado de Bem-Estar, o aumento de renda dos trabalhadores, o desenvolvimento da ciência aplicada nas áreas decisivas da saúde e do saneamento, os direitos sociais --, anunciou-se uma era de confiança no futuro.

Chegamos assim às últimas décadas do século XX, quando o aparato institucional, sociopolítico e cultural erguido no pós-guerra começou a ser abalado por uma combinação de fatores explosivos: crescimento das demandas dos cidadãos, aumento do custo das operações estatais, crise fiscal, mercado todo-poderoso, rápida evolução tecnológica, problemas de governabilidade, passagem de uma estrutura produtiva assentada na indústria metalomecânica para uma estrutura fundada na “economia da informação”, desemprego estrutural, expansão das redes de comunicação.

Deu-se então uma reversão das expectativas. Foram postas em xeque as promessas da modernização e do progresso. As ciências humanas e a filosofia ingressaram em uma fase dedicada ao mapeamento das modificações sofridas pelo moderno. Pós-modernidade, modernidade líquida, segunda modernidade, modernidade tardia, hipermodernidade tornaram-se expressões de uso generalizado, sobre uma base consensual de que a realidade se tornara muito mais difícil de ser conhecida. Formou-se assim um paradoxo: quando tudo parecia estar sob controle -- da natureza e do tempo à sociedade, dos corpos às mentes -- eis que uma névoa espessa desaba sobre o mundo, vedando-o ao conhecimento crítico e travando a imaginação sobre o futuro. As utopias cederam lugar às distopias e às “retrotopias”, utopias regressistas, que olham para trás e celebram a nostalgia dos tempos passados.

Leio em Bauman: “O caminho do futuro assemelha-se estranhamente a um percurso de corrupção e degeneração. O caminho reverso, direcionado para o passado, transforma-se assim em um itinerário de purificação dos danos que o futuro produziu toda vez que se fez presente”. As esperanças de melhoramento fogem de um futuro que assusta, buscam refúgio em um passado idealizado em que se confiaria. “Tal reviravolta transforma o futuro, de um habitat natural de esperanças e expectativas legítimas, em uma casa de pesadelos”. (Bauman, 2017: 16).

Na base dessa inflexão repousa o fato de que, com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida. Incrementou ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. O mundo enveredou por uma etapa que realiza in totum aquilo que em seus primórdios foi utilizado para definir a condição moderna: “estar em movimento”, mudar compulsivamente, agir para confrontar e transformar o mundo, tornando-o diferente.

Aceleração

Como enfatizou Hartmut Rosa, as sociedades tornam-se modernas quando ganham “estabilização dinâmica”, ou seja, quando ficam “sistematicamente dispostas ao crescimento, ao adensamento de inovações e à aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura” (Rosa, 2019: XI). Além de se racionalizarem, ganharem diversificação e se individualizarem, as sociedades modernas são atravessadas pela aceleração de processos, sensações e acontecimentos. Tal vetor torna-se sempre mais um princípio

básico da vida moderna, que comprime o tempo e suspende os momentos de fruição, nos quais deveria ocorrer alguma possibilidade de “desaceleração” e de repouso do guerreiro.

Hartmut Rosa explorou como esse processo ativado pela compulsão produtivista implica perdas existenciais, mal-estares e aflições (estresse, exaustão, burnout, falta de tempo, pressa permanente, depressão). A sensação de que o progresso técnico (a informatização) dilataria o tempo livre e agregaria mais horas de fruição à vida cotidiana é questionada em termos práticos pela constatação de que o tempo se tornou uma variável fora de controle.

Rosa segue uma trilha também frequentada por outros autores. Byung-Chul Han, por exemplo, constata que “a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho”. Seus habitantes não são mais “sujeitos da obediência”, mas “sujeitos de desempenho e produção, empresários de si mesmos”. Inerente a ela é a produção recorrente de transtornos e paralisias hiperativas. “A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”, de certo modo seres de “almas consumidas”. Os transtornos que nela se reproduzem expressam “o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”. Refletem uma “humanidade que está em guerra consigo mesma”, que vive sob o império do cansaço, do esgotamento, do excesso (de estímulos, informações, impulsos), que fragmenta e destrói a atenção. (Han, 2015).

A aceleração produz efeitos nos distintos planos da vida. Afeta o modo como se pensa, se estuda, se ensina e se aprende. O modo como se trabalha e se descansa, o lazer e a fruição cultural, os relacionamentos e os afetos. Põe em xeque os sistemas, o Estado, a família, a escola e as organizações da sociedade civil. Dificulta a compreensão da realidade e a ação sobre ela. Mundializa o mundo, mas provoca separações e desigualdades que freiam a formação de uma comunidade de destino internacional. Suspende, assim, a elaboração de visões sistemáticas do futuro e de projetos de sociedade.

Essa alteração do ritmo existencial combina-se com o fato de que, na modernidade tardia, os indivíduos desejam “dispor do mundo” livremente, tratá-lo como inesgotável, pronto para ser explorado e submetido. Essa tendência está inscrita desde sempre em nossa relação com o mundo, mas alcança nova radicalidade no século XXI, graças às possibilidades técnicas oferecidas pela digitalização e pelas restrições político-econômicas da extensão e da otimização do capitalismo financeiro e da competição desenfreada. Os humanos deparam-se, assim, com um mundo que se lhes aparece como uma sucessão de “pontos de agressão”, objetos que precisam ser conhecidos, conquistados, dominados, utilizados. A “vida”, portanto, torna-se uma luta que jamais pode ser interrompida. Turbinada pelos mecanismos do mercado e pelas ofertas várias do processo sociocultural, a

dinâmica vital termina por gerar frustrações seriais, raiva, medo e insatisfação, assim como comportamentos políticos fundados na violência e na agressão.

Na modernidade tardia, observa Hartmut Rosa, o “mundo da vida” torna-se cada vez mais indisponível, opaco e incerto. “Em consequência, a indisponibilidade retorna à vida concreta, mas modificada e angustiante, como uma espécie de monstro que teria se criado a si mesmo”. (Rosa, 2020). O programa moderno de extensão do acesso ao mundo, que transformou o mundo em um amontoado de “pontos de agressão”, produz assim, de duas formas concomitantes, “o medo do mutismo do mundo e da perda do mundo”. Se "tudo está disponível", o mundo não tem mais nada a nos dizer e “onde ele se tornou indisponível de uma nova maneira, não podemos mais entendê-lo porque ele não é mais alcançável”.

Com a “estabilização dinâmica” das sociedades modernas e os problemas dela derivados, processa-se uma mudança na percepção cultural. Crescer passa a significa mais risco e ameaça, às pessoas, às sociedades, ao Estado, à natureza. Ao futuro. Deixa de ser um valor inquestionável, ainda que não seja abandonado como vetor econômico. Estreitam-se as margens de manobra dos governos e dos sistemas políticos, que deixam de produzir resultados satisfatórios.

Grupos e indivíduos defrontam-se com a realidade estrutural da modernidade atual: “o que sustenta o jogo do crescimento não é a vontade de obter ainda mais, mas o medo de ter cada vez menos”. Grupos e indivíduos sentem-se “estruturalmente constrangidos (a partir de fora) e culturalmente empurrados (a partir de dentro) para fazer do mundo o ponto de agressão”, para converter o mundo em algo a ser conhecido, explorado, consumido, dominado. Não é difícil imaginar a repercussão explosiva e perturbadora desse processo quando ele atinge seu ápice. A sensação de um mundo indisponível invade o plano político, onde é processada de modo discursivo e reforçada pela dinâmica incontrolável da mídia e das redes sociais, “que desencadeiam em pouquíssimo tempo ondas de indignação - ou de entusiasmo -- insuspeitáveis e com consequências gigantescas, ondas cujos fluxos e refluxos são tão imprevisíveis e incontroláveis quanto suas interações”. (Rosa, 2020)

Basta girar o periscópio para constatar que não há lugar na Terra que esteja a exibir coesão, harmonia e satisfação. A fragmentação, o sentimento de impotência, a frustração, a raiva, os estados depressivos espalham-se como fogo pelas mais diferentes sociedades. A “crise” torna-se assim abrangente: põe em xeque o modo de vida moderno, o padrão de desenvolvimento, o modo como se dispõe do mundo, como ele é ocupado, utilizado, explorado. Edgar Morin fala em “megacrise” e em “poli-crises” para acentuar precisamente essa dimensão complexa e universal, em um processo que aproxima e afasta, unifica e separa: “A globalização, a ocidentalização, o desenvolvimento são os três alimentos da mesma dinâmica que produz uma pluralidade de crises interdependentes, emaranhadas, entre as quais estão a crise cognitiva, as crises políticas, as crises econômicas, as crises sociais, que são, elas mesmas, produtoras da crise da globalização, da ocidentalização, do desenvolvimento. A gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue chegar à humanidade”. (Morin, 2011).

Faltam lideranças que se disponham a pensar o futuro, praticando uma política inovadora e de civilidade, voltada para a solidariedade e a qualidade de vida, que ficam na dependência de “resistências colaborativas” e “oásis de fraternidade” (Morin) de pequena escala. A política sofre para falar com os cidadãos, deixa-se enredar nos mecanismos do poder e nas manobrar eleitorais. Afasta-se quando deveria se aproximar. “A nossa é uma era de crise permanente dos instrumentos para resolver problemas”, escreveu Bauman. O poder se separou da política, ficando solto e fora de controle. Em decorrência, as instituições ficam mais impotentes e mais submetidas aos técnicos. Os governos querem se agarrar ao terreno nacional, mas são pressionados pelo supranacional. A condição cosmopolita (a interdependência, as interações) não conta com uma consciência cosmopolita que a direcione e regule. O mundo global não conta com uma política global. Sem política, não se completa a formação de uma opinião pública global e de uma consciência de que os problemas são globais. (Bauman, 2017: 262).

Já estamos em processo de metamorfose: uma metamorfose “abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas, está acontecendo de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”. Ela “ocorre em segundos, com uma velocidade verdadeiramente inconcebível; em consequência, está ultrapassando e esmagando não apenas pessoas, mas também instituições”. É por isso que ela escapa da conceituação vigente da teoria social e leva as pessoas a terem a impressão de que o mundo está louco. (Beck, 2018, p. 79).

O tempo veloz e a política

Quem governa e exerce poder vale-se da lentidão: precisa dela para respirar, fazer cálculos e decidir. Em boa medida, o governante poderoso pretende prolongar o passado, aquilo que existe. As oposições e os cidadãos têm pressa: desejam para hoje tudo o que tem sido postergado e tudo a que aspiram. Querem antecipar o futuro. A lentidão precisa ser modulada com sabedoria e capacidade de comunicação persuasiva. Se for excessiva, pode fazer com que oportunidades de avanço se percam e apoios sejam desperdiçados, levando a que não se consiga governar os ambientes. A antecipação apressada do futuro, por sua vez, pode ser feita de forma voluntarista, em nome da vontade de mudar, perdendo de vista as determinações fundamentais e as possibilidades concretas de mudança.

Hoje, a velocidade dos fatos aumenta na mesma proporção em que cresce a complexidade social (a diferenciação, a individualização, a fragmentação, o desentendimento) e acelera-se a inovação tecnológica, sobretudo a que afeta a comunicação e a informação, internet à frente. Quanto mais tribos, nichos e redes, maior é o volume de fatos e mais veloz é a sucessão deles. Dadas as interações e as trocas amplificadas, fatos passam a significar também versões e interpretações. Narrativas proliferam.

O resultado é um agregado que se movimenta sozinho, sem que encontre um centro gerador claro e preciso. O bólido gira em alta velocidade, como slides que deslizam rapidamente em um carrossel, sem que os espectadores tenham tempo de assimilá-los. Como decorrência, verdade e mentira se misturam, palpites e opiniões caem sobre a população como uma tempestade de raios, a mídia é onipresente. Forma-se uma névoa densa, que ajuda a rebaixar a qualidade das “narrativas” individuais, coletivas, governamentais ou patrocinadas por organizações. Vozes se espalham em tom de “verdade categórica”, impulsionadas por postagens e boatos espalhados por aplicativos, bots ou empresas especializadas.

Fatos se sucedem com rapidez inusitada, movidos por expectativas inflacionadas, ódios e ressentimentos à flor da pele, notícias e informações multiplicadas, discursos, debates e falas incessantes, uma cacofonia inesgotável. Há movimentos de luta, reivindicação e protesto os mais variados, condizentes com uma época que fez dos direitos humanos e das postulações identitárias um de seus signos mais fortes. Mas os avanços por eles obtidos tardam para socializar seus efeitos. A desigualdade se reproduz e chega a se expandir, misturada com discriminações várias e preconceitos que se repõem. A vida cotidiana, como sempre, mostra-se dura e pouco flexível, sobretudo para os marginalizados, os que se deparam com empregos que escasseiam e salários que declinam. Para os jovens, que sofrem para encontrar seu lugar no mundo.

Tudo incide sobre o espaço em que atuam os políticos, com seus partidos e suas agendas, e no qual se organizam as escolhas dos eleitores e as decisões dos governantes. A política, em si mesma, é revolvida de cima a baixo, com a crise despontando em cada curva do caminho, ora sob a forma do questionamento da representação, ora sob a colocação em xeque da ideia mesma de democracia, ora problematizando a figura dos políticos, ora fomentando versões de populismo. A esquerda enfrenta dificuldades para se renovar e se repor, a extrema-direita ressurge com virulência e agressividade.

No plano do pensamento, o cenário célere e mutante desafia os analistas, obrigando-os a checar mais fontes, a incluir mais ângulos de observação e a atravessar uma muralha de interpretações que complicam a relação “normal” entre essência e aparência. As análises tornam-se mais tentativas, refugiam-se no academicismo típico da hipermodernidade, movido a citações e referências e pouco atento à dimensão pública do

trabalho reflexivo. Exige-se sempre mais a incorporação de formas de pensar próximas da dialética e da teoria da complexidade, capazes de considerar que espaços dispostos em redes costumam gerar modalidades permanentes de “caos estável” (Beck), que se reproduzem e se refazem, até mesmo quando se estabilizam.

Sobredeterminando tudo isso, há a ação da época histórica. O capitalismo globalizado ganhou alento e seguiu seu curso, alheio a controles, crises e regulações. A turbulência econômica passou a ser personagem usual no mundo. O fundamentalismo foi reforçado, ganhando agora a companhia de nacionalistas xenófobos e demagogos, a democracia representativa tornou-se sensível demais às transformações que sacodem a vida cotidiana, a cultura de esquerda não conheceu o necessário revigoramento, o mundo do trabalho se desorganizou, a robótica, a inteligência artificial movida a algoritmos, os celulares e a informatização generalizada redesenharam o modo com os humanos vivem, pensam e fazem coisas.

O cenário não se fixa, parece sempre em movimento, mesmo quando se repõe. O analista que se proponha a interagir com tal cenário deve tentar captar o essencial do slide disposto pelo carrossel enlouquecido, sem perder de vista aquilo que vem em seguida e se projeta no horizonte. Precisa ser rápido sem ser apressado.

A velocidade está intimamente associada ao ritmo das mudanças. Há mudanças rápidas, outras precisam de tempos longos para amadurecer. Há épocas velozes e épocas em que a vida nem parece mudar, sociedades que navegam com as ondas e outras que mal conseguem sair do lugar. Em nossa época, muda-se tanto que a mudança ficou fora de controle. Sabemos que ela já está aí, mas não podemos dosá-la, nem direcioná-la. Mesmo assim, vivemos todos querendo mudar mais e no menor intervalo de tempo, somos praticamente subsumidos pela fascinação do novo, do que virá amanhã.

A velocidade com que o “novo” substituirá o “velho” intriga, até mesmo por não poder ser projetada. Há modulações e determinações a serem consideradas. A repentina subida da temperatura política e social pode tanto desencadear mudanças não previstas quanto bloquear outras já delineadas. Pode também desorganizar de tal forma o quadro existente que a complicação se torna inevitável, fazendo crescer enganos e ilusões. “Explosões” são sempre risco e surpresa: fascinam, geram temor, excitam esperanças, alteram humores, disposições e resistências.

O “novo” – um sistema, uma sociedade, um partido, uma elite política, uma cultura, um comportamento – não brota somente por causa de iniciativas políticas. Atos de vontade são importantes, mas não podem tudo. Não basta existir disposição, empenho e dedicação para que o “velho” seja deslocado. Ele está enraizado em terrenos muitas vezes arados pelo tempo secular, funciona como referência essencial para condutas, hábitos e pensamentos. Somente a ingenuidade política e o desconhecimento dos ritmos da história

podem relativizar “o peso que as gerações mortas têm sobre o cérebro dos vivos”, como escreveu Marx no 18 Brumário. A resistência à mudança, extenso e conhecido capítulo dos estudos sociais, não se apoia exclusivamente em interesses prejudicados, mas obtém a maior parte de sua força precisamente do “velho” que repousa entranhado nas bases da vida coletiva. Recusa-se a mudança por temor a ela, por não se saber direito o que fazer se aquilo que é conhecido deixar de existir, porque não se consegue visualizar o futuro.

Reformas complexas como são as da educação, da saúde e da previdência – os sistemas básicos de proteção social – requerem tempo para serem gestadas com um mínimo de consenso e executadas com sustentabilidade. Os cidadãos, porém, querem respostas imediatas. Os efeitos e os resultados do reformismo não são imediatos, fazem-se sentir ao longo de décadas. Enfrentam bloqueios e oposições, seja porque afetam interesses constituídos, seja porque se deparam com hábitos cristalizados, que não podem ser substituídos de um dia para outro.

Mudanças sistêmicas, que mexem com organizações e instituições, com modos de agir, pensar e sentir, não têm como ocorrer de chofre, abruptamente. Tentativas nesse sentido costumam dar errado. Justamente porque são complexas, tais mudanças vêm a conta-gotas: vencem quando são incrementais e economizam rupturas bruscas. São alterações moleculares, muitas vezes microscópicas e silenciosas, que, com o tempo, tendem a se acumular e a metamorfosear o organismo social como um todo.

O incrementalismo persegue a mudança segura, processual, blindada contra retrocessos. É uma perspectiva que valoriza a negociação e o acúmulo de forças, requerendo, por isso, a presença em cena de sujeitos políticos qualificados, dispostos a fazer “sacrifícios” e a se distanciar dos aplausos fáceis das multidões. Qualificados para resgatar a confiança perdida das pessoas, mobilizando-as para que assimilem as pressões mais disruptivas, reúnam-se e produzam consensos É uma perspectiva que requer maiores doses de inteligência política, sofisticação intelectual, paciência, bem como daquilo que os gregos chamavam de phrónesis, prudência. O incrementalismo só é sábio quando se ajusta ao tempo e à “alma” das sociedades, quando encontra um “organismo” que saiba dominar a arte do governo e se ponha na perspectiva de valorização do Estado democrático e republicano, aprofundando os pactos básicos de convivência e a formação de novos alinhamentos políticos e intelectuais.

Olhar para frente

Mas não há somente destroços e derrotas. Há crises por todos os lados, mas também estão postas as condições de possibilidade de um reformismo de esquerda que dignifique a igualdade e a democracia política. Não estamos retrocedendo.

A ambivalência é parte integrante dos processos atuais. Crises são simultaneamente risco e oportunidade. É o que leva Morin a afirmar que a globalização constitui ao mesmo tempo o pior e o melhor da humanidade. O pior decorre de seu ímpeto destrutivo, de sua adesão a um padrão de desenvolvimento desconectado das economias reais, de sua capacidade de produzir catástrofes em cadeia, que atiram comunidades inteiras no abismo da incerteza e da insegurança, ou seja, a possibilidade de autodestruição da humanidade.

Mas a globalização também abre espaços para o melhor da humanidade. “Pela primeira vez na história humana, as condições para que se ultrapasse uma história feita de guerras, na qual as potências de morte foram reforçadas a ponto de permitir agora um suicídio global da humanidade”. Agora, aumentou a interdependência de cada um e de todos, nações, comunidades, indivíduos, no planeta Terra, “multiplicam-se simbioses e misturas culturais em todas as áreas, as diversidades resistem apesar dos processos de homogeneização que tendem a destruí-las”. Ameaças mortais e problemas fundamentais terminam, assim, por criar uma “comunidade de destino para toda a humanidade”. Em suma, a globalização produziu a “infra-textura de uma sociedade-mundo”, a partir da qual podemos “ver a Terra como pátria sem que isso negue as pátrias existentes, mas, pelo contrário, englobando-as e protegendo-as”. (Morin, 2011).

É evidente que a consciência dos perigos ainda é fraca e dispersa, a consciência de uma comunidade de destino permanece deficiente, a própria globalização, com suas ambivalências, impede a formação da sociedade mundial cujas bases ela cria sem cessar. Há contradições de todo tipo, que opõem, por exemplo, as soberanias nacionais e a necessidade de autoridades supranacionais que consigam lidar com os problemas vitais do planeta. Mas a sorte de algum modo está lançada, os espaços estão se abrindo. Do que se necessita é de uma mudança de via, uma metamorfose.

Quando um sistema é incapaz de resolver seus problemas vitais, observa Morin, ou ele se degrada e se desintegra, ou “revela-se capaz de criar um metassistema que o capacite para lidar com os problemas: ele se metamorfoseia”. Regeneram-se assim suas capacidades criadoras. “A noção de metamorfose é mais rica que a de revolução. Preserva sua radicalidade inovadora, mas a vincula à conservação (da vida, das culturas, dos legados do pensamento e da sabedoria da humanidade). Não há como prever suas modalidades e suas formas: toda mudança de escala leva a um surgimento criativo”. O que sabemos é que, para avançar em direção à metamorfose, é necessário mudar de via. “Mas se parece possível inverter certos caminhos, corrigir certos males, ainda assim não é possível frear a invasão técnico-científico-econômico-civilizacional que leva o planeta ao desastre”.

Nada está dado de antemão. Não é simples. É preciso ir além da denúncia e das declarações de intenção. Começar a construir alternativas e formar novas consciências. Reproblematizar, repensar, recomeçar. Conectar o que está disperso e separado. Explorar o que há de “efervescência criativa” pelo mundo. Completar uma metamorfose que já está em curso.

A situação atual está assentada sobre problemas de difícil solução, que são ampliados pela disrupção tecnológica e se projetam no tempo e causam aquela “sensação de desorientação e catástrofe iminente” registrada por Harari (2018). Mas há ferramentas disponíveis, a ciência mostra sua pujança e não é de se descartar que os povos do mundo consigam conter a onda de xenofobia, isolacionismo e desconfiança que hoje varre o sistema internacional. Pelos riscos gravíssimos que produz, a desunião global é uma ameaça que tem como ser compreendida e neutralizada.

Pandemia

É evidente que esse quadro não favorece o reconhecimento do futuro como promessa e possibilidade, nem sequer como desafio ou esperança: ele simplesmente cancela o futuro, apaga-o das conjecturas. O “projeto” passa a ser administrar o presente, torná-lo maleável a ponto de permitir que todos possam continuar a se mover com celeridade para tentar alcançar alguma estabilidade pessoal ou grupal ilusória.

O ano de 2020 acrescentou nova camada à já espessa neblina que distorce a visão do presente e encobre o futuro. Em poucos meses, foi como se os povos do mundo se deparassem com a fragilidade do humano e a insuficiência dos sistemas de proteção social e de cuidados com a saúde.

Parte expressiva disso deveu-se à irrupção catastrófica do coronavírus, que estava nos cálculos mas não era esperada. A humanidade se deparou com um processo de adoecimento e de mortes sequenciais que dramatizou os meandros de seus piores pesadelos, embora estivesse delineado por pesquisadores e estudiosos há tempo. A banalização dos efeitos perversos da vida atual, a dificuldade de aceitar e compreender as transformações estruturais em curso -- o modo do capitalismo se reproduzir na era digital --, ao lado da emergência de “narrativas” anticientíficas impulsionadas por lideranças políticas e intelectuais da nova extrema-direita, fizeram com que uma onda de brutalidade e ignorância se instalasse entre os humanos, comprometendo as respostas coletivas ao Covid-19.

Não foi a primeira pandemia da história recente, como sabemos bem. A gripe espanhola (1920) dizimou em larga escala. Deu-se o mesmo com a AIDS, síndrome que se espalhou a partir de 1985 ativada pelos fluídos do amor e do sangue. Houve as epidemias de Sars (2003) e de Mers (2012), igualmente provocadas por tipos de coronavírus. O surto de ebola foi grave na África.

Em 2020, todos os filmes de horror foram reprisados, as distopias ganharam destaque na imaginação popular, combinadas com doses-extra de incerteza e insegurança, derivadas das circunstâncias em que se passou a viver: o capitalismo digital, a invasão tecnológica, a reestruturação produtiva, a desorganização das classes e grupos sociais, a individualização crescente, as novas formas de emprego, a crise do trabalho, da política, da democracia. Tudo, no fundo, foi sendo articulado de modo a formar um único pacote, que, nos primeiros momentos, não tinha como ser decodificado e traduzido em termos de vida prática. O ano transcorreu na escuridão reflexiva.

As ameaças não se restringem ao vírus, por mais que sua disseminação tenha agravado a situação e exposto as fragilidades globais. A onda autoritária-populista, de base nacionalista, manteve-se em ação, desafiando as democracias instituídas e roubando dos cidadãos parte de um imaginário composto de tolerância, respeito e defesa dos direitos humanos, confiança na ciência, solidariedade e proteção.

A brutalidade gestual, verbal, procedimental, a falta de serenidade e compostura, a grosseria e a arrogância, invadiram os ambientes em geral, indiferentes a classes, grupos, gêneros, religiões e etnias. Os esforços de cooperação internacional e de articulação entre países – como a União Europeia, o Mercosul ou o BRICS – não avançaram, com o Brexit pondo em xeque a principal delas, na Europa. Os partidos democráticos perderam propulsão e muitos cidadãos viraram as costas para a política, numa inflexão “antipolítica” que terminou por convergir com o populismo em expansão. As políticas econômicas (as políticas públicas em geral) entregaram-se a uma ideia de austeridade indiferente à necessidade de reduzir as desigualdades e de prover os serviços de que necessitam as populações. A crise climática completou um quadro de gravidade extraordinária. Incêndios florestais, aquecimento global, águas marítimas em elevação, pessoas desalojadas por enchentes e desastres ecológicos, compõem um cenário de desolação e temor.

A pandemia trouxe mais problemas consigo. Agudizou a crise econômica e, com ela, agravou o desemprego e fez com que mais 130 milhões passassem a viver em extrema pobreza. Se em 2018 a proporção da população mundial vivendo em situação de extrema pobreza (menos de US$ 1,90 por dia) era de 8,6% (cerca de 650 milhões de pessoas), entre 2020 e 2021essa proporção chegará a 8,8%. A projeção foi feita em novembro de 2020 pela Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), cujo secretário- geral, Mukhisa Kituyi, observou: “O vírus se beneficiou das interconexões e fragilidades derivadas da globalização, transformando uma crise sanitária em um choque econômico global que atingiu principalmente os mais vulneráveis”. Ele também destacou: “A covid-19 causou dor e alterou o curso da história, mas pode ser um catalisador para uma mudança necessária”, contribuindo para que se reformem as redes globais de produção e se reinicie a cooperação multilateral.

O fato é que a pandemia produziu impactos generalizados na vida prática, na política e no pensamento. O léxico se modificou, passou a dar destaque a termos que antes frequentavam os ambientes especializados: risco, incerteza, insegurança, instabilidade, turbulência, imprevisibilidade. Evidenciou-se que não há como traduzir o mundo real com abordagens fracionadas e hiperespecializadas, que brotam automaticamente das apostas cegas que a hipermodernidade faz no “prometeísmo da ciência, da razão, do racionalismo, da racionalidade, da racionalização”, fazendo com que a inteligência se afaste das determinações fundamentais e dos esforços de totalização complexa. (Carvalho, 2017: 76-77).

Particularmente nas ciências da sociedade, ganhou impulso a teoria da complexidade, seja na versão mais tradicional (a dialética da totalização), seja na versão de Edgar Morin, que trabalha com novos entendimentos da relação tempo/espaço, refuta a linearidade e valoriza a ambiguidade e a ambivalência, abrindo-se para uma compreensão mais abrangente das tensões entre equilíbrio e desequilíbrio, auto-organização e caos, separação e reunião. Morin também insiste no valor da ciência e na necessidade de que ela se ligue aos saberes vários (mítico-imaginários) fornecidos pelas artes e ao trabalho de cooperação e solidariedade entre os próprios cientistas.

A pandemia não explica tudo, por certo. Mas fornece um excepcional posto de observação para que se compreenda melhor que as dores atuais são múltiplas e estão enraizadas nas estruturas da modernidade, hoje abaladas pela disruptiva revolução tecnológica que impõe uma nova formação social (a sociedade do conhecimento) e implode as diferentes práticas, as ideias, os modelos de organização, o Estado, as empresas, o trabalho, o ensino, a produção de conhecimentos.

A política recebe o impacto de todo esse processo. Mergulha numa crise que afeta os institutos de representação, os partidos e o próprio funcionamento da democracia. Os governos passam a governar menos e com mais dificuldades. A insatisfação social cresce e impulsiona reações variadas, que ajudam a alimentar a contestação e os movimentos de extrema-direita.

Os sinais de alerta têm sido constantes. Eles indicam com clareza que há de se retomar o empenho pela democratização, seja no plano da conduta governamental, seja em termos institucionais mais amplos, seja no plano dos relacionamentos sociais. Mais que isso: será preciso encontrar outro caminho, que consubstancie uma alternativa real ao modo como a humanidade tem vivido a vida. Não há como seguir em frente mediante a clonagem de modelos pré-existentes, o prolongamento de um padrão de desenvolvimento que produz sempre mais subdesenvolvimento, a reverberação de nacionalismos mais patrióticos ou menos, o desprezo pela ciência e pela natureza, a desconsideração de que a experiência humana é una e está radicalmente mundializada. Ou nos projetamos como integrantes de uma comunidade global de destino, ou ficaremos travados, às voltas com problemas que não conseguimos resolver.

Como acentuou Harari, “hoje, a humanidade enfrenta uma crise aguda não apenas por causa do coronavírus, mas também pela falta de confiança entre os seres humanos”. Nos últimos anos, acrescenta, “políticos irresponsáveis solaparam deliberadamente a confiança na ciência, nas instituições e na cooperação internacional. Como resultado, enfrentamos a crise atual sem líderes que possam inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada”. (Harari, 2020).

A saída não está em “desglobalizar” o mundo ou em fechar fronteiras: em vez de segregação, isolacionismo e medo dos “outros”, a solução passa por mais cooperação.

Vida que flui

Isolamento, distanciamento, quarentena. As palavras flutuam, como pluma ao vento, ao gosto. Briga-se por elas. Distanciar? Como assim, num país como o Brasil, em que a distância social já é em si mesmo obscena? Há muros que isolam brasileiros uns dos outros, os pobres e miseráveis separados dos demais.

A diretriz é evitar contatos dispensáveis e aglomerações. Ficar em casa, circular o menos possível. Confinamento, mais que isolamento: hibernação. O vírus proliferou, mesmo assim. Faltaram políticas claras, os sistemas de saúde mostraram deficiências, a população não aceitou as recomendações com facilidade. A surpresa com a agressividade da doença somou-se à surpresa com o aparecimento insidioso de um patógeno invisível que colocou a humanidade de joelhos. A perplexidade foi inevitável: numa era de revolução tecnológica intensiva, de transformações biotecnológicas profundas, como foi possível que os humanos tenham deixado que uma crise em seus ecossistemas se instalasse e ajudasse sobremaneira a facilitar a disseminação de vírus e bactérias que simplesmente não conseguem ser controlados? Como aceitar que o coronavírus avance e mate numa época em que a ciência é fulgurante e os conhecimentos estão disseminados, de braços dados com a “inteligência artificial” e a engenharia genética?

É importante lembrar que houve respostas imediatas. Em pouco tempo, os pesquisadores conseguiram sequenciar o genoma do vírus, criaram testes confiáveis para detectar pessoas infectadas e avançaram na elaboração de vacinas. Os profissionais da saúde se desdobraram para manter ativos os sistemas sanitários. Medicamentos foram testados e aperfeiçoados. Mas o número de mortes e doentes continuou a crescer.

O mundo teve então de se fechar sobre si mesmo: tornar-se menos disponível, ser menos consumido e explorado. A vida digital se sobrepôs à vida presencial e em poucos meses a humanidade ingressou em outra etapa.

Nela, foi preciso descobrir prazeres que estavam diluídos, recuperar filmes antigos, ouvir velhas e novas canções, chorar diante de fotos esmaecidas, tropeçar naqueles livros de que se esquecera, limpar gavetas e estantes. Descartar. Reorganizar. Reviver. Dar-se conta da inutilidade de certas coisas. O uso de notas e moedas. As idas diárias ao mercado, às caixas bancárias eletrônicas ou à farmácia.

Valorizar-se outras tantas. Pensar nas amizades, saber dos amigos. Saudades das praças e ruas, das visitas, dos cafés no bar da esquina, dos almoços em família, das salas de cinema. Curtir filhos e netos de modo não presencial. Amar de longe. Respeitar a ciência e seus pesquisadores. Confiar.

O confinamento acelerou processos que estavam em curso. O mergulho no mundo digital, os encontros virtuais, as calls conference, as aulas a distância, os memes, as conversas telegráficas, o teletrabalho, a velocidade, a profusão de imagens e informações. Tudo isso entrou de vez na corrente sanguínea, passou a plasmar o DNA humano. Será difícil que se volte a viver presencialmente com a mesma intensidade de antes.

A situação levou a uma espécie de introspecção coletiva, na qual se alojaram os “demônios internos” de cada um, os medos e a preocupação existencial. A perplexidade se instalou de forma plena, arrastando consigo paradigmas explicativos, convicções e certezas. A pandemia exacerbou a desconexão existente entre o pensamento crítico e a realidade fática, entre o pessoal e o global.

Por mais que os teóricos da conspiração digam, não há responsáveis pela disseminação do vírus. Não foram os chineses, nem o “globalismo”. Não se trata de “culpa”, mas do efeito colateral do tráfego humano pelo planeta, incessante e crescente desde a saída das cavernas. Decorrência, também, da incúria onipotente, da falta de higiene, da miséria produzida, da exploração desenfreada, da irresponsabilidade, dos deslocamentos desnecessários, da movimentação frenética. Da falta de solidariedade e fraternidade entre povos e pessoas.

Divergências, antagonismos, conflitos e contradições são parte da vida, e são também complementares às tendências de união e associação. Na rota de valorização de ambiguidades e ambivalência, sempre explorada por Morin, há que se “resistir à crueldade de tudo aquilo que é predador”, para com isso defender as “múltiplas solidariedades que são uma característica essencial da vida”. Ganhos consistentes de consciência planetária passam pelo reconhecimento dos paradoxos da mundialização, assim como requerem “o reconhecimento de nossa humanidade comum e o respeito das diferenças”. (Morin, 2019: 21, 40).

Boas doses de idealismo e de altruísmo nos farão bem. Podemos sair da crise em melhores condições. O importante é sobreviver, preservar o sistema de saúde e a capacidade dos hospitais, driblar o fluxo contínuo de informações contraditórias, com seus ecos paranoicos. Manter ativa a perspectiva de que lá fora, no exterior de nossos casulos, pulsa uma vida que ainda não perdemos.

O confinamento está a mostrar a cara feia do mundo, as iniquidades sociais, a ruindade dos governantes, a ausência de bússolas. O egoísmo e a generosidade. Está também a evidenciar que viver é mesmo perigoso e que precisamos nos dedicar a aprender sempre mais, a adquirir sensibilidade e empatia, a pensar no coletivo. Reaprender, quem sabe até mesmo começar de novo.

Há impactos evidentes: questionar tudo, mudar a rota, repensar o desenvolvimento, melhorar a formulação de políticas públicas, produzir consensos. Em particular no mundo da ciência, cresce a percepção de que o avanço depende do trabalho múltiplo e articulado de vários setores da sociedade e do Estado. Cooperação, articulação, coordenação. Entre gestores, pesquisadores, formadores de opinião, jornalistas, cidadãos. A comunicação pública torna-se vital. Dentro e fora de cada sociedade nacional: fortalecer as agências multilaterais, em especial as de perfil técnico, como a OMS, que se tornam estratégicas.

Será preciso pensar, também, no processamento das informações e no debate público. Os temas que estão na agenda são controversos, causam medo, desconfiança e reações irracionais. A desinformação agrava a polarização das opiniões, até porque dificulta a compreensão do que é verdade e do que é mentira. Nesse quadro, somente o diálogo permanente entre os agentes da sociedade pode produzir algum resultado. Toda opinião conta, mas será preciso levar na devida conta as evidências científicas.

O mundo impactado pela epidemia reverbera no movimento democrático. Impõe a ele a revisão de convicções e modos de atuação, a redução da ênfase nas identidades singulares e a valorização do que aproxima. Mais unidade na diversidade, mais diálogo e respeito pelas diferenças. Mais substância, menos adjetivações. Digerir derrotas e ressentimentos políticos, partir para a construção de novos patamares de atuação, fazendo o que não foi feito quando a situação era mais favorável. Em uma palavra: buscar a união e a articulação dos democratas, recurso básico para que se possa administrar a situação corrente e planejar minimamente o futuro. O diálogo e a cooperação serão os principais antídotos contra o acirramento das polarizações e da política do pior.

No horizonte descortina-se uma nova exigência de Estado ativo. O neoliberalismo, que já não vinha muito bem, tenderá a ser alijado do centro do palco. Mais gastos públicos, mais planejamento central, mais coordenação serão inevitáveis, e terão de ser equilibrados com uma economia de mercado que não tem como ser desativada e com uma sociedade que se mostra sempre mais desejosa de liberdade de iniciativa, inclusive no plano do empreendimento econômico. Continuará não havendo empregos para todos, o que exigirá grande flexibilidade em termos de política econômica, de equilíbrio fiscal e de investimentos públicos. Será um ciclo complexo e desafiador.

O núcleo desse ciclo estará preenchido por valores e critérios que devem ser considerados com atenção por ativistas, intelectuais, políticos e governantes. Generosidade, investimentos maciços em políticas públicas de inclusão e proteção social, distribuição de renda, combate firme à desigualdade, defesa dos direitos sociais, valorização da ciência, respeito ao meio ambiente e às mudanças climáticas, crescimento econômico sustentável: tudo isso precisará prevalecer como diretrizes a serem seguidas. A coesão e a pressão dos democratas serão fundamentais para que as coisas caminhem nessa direção.

*Marco Aurélio Nogueira é cientista politico, professor titular da UNESP, tradutor e colaborador do jornal O Estado de São Paulo.

Referências

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