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O Globo: Pressionado por Lula e pandemia, Bolsonaro recorre a militares, policiais e ao Congresso

Auxiliares do Planalto afirmam que a mudança de postura sobre vacina já vinha sendo discutida antes da decisão que deu de volta ao ex-presidente os seus direitos políticos

Daniel Gullino, Julia Lindner e Jussara Soares, O Globo

BRASÍLIA - Pressionado pelo agravamento da pandemia da Covid-19 e pela repercussão da volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jogo político, o presidente Jair Bolsonaro faz movimentos para consolidar grupos que apoiam o governo. Ele forçou alterações na chamada PEC Emergencial para permitir a promoção de servidores, incluindo policiais; adotou a defesa da vacinação em massa, prioridade estabelecida pelos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ao assumirem as casas; e oficializou a demissão de Fabio Wajngarten da Secretaria de Comunicação, que tinha entrado em rota de colisão com militares e com o ministro Fábio Faria. Seu substituto será o almirante Flávio Rocha.

Já de olho em 2022, o presidente confirmou ontem em sua live semanal que abriu conversas para uma volta ao PSL. Como O GLOBO mostrou, Bolsonaro, que também cogitava ingressar e assumir o comando de uma sigla nanica, passou a considerar que precisa de um partido com mais recursos financeiros. O PSL, junto do PT, tem a maior fatia do fundo eleitoral, por serem as maiores bancadas da Câmara.

Auxiliares do Planalto afirmam que a mudança de postura sobre vacina já vinha sendo discutida antes mesmo da decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que deu de volta a Lula os seus direitos políticos, mas reconhecem que uma defesa enfática da imunização é um antídoto ideal para conter o desgaste e diminuir o impacto das críticas da oposição ao enfrentamento da pandemia.

Um integrante do alto escalão do Planalto relatou ao GLOBO que, antes de dar o aval para colocar em prática a “operação vacina”, Bolsonaro recebeu uma avaliação do monitoramento de suas redes sociais que indicavam que os seguidores, neste momento, clamavam mais por vacina do que por emprego. O presidente também passou a reforçar que a nova variante é mais letal e, portanto, concordou a adotar um “meio-termo”, dizendo que o investimento na imunização é o suficiente para manter a economia funcionando.

Com a aprovação da PEC que autoriza a retomada do pagamento do auxílio emergencial, Bolsonaro aposta que sua popularidade crescerá entre eleitores de renda mais baixa e em regiões mais pobres do país, onde historicamente Lula tem melhor desempenho. O esforço para manter a promoção de servidores, incluindo policiais e militares, é outro movimento para evitar uma debandada de sua base de apoio. Bolsonaro minimizou as modificações no texto.

— Estamos olhando on-line a votação da Câmara. Parece que algumas emendas foram acolhidas. Eu fiquei 28 anos dentro da Câmara, sei como funciona lá. Então, nós temos que ter vitórias e, às vezes, a gente não pode ganhar de três a zero, quatro a zero, cinco a zero... Se ganhar de dois a um é uma vitória — declarou Bolsonaro durante encontro virtual da Frente Parlamentar da Micro e Pequena Empresa de 2021.

O presidente oficializou, com publicação no Diário Oficial da União de ontem, a demissão do secretário especial de Comunicação, Fabio Wajngarten. Definida há duas semanas, a troca agrada ao ministro das Comunicações, Fábio Faria, e aos militares que colecionavam atritos com o então secretário, considerado de perfil mais “explosivo”. Wajngarten recusou a oferta de três postos no governo, incluindo o de assessor do Ministério do Meio Ambiente. Antes de sair, o ex-secretário integrou a comitiva que esteve em Israel para firmar acordos para testes do spray nasal contra Covid-19 no Brasil.

A Secom será comandada interinamente pelo secretário de Assuntos Estratégicos, o almirante Flávio Rocha, apontado como um conciliador no governo. A substituição é vista internamente com otimismo para buscar uma comunicação menos conflituosa do que na gestão de Wajngarten. Um ano antes da eleição e com a polarização antecipada com Lula, há um consenso interno que é preciso escolher as brigas e apostar mais na divulgação das ações do Executivo.

Diálogo com o PSL

Em transmissão ao vivo em suas redes sociais, o presidente admitiu que retomou as conversas com o PSL, seu antigo partido, para discutir uma possível filiação até o fim do mês. O chefe do Executivo destacou que só vai decidir após ouvir parte dos integrantes do PSL. Segundo ele, há uma “meia dúzia” de pessoas na legenda com quem ele não quer conversar porque “destruíram todas as pontes” de diálogo:

— E eu quero tomar a decisão depois de ouvir vocês (apoiadores), ou melhor, a grande maioria de vocês, porque tem meia dúzia lá que não dá para conversar, que destruíram todas as pontes ao longo dos últimos anos em causa própria, mas tudo bem. Então, eu espero brevemente decidir essa questão partidária.

Como mostrou O GLOBO, após o ministro Fachin anular as condenações de Lula, o que o tornou elegível em 2022, o presidente retomou negociação para se filiar ao PSL, partido pelo qual disputou o pleito em 2018, mas do qual saiu brigado um ano depois. A avaliação é que a entrada de Lula no páreo tornará mais acirrada a disputa no primeiro turno e, nessas circunstâncias, tempo de televisão e fundo partidário ganham mais relevância.


Vinicius Torres Freire: Maior onda de alta do preço da comida em 18 anos não vai ter refresco tão cedo

Coincidência rara de dólar e commodities em alta pressiona inflação: entenda os motivos

O preço da comida passa pela maior onda de alta em 18 anos no Brasil. Tem sido assim desde o último trimestre do ano passado. Nos 12 meses contados até fevereiro, o custo da comida que se leva para casa aumentou 19,4%.

A carestia dos alimentos pode andar mais devagar neste 2021, com alta de uns 6%. Ainda que seja assim, nos dois anos de epidemia o preço da comida terá subido 25%. O rendimento mediano do trabalho terá crescido nada.

Há uma rara coincidência de preços de commodities em alta com dólar caro. Commodities: petróleo, ferro, cobre, grãos como soja e milho etc. Quando sobem os preços dessas mercadorias que o Brasil vende para o mundo, o dólar fica mais barato, ou costumava ficar —agora, não ficou.

Os motivos dessa situação mais rara são controversos e ficam para outro dia. Importa mais lembrar que a matéria prima de combustíveis e alimentos está em alta forte, multiplicada ainda pelo dólar caro, e a coisa vai continuar assim até meados do ano, na hipótese bem otimista.

Por que as commodities estão em alta? Porque parte da economia mundial se recuperou (China e entorno) ou vai se recuperar (Estados Unidos). Porque também as duas maiores economias do mundo mais lançaram pacotes de estímulos gigantes.

O clima frustrou a produção de alguns grãos e até mesmo de minério de ferro. Os chineses recuperam rebanhos perdidos (porcos perdidos para a peste) ou os alimentam com rações melhores, o que consome mais grãos.

Países seguram estoques de comida na epidemia, seguram exportações, ou facilitam importações. Em tempos de horror sanitário, desemprego e tensão social latente, a ideia é manter os preços da comida baixos o quanto possível.

Há ainda especulação financeira com certas commodities. Com dinheiro sobrando no planeta, taxas de juros a zero no mundo rico e alguma hipótese de inflação, investe-se em commodities a fim de cobrir o risco de alta de preços e de manter alguma rentabilidade.

O petróleo sobe porque os países petroleiros mantêm a produção em nível relativamente baixo e a economia mundial se recupera. A “virada verde” das economias e o uso intensivo de internet eleva o consumo de cobre.

Para quase cada commodity há uma história altista. Neste ano, o Goldman Sachs prevê altas na casa de 20% para energia e metais industriais, em torno de 5% para produtos agrícolas e nada para carnes. No máximo, haveria um refresco na comida, pois: pararia de aumentar muito.

A alta dos preços dos produtos brasileiros de exportação, como se dizia, tende a ser boa coisa, de costume (quando o dólar se valorizava, nesse processo). Nesses tempos de melhoria de “termos de troca”, a renda dos exportadores cresce, claro, e costuma haver alta de investimento em novas construções, máquinas, equipamentos (em capital, pois).

Dada a desordem da epidemia, não sabemos bem o que será do investimento (embora no ano passado a queda tenha sido surpreendentemente pequena). O efeito combinado de matérias primas e dólar em alta, porém, persistirá. A inflação média (IPCA) deve chegar a mais de 7% ao ano lá por junho e julho.

Sim, parte da alta do dólar se deve à desordem e à falta de perspectiva econômicas do Brasil. O grosso da desvalorização do real, porém, tem motivo externo desde o início da epidemia. Não há o que fazer a não ser melhorar emprego e renda, mas não há governo.

Não há sinal de descontrole da inflação, que deve voltar à casa dos 3,9% no final do ano. Mas haverá alta de juros, o que vai dificultar ainda mais o controle da dívida pública.

Comida cara costuma talhar a popularidade de governos no Brasil, o que até agora não ocorreu de modo notável com Jair Bolsonaro, talvez por causa da massa de auxílio emergencial de 2020. Neste ano, não haverá tanto auxílio.


Míriam Leitão: Política dos governadores combate a pandemia e fortalece federação

Uma das raras notícias boas nesse tempo trágico é a união dos governadores. Eles começaram a se organizar em consórcios regionais e depois no Fórum para ocupar o espaço vazio criado pela omissão do governo federal. Nesse momento, a união dos governadores ajuda o país a enfrentar a catástrofe que já ceifou mais de 270 mil vidas, mas para além desse momento, isso ajudará a fortalecer a federação brasileira, dando aos entes federados mais noção do poder que têm. Disso sairá um equilíbrio maior de poder entre os estados e o governo federal. 

Na falta de uma coordenação geral,  a articulação entre os estados é bem-vinda. Governadores têm criado uma rede solidária. Princípio fundamental numa federação. Ao invés de cada um cuidar apenas do seu estado, estão construindo uma rede de ajuda mútua. Além disso, do ponto de vista da gestão criaram formas de que haja circulação rápida de informação entre eles e meios de negociação para a construção de consensos. O consórcio do Nordeste criou seu próprio comitê científico, e o Fórum de governadores fez manifestações importantes e está se articulando no Congresso para suprir as inúmeras e criminosas falhas do governo central.

Na democracia, é importante que nos momentos de emergência haja construção de consensos entre as autoridades passando por cima de suas diferenças partidárias ou regionais. E as autoridades dos estados federados vêm se comportando muito bem, exceto alguns. No Rio, infelizmente, o governador Cláudio Castro não assinou a carta e disse em resposta ao governador João Doria "da população do Rio cuido eu". Ele não está cuidando quando se desconecta do grupo de governadores e não adota as medidas necessárias para proteger a população.

O governador do Piauí, Wellington Dias, presidente do consórcio do Nordeste,  disse que a ideia é tentar adquirir vacinas de uma forma conjunta e transferir para o Programa Nacional de Vacinação. Isso é para evitar que sejam beneficiados apenas os estados mais ricos e que têm verba para compra da vacina. Dias tem sido o excelente porta-voz do grupo, por ser firme no principal - o alerta sobre os riscos da pandemia - mas evita conflitos desnecessários.

Tenho conversado com vários governadores e é interessante ver como eles têm negociado entre eles, aparando arestas, trabalhando pelos pontos em comum, mesmo quando há divergências. E eles não querem atuar contra o governo federal, pelo contrário, querem ser eficientes como gestores públicos na defesa da vida. Não é um movimento contra o governo, mas pela saúde dos brasileiros.


Pedro Doria: Pela democracia, relação de Lula com a imprensa precisa ser diferente

Ataques à imprensa, como se tornaram praxe no governo Lula, hoje ganham outra dimensão

Foi num discurso com a verve que lhe é única, com o carisma que nenhum outro hoje tem, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se colocou de volta na cena política brasileira. Ele não o disse com clareza, mas fez discurso de candidato ao Planalto. Só que o Brasil de 2021, assim como o de 22, não é mais aquele que ele deixou ao descer a rampa do Palácio há dez anos. Neste Brasil de hoje, desinformação é o que nutre a máquina que ameaça a democracia. A ação responsável de qualquer líder político terá de ser diferente do que noutros tempos.

Quando Lula era presidente, o PT tinha uma máquina na internet imbatível por qualquer outro grupo político. Uma cadeia de sites e blogs, alguns feitos por jornalistas ligados ao partido, outros por militantes, trabalhava um dia após o outro para oferecer uma versão governista dos fatos. O noticiário, as análises, as entrevistas, tudo funcionava como contraponto àquilo que a imprensa independente produzia. Com todos os atritos que geraram no tempo, tinham uma atuação muito distinta da máquina de desinformação bolsonarista. Havia transparência: autores assinavam textos com seus nomes e os debates provocados eram feitos à luz do dia.

Não é que o PT nunca tenha lançado mão de desinformação. Claro que lançou, e poucos exemplos são mais claros — e desleais — do que a campanha contra a candidata do PSB em 2014, Marina Silva. A propaganda petista na TV a acusava de dar controle da economia aos banqueiros por tornar independente do Banco Central. Nas imagens, o resultado era comida sumindo do prato das pessoas, como se a fome fosse voltar por esta decisão.

O jogo eleitoral nunca foi plenamente limpo, Fernando Collor atuou contra o próprio Lula de forma ainda mais desleal, em 1989, e visto de hoje parece até ingênuo criticar qualquer grupo político por suas práticas do passado. Perante um governo como o de Jair Bolsonaro, que opera na mentira o tempo todo, que distorce informações por praxe corriqueira, todas as outras forças políticas brasileiras jogam com muito mais elegância.

Mas é por isso mesmo que o PT não pode mais atuar como atuou no passado. É preciso um pacto do PT, do PDT, do PSDB, de todas as legendas de defesa da confiança na informação. Do ambiente de informação. Da garantia da coerência e integridade da informação que chega aos brasileiros. Foi o que Lula fez em seu discurso, por exemplo, ao dar ênfase às mensagens a respeito da pandemia. Em prol da vacina, do isolamento, do álcool gel.

Isto quer dizer também que não dá mais para infantilizar críticas à imprensa. Questionar uma reportagem, discutir um número, reclamar de uma informação imprecisa, tudo é do jogo. Mas há instituições cujo trabalho é colocar informação perante a sociedade numa democracia. A academia é uma delas. ONGs. Institutos. Também a imprensa — diariamente. Ataques sistemáticos à instituição imprensa, como se tornaram praxe no governo Lula após a explosão dos escândalos de corrupção, hoje ganham outra dimensão.

Hoje alimentam o monstro da desinformação.

Quando políticos atacam a imprensa é sempre porque não gostam do que leem. Mas esta relação, numa democracia, só é mesmo saudável quando tensa. O jornalismo não está a serviço de quem está no poder, sua função não é agradar e militantes vão sempre se queixar. É assim, não deixará de ser assim.

Este, porém, é um momento em que parte da população vive uma realidade paralela. O pacto democrático necessário é o de preservar a maioria que ainda vive no mundo real. Os adversários de Jair Bolsonaro têm esta responsabilidade. Não com a imprensa — ou academia, ou ONGs —, mas com a democracia.  


Ruy Castro: Bolsonaro prestes a espumar

Quando isso acontecer é porque só lhe restará ser enjaulado

Alguns comentaristas acreditam que, em toda sua carreira, Jair Bolsonaro "viveu do confronto" e que, agora, com Lula à solta, ganhou uma saída para disfarçar o caráter criminoso de seu governo. Ouso discordar. Até dois dias atrás, o imbrochável Bolsonaro nunca soube o que era debater com alguém. Em seus 30 anos como um dos deputados mais medíocres da história, limitou-se a eventuais trocas de insultos e cusparadas com adversários imaginários. Ele próprio era tão desimportante, até para seus pares, que seus ganidos mal chegavam ao noticiário.

Como candidato à Presidência, a facada em Juiz de Fora permitiu-lhe escapar dos debates, o que escondeu sua personalidade demente e inaptidão administrativa e seu potencial de risco para as instituições. Enquanto os adversários se destruíam entre si, elegeu-se sem ser posto à prova. Daí, no trono, não conseguir disfarçar sua incapacidade de debater e dialogar, instrumentos comuns aos que já descemos da árvore.

No Planalto, Bolsonaro só usou até hoje os microfones para escoicear e mentir. Só pode falar em palanques preparados, onde cada palavra sua provoca um coro de kkks cacarejados pelos apoiadores e o estimula a mandar as pessoas enfiarem coisas no rabo. Esse é o seu nível e dos seus. E perguntas de repórteres são respondidas com um grosseiro "Página virada!", "Assunto encerrado!" ou "Acabou a entrevista!". Grosseiro, mas conveniente —Bolsonaro não responde porque não sabe responder.

A claque imediata também lhe serve de escudo. Por maiores as barbaridades, os bovinos de terno e de farda que o cercam babam e justificam tudo o que ele fala. Bolsonaro nunca teve um opositor de verdade.

Agora tem. E, na esteira de Lula, é preciso que outros saiam do torpor e também o contestem com fatos, números e argumentos. Quando Bolsonaro começar a espumar pelo canto da boca é porque só lhe restará ser enjaulado.


Alon Feuerwerker: Batalha tucana morro acima

O PSDB tem dificuldades para voltar a liderar o seu campo político

Não é frequente eleições presidenciais no Brasil trazerem surpresas. De 1994 a 2014, deu a lógica, pelo menos sobre quem iria ao segundo turno, ou ganharia no primeiro. Foram as duas décadas da polaridade PT/PSDB. Tempos nos quais os apelos “contra a polarização” tiveram pouca acolhida no debate público e na opinião pública. No máximo, viam-se ensaios de “terceira via”, que as circunstâncias invariavelmente acabavam deixando na poeira.

O que mudou em 2018? Jair Bolsonaro desalojou o PSDB da hegemonia no bloco que vai do centro à direita. É interessante notar que a Lava-Jato acabou tendo para os tucanos um efeito mais destrutivo que para os petistas. Varrido do cenário nacional pouco mais de dois anos atrás, o PSDB luta agora para retomar o posto de líder de seu campo, não sem razoável dificuldade. Uma batalha morro acima.

Os tucanos mantêm alguma expressão pelo Brasil em nível estadual, mas, à exceção de São Paulo, não dá para dizer que o partido tenha capilaridade hegemônica em nenhum outro estado. Um lugar onde mostrava algo parecido com isso era Minas Gerais, mas ali razões históricas conhecidas fazem hoje o PSD de Gilberto Kassab ser o candidato mais forte a ocupar a vaga de eventual partido hegemônico — inclusive com a participação de ex-peessedebistas.

“Em 2018, Bolsonaro tirou dos sociais-democratas a hegemonia no bloco que ia do centro à direita”

Situações de crise trazem oportunidades, diz o batido bordão, e o governador João Doria luta com todas as forças para ser o comandante da ofensiva de reconquista tucana. Teve a ousadia de sair na frente nas vacinas contra a Covid-19 e espera colher os frutos no próximo ano. Os fatos dirão. Um problema para Doria? É provável que daqui a um ano e meio, na hora da eleição, as “vacinas federais” já sejam em bem mais quantidade que a “de São Paulo”.

Doria tem um histórico de respeitáveis arrancadas eleitorais. Aconteceu quando concorria à prefeitura da capital paulista e, depois, ao governo estadual. É um argumento que ele tem usado ao ser confrontado com seus baixos índices atuais de intenção de voto. Há precedentes também na eleição presidencial. Fernando Henrique Cardoso em 1994, Dilma Rousseff em 2010 e Jair Bolsonaro, em 2018, partiram de trás — ainda que não tanto quanto o governador hoje.

Há, porém, uma diferença essencial entre os cenários enfrentados por Doria nas corridas de 2016 e 2018 e a disputa pela sucessão presidencial de 2022. O desafio ali era ocupar um espaço em larga medida desocupado. Nem para a prefeitura nem para o governo estadual, Doria teve de lutar em seu bloco com um Jair Bolsonaro. Os oponentes a ultrapassar eram Celso Russomanno e a incógnita entre Paulo Skaf e Márcio França.

Logo no começo do mandato de agora, Doria escolheu abrir, mais cedo do que recomenda a sabedoria convencional, a refrega com o atual presidente. Talvez tenha sido apenas por estilo, ou vai ver o governador avaliou que Bolsonaro se enfraqueceria rapidamente. A favor de Doria está o fato de as arremetidas anteriores dele terem dado certo. Contra, a também certeza de que enfrentar um presidente na cadeira costuma pedir mais frieza quando ainda falta muito tempo para a eleição.

Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729


Rogério Baptistini: A vítima é a democracia de 1988

As evidências da perseguição política movida contra o ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava-Jato ganham volume.  A instrumentalização do Direito como ferramenta de disputa política e arma de guerra contra os inimigos já não pode ser ignorada. A partir da chamada “República de Curitiba”, práticas de lawfare desestabilizaram o sistema político, confundiram a opinião pública e produziram resultados eleitorais.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em que pese o uso das leis e dos procedimentos legais como instrumentos de uma batalha política, os petistas não estão na condição de vítimas inocentes de um golpe contra a democracia (2016), nem de vítimas dos eleitores (2018). O PT contribuiu fortemente para o estado de coisas que transformou o magistrado em justiceiro e os políticos em bandidos.

O discurso de deslegitimação da política e dos políticos, no Brasil, é obra da UDN e foi repetido à exaustão contra Getúlio Vargas e os seus herdeiros, levando às duas mortes do getulismo, em 1954 e 1964. No regime de 1946, os udenistas não fizeram outra coisa senão denunciar, quando derrotados, o sistema eleitoral e o governo de turno, sempre a partir de uma posição moralista.  Na Nova República, o PT fez disso a sua profissão de fé.

Em 1985, durante a transição democrática, o PT boicotou o colégio eleitoral que encerrou o ciclo dos presidentes militares. Não bastasse, expulsou três deputados que votaram em Tancredo Neves contra o candidato da ditadura. No ano seguinte, a candidatura ao governo de São Paulo foi apresentada sob a alegação de ser “diferente de tudo o que está aí”, ou seja, dos partidos e dos políticos que costuraram a transição e estavam conduzindo o processo de redemocratização. Na mesma década, em 1988, após ter elegido Lula como o deputado constituinte mais bem votado do país, o partido votou contra a aprovação da Carta Constitucional, assinando somente depois fora do Plenário. O período se conclui com o insulto ao Congresso, que seria composto “por picaretas com anel de doutor”.

Ulysses Guimarães promulga a Constituição Federal de 1988.

Em uma sociedade com uma democracia jovem, em construção, a pedagogia petista radicalizou a mística populista, cuja lógica é o binarismo: povo contra elite perversa. A inclusão do terceiro, do herói, completou a explicação e conferiu sentido ao desprezo pela política como produtora de consensos progressivos. A aposta na narrativa da “esperança contra o medo”, do nós contra eles, fez sentido estratégico com os mandatos presidenciais consecutivos, mas produziu consequências desastrosas para a cultura pública.

Como o Brasil moderno é uma sociedade complexa e o PT opera no sistema político formal, uma vez no poder não pôde entregar o céu na terra. A própria alteração discursiva tardia e eleitoreira, voltada para acalmar o mercado – a Carta aos Brasileiros (2002) – foi um reconhecimento dessa verdade, referendada pelo mensalão do primeiro governo Lula e pela captura do Centrão. No lugar da política, que sempre demonizou, o partido optou pela compra e submissão dos adversários, ao custo do aparelhamento e do loteamento do Estado. Em sua viagem redonda, como afirmou Luiz Werneck Vianna, o diferente se encontrou com o velho patrimonialismo político.

A partir do primeiro grande escândalo, da queda de Zé Dirceu e de outras lideranças históricas, Lula e os petistas operaram de negação em negação, tornaram-se mais do mesmo. A cidadania traída entregou-se a um juiz e a um grupo de procuradores obscuros. O engodo destroçou o sistema partidário e vitimou a democracia de 1988, obra da política e do possível.


Benito Salomão: Desafio brasileiro

Dados recentes da PNAD-IBGE mostram que o país iniciou a década de 2021 – 30 com uma dura realidade, em 2020 cerca de 13,5 milhões de pessoas foram vítimas do desemprego, outras 5,5 milhões de desalento, os dados mostram ainda um total de 31,2 milhões de trabalhadores estão subocupados e 33,5 milhões seguem na informalidade. Estes números dão pistas acerca da quantidade de pessoas que no curtíssimo prazo demandam algum tipo de socorro do Tesouro Nacional, que por sua vez viu sua Dívida Pública Bruta crescer em janeiro para 89,7% do PIB.

Conciliar uma situação de legítima pressão por mais gastos públicos na forma de políticas sociais e transferências diretas de renda, com um alto endividamento público é o maior desafio brasileiro de curto prazo. O país, que segue sem Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2021, têm um déficit primário previsto na Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) de R$247 bilhões, estimado omitindo novas parcelas do auxílio emergencial. É evidente que novas parcelas do socorro vão dilatar em muito o déficit previsto para 2021 e a dívida pública no curto prazo. O governo promete atenuar esta expansão fiscal com privatizações como Eletrobrás e Correios. Este é um outro problema, considerar a agenda de privatizações com um olhar puramente fiscal, não garantindo que, por exemplo, as condições de investimento no setor de energia elétrica possam resolver um gargalo histórico da economia brasileira com diversificação da matriz e ampliação da oferta.

Mas, privatizações à parte, voltemos aos vulneráveis, o Brasil está planejando uma nova rodada do auxílio emergencial. Na minha opinião, atrasado! Pois já se sabia em novembro de 2020 que uma segunda onda do Coronavírus seria inevitável e que as condições de recuperação da economia brasileira seriam, novamente, postergadas. O governo mais uma vez cruzou os braços e apostou em uma solução via mercado. Como de praxe, alimentou o incêndio para em seguida tentar apaga-lo quando parte do estrago já está em curso, o auxílio é prometido para março, mas nada impede que seja disponibilizado apenas em abril. Até lá centenas de pessoas já terão morrido de fome, de COVID-19, ou de qualquer outro efeito colateral típica deste contexto.

O governo se perde buscando vincular o auxílio a medidas que ainda não estão prontas para serem votadas como as PEC emergencial e reforma administrativa. Flerta com imposto novo, ao invés de fazer o óbvio, pagar o auxílio de forma célere, vinculando a medidas profiláticas contra a doença como uso de máscaras, distanciamento social e acomodar o choque fiscal no curto prazo na elevação da dívida pública. Embora alta, três características suportam um aumento do endividamento no curto prazo: 1° as dívidas públicas de todos os países importantes estão crescendo, portanto, a posição relativa do Brasil no mundo, não tende a se alterar tanto. 2° um crescimento da dívida de curto prazo não tende a ser um problema muito grave se houver coordenação e liderança no processo, capaz de sinalizar que no longo prazo, ela será estabilizada. Para isto, normas como o Teto de Gastos devem ser preservadas e novas medidas de fortalecimento da austeridade devem ser prensadas. 3° No momento de proposição do auxílio, por 4 ou 6 meses, o governo deve apresentar um plano para o day after.

Tudo indica que no curto prazo o comportamento de agregados como desemprego, desalento e subemprego devem continuar elevados e, talvez, em trajetória crescente. Neste sentido, o governo deve ter um plano de recuperação do investimento e do emprego para o pós auxílio. Se o governo se compromete, por vias de reformas em várias frentes, com uma agenda de sustentação do investimento e do emprego, isto será entendido pelos financiadores da dívida pública que o auxílio emergencial será substituído no longo prazo no orçamento destas famílias por salários advindos de trabalho com carteira assinada.

Diante disso, o impacto fiscal seria limitado ao curto prazo e, no longo prazo, a solvência do Estado brasileiro estaria garantida, seja porque as regras fiscais que hoje garantem uma trajetória sustentável do país seriam mantidas, ou ainda, seja porque com estímulos ao investimento e ao emprego, a retomada do crescimento pode estabilizar a relação dívida/PIB. Mas para tanto, será necessário coordenação, planejamento, liderança e credibilidade, tudo que não se viu até agora.

*Benito Salomão é doutorando em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia e Vencedor do Prêmio Brasil de Economia 2020.


Daniel Aarão Reis: O bolsonarismo - Uma concepção autoritária em formação

A eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República do Brasil, em novembro de 2018, surpreendeu e criou um estado de perplexidade e desorientação sobretudo no campo das esquerdas, mas também entre forças de centro e das direitas democráticas.

O presente artigo tenta contribuir para a compreensão do fenômeno, articulando-se nas seguintes seções: (1) Contexto internacional da ascensão das extremas-direitas; (2) A ascensão da extrema-direita no Brasil; (3) O caráter da extrema-direita brasileira; (4) A construção de alternativas democráticas.

A análise é de Daniel Aarão Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 09-03-2021.

Eis o artigo.

O contexto internacional da ascensão das extremas-direitas [i]

O crescimento das forças políticas de extrema-direita e de diversos tipos de regimes autoritários é uma tendência mundial desde fins do século XX e inícios do presente século.

No cerne do processo encontra-se o que se convencionou chamar de revolução digital ou informática que tem mudado radicalmente os padrões civilizatórios da humanidade. À semelhança da chamada revolução fordista que, na virada dos séculos XIX/XX, transformou em profundidade as sociedades humanas, a civilização da informação, produto da atual revolução, tem igualmente produzido efeitos sociais, políticos, culturais e econômicos desestabilizadores.

No quadro da nova revolução, destacam-se alguns aspectos na economia e na sociedade: a aceleração, desde os anos 1970, das desigualdades sociais e econômicas (T. Piketti, 2014); a partir dos anos 1980, a consolidação da hegemonia do capital financeiro, com ênfase para os capitais especulativos e os paraísos fiscais libertados de anteriores legislações restritivas; o enfraquecimento das regulamentações que regiam os movimentos internos e internacionais de capitais e mercadorias; a privatização de setores econômicos e serviços públicos, mesmo dos que eram até então considerados estratégicos aos interesses nacionais; a fragilização correspondente da capacidade de intervenção e controle dos Estados Nacionais; desde os anos 1990, o surgimento de novos setores/atividades dinâmicos, como, entre outros, a informática, a biotecnologia, a robótica, a inteligência artificial, de alto nível de monopolização ou oligopolização, com impactos radicais na área das comunicações (internet, mídias sociais, etc.); a realocação internacional da produção industrial mundial e o declínio acelerado do peso demográfico das classes operárias nos países capitalistas mais poderosos; a desarticulação e a precarização dos mercados de trabalho (uberização) e das instituições sindicais tradicionais; o surgimento de novos polos de desenvolvimento (Índia, China) e de megamercados regionais, alterando o equilíbrio instaurado no pós-Segunda Guerra Mundial.

Os regimes de democracia representativa têm sido incapazes de lidar com os desafios decorrentes destas mutações. As instituições políticas e jurídicas perdem credibilidade ao não atender às demandas sociais. Entre os jovens e as classes populares acentua-se o desinteresse em relação aos processos eleitorais e a desconfiança em relação a um sistema político criticado como ineficaz, corrupto e desmoralizado (S. Levitsky e D. Ziblatt, 2018 e D. Runciman, 2018). Trata-se de um processo em curso desde os anos 1960/1970, quando passaram a emergir como protagonistas das lutas políticas, movimentos sociais que não se deixam enquadrar pelos jogos institucionais ou/e eleitorais (D. Aarão Reis, 2018).

Os regimes de democracia representativa têm sido incapazes de lidar com os desafios decorrentes destas mutações - Daniel Aarão Reis Tweet

Instaurou-se uma “sociedade da insegurança” (N. Fraser, 2007). Os que perdem posições ou não conseguem mantê-las, as grandes massas de assalariados ou dos que vivem do próprio trabalho, sentem-se amedrontados. As referências culturais que pareciam sólidas desmancham no ar. Ações terroristas, desde 2001 (T. Ash, 2011); crises econômicas e catástrofes naturais acentuam uma atmosfera de incertezas e angústia.

As forças e os partidos políticos reformistas, democráticos ou socialistas não têm conseguido apresentar propostas que sejam capazes de reformar as estruturas políticas e econômicas, diminuir as desigualdades sociais ou/e questionar a hegemonia do grande capital financeiro [ii]. Encolhidos nas fronteiras nacionais perdem capacidade de enfrentar fenômenos que se desdobram globalmente e não conseguem controlar ou atenuar os efeitos destrutivos da revolução em curso.

Têm sido assim identificados, com ou sem razão, como sócios de regimes incapazes de defender as grandes maiorias, o que se tornou particularmente evidente no enfrentamento da crise econômica de 2008, quando o custo de superação de seus efeitos desabou nas costas dos trabalhadores assalariados (A. Przeworski, 2019).

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista [iii], quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita [iv].

O fenômeno Donald Trump nos Estados Unidos, o crescimento das forças de extrema-direita na Europa Ocidental (ItáliaFrança e Inglaterra) e Central (Hungria e Polônia), na Ásia (Índia e Filipinas) e na América Latina (ChileColômbia e Brasil) atestam a existência do processo. Uma de suas principais particularidades é que tais forças não se confrontam abertamente com as instituições democráticas, mas as instrumentalizam, corroendo-as por dentro, desfigurando-as. Combinam eficazmente o recurso à opinião pública e o uso intenso das chamadas mídias sociais no quadro de opções nacionalistas, antidemocráticas e conservadoras do ponto de vista social e religioso [v].

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista, quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita
Daniel Aarão Reis

A ascensão da extrema-direita no Brasil

A vitória de Jair Bolsonaro insere-se neste quadro internacional. É a expressão brasileira destas tendências.

Para compreendê-la, uma vez contextualizada no plano internacional, proponho a articulação de três temporalidades: na longa duração, o estudo das tradições autoritárias de direita no país; na média duração, a deterioração do sistema político entre a promulgação da Constituição de 1988 e as eleições de 2018; na curta duração, a incidência da campanha eleitoral e seus efeitos.

As tradições autoritárias de direita: a longa duração

São densas as tradições autoritárias de direita no Brasil. Entre outras, destacam-se o racismo; as desigualdades sociais; o patrimonialismo e o mandonismo; a exploração sistemática do anticomunismo; a discriminação de gênero e os regimes democráticos fechados e elitistas.

Examinemos cada um destes aspectos.

As relações escravistas, antes de serem tardiamente abolidas, disseminaram-se por toda a sociedade (escravismo doméstico ou de proximidade), gerando desprezo pelo trabalho manual e relações hierárquicas. O processo peculiar de miscigenação, apresentado como antídoto à discriminação racial, apenas disfarçou formas onipresentes de racismo, evidenciadas, entre outros índices, nas desigualdades de emprego, de renda e de educação; no uso e abuso da violência policial; na população carcerária. Um racismo estrutural. E estruturado [vi].

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista, quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita
Daniel Aarão Reis

As desigualdades de toda a ordem não foram atenuadas pelo progresso econômico, registrado entre 1930 e 1980. Mesmo as políticas de redução da pobreza, quando formuladas e aplicadas (2002-2010), reproduziram padrões brutais de desigualdades regionais e sociais, configurando amplas maiorias numa condição de cidadania de segunda classe, cujos direitos, embora proclamados em leis e mesmo na constituição, não se concretizam, a não ser muito parcialmente, na prática social.

patrimonialismo e o mandonismo, fundamentos da Ordem agrária, ancorados longe no passado colonial, conservaram grande força. Em artigo recente, o antropólogo Roberto Da Matta referiu-se “ao colonialismo autoritário e burocrático, radicalmente católico e anti-igualitário”, combinado a “laços de puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro”. [vii] O processo de urbanização não dissolveu sua força e incidência, nem a República, proclamada em 1889, foi capaz de neutralizar seus efeitos. O acesso limitado à plena cidadania – apesar do que dizem os textos legais – reproduz a preeminência das relações pessoais em detrimento de códigos legais impessoais.

discriminação de gênero persiste, evidenciada em altos índices de violência doméstica e de estupros [viii]. Os avanços no sentido da emancipação da mulher são muito recentes, datando dos anos 1970, salvo o direito de voto, assegurado desde 1934. As desigualdades profissionais e de renda, o limitado acesso aos níveis mais altos de prestígio social e de remuneração, a criminalização da interrupção voluntária da gravidez atestam a subordinação violenta da “segunda metade do céu”.

anticomunismo tem uma longa história no país. Esteve presente nos anos que assistiram à irrupção da revolução soviética. Seria retomado com imensa ênfase depois da insurreição revolucionária liderada pelos comunistas, ocorrida em novembro de 1935, servindo, um pouco mais tarde, como principal pretexto para o golpe de 1937, que instaurou a ditadura do Estado Novo, entre 1937-1945.

Nestas condições, as instituições democráticas não poderiam mesmo se consolidar. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada dos direitos civis, políticos e sociais - Daniel Aarão Reis Tweet

Como um espectro, condicionaria a sociedade brasileira nos anos 1950 e, em especial, na conjuntura que precedeu o golpe civil-militar de 1964, quando, mais uma vez, seria uma bandeira central para a unificação das forças golpistas, permanecendo vivo ao longo da ditadura, até 1979. Durante todos estes anos, mobilizadas pela Igreja Católica, as forças conservadoras – e, às vezes, até mesmo partidos de esquerda – acionariam permanentemente o comunismo como um espantalho, um perigo imediato, ameaçador, pondo em perigo as instituições e a própria vigência da “civilização cristã” no país [ix].

Nestas condições, as instituições democráticas não poderiam mesmo se consolidar. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada dos direitos civis, políticos e sociais, os principais saltos econômicos registrados sob dominação de regimes ditatoriais (1937/1945 e 1964/1979), tudo disso deixou marcas profundas nas tendências políticas de direita e de esquerda. O reconhecimento de amplos direitos data apenas dos últimos anos do século XX (Constituição de 1988), mas muitos dispositivos legais existem apenas no papel.

A combinação destes aspectos na longa duração estruturou uma sociedade marcada pelas desigualdades, hierarquia, violência, intolerância e discriminações (L. Schwarcz, 2019 e H.Starling, 2019).

Sem embargo, foi notável como amplos círculos – políticos e intelectuais – tenderam a subestimar a força destas tradições e a considerar a democracia brasileira como “consolidada”. Um caso típico de cegueira política e histórica.

Nunca foi tão urgente como hoje superar este equívoco.

Vários historiadores, desde os primeiros anos deste século, têm chamado atenção para as “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, (ressalvado o papel fundamental desta última), mas contaram, sob hegemonia do grande capital financeiro, com apoios transversais em todos os níveis da sociedade. Efetivamente, em torno dos dois regimes ditatoriais que se impuseram no país no século XX (1937-1945; 1964-1979 [x]), foi possível construir não raro um consenso social significativo, o que oferece subsídios para a compreensão da instauração quase pacífica de ambos e dos processos também pacíficos de sua superação. Importantes pesquisas têm demonstrado a adequação desta interpretação[xi].

Considerar as tradições autoritárias para compreender a atual ascensão da extrema-direita não deve conduzir, porém, à sua absolutização [xii]. Apesar destas tradições, maiorias expressivas elegeram à presidência da república o sociólogo de centro-esquerda Fernando Henrique Cardoso (1994/2002), o líder operário, Luiz Inácio Lula da Silva (2002/2010) e Dilma Rousseff (2010/2016), ex-militante da luta contra a ditadura. Em outras palavras: as tradições autoritárias condicionam opções, mas não as determinam automaticamente. Como gostava de dizer o intelectual israelense, Amoz Oz: “o passado nos pertence, não pertencemos ao passado”. As tradições, embora poderosas, não podem expulsar a política da história. A longa duração não exclui a avaliação da média e da curta duração. Cumpre agora analisar estas últimas.

As “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, mas contaram, sob hegemonia do grande capital financeiro, com apoios transversais em todos os níveis da sociedade
Daniel Aarão Reis

A média duração: a grande conjuntura 1988/2018

Tornou-se comum denominar o período que se inaugurou com a aprovação da Constituição de 1988 como “nova república” [xiii]. Segundo os adeptos da denominação, ela teria entrado em crise com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e sido definitivamente enterrada com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 [xiv] (A. Alonso, 2019 e E. Solano, 2019).

Aceite-se ou não a periodização, o fato é que a grande conjuntura entre 1988 e 2018 oferece uma plataforma interessante para avaliar as circunstâncias e as opções que levaram à perda radical do prestígio de um sistema político que parecia tão promissor em fins do século XX. Trata-se de uma reflexão importante, eis que a vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro está intimamente vinculada à desmoralização do sistema político atual.

Entre outros aspectos, o que marca a trajetória da nova república, do ponto de vista político, ressalvados os anos presididos por Collor de Mello [xv] é a preeminência da polarização entre o Partido da Social-Democracia Brasileira/PSDB e o Partido dos Trabalhadores/PT [xvi]. Os dois partidos encarnaram as aspirações reformistas no sentido da construção de uma sociedade democrática e menos desigual.

A visibilidade, o prestígio e o poder adquiridos por eles corresponderam a políticas de defesa dos interesses das grandes maiorias. Entre muitas outras, o controle da inflação, empreendido nos anos de governo do PSDB e as políticas de distribuição de renda e as chamadas afirmativas contra o racismo, implantadas nos anos de governo do PT, em particular nos mandatos de Lula (2002/2010). Tiveram impacto positivo na redução dos índices de pobreza, mas não alteraram o padrão das desigualdades sociais que se mantiveram ou até se ampliaram. Entretanto, o ímpeto reformista dos dois partidos foi se arrefecendo, configurando-se, em ambos os casos, um “reformismo mole” (A. Singer, 2012).

Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras do século XX (D. Aarão Reis, 2019ª). O inventário das cicatrizes deixadas pela ditadura deixou de ser feito, com evidente prejuízo para a consciência cidadã [xvii].

Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras
Daniel Aarão Reis

Ao perderem as eleições para o PT, em 2002, o PSDB e seu líder, Fernando Henrique Cardoso, já registravam um considerável desgaste. Alianças consideradas sem princípios com partidos e grupos notoriamente conservadores e corruptos haviam corroído sua aura reformista e inovadora. Nada, no entanto, que ameaçasse sua posição de polo insubstituível nas lutas políticas institucionais.

Quanto ao PT, já no primeiro governo de Lula, escândalos de corrupção e principalmente o abandono de propostas reformistas mais consistentes começaram a abalar o prestígio e a colocar em dúvida os compromissos políticos do partido e do presidente. Entretanto, as dúvidas pareceram superadas com a reeleição de Lula (2006), e ao longo do segundo mandato (2006/2010), quando o país viveu momentos de intensa euforia social e política, o que se confirmaria com a eleição de Dilma Rousseff (2010). A nova república parecia segura e não poucos celebravam a consolidação da democracia no Brasil, chancelada internacionalmente com a aprovação do país como sede da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas de Verão (2016).

A partir de 2010, no entanto, começaram a se fazer sentir os impactos da grande crise econômica mundial de 2008, muito subestimados e por isso mesmo mal atenuados ou controlados. Num quadro de agravamento das contradições, demandas sociais explodiram em vários níveis: por emprego; por serviços públicos de qualidade; por políticas de combate à corrupção, cuja existência tornou-se assunto nacional a partir de sucessivos escândalos envolvendo empresários e políticos; por políticas positivas em relação à segurança que, nas cidades, se tornava uma questão maior para todas as classes sociais.

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas.

Entretanto, face a este conjunto de desafios, PT e PSDB mostraram-se incapazes de oferecer propostas construtivas e credíveis. Enredados em suas querelas e jogos de poder, perdida sua vocação reformista original, era como se estivessem distanciados da sociedade, sem nexos com os problemas que atormentavam as pessoas comuns. Começou a brotar a ideia de que o sistema político já não funcionava a contento. Falido? Alguns começavam a dizer que estava podre.

Foi numa atmosfera de exasperação de contradições, condições propícias para a emergência de lideranças salvacionistas, outsiders supostos ou reais, que se abriu o ano eleitoral de 2018[xviii]. Ainda não estavam, porém, dadas todas as condições que ensejariam a vitória de Jair Bolsonaro.

Elas aconteceram na campanha eleitoral, na curta duração. Daí porque ser tão importante analisar esta temporalidade. Em caso contrário, como já se disse, a política seria expulsa da história.

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas
Daniel Aarão Reis

A campanha eleitoral de 2018: a curta duração

A análise da campanha eleitoral, na temporalidade da curta duração, é indispensável para a compreensão da ascensão da extrema-direita ao governo pelo voto.

Em pesquisas realizadas em 22 de agosto, menos de dois meses antes do primeiro turno, Bolsonaro ainda se mantinha em 22% das intenções de voto, e poucos acreditavam que fosse capaz de alcançar patamares muito mais altos. Daí a quase três semanas, em 10 de setembro, ele ganhara apenas mais 2 pontos, chegando a 24% das intenções de voto [xix]. Em outras palavras, apesar das tradições autoritárias e do desgaste do sistema político, não havia ainda certeza, muito pelo contrário, a respeito do sucesso da candidatura salvacionista de extrema-direita.

Que circunstâncias e opções conduziram à sua vitória?

De um lado, as esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais. Além disso, o PT recusou-se a avaliar a onda de fundo antipetista que permeava a sociedade, muito forte entre as classes médias, mas alcançando também camadas populares. Descartou assim a hipótese de apoiar um candidato de outro partido. E manteve durante longo e precioso tempo, em movimento suicida, a (anti) candidatura de Lula, ilegal na medida que ele fora condenado em segunda instância pela Justiça [xx].

Quando o partido, finalmente, resolveu apoiar formalmente a candidatura do ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, o fez com ressalvas, apresentando-o como se fosse um peão de Lula. Tolhido pelos erros e inconsequências do PT e de Lula que sempre se recusaram a produzir qualquer tipo de autocrítica, Haddad não conseguiu apresentar propostas para neutralizar ou conter a corrupção em larga escala e a insegurança nas grandes cidades, dois grandes temas da campanha eleitoral, explorados de forma tosca, mas eficaz, pelo candidato de extrema-direita. Entre os dois turnos, Haddad recuperou terreno, cultivou personalidade própria, formulando propostas objetivas e convincentes, mas já não houve tempo político para reverter os resultados desfavoráveis.

Quanto ao PSDB, naufragada com a candidatura de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo e um dos líderes mais importantes do partido. Montando poderosa frente partidária, dispondo de vultosos recursos financeiros, agrupou muitas forças de centro e das direitas democráticas. Imaginava-se que a disputa tenderia a ser, mais uma vez, entre ele e o candidato do PT [xxi]. No entanto, em amplos contingentes do eleitorado, prevaleceu a percepção de que, para derrotar o PTBolsonaro reunia melhores condições do que Alckmin. Houve, assim, nas três últimas semanas da campanha, um trânsito maciço de votos para o candidato da extrema-direita, garantindo sua vitória.

As esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais
Daniel Aarão Reis

O vitorioso não se beneficiou apenas dos erros adversários. A partir de suas bases mais radicais, nas forças armadas e policiais [xxii], soube construir alianças surpreendentes e diversificadas. Escolheu como seu ministro da economia um empresário vinculado à especulação financeira que lhe abriu as portas para uma aliança com os capitais financeiros. No campo da economia também estruturou apoios entre os empresários ligados à exportação de produtos agrícolas, o chamado agronegócio, e com garimpeiros e madeireiros comprometidos com a devastação das florestas e com a abertura de fronteiras agrícolas.

Definindo o juiz Sergio Moro como ministro da Justiça, ganhou a confiança de todos os que consideravam a corrupção e a segurança grandes problemas nacionais [xxiii]. Explorando uma pauta conservadora do ponto de vista dos costumes, teceu laços com as igrejas evangélicas, com crescente força no país [xxiv]. Tais alianças seriam potencializadas pelas bancadas parlamentares ruralistas, armamentistas e religiosas, ditas BBB (do boi, da bala e da bíblia), conformando apoios eficazes na campanha eleitoral.

Restaria ainda mencionar duas importantes referências: o atentado sofrido por Bolsonaro, em 6 de setembro de 2018, que lhe permitiu afastar-se dos debates onde suas performances o desfavoreciam [xxv] e a organização e intensa exploração de uma sofisticada rede de comunicações, acionando de modo profissional as chamadas mídias sociais, seja para divulgar propaganda positiva, seja para disseminar falsas informações (fakenews).

Combinaram-se, assim, como sempre, erros (dos adversários) e acertos que beneficiaram o candidato vitorioso.

A elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias de direita na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral, na curta duração [xxvi].

Cumpre agora discutir melhor o caráter desta vitória e do governo liderado por Jair Bolsonaro desde 1° de janeiro de 2019.

A elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias de direita na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral
Daniel Aarão Reis

O caráter da extrema-direita brasileira

A vitória de Jair Bolsonaro, como já referido, suscitou um clima de grande perplexidade. Como é usual, as primeiras explicações e interpretações procuraram no passado paralelos ou fontes para entender o fenômeno.

Alguns afirmaram que o Brasil teria voltado aos anos 1960 e estaria na iminência de um golpe de estado, como em 1964. Outros preferiram ver semelhanças com a conjuntura que levou à promulgação do Ato Institucional n° 5, editado em dezembro de 1968, que radicalizou a ditadura então existente [xxvii]. Numa incursão a um passado mais distante, foram invocadas as experiências do movimento integralista brasileiro nos anos 1930, da ditadura do Estado Novo e, num plano mais geral, formularam-se associações – controvertidas – com o fascismo italiano e mesmo com o nazismo alemão, como se verá adiante.

Tais interpretações merecem discussão. Entretanto, como estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita no Brasil constitui um movimento original e ainda com perfil não consolidado, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação.

estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita no Brasil constitui um movimento original e ainda com perfil não consolidado, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação - Daniel Aarão Reis Tweet

Conforme esboçado na análise da campanha eleitoral a vitória de Jair Bolsonaro deveu-se à articulação de uma frente heterogênea que pode ser apresentada em forma de círculos, hierarquizáveis de acordo com a fidelidade a Bolsonaro.

Um primeiro círculo – núcleo forte e bastião do pensamento da extrema-direita – é constituído pelos oficiais das forças armadas, em particular do exército, mais os oficiais e suboficiais das Polícias Militares, da ativa e da reserva [xxviii]. Jair Bolsonaro, através de longa carreira parlamentar, projetou-se não apenas como representante dos interesses corporativos destas gentes, mas também como um dos únicos políticos, e com grande audácia, a resgatar em chave positiva a experiência da ditadura, inclusive seus métodos violentos de torturar e matar adversários.

A pauta da defesa dos costumes conservadores é outra importante referência a fidelizar estas bases a Bolsonaro, pois, em comum, cultivam o conceito de guerra cultural ou guerra híbrida, a ser travada contra os agentes – instituições e partidos – acusados de promover a destruição das tradições, da moral estabelecida, dos bons costumes e das tradições políticas e éticas da nação. Ingredientes importantes nesta perspectiva são as críticas ao globalismo, ao enfraquecimento dos estados e culturas nacionais, e aos novos métodos – encobertos e camuflados – através dos quais operariam novas e velhas esquerdas em sua luta permanente pelo controle da sociedade e do poder. Tais referências não podem ser nem exclusivamente nem principalmente atribuídas a Olavo de Carvalho, cujas manifestações caricaturais não deveriam servir para encobrir núcleos de formulação mais consistentes, que elaboram tais ideias há muitos anos no interior das, e protegidos por estruturas institucionais das forças armadas.

Foi no interior do estado maior do Exército que se formou uma equipe, ainda nos anos 1980, devidamente autorizada pelo ministro da arma, general Leonidas Gonçalves, que formulou volumoso livro, com um resgate da ditadura em chave positiva, enfatizando-se o papel dos militares como tutores da república e as sucessivas ameaças empreendidas pelas esquerdas no sentido da dissolução da nacionalidade brasileira. O texto, intitulado Orvil (anagrama de livro) só foi publicado mais tarde (L. Maciel e J. C. do Nascimento, 2012), mas se constituiu, desde então, numa referência para a extrema-direita militar e civil.[xxix].

Um segundo círculo, não menos importante, é constituído por setores populares de classe média, alguns com afinidades profissionais (pequenos empreendedores, caminhoneiros, taxistas, etc.), articulados pelas novas mídias sociais (whatsappfacebooktwitteryoutubeblogs, etc.), financiadas, em grande parte, por empresários bolsonaristas. Os valores compartilhados de extrema-direita compreendem, entre outros, o recurso à violência para matar criminosos comuns, o conservadorismo social, o ódio às lutas identitárias, etc.

Têm sido importantes nas ações de ruas e na intimidação de adversários, mas seus níveis internos de organização ainda são precários. Neste segundo círculo também poderiam ser incluídos as milícias. Constituídas por ex-integrantes das polícias militares, além de criminosos comuns, elas vêm ganhando força ao longo do atual século em algumas grandes cidades. Disputam espaço com facções de criminosos comuns no controle de atividades ilegais e semilegais e extorquem comunidades de diversos tipos, periféricas às grandes cidades, vendendo proteção em troca de segurança. A despeito de sua autonomia enquanto organizações criminosas, aparecem como um potencial e temível braço armado, eventualmente disponível para aterrorizar e matar adversários [xxx].

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro[xxxi]. Destaca-se também aí a pauta dos costumes. De modo geral, os evangélicos acreditam nos valores do trabalho, do ascetismo, do esforço próprio, da ajuda mútua e abominam as lutas identitárias, o consumo de drogas e a revolução comportamental que é um aspecto das transformações civilizacionais em curso. Apoiadas em crescente adesão social, fortes bancadas parlamentares (a bancada da Bíblia) e poderosos meios de comunicação, tornaram-se uma respeitável força política no país.

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro
Daniel Aarão Reis

Mas seria um equívoco imaginar que seriam dóceis aliados, pois há contradições entre os valores cultivados pelos evangélicos e determinados aspectos do credo bolsonarista, como o recurso à violência (bandido bom é bandido morto), a conciliação consequente com as milícias, rejeitada, e a liberação dos jogos de azar, que eles execram.

Num quarto círculo, encontram-se vastos setores das classes médias afluentes (profissionais liberais, assalariados de padrão mais alto, etc.), principalmente no sul e sudeste do país. Desorganizadas, unificaram-se em torno de Bolsonaro menos pelo compartilhamento de valores ideológicos e mais pela luta contra a corrupção e o antipetismo. A nomeação do Juiz Sergio Moro para o cargo de Ministro da Justiça consagrou a adesão destas camadas sociais a Bolsonaro, mas sua recente demissão, em 24 de abril passado, e suas denúncias contra a conciliação de Bolsonaro com a corrupção, abalaram a confiança destas bases [xxxii].

Num quinto círculo, finalmente, encontram-se setores importantes das classes dominantes brasileiras, do capital financeiro internacionalizado ao agronegócio, cujas propostas costumam ser veiculadas pelos grandes meios de comunicação. Eles não têm voto, mas têm recursos que condicionam votações. Num primeiro momento, viam com desconfiança a extrema-direita, preferindo um candidato de centro ou de centro-direita para derrotar o petismo. Neste sentido, apostaram suas fichas no PSDB e em seu candidato, Geraldo Alckmin.

À vista do fracasso deste último, porém, migraram em massa para a candidatura Bolsonaro, na expectativa de controlar e domesticar seu extremismo. A escolha de Paulo Guedes como ministro das finanças, um homem comprometido com programas e reformas ultraliberais, contribuiu para que se viabilizasse o apoio destas gentes.

Para encerrar, cumpre enfatizar o potencial de apoio social do qual dispõe Bolsonaro em camadas populares, o que, em parte, é assegurado pelo trabalho de base dos evangélicos, notoriamente ramificados, de forma capilar, nas comunidades mais pobres do país. Sua capacidade de comunicação, auxiliada por um trabalho profissional nas mídias sociais, só perde para a de Lula. Gestual e palavras obscenas, que chocam as camadas de elite e letradas do país, são, muitas vezes, encaradas como expressões de coragem e autenticidade, qualidades escassas entre os políticos profissionais. Não esquecer as expressivas votações de Bolsonaro nos grandes centros urbanos e nas capitais dos Estados. Mesmo na região Nordeste, que permaneceu majoritariamente fiel ao PT e a LulaBolsonaro venceu em grandes cidades consideradas de larga tradição de esquerda, como Recife, capital de Pernambuco.

A multiplicidade e a pluralidade das bases de apoio que garantiram a vitória da extrema-direita evidenciam seu caráter profundamente heterogêneo. Recorde-se que a vitória de Bolsonaro não foi uma surpresa apenas para seus adversários, mas também para ele e seus fiéis apoiadores.

Uma frente política constituída de forma apressada, sem propostas claras para uma série de problemas fundamentais do país (educação, saúde, transportes públicos, segurança etc.), apoiada em ideias simplistas, salvadoras, que ignoravam – e ignoram – a complexidade das questões com as quais teria que lidar caso o candidato fosse sufragado. A improvisação evidencia-se no troca-troca de ministros, tendo já sido substituídos doze deles em apenas um ano e meio de governo, além de dezenas de substituições em escalões secundários, mas importantes [xxxiii].

a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com a experiência do fascismo - Daniel Aarão Reis Tweet

Apesar de declarações altissonantes – e de bravatas em série –, que marcaram uma primeira fase do Governo, até junho de 2020, o governo e a extrema-direita não foram capazes de gestar até o momento uma doutrina coerente. Suas formulações encontrar-se-iam num estado gasoso, se a metáfora for permitida, o que dá conta das improvisações e acochambrações diversas, mal encobertas por uma estridente e poderosa propaganda. Trata-se de uma força política cujas concepções ainda estão em formação, como uma nebulosa, daí as dificuldades em conceituá-la, embora sejam bastante claros – e perigosos – seus propósitos autoritários e antidemocráticos.

Tais propósitos têm raízes autoritárias no passado brasileiro. Entretanto, a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com a experiência do fascismo.

De um lado, as conjunturas internacionais que ensejaram as ditaduras e o fascismo histórico (e o integralismo) têm características qualitativamente diferentes das atuais. As ditaduras exprimiam alianças de classe bem definidas e projetos claros de modernização autoritária. Não é o caso da atual extrema-direita[xxxiv].

Quanto ao integralismo e ao fascismo, caberia uma análise mais complexa [xxxv].

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identificá-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracterizou-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população. Acionava um nacionalismo exacerbado, militar, violento e expansionista e voltado para a construção de um projeto de renovação da sociedade, típico das direitas revolucionárias. Ora, este conjunto de características e de referências não se encontra no bolsonarismo [xxxvi].

Do ponto de vista do debate a respeito da adequação e eficácia políticas do emprego do termo, preferimos empreendê-lo no próximo item, destinado ao estudo das alternativas disponíveis para lidar com a extrema-direita.

A democracia face à extrema-direita. Desafios & Alternativas

A análise do bolsonarismo tornou-se mais complexa em virtude de acontecimentos que se têm desdobrado a partir de junho de 2020.

Até então o governo manteve uma retórica beligerante, apoiando grupos extremistas que se destacavam por uma retórica de enfrentamento e que demandavam abertamente, às vezes com a presença e o estímulo do próprio presidente, o fechamento das instituições da democracia representativa, ou seja, um golpe de estado na tradição latino-americana dos anos 1960/1970.

Com o crescimento das tensões, associadas à crise gerada pela pandemia do vírus covid-19, extremamente mal gerenciada por Bolsonaro, à demissão do ministro da Justiça em abril de 2020, e a vários escândalos de corrupção, envolvendo fiéis aliados e até os próprios filhos de Bolsonaro, o governo sofreu profundo desgaste. Tendo sido sufragado por 57,8 milhões de votos (55,13% dos votos válidos), os índices de confiança caíram bastante, conforme flagrado por pesquisas realizadas em maio e junho de 2020, situando-se em torno de 30% [xxxvii].

Houve, a partir de então, notável e surpreendente reviravolta.

Bolsonaro abandonou à própria sorte os grupos extremistas que se isolaram e enfrentam hoje complicados processos na Justiça. Suspendeu igualmente a habitual retórica estridente, com aspectos paranoicos, e se dedicou, com sucesso, a formar ampla base política com diversos partidos minados por múltiplas acusações de envolvimento com a corrupção. No mesmo movimento, definiu um padrão de relações estáveis e amigáveis com lideranças do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, até então quotidianamente hostilizadas [xxxviii].

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identificá-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracterizou-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população
Daniel Aarão Reis

Bafejado pelo impacto positivo do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso, mas que tem sido atribuído ao presidente pelos beneficiários, e apesar do desgaste entre os que votaram nele pensando na luta contra a corrupção, Bolsonaro voltou a conhecer substancial crescimento nos índices de aprovação popular segundo pesquisas realizadas em setembro último [xxxix].

As opiniões e análises se dividem agora a propósito dos rumos do bolsonarismo e do governo de Jair Bolsonaro. Estaríamos assistindo a um recuo episódico, “tático”, ou se trataria de definição de novos rumos? O presidente estaria receoso de que os processos contra seus filhos pudessem alcançar um ponto de não-retorno? Atingindo-o através de um processo de impeachment, de duvidosos resultados? O que teria feito Bolsonaro desistir das bravatas e ameaças sem fim? Os altos mandos das Forças Armadas teriam desaconselhado aventuras militaristas e ditatoriais? O presidente teria concluído que, entre as próprias classes dominantes, não haveria espaço, pelo menos nas circunstâncias atuais, para surtos autoritários? Teria sido ele, afinal, domesticado no quadro dos parâmetros institucionais? Outra incógnita, maior, completa o quadro de dúvidas: as orientações ortodoxamente neoliberais, lideradas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, seriam mantidas a todo o custo ou prevaleceriam inclinações por políticas nacional-estatistas, conferindo ao Estado um protagonismo decisivo na recuperação da economia?

O futuro do governo permanece indeciso. A cruzada contra a corrupção, depois da demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, em abril passado, deixou de ser uma prioridade, para dizer o menos. A proposta neoliberal de reorganização da economia encontra-se também em questão. O ministro da Economia, Paulo Guedes, paladino desta perspectiva, apesar de seus esforços, não conseguiu ainda esvaziar as tendências nacional-estatistas defendidas por vários ministros [xl]. Grande parte da mídia, partidária das medidas e políticas neoliberais, hesita em acreditar na solidez da posição do ministro da Economia e não está certa de que ele se sairá vencedor nos embates contra os nacional-estatistas incrustados no governo.

As campanhas com vistas às eleições municipais, considerando-se a excepcionalidade da pandemia, vêm transcorrendo normalmente, promovendo-se uma carta “naturalização” do governo Bolsonaro. Quanto aos erros clamorosos cometidos pelo presidente ao lidar com a pandemia, o cansaço que toma conta de amplos setores da população, devido aos rigores da pandemia, tende a neutralizar, ao menos em parte, o desgaste sofrido nos primeiros meses pelos propósitos negacionistas do presidente.

Neste quadro, as forças de esquerda, de forma geral, permanecem sem propostas claras e sem capacidade de intervenção e mobilização. As referências a um possível impeachment, por improvável, esfumaram-se. É como se no palco político, em vez de duas forças, estivessem se confrontando duas fraquezas. A extrema-direita não tem capacidade – ainda não – de derrotar o Congresso e o Judiciário ou ameaçar, pelo menos no curto prazo, as instituições democráticas. Mas estas instituições também não conseguem remover Bolsonaro.

Como entrever e propor alternativas?

Entre os que observam a cena política brasileira, há um consenso de que a maioria de votos obtidos por Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018 deveu-se muito mais ao antipetismo do que propriamente ao entusiasmo suscitado pelas propostas e características do candidato vitorioso.

Votando ou se articulando em torno de Bolsonaro, muitos ficaram na expectativa que, depois da vitória, houvesse uma rápida domesticação do presidente. Uma expectativa não realizada, mesmo depois da reviravolta acima mencionada. Se é verdade que as provocações e bravatas diminuíram de intensidade, são poucos os que imaginam que ele teria abandonado propostas e perspectivas autoritárias. Em vez de um golpe frontal, não se pode descartar, dependendo das circunstâncias, a hipótese de uma estratégia de desgaste progressivo das margens democráticas, uma corrosão por dentro as instituições, mantendo-as, no limite, como se fossem cascas desprovidas de conteúdo, num estilo semelhante ao empreendido por V. Orbán na Hungria [xli].

O fato é que, uma vez ameaçadas, as forças políticas de centro e de direita democráticas, hegemônicas no Parlamento e no Poder Judiciário, reagiram, marcando limites às pretensões ditatoriais de Bolsonaro. As tendências e os métodos chavistas, de enfraquecimento progressivo das instituições democráticas, atribuídos pelas direitas ao PT e a Lula, estariam sendo, na prática, adotados por Bolsonaro [xlii]. Em protesto, manifestos de intelectuais, juristas e profissionais liberais, publicados pela imprensa, afirmavam-se na defesa das instituições democráticas. Panelaços contra Bolsonaro, em várias cidades, evidenciavam um crescimento da insatisfação.

Reitera-se o equilíbrio de forças: entre a extrema-direita, liderada por Bolsonaro e a direita/centro democráticos, representados por líderes parlamentares e ministros do Supremo Tribunal federal. Nenhum lado mostra-se capaz de derrotar o outro.

A ameaça à democracia representada pela extrema-direita continua real. É verdade que o presidente perdeu bases nas classes médias que votaram nele imaginando-o como um campeão na luta contra a corrupção. Entretanto, o avanço registrado em amplos setores sociais em virtude o auxílio emergencial concedido pode inspirar aventuras autoritárias com apoio popular, o que não seria inédito na história do Brasil [xliii].

Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas
Daniel Aarão Reis

Se o governo mantiver a orientação neoliberal, prometida durante a campanha eleitoral, será muito difícil ampliar ou manter substancial apoio popular. Já uma inflexão no sentido de uma política nacional-estatista, combinando-se com políticas assistencialistas, criariam condições mais favoráveis ao apoio de camadas populares [xliv].

O dado novo é que as esquerdas democráticas começam a sair do torpor que as caracterizou desde a derrota eleitoral de 2018. Entre elas cabe distinguir as ações empreendidas pelas esquerdas de Estado e pelas esquerdas sociais.

A conceituação tem sido defendida por Carlos Vainer, professor vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/IPPUR/UFRJ). As esquerdas de Estado seriam representadas pelos partidos políticos ou outras associações que disputam espaços institucionais, e ritmam seus movimentos de acordo com os calendários eleitorais. Já as esquerdas sociais seriam constituídas por lideranças que operam no tecido social, articulando e organizando movimentos que se desdobram na base da sociedade.

A experiência dos governos petistas evidenciou que não há uma “muralha da China” entre estes dois tipos de esquerda: muitos representantes de movimentos sociais importantes foram aspirados por órgãos ou conselhos consultivos, abandonando ou deixando em plano secundário a militância social. Até mesmo um movimento social tradicional, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST, deixou-se cooptar, em certa medida pelos acenos e promessas dos governos petistas.

Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas, na medida em que as primeiras – as esquerdas de Estado – têm sido aspiradas pelas alturas institucionais das lutas políticas, afastando-se claramente das dinâmicas, aspirações e movimentos que se desdobram nas bases da sociedade, onde atuam as esquerdas sociais [xlv].

As esquerdas de Estado não parecem sensíveis a um processo autocrítico. Continuam ruminando críticas e ressentimentos relativos ao passado de derrotas recentes. No seu conjunto, nas eleições municipais de novembro de 2020, perderam uma boa chance de aparecerem unidas, com uma proposta alternativa ao autoritarismo bolsonarista, politizando as escolhas locais. Ao contrário, dividiram-se e foram a reboque da dinâmica localista dos pleitos municipais.

Contribuíram assim, involuntariamente, para “naturalizar” o bolsonarismo e a desarmar a sociedade para eventuais surtos autoritários. De seu lado, o Presidente, salvo exceções, fez uma escolha de se manter “neutro” em relação a candidaturas às prefeituras das cidades brasileiras. Entretanto, nas cidades onde manifestou apoio, seus candidatos não aparecem como favoritos, evidenciando-se que a “onda bolsonarista” de 2018 encontra dificuldades em se repetir. Reproduz-se, na conjuntura eleitoral, o “empate” de fraquezas acima referido.

Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência. Nas ruas, apesar dos interditos impostos pela pandemia, promoveram manifestações, disputando os espaços públicos com os grupos de extrema-direita. Nas mídias sociais, fervilham ações de diferentes tipos– debates, palestras, lives. Intelectuais e artistas formulam plataformas comuns, assinam manifestos e se pronunciam em defesa da democracia [xlvi]. É bastante provável que, desaparecidos ou atenuados os efeitos da pandemia, brotem importantes movimentos sociais, dando vazão a demandas por melhores condições vida, serviços públicos decentes, renda básica para todos, diminuição das desigualdades sociais etc.

Trata-se de garantir as margens democráticas existentes, reunindo em torno delas, sem exclusões, todos os que estiverem dispostos a lutar por sua preservação. A ideia de concretizar este movimento em torno de uma plataforma antifascista pode ser problemática. Para além da já referida inconsistência teórica, é de se perguntar se as amplas maiorias saberão sequer o que significa o termo fascismo. Por outro lado, e mais importante, uma frente popular democrática deveria se evidenciar como alternativa – positiva e construtiva – e não apenas se formar na base do anti, eis que tais frentes – negativas – tendem a perder o essencial: de que democracia se está falando, que democracia é preciso construir [xlvii].

Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência
Daniel Aarão Reis

Entretanto, é preciso ir além de defender apenas as margens democráticas existentes – restritas e limitadas. Neste sentido, cabe às esquerdas democráticas – de Estado e sociais – se reinventarem e se reaproximarem: a prioridade é investir na ativação dos movimentos de rua, recuperando musculatura no tecido social, reconstruindo forças de que já dispuseram, mas as perderam, e sem as quais não conseguirão retornar ao proscênio, hoje ocupado pela extrema-direita e pelas direitas e centro democráticos.

Num plano mais geral, as esquerdas democráticas precisam formular um programa de democratização da democracia, uma condição indispensável para que as gentes tornem a se interessar – e a proteger, no limite, a se dispor a salvar – o regime democrático ameaçado.

Um conjunto complexo de desafios. Que sejam capazes de suscitar, como sugeriu S. Zizek, a coragem da desesperança [xlviii]. Deste tipo de coragem é que dependerá a sorte da democracia no Brasil. [xlix]

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Notas:

[i] Para o debate sobre a díade direita-esquerda e suas manifestações extremas, cf. N. Bobbio, 1995 e K. Soper, 1999.

[ii] O mesmo aconteceu com os estados socialistas autoritários que, ou se desagregaram (área soviética) ou fizeram opções pela associação com capitais internacionais, reiterando-se como estados despóticos, onde não existem a livre expressão do pensamento e qualquer tipo de organização autônoma das classes populares (China, Vietnã, Cuba e Coréia do Norte).

[iii] Muitos preferem chamá-la de populismo de direita (S. Torney, 2019).

[iv] Observe-se que as propostas autoritárias de direita e as alternativas socialistas despóticas retroalimentam-se à custa das instituições democráticas.

[v] Lideranças políticas e estudiosos têm caracterizado este processo como de ressurgência do fascismo. O debate sobre a questão será desenvolvido no ítem 3 deste artigo.

[vi] Para o racismo estrutural no Brasil, em seus vários aspectos, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020.

[vii] Cf. Roberto DaMatta, crônica publicada em O Globo, 10 de junho de 2020, p. 3.

[viii] Para a cartografia dos estupros no Brasil, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020. Para violência doméstica, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020

[ix] Cf. Rodrigo Patto Sá Motta, 2002.

[x] Entre 1937 e 1945, a ditadura do Estado Novo, liderada por G. Vargas; entre 1964 e 1979, a ditadura civil-militar, presidida por cinco sucessivos generais.

[xi] Entre outros, mencionaria Daniel Aarão Reis, Rodrigo Patto Sá Motta e Marcelo Ridenti, 2014; Rodrigo Patto Sá Motta, 2002 e 2014; Denise Rollemberg, 2008, 2010, 2010a; Lucia Grinberg, 2009; Janaína Cordeiro, 2015; Gustavo Ferreira, 2015; Tatyana Maia, 2012; Paulo Cesar Gomes, 2019; Lívia Magalhães, 2014.

[xii] Nos anos 1970, tornou-se comum analisar as ditaduras latino-americanas como expressão imediata das tradições ibéricas. O conceito enfraqueceu-se com os processos de democratização que se realizaram na…península ibérica, (J. Linz e A. Stepan, 1978 e J. Linz, 2000).

[xiii] Na aspiração por tempos melhores, os brasileiros tendem a usar – e a abusar do – o adjetivo novo para designar mudanças que superariam mazelas do passado. A chamada nova república evidencia a reiteração do recurso, embora em sua estrutura e dinâmica fossem visíveis as marcas do velho,de continuação com o passado.

[xiv] Na interpretação de petistas, de lulistas e de outros agrupamentos de esquerda, o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe de estado parlamentar, camuflado, efetuado por dentro das próprias instituições democráticas. Curioso é que estas forças, desde 1988, recorreram diversas vezes ao impeachment, sem que o mecanismo, essencialmente autoritário, lhes parecesse questionável.

[xv] Nas primeiras eleições diretas para a presidência república, em 1989, foi vencedor, no segundo turno, Fernando Collor de Mello, representante de forças conservadoras que almejavam políticas neoliberais. Seu governo, porém, foi curto (1990-1992), tendo sido apeado do poder por um processo de impeachment apoiado em ampla frente social e política.

[xvi] O PT foi fundado em 10 de fevereiro de 1980, na esteira de grandes movimentos sociais; e o PSDB surgiu no âmbito dos trabalhos de elaboração da nova Constituição, em 25 de junho de 1988.

[xvii] A Comissão Nacional da Verdade, organizada em 18 de novembro de 2011, mais de trinta anos depois do fim da ditadura, até realizou um trabalho positivo, mas não conseguiu alterar o quadro de silêncio social sobre os crimes e legados da ditadura.

[xviii] A esperança em salvadores da pátria tem larga tradição no país. Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Fernando Collor, o próprio Lula, cada um a seu modo, todos se inscreveram neste registro de alternativas salvadoras a um sistema execrado.

[xix] Cf. disponível aqui. Consultado em 24 de junho de 2020. As eleições presidenciais realizaram-se em dois turnos: 7 e 28 de outubro de 2018.

[xx] A Lei n° 135, de 5 de maio de 2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, proíbe a candidatura de políticos condenados em segunda instância. A ironia é que foi promulgada pelo próprio Lula, quando no exercício de seu segundo mandato.

[xxi] Desde 1994, em seis sucessivas eleições presidenciais, os dois candidatos mais votados foram apresentados pelo PSDB e pelo PT.

[xxii] Desde 1992, em sete mandatos sucessivos, Jair Bolsonaro elegeu-se à Câmara de Deputados, defendendo interesses corporativistas das forças armadas e policiais e enfatizando o resgate positivo do regime ditatorial.

[xxiii] O juiz projetou-se como campeão nacional da defesa da moralidade. em virtude de seu protagonismo nos processos que desvendaram casos espetaculares de corrupção e acabaram levando à cadeia, entre muitos outros, o próprio ex-presidente Lula.

[xxiv] O censo nacional, realizado em 2000, apurou a existência de 26,2 milhões de pessoas que se autodeclaravam evangélicas, equivalentes a 15,4% da população. Em 2010, o número saltou para 42,3 milhões, 22% da população. O IBGE calculou então que existiriam 14 mil igrejas evangélicas. Consultado em aqui

[xxv] Bolsonaro teve participação pífia nos debates anteriores ao atentado, que o salvou de novos encontros, preservando-o de inevitáveis desgastes.

[xxvi] Para uma análise da presença das direitas políticas no Brasil, cf. André Kaysel e alii, 2015. Para uma interpretação da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, cf. Jairo Nicolau, 2020.

[xxvii] Os diplomas legais emitidos no quadro do estado de exceção instaurado em 1964 foram nomeados pelos próprios autores como atos institucionais ou atos complementares. Foram 17 atos institucionais e 104 atos complementares. O mais drástico e violento foi o AI-5.

[xxviii] Não seria razoável afirmar que todos os referidos oficiais sejam partidários de Bolsonaro, mas é inegável que, no seu conjunto, eles constituem importante base de sustentação do atual presidente.

[xxix]Para as bases militares de extrema-direita, cf. Bolsonaro e o mundo armado no Brasil. Debate entre Luiz Eduardo Soares e Piero Lerner: Disponível aqui. Para as concepções de guerra cultural, cf. J.C. de C. Rocha, 2020.

[xxx] O assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL-RJ, perpetrado em 14 de março de 2018, foi obra de milicianos. Observe-se que, em algumas regiões, as milícias aliam-se ao tráfico, distribuindo seus “negócios”segundo interesses comuns. Para a força crescente das milícias e articulação com o tráfico cf. disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xxxi] Entre elas, destacam-se mesmo algumas lideranças que estão no campo das esquerdas. Por outro lado, o voto evangélico pode evoluir segundo as conjunturas, não sendo os fiéis meros carneiros nas mãos de seus pastores. Cf. B.A. Cowan, 2014. Tem crescido a literatura a respeito dos evangélicos, na proporção da importância dos mesmos na sociedade e na política do país. Cf., entre outros, citados pelo autor referido: S. Baptista, 2009 e M.N. Cunha, 2007.

[xxxii] O prestígio de Sergio Moro e dos procuradores de Curitiba foram gravemente atingidos com as revelações da Intercept, que revelou incontáveis tratativas e procedimentos ilegais e imorais empreendidos por eles. Cf. disponível aqui, consultado em 22/10/2020.

[xxxiii] Cf. Um governo de alta rotatividade. Alto escalão tem uma troca a cada três dias. In O Globo, 27 de agosto de 2020, p. 10.

[xxxiv] Considere-se que muitas forças políticas caracterizaram a ditadura instaurada em 1964, e também o Estado Novo, como fascistas. Foi mais um recurso de luta política do que um conceito adequado. Com o tempo, tais denominações perderam vigência.

[xxxv] Para o movimento integralista, cf. H. Trindade, 1979 e L. Gonçalves, 2018. A presença de núcleos nostálgicos do fascismo e do nazismo no interior da reação nacionalista de extrema-direita em várias partes do mundo tem levado muitos a apresentar este fenômeno novo e específico como uma ressurgência do fascismo/nazismo dos anos 1930. Foi o que tendeu a acontecer também no Brasil, em particular após o ascenso fulminante da extrema-direita. Para a especificidade do fascismo, que dispõe de abundante bibliografia,cf. Emilio Gentile, 2005, sobretudo a II Parte (pp. 169-375) e Robert Paxton, 2007, em particular os capítulos 7 e 8 (pp 283-361). Para uma síntese da especificidade do fascismo, segundo Paxton, cf. pp 358-361. Cf. ainda os estudos clássicos de Renzo Felice, 1977; e ZeevSternhell, 1994. Para o corporativismo estatal, doutrina inspiradora do Estado Novo cf. Antonio Costa Pinto, 2014. Para a vasta literatura sobre o nazismo, cf. I. Kershaw, 2010 e 2015 e R. Gelatelly, 2011. Para o ponto de vista marxista, cf. N. Poulantzas, 1978.

[xxxvi] Uma crítica pertinente ao bolsonarismo, como política excludente, distinta do caráter essencialmente integrador do fascismo, foi elaborada por R. Lessa, 2020. Ressalvem-se interpretações que atribuem ao fascismo uma acepção mais ampla, mais elástica, enfatizando-se não propriamente a experiência histórica, mas um complexo de valores autoritários e intolerantes. Cf. U. Eco, 1995.

[xxxvii] Pesquisas realizadas entre 7 e 10 de maio de 2020 indicavam o crescimento da rejeição ao governo, alcançando patamar de 43,4% (governo ruim ou péssimo). Já os índices de aprovação caíram para 32%. Cf. disponível aqui, consultado em 26 de junho de 2020. Tais resultados foram confirmados em novas pesquisas, publicadas em 26 de junho de 2020.

[xxxviii] Para a caracterização da paranoia de Bolsonaro e de alguns de seus auxiliares, cf. a transcrição da reunião realizada pelo conselho de ministros, presidida pelo próprio Bolsonaro, em 22 de abril de 2020: disponível aqui. Filmada e gravada, o conteúdo da reunião foi divulgado por decisão da Justiça, mostrando-se Bolsonaro e vários de seus correligionários tomados por um delírio de cerco típico das pessoas paranoicas (perseguem, mas se sentem perseguidas). Escrevi a propósito uma crônica: Um governo em cuecas, publicada em 13 de junho de 2020, em O Globo, p. 3. Paulo Sternick, psicanalista, em 21 de junho, no mesmo jornal, p. 3, consideraria a pulsão de morte do Presidente.

[xxxix]Observe-se que o auxílio, de R$600,00 por mês, previsto para durar 3 meses, foi proposto pelo governo em apenas R$ 200,00. Nos debates no Congresso, aumentou para R$500,00 sendo, mais tarde, fixado em R$600,00 pelo próprio Bolsonaro. Reduzido a R$ 300,00, o auxílio foi mantido até o fim do ano de 2020. O auxílio vem socorrendo dezenas de milhões de pessoas e seu impacto foi decisivo para evitar o agravamento da crise econômica e para ensejar a migração de muitos setores da pobreza e da miséria para a chamada classe C, ou seja, uma espécie de classe média inferior. Para a aceitação de Bolsonaro junto às camadas populares,cf. pesquisas realizadas em setembro último: disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xl] Tais tendências tornaram-se evidentes a partir da divulgação da reunião ministerial de 22 de abril. São defendidas pelos generais que assessoram Bolsonaro, como o gen. Braga Netto, e também pelos ministros de desenvolvimento regional, Rogério Marinho e de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, cf. nota 44.

[xli] Observe-se que V. Orbán foi um dos poucos líderes internacionais a comparecer pessoalmente à posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019.

[xlii] ElioGaspari, em sua coluna no Globo, de 10 de junho de 2020, p. 3, registrou reflexões de lideranças políticas (Joice Hasselmann, ex-líder do PSL, partido do governo na Câmara de Deputados) e intelectuais (José Arthur Giannotti, simpático ao PSDB, e Denis Lerner Rosenfeld, da direita democrática) que manifestavam alarme com seus procedimentos autoritários, classificados como chavismo de direita.

[xliii] Além da aprovação de 40%, que consideraram o governo “ótimo e bom”, Bolsonaro ainda conta com 29% que consideraram o governo “regular”. Além disso, recorde-se a força capilar – e popular – dos evangélicos.

[xliv] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, o país conta hoje, fins de outubro de 2020, com 14 milhões de desempregados. No quadro atual duvida-se da possibilidade de maciços investimentos internacionais, restando, portanto os investimentos estatais, combinados com setores industriais de intenso aproveitamento da mão de obra, como a construção civil. Por ironia, algo muito semelhante ao realizado pelos governos petistas.

[xlv] Cf. intervenção de Carlos Vainer na emissão Rebeldes, sempre, em três partes, a partir dos seguintes links: aquiaqui; e aqui.

[xlvi] Alcançaram grande repercussão, manifestos assinados por intelectuais de esquerda e do centro e direitas democráticos: “Estamos juntos”; “Basta” (juristas); “Somos 70%” e “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”.

[xlvii] Cabe assinalar, contudo, que diversas manifestações e articulações populares têm se autoidentificado como antifascistas. Assim, não é de se excluir a hipótese que esta terminologia se afirme e se generalize.

[xlviii]S. Zizek, 2017.

[xlix] O presente texto atualiza e aprofunda questões veiculadas por artigo intitulado: “A extrema-direita brasileira: uma concepção política autoritária em formação”, publicado no Anuario de la Escuela de História, Universidad Nacional de Rosario, Argentina, em fins de outubro de 2020. Mencione-se igualmente uma primeira versão, intitulada: “Notas para a compreensão do Bolsonarismo”, publicada em abril de 2020 na Revista de Estudos Ibero-americanos, v. 46, n° 1/2020, Seção Tribuna. Revista de História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC/RGS, Brasil (Cf. D. Aarão Reis, 2020). Para a presente reelaboração, contribuíram sugestões de Angela Castro Gomes, Janaína Cordeiro, Marcelo Ridenti, Rodrigo Patto Sá Motta e Vladimir Palmeira, embora, de modo algum, possam ser responsabilizados por eventuais imprecisões e erros de avaliação que subsistam no artigo.

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Cristiano Romero: O espetáculo da corrupção

 Lava-Jato sofrerá novas perdas de reputação

Um famoso juiz federal perguntou certa vez a um jornalista sua opinião sobre vazamento de informações. Como todo repórter que vive da apuração de notícias, a resposta foi: “O vazamento me apraz”. Mas, para espanto e visível frustração do magistrado, o jornalista acrescentou: “Mas, como qualquer cidadão, não posso me coadunar com informações vazadas ilegalmente”.

A ética do jornalista, como ensinou o saudoso Claudio Abramo, não é nem deve ser diferente da ética do cidadão. “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista - não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão”, escreveu Abramo no livro “A Regra do Jogo: O Jornalismo e a Ética do Marceneiro” (Companhia das Letras, 1988).

 “Suponho que não se vá esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater a carteira e não ir para a cadeia”, acrescentou Abramo, um dos responsáveis pela modernização nas décadas de 1970 e 1989 da “Folha de S.Paulo”.

A pergunta do juiz perturbou o repórter porque ele percebeu que o magistrado ficou desapontado com sua resposta. A lembrança imediata, como sempre lhe ocorre quando colegas de profissão defendem a ideia de que os fins justificam os meios, foi das palavras de Claudio Abramo sobre a ética no jornalismo. Ele pensou com seus botões: “Para o juiz, sua ética não é a mesma do cidadão”.

A confusão na cabeça do profissional de imprensa estava instalada porque juiz é funcionário do Estado, pago para julgar se um crime foi cometido ou não e, com base nisso, manifestar se o acusado pela promotoria é culpado ou não, e então, no caso de condenação, estabelecer a pena, tudo com base nos parâmetros estabelecidos em leis.

Naquele momento, ficou claro para o jornalista que este país estava diante do seguinte quadro:

1. Sim, foi desbaratado, em 2014, um enorme esquema de corrupção envolvendo a maior estatal do país (a Petrobras) e centenas de pessoas, nesta ordem de "entrada em cena”: funcionários daquela empresa pública (os responsáveis pela montagem do bilionário mecanismo de corrupção), políticos e seus partidos, doleiros, executivos de grandes empresas (especialmente, empreiteiras) e empresários donos das empresas; não há dúvida alguma de que os desvios de recursos da maior companhia da economia brasileira, estimados em R$ 20 bilhões, ocorreram, afinal, descobriram-se contas milionárias de empregados da estatal no exterior, executivos e empresários confessaram a realização de pagamentos de propina a funcionários públicos e políticos etc.

2. As investigações, conduzidas por uma força-tarefa integrada por representantes da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal e amparadas por um sem-número de delações premiadas, expediente relativamente novo na realização de inquéritos na Ilha de Vera Cruz, logo revelaram um objetivo maior, de caráter político -_ provar que o ex-presidente Lula era o chefe daquele grande esquema de corrupção - ; não dá para afirmar taxativamente que a força-tarefa estivesse a cargo de um propósito político-eleitoral, com vistas ao pleito de 2018, mas, convenhamos, o resultado foi o que se viu;

3. Para a força-tarefa, não bastava investigar, recolher provas, indiciar e/ou prender, interrogar, processar e condenar; mais importante era promover o “espetáculo da corrupção”, uma forma de massificar o apoio da opinião pública à operação e, assim, tornar sumárias investigações e condenações de alguns acusados, principalmente de Lula;

4. Com o apoio incontestável da sociedade, “entusiasmada” com o fato de ver empresários (antes, em sua maioria, inimputáveis devido a seus laços com o poder) e políticos pela primeira vez na cadeia, a Lava-Jato cometeu abusos de todo tipo, como permitir delações inconsistentes para validar presunções com viés político; vazar informações ao arrepio da lei para criar fatos consumados, isto é, evitar que instâncias superiores da Justiça questionassem o trabalho que vinha sendo feito; indiciar dezenas de pessoas que, depois, comprovou-se não terem envolvimento algum com o esquema de corrupção; grampear conversa da então presidente da República, Dilma Rousseff, com o ex-presidente Lula, sem autorização do STF, com o objetivo de criminalizar ambos; vazar a íntegra do grampo poucas horas depois da gravação da conversa e, assim, jogar a opinião pública contra a chefe do governo e contra Lula, um ato político, desprovido, portanto, de caráter jurídico;

5. Como se viu, as instâncias superiores do Poder Judiciário foram constrangidas pela primeira instância da Justiça; a prova disso é que a segunda instância (TRFs) rejeitou quase sempre por unanimidade os recursos da defesa; a Lava-Jato tornou-se um grande BBB, em que o importante não é o comportamento real dos participantes da “casa”, seu caráter e suas atitudes, mas o julgamento que os expectadores fazem a partir de narrativas induzidas pelo próprio “reality show” e de pré-concepções esmagadoramente conservadoras dos concorrentes ao prêmio, o que torna o BBB perpetuador de nossas doenças seculares, como o racismo e o machismo.

Ora, se a Justiça usa de expedientes abusivos e ilegais para cumprir sua missão institucional, esta fica maculada, independentemente de quem seja o réu. Não pode haver dúvidas num processo que leva à prisão de um ex-presidente da República, no ano em que este, e de acordo com as leis vigentes, seria um dos candidatos do pleito.

Com seu método de atuação, a Lava-Jato, mesmo levando em conta os resultados alcançados no combate à corrupção, resultou claramente na criminalização da classe política. Foi nesse vácuo que emergiu o inesperado Jair Bolsonaro, com discurso anti-política, anti-Brasília, impulsionado por uma campanha de instituições do Estado (PF, Justiça e MPF) que deveria ter se limitado à legalidade. O diagrama que mostrava Lula no centro do esquema de corrupção já deveria ter sido suficiente para mostrar a impropriedade com que a operação se movimentava.


Fernando Exman: Fachin catalisa a eleição presidencial

Decisão do ministro coloca Lula no jogo e antecipa campanha

Edson Fachin, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) que recolocou Luiz Inácio Lula da Silva na lista de presidenciáveis com uma canetada, agiu olhando para o legado da Lava-Jato, mas as consequências de seu ato já se percebem no presente. Em relação ao futuro, será necessário aguardar para ver o quão determinante terá sido para o resultado das eleições a sua decisão de cancelar as condenações do ex-presidente.

Fachin provocou uma catálise no processo de rearranjo político-partidário previsto para o início do segundo semestre. A campanha presidencial de 2022, que já vinha sendo caracterizada como uma das mais precoces da história contemporânea, tende a antecipar-se ainda mais.

O episódio dá dinamismo à pré-campanha. Mesmo sem um pré-candidato em campo, o PT já formulava um programa antagônico à agenda liberal da equipe econômica e ensaiava palavra de ordem capaz de contrapor o slogan do governo Jair Bolsonaro: “A vacina acima de tudo.” Lula deixará a função de titereiro para dominar o palco.

Bolsonaro, o maior interessado em reeditar o clima da disputa de 2018, ainda observa os eventuais desdobramentos da decisão do magistrado. Precisará equilibrar-se na tênue linha que divide o que seus apoiadores esperam ouvir e o que pode dizer o chefe do Executivo sem criar atritos com outro Poder.

O episódio também coloca sob pressão aqueles que esperam personificar uma terceira via. Entre eles, Ciro Gomes (PDT), que tem se mantido aquecido neste período de pré-campanha.

Meses atrás, esse espaço até poderia ser disputado pelo ex-ministro Sergio Moro, mas o ex-juiz da Lava-Jato é justamente o principal derrotado, do ponto de vista eleitoral, da decisão de Fachin. Sobra, portanto, cada vez menos tempo para que o apresentador Luciano Huck, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), ou o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM) se posicionem no jogo. Os tucanos, para não ficarem a reboque, marcaram prévias para outubro.

Sob a condição de não ter seu nome revelado, um especialista que sabe das coisas assegurou: a decisão de Fachin não muda o pano de fundo que vinha sendo construído e a eleição de 2022 será um embate de “imaginários negativos”, ou seja, o antibolsonaro contra o antipetismo. Nesse contexto, ponderou o experiente consultor, Bolsonaro sai perdendo, pois quem vem agora para o embate é um Lula que o atual presidente da República não gostaria de enfrentar.

“Lula está renovado e cheio de gás”, explicou. “É outro Lula perante o Bolsonaro, mas não é outro Lula perante o Brasil”, acrescentou, referindo-se à grande popularidade do petista e à aprovação de suas administrações por parcela considerável da população.

Deve-se lembrar, também, que ele poderá dizer aos quatro cantos que, mesmo perseguido, não é mais um condenado. Seus adversários rebaterão afirmando que erros procedimentais do processo ou a conduta das partes não anulam o fato de que os governos do PT abrigaram diversos esquemas de corrupção. Com razão. O problema de Bolsonaro, porém, é que sua campanha terá dificuldades de sustentar o discurso anticorrupção de 2018.

“A mansão adquirida pelo seu filho é uma casa de horror, um bolo de chocolate para quem faz campanha política”, comentou essa fonte. “A questão ética não vai ser decisiva como foi na última eleição. Misturou tudo.”

Então, quem pode se beneficiar nessa conjuntura? Aquele que conseguir extrair o pior dos dois oponentes e surfar na onda antibolsonaro e antipetista. O momento do país também exige que os candidatos apresentem soluções para a crise. “Quem oferecer uma saída pode se deslocar. Isso quer dizer uma campanha positiva, um plano de governo e propostas para o país”, destacou. “É uma eleição de forças negativas, como foi a de 2018. Normalmente, quando isso acontece o natural é que se demonize a política. Agora, no entanto, é o contrário.”

Segundo essa visão, o momento exige uma liderança capaz de aglutinar forças, combater a pandemia e os efeitos da crise. Um cenário que pode ser desafiador para alguém de fora da política tradicional.

Precipitada a entrada de Lula na disputa, um dos principais desafios de Bolsonaro será acelerar a consolidação de sua imagem no Nordeste. Um fator que poderá dificultar essa entrada é a relação conflituosa que vem mantendo com governadores. Por outro lado, o presidente tenta capturar bandeiras da oposição, com a reformulação do Bolsa Família, inaugurações de obras da transposição do rio São Francisco ou a ampliação do acesso à água.

Na opinião desse especialista, sem novas ideias, dinheiro e boa gestão, resta ao presidente aproximar-se das marcas de outros governos. “Ele provoca danos cognitivos fortes não só no seu eleitorado, mas no público médio” com o vai e vem de seu discurso e essa confusão narrativa, apontou a fonte. “Ele faz uma subversão da linguagem e dos significados”, completou, citando como exemplo o fato de se cogitar a entrada do presidente no Partido da Mulher Brasileira (PMB). Em 2018, ele foi alvo de ampla campanha negativa do público feminino, que levantou a "hashtag" #elenão. Sua filiação à sigla poderia lhe garantir uma espécie de vacina contra estratégia semelhante.

Outra notícia negativa para Bolsonaro é a capacidade de mobilização de Lula, num momento em que o presidente corre o risco de ver crescer os panelaços ou até mesmo movimentos de rua.

Ele pode insistir no discurso de que existe o risco de o Brasil virar uma Argentina ou uma Venezuela, se a esquerda voltar ao poder. No entanto, o exemplo de outro vizinho deveria gerar maiores preocupações, neste momento, no Palácio do Planalto: o presidente do Paraguai, aliado de Bolsonaro, tenta conter protestos e escapar de um processo de impeachment por suposta negligência no combate à covid-19. “O que existe não é um sentimento de letargia. É um acúmulo depressivo que vai ser vomitado uma hora”, concluiu o especialista. O acirramento do ambiente não ajudará o país a solucionar os seus problemas.


Hélio Schwartsman: Qual Lula será candidato em 2022?

Ele já deu repetidas mostras de que é um camaleão político

Ao que tudo indica, Luiz Inácio Lula da Silva poderá concorrer à Presidência no ano que vem. Isso altera significativamente os planos de candidatos e partidos que já começavam a desenhar cenários para o próximo pleito.

Na leitura mais superficial, mas não necessariamente errada, o retorno do petista ao jogo reforça a polarização. Os beneficiados seriam o próprio Lula e seu antípoda, o presidente Jair Bolsonaro, que, mobilizando seus núcleos de apoiadores fiéis e demonizando os adversários, carimbariam seus passaportes para o segundo turno, fechando as portas para candidaturas mais ao centro.

O problema com essa interpretação é que ela parte do pressuposto de que o Lula de 2022 será um Lula radical, parecido com o que se candidatou em 1989 ou com o que discursou às vésperas de ser preso pela Lava Jato em 2018. Mas não há nenhuma garantia de que tal premissa se manterá.

Lula já deu repetidas mostras de que é um camaleão político, capaz de vestir a roupagem que mais lhe convém. Se ele sentir que tem mais chances de chegar ao Planalto com o figurino de candidato moderado, ele o adotará. Nada o impede de repetir a trajetória de 2002, quem sabe até reeditando uma versão da "Carta ao povo brasileiro" e forçando o PT a fazer uma tardia autocrítica do governo Dilma. Isso seria crível? Bem, se as pessoas acreditaram que Bolsonaro era liberal, então acreditam em qualquer coisa.

Meu ponto é que não estamos condenados à polarização. Dependendo da dinâmica que a campanha assumir, poderemos assistir à reintrodução do teorema do eleitor mediano, pelo qual os principais candidatos buscam desde o início apresentar-se como moderados para conquistar os cidadãos que rejeitam extremos, que são normalmente a maioria.

Se o vencedor vai governar de acordo com as promessas ou cometer mais um estelionato eleitoral é uma outra questão. Mas tratemos de um problema de cada vez.