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RPD || Raul Jungmann: Armamento, riscos à democracia e 2022

"A desconsonsolidação democrática não precisa envolver violações a constitucionalidade. E os governos reacionários têm desfrutado de um apoio popular consistente. A esperança de que cidadãos pudessem ameaçar governos que cometessem transgressões contra a democracia, impedindo-os, com isso, de seguirem esse caminho, infelizmente é infundada."

A citação é de Adam Przeworski, professor de política e economia da Universidade de Nova York, com vasta produção na área da ciência política. Ela bate com que estamos vivendo no Brasil e, especialmente, com o que vivenciamos na segurança pública. Uma população que se sente indefesa diante da violência e não vê da parte do poder público a prestação de serviços de segurança compatíveis com a sua a proteção da sua vida e família, sanciona atsques a democracia em nome da sua defesa. É o caso das mais de trinta normas editadas pela Presidência da República ou órgãos de controle do executivo, afrouxando as regrass ou visando a massificação do armamento pela população. Nesse ponto, o armamento da cidadania, cruzamos os limites da área da segurança pública, onde há duas décadas se travava o debate, e passamos a seara da política, e do ideológico.

Ao propor armar a todos, o Presidente está, consecutivamente: (i) quebrando o monopólio da violência legal, privativa do Estado Nacional, (ii) ferindo o papel constitucional da Forças Armadas, esteio e última ratio da integridade e da soberania e (iii) acenando com a hipótese de um conflito de brasileiros contra brasileiros, uma guerra civil.

Isso nos motivou a redigir uma carta aberta ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam ações contrárias a política de armamento massivo, alertando para os riscos para a segurança pública e para a estabilidade democrática. Lembrando, ao final, o ocorrido recentemente nos Estados Unidos, quando da invasão do Capitólio por vândalos. No curso da sua divulgação, a repercussão da carta superou nossas expectativas na mídia tradicional, nas redes, colunas de opinião e junto a vários formadores de opinião. O que talvez queira dizer da preocupação das pessoas com o tema e a percepção dos riscos envolvidos numa política armamentista. E existem razões concretas para tal.

Segundo a Polícia Federal, em 2020 o registro de armas de fogo cresceu 90% face o ano anterior, o maior crescimento de um ano para outro já registrado pela série histórica. Do outro lado da moeda, as mortes violentas, que iniciam uma queda em 2018 (ano em que éramos Ministro da Segurança Pública) e continuaram caindo em 2019, retomaram sua escalada em 2020. A ADIN impugnando os quatro decretos supracitados tem como relatora a Ministra Rosa Weber, que solicitou informações ao executivo e, nos próximos dias, decretos editados em 2019 sobre o mesmo tema e objetivo irão ao plenário do Supremo, tendo como relator o Ministro Edson Fachin.

Entidades diversas da sociedade civil e ongs, se mobilizaram promovendo um abaixo assinado em apoio a nossa Carta Aberta, que já conta com mais de dez mil assinaturas. Devendo ser entregue aos dois ministros em breve.

Embora não se manifestem, as Forças Armadas, devem estar debruçadas sobre essa questão. Recentemente, o Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército teve duas portarias suas sobre rastreamento de armas e munições revogadas por ordem do Planalto, logo após o que o seu responsável desligou-se da sua direção. Pablo Ortellado nos diz que cansados de escândalos de corrupção e de uma elite política que apenas pensa na solução dos seus problemas e não dos seus representados, o eleitor em 2018 buscou um “ultradiferenciação”, votando naquele que rompia simbólica e retoricamente com o status quo.

Pode ser. Mas a questão é que essa opção do eleitorado veio a reboque de uma operação Lava Jato, que no combate a corrupção desestruturou a dinâmica política desde a redemocratização para cá, a tríade de partidos que organizava o jogo congressual e das alianças (PMDB, PT e PSDB) e suas lideranças nacionais. Se for incapaz de reconstruir uma narrativa que supere e incorpore soluções para o mal estar, desânimo e mau humor da população, decorrente da percepção da corrupção da política e da insegurança endêmica, a afirmação inicial de Adam Przeworki continuará valendo, para 2022 e além.

*Raul Jungmann é ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


RPD || Luiz Augusto de Castro Neves: Relações Brasil-China - Um olhar de longo prazo

Desde 1974, quando o Brasil reatou relações com a China, muita coisa mudou no país asiático, agora detentor do maior produto interno bruto do planeta e principal parceiro econômico brasileiro, com investimentos em 25 estados da Federação

O Brasil estabeleceu relações com a China em 1974, em plena vigência do regime militar, inequivocamente anticomunista. Examinando com alguma atenção as relações da China com a América Latina verificamos, em primeiro lugar, que a quase totalidade desses estabelecimentos de relações teve lugar a partir do ingresso da China nas Nações Unidas e da histórica viagem do presidente Richard Nixon a Pequim. Um exame mais acurado dá conta de que afinidades ideológicas tiveram pouco ou nenhum papel no relacionamento chinês com os países latino-americanos – a maior parte desses países estava, ao longo da década de 70, submetida a regimes militares de direita, adeptos de uma decidida retórica anticomunista. Houve duas exceções: Cuba, cujas relações foram estabelecidas após a ascensão de Fidel Castro, e Chile, logo no início do governo de Salvador Allende.

Mesmo em relação a Cuba, à época o único país marxista-leninista da região, as cubano-chinesas foram até 1995 marcadas por desacordos e distanciamentos, decorrentes em boa medida da controvérsia sino-soviética. Em 1966, Fidel Castro denunciou o governo chinês na abertura da conferência tricontinental de Havana e acusou a liderança chinesa de “senilidade”. A posição cubana refletia, na verdade, seu alinhamento com a política externa soviética, e sua reaproximação com Pequim só teve lugar a partir do desaparecimento da União Soviética. 

O reatamento de relações com a China em 1974 foi objeto de intensa controvérsia entre as autoridades militares brasileiras, boa parte das quais expressamente contrária ao reatamento. O então ministro do Exército, general Sylvio Frota, apresentou por escrito seu parecer, alegando que “a orientação político-ideológica do mestre do comunismo chinês, verdadeiros deus de uma religião sincretizadamente professada por mais de 800 milhões de amarelos ansiosos por expandirem-se e ocuparem os vazios do ecúmeno, hoje já carentes no globo terrestre, mas cobiçados, em especial, no Brasil e na África Negra”.  

Nos primeiros anos, o reatamento não levou a maiores iniciativas de parte a parte, por razões chinesas e brasileiras: a China estava imersa naquele momento no grande pandemônio político-ideológico, a chamada revolução cultural. Além disso, a saúde precária de Mao Zedong já propiciava o início de surda batalha por sua sucessão. No Brasil, por sua vez, o reatamento causara celeuma, sobretudo em meios militares que davam sustentação regime. O ministro do Exército dizia que o reatamento era uma iniciativa do Itamaraty (e não do presidente, como que a subtrair-lhe importância política). Além disso, o governo do general Geisel estava às voltas com o processo de abertura política, que acabou por levar, alguns anos mais tarde, à demissão do próprio ministro do Exército. Assim, não houve incialmente clima propício, nem de um lado, nem de outro, para iniciativas concretas de maior envergadura entre o Brasil e a China. 

Hoje vivemos em outro mundo. A China consolida-se como ator de primeira grandeza no cenário internacional, seu produto interno bruto já é o maior do planeta, se medido em paridade de poder de compra (e provavelmente será o primeiro a preços de mercado ainda nesta década), e sua presença já se faz sentir em todos os quadrantes do mundo. No Brasil, os investimentos chineses estão presentes em 25 Estados da federação. As relações econômicas e comerciais sino-brasileiras têm sido fundamentais para evitar o agravamento da crise econômica que atravessamos, na medida em que a China continua a crescer muito mais do que a média da economia mundial, e sua demanda por produtos brasileiros não para de crescer. Nosso desafio, nesse contexto, é buscar aproveitar plenamente as janelas de oportunidade que se nos abrem na China. As relações entre o Brasil e a China podem ganhar outra dimensão quando se examina a parceria entre os dois países com um olhar de longo prazo, sobretudo quando se tem em mente que a demanda externa desempenhará um papel central na retomada do crescimento da economia brasileira. O profundo desequilíbrio fiscal em que nos encontramos dificilmente será corrigido nos próximos anos, levando a um crescimento modesto da demanda interna. 

O aproveitamento pleno das janelas de oportunidade já mencionadas requer, de nossa parte, aumentar nossa competitividade internacional mediante investimentos em infraestrutura, em capital humano, bem como fortalecer o ambiente de negócios. Em suma, precisamos ter estratégia de longo prazo em nossas relações com a China e, sobretudo, fazer nosso “dever de casa”. As oportunidades são imensas, desde que saibamos aproveitá-las, o que me leva a concluir com a citação de Candide, personagem de Voltaire: “celà est bien dit, mais il faut cultiver notre jardin” (Está tudo dito, mas precisamos cultivar nosso jardim)

* Luiz Augusto de Castro Neves  é Presidente do Conselho Empresarial Brasil-China. Embaixador no Japão, na China, e no Paraguai. No Itamaraty, foi Secretário-Geral Adjunto das Relações Exteriores e Diretor-Geral para as Américas.  Presidente do CEBRI e atualmente é Vice-Presidente Emérito. Membro do Conselho de Administração do Grupo Pão de Açúcar, Cursou Ciências Econômicas na UFRJ e é Mestre em Economia pelo University College da Universidade de Londres.


RPD || Leandro Machado: A farsa mais previsível da história

Bolsonaro intervém cada vez mais na economia e escanteia Paulo Guedes. Imagem de liberal foi construída no período eleitoral, apesar de seu histórico como deputado federal e o viés nacional desenvolvimentista comum entre militares

O discurso liberal atendeu ao único interesse de Bolsonaro em 2018: vencer as eleições. Dois anos depois, as recentes intervenções do Presidente mostram a mudança de rota e a perda de poder do ministro da Economia Paulo Guedes desengavetou seu currículo lustroso, tirou o pó, mostrou a Jair Bolsonaro e disse: “toma, me chama de seu futuro ministro da Economia; me usa para afastar o medo que os grandes investidores têm do seu passado”. Bolsonaro engoliu em seco e passou a anunciá-lo como seu “Posto Ipiranga”. Aquele rosto conhecido, cofundador do Banco Pactual (vendido e rebatizado de BTG Pactual), com mestrado e doutorado na Universidade de Chicago, encantou as elites. Era o toque final para convencê-los a apoiar Bolsonaro nas eleições. 

O diálogo e a cena, tais como narrados, são fictícios, mas a essência não. O histórico de Jair Bolsonaro como deputado federal e o viés nacional desenvolvimentista tão comum entre militares acionavam o alerta. No fim dos anos 1990, Bolsonaro votou contra o fim do monopólio da União no controle de pesquisas, extração, refino, importação e exportação do petróleo da Petrobras, contra o Plano Real (acompanhando a bancada do PT, PDT e PCdoB) e contra a Reforma da Previdência. Uma certeza o mercado tinha: de liberal Bolsonaro não tinha nada. 

Em 2018, no entanto, o discurso mudou. Bolsonaro sugeriu a privatização da Petrobras e defendeu as reformas sugeridas por Guedes. As elites abriram os champanhes e se jogaram de olhos fechados no apoio a Bolsonaro. 

Era uma chance para curar o “trauma” causado por Dilma Rousseff. A ex-Presidenta havia mexido muito com os nervos das elites. Na base de canetadas, interferiu na Petrobras, cortou impostos dos produtos da cesta básica na tentativa de conter a inflação e barrou o reajuste das tarifas de luz. Um desastre; a população voltou a pagar caro pela energia elétrica, o preço dos alimentos voltou a subir, e a crise financeira só se agravou. 

Com Bolsonaro, guiado pelo guru da economia Paulo Guedes, os caminhos seriam outros. Era tanta admiração por Guedes que o futuro Presidente jamais ousaria contrariá-lo.  

Quase deu certo. Logo no começo de 2019, começaram as negociações pela reforma da Previdência. Bolsonaro até aprovou a criação da carteira de trabalho Verde e Amarela, com benefícios aos empregadores. Só que, com as crises políticas (tão pouco surpreendentes com um presidente turrão e autoritário), a Reforma da Previdência sofreu derrotas no Congresso - frustrando os sonhos de Guedes e dos liberais.  

Daí em diante, Bolsonaro só decepcionou a turma do Posto Ipiranga. Ao contrário da promessa, o Presidente meteu o bedelho em tudo na Petrobras e, ao contrário das promessas de campanha, vetou qualquer iniciativa de vender três empresas estatais: Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e, claro, Petrobras. Na contramão das promessas, na verdade, Bolsonaro até criou uma nova estatal, a Nav, algo que não acontecia desde o governo de… Dilma. 

Isso sem contar outros pontos defendidos por políticas liberais - Bolsonaro completa o bingo do que não deveria fazer. A começar por um princípio básico: o liberalismo se pauta pela liberdade política e moral. Bolsonaro defende a ditadura há anos e lotou os ministérios com outros militares que pensam como ele.  

A crença no poder inabalável de Paulo Guedes soa quase ingênua aos que conhecem a história de Bolsonaro. Se há uma palavra que não poderá jamais ficar de fora da biografia dele: a insubordinação. Nem mesmo no Exército, Bolsonaro segurou a onda. Revoltado com o salário, o capitão organizou uma revolta - o que é proibido dentro de instituições militares -, com direito a plano para explosões de bombas-relógios nos quartéis. Tomou um processo e foi expulso, mas recorreu ao Superior Tribunal Militar e terminou absolvido - uma absolvição típica daquela época, digamos assim. 

Se nem mesmo ao alto escalão do Exército, uma instituição tão defendida e admirada por ele, Bolsonaro obedece, como imaginar algo diferente em relação ao Posto Ipiranga do que atos de insubordinação? Ainda mais quando o chefe, ao contrário dos tempos de militar, é ele mesmo. O sonho dos liberais, de um Bolsonaro fiel aos desejos de Guedes, soa mais como um delírio.  

*Cientista político pela Universidade de Brasília e mestrando em administração pública pela Universidade de Harvard. 


RPD || Guilherme Acciolly: A miopia de curto prazo e o desmatamento da Amazônia

País precisa conter imediatamente o processo de desmatamento da Amazônia e evitar a chegada ao “ponto de não retorno”, quando será impossível deter a destruição da floresta 

O desmatamento na Amazônia continua aumentando. Segundo os dados oficiais do INPE, entre 2018 e 2020, portanto durante o governo Bolsonaro, a taxa de desmatamento na Amazônia cresceu 47 %. 

Os motivos para isso são muitos. Mas certamente a política simpática aos setores responsáveis pelo desmatamento (grileiros, alguns madeireiros e pecuaristas, garimpeiros ilegais) e o cerceamento à atuação do IBAMA e demais órgãos encarregados da repressão ao desmatamento contribuíram de forma decisiva para esse resultado. 

Essa postura é suicida no longo prazo, mas faz sentido numa perspectiva míope de curto prazo. Não há dúvida de que é popular para grande parte da opinião pública local e nacional. De fato, num primeiro momento, há relevante aumento da renda na região da fronteira do desmatamento. A retirada da madeira, a instalação ou ampliação de serrarias, a compra de maquinário, a implantação de pastos no lugar da floresta, a comercialização da carne bovina, a recepção dos novos habitantes, tudo isso gera renda e emprego. Muito mal distribuídos, mas com impacto positivo no início. 

Esse avanço é incentivado por se dar majoritariamente sobre terras públicas (e crescentemente sobre Áreas Protegidas) – e, portanto, com custo de aquisição nulo. Porém, logo depois, a receita madeireira se extingue ou decresce muito, a agricultura é prejudicada pela má qualidade do solo na Amazônia, e resta a pecuária de baixíssima produtividade. Ou seja, a prosperidade chega e vai embora. Aí o que se faz é repetir o processo mais adiante.  

Essa dinâmica vai empurrando a fronteira, avançando pela floresta. Só que esse recurso, a floresta, não é infinito. Já desmatamos cerca de 20% da Amazônia. Se nada for feito, um dia, nem tão remoto, ela acaba e teremos matado a proverbial galinha dos ovos de ouro. Na verdade, isso não ocorrerá. Muito antes disso, a própria destruição parcial da floresta a levará ao colapso, ao se interromperem os processos e fluxos naturais de regeneração. 

Há evidência científica indicando que esse “ponto de não retorno” já está muito próximo. Ou seja, se não houver a contenção imediata do processo de desmatamento da Amazônia, ela em pouco tempo deixará de existir. 

E qual o problema? É até bom, pois facilita o desenvolvimento agrícola e a exploração mineral na região (olha o nióbio!). Esse argumento, tão típico dos dias atuais, exige resposta. Se a floresta amazônica acabar, se extinguirá toda a riqueza potencial advinda da atividade madeireira sustentável e da extraordinária biodiversidade ali encontrada. Ninguém sabe tudo que pode ainda ser descoberto e aproveitado. Trata-se de uma riqueza literalmente incalculável. Provavelmente inúmeras vezes maior que o potencial agropecuário e mineral. 

Mas o prejuízo não se limita a isso. A eventual extinção da floresta amazônica – o que é possível que ocorra em breve – prejudicaria decisivamente o agronegócio, bem como toda a população do Centro-Oeste e Sudeste. O regime de chuvas seria fortemente afetado com a interrupção da chegada da umidade oriunda da Amazônia, que tem volume equivalente ao Rio Amazonas, no fenômeno conhecido como Rios Voadores.  

Ou seja, o processo de desmatamento da Amazônia é popular na região e em boa parte do país (embora haja também ampla parcela da população que a ele se opõe), até porque traz alguma prosperidade no curto prazo. Entretanto, no médio e longo prazo, é um baita tiro no pé. A miopia curtoprazista pode ser extremamente prejudicial para a região, para o Brasil e para o planeta. 

Não é novidade para o Brasil. No início de século passado, a prosperidade advinda da exploração da borracha foi assombrosa e, aos olhos da sociedade local – e nacional – da época, infinita e perpétua. Até as plantações asiáticas aniquilarem essa riqueza. O Brasil hoje é importador líquido de látex. 

Essa mesma miopia faz com que setores do governo se deem ao luxo de destratar gratuitamente nosso maior parceiro comercial, a China. O raciocínio é que “a China não pode ficar sem nossa soja”. Isso é verdade hoje. Mas os chineses (que certamente não podem ser acusados de não ter uma visão de longo prazo) não devem ser subestimados. Em janeiro deste ano, o Ministro da agricultura chinês declarou que “As tigelas chinesas devem ser enchidas com grãos chineses, e os grãos chineses devem ser cultivados a partir de sementes chinesas.” Isso ainda está longe de acontecer, mas a estratégia já está definida. É questão de tempo (olha o longo prazo aí). 

*Guilherme Acciolly é economista


RPD || André Amado: Há espaço para a criatividade

André Amado nos mostra, em seu artigo para a Revista Política Democrática, como os escritores discordam entre si quando atuam como críticos literários

A exemplo dos economistas e políticos, os críticos literários – ou, pior, os escritores que se debruçam sobre as obras de seus colegas – raramente concordam entre si. A maior evidência disso é a discussão entre a imaginação e a realidade como fonte alternativa da criação.   

Julio Cortázar afirma nunca ter escrito conto ou romance que se pudessem considerar exclusiva e totalmente realistas, porque, mesmo que assim fosse, o tema teria nascido da fantasia dele, inventado por ele. De sua parte, Julio Ramón Ribeyro iria mais longe e reconheceria que, ao descobrir a razão, se sentiu como um louco, pois foi quando abandonou os delírios e as fantasmagorias da imaginação, tornando a realidade insuportável. Não é outra a interpretação de Rosa Montero que elabora para a morte de Dom Quixote. Segundo ela, quando o fidalgo enfermo vislumbrou a luz da razão, isto é, raciocinou e concluiu que teria de renunciar à imaginação transbordante que o acompanhara toda a vida até então, preferiu morrer.   

Stephen King exploraria outro ângulo, mas na mesma linha. Comentaria que John Grisham escrevera sobre a Máfia, mas nunca trabalhou para ela, tudo não passando de pura invenção, na verdade o maior deleite do escritor de ficção. Vargas Llosa sofisticaria o debate ao identificar como o aspecto fundamental do método de Flaubert o roubo consciente da realidade real pela construção da realidade fictícia. E Jorge Luiz Borges encerraria este capítulo da discussão, com a sentença de que, em literatura, a realidade é o imaginado, na mesma toada, aliás, de Haruchi Murakami, que defenderia não ser o visível a única realidade.   

Mas, se, de um lado, Ernest Hemingway viria em apoio dos escritores acima citados, oferecendo a confissão de que inventara inventado cada palavra, cada incidente, de Adeus às armas e 95% de O sol também de levanta, Garcia Márquez, de outro, muito se divertia quando lhe dirigiam elogios por sua imaginação, porque, segundo o escritor colombiano, linha alguma de sua obra jamais deixou de basear-se na realidade.

Contemporizam esse confronto entre defensores da imaginação e do realismo aqueles que atribuíam ao escritor uma espécie de mediunidade. Rosa Montero chegou a afirmar que somos muitos dentro de nós, aforismo que P. D. James traduziria como a sensação de que os personagens e tudo que acontece com eles existem em algum limbo da imaginação, não cabendo, portanto, tentar inventá-los; antes, entrar em contato com eles e registrar sua história em preto e branco, um processo de revelação, não de criação.   

Stephen King terminaria, também, compartilhando à sua maneira desse ponto de vista. Para ele, não existe um Depósito de Ideias, uma Central de Histórias, uma ilha de Best-Sellers Enterrados. As boas histórias, segundo King, parecem vir quase literalmente de lugar nenhum, navegando até o escritor do vazio do céu, ideias, que, até então, podiam ser até dissonantes, mas que se juntavam e viravam algo sob o sol, faltando apenas não encontrar essas ideias, mas reconhecê-las quando aparecessem.   

Henry James simplifica a questão: a realidade já existe de antemão na consciência do criador, e Murakami poetiza: escondidas em uma tela branca, congelam-se várias possibilidades à espera daquele momento em que a mão e o talento do pintor haverão de reunir a existência e a não-existência. O nobelista espanhol acreditava que os livros se escrevem às vezes sozinhos, antes mesmo de serem escritos e até depois de receberem o ponto final. Como poeta, Mario Quintana poupa argumentos e considera que o verdadeiro criador se limita a mostrar tudo aquilo que os outros olhavam sem ver. E Michelangelo, embalado pela modéstia típica dos gênios, desmistifica: não faço esculturas, apenas retiro o excesso de pedras.   

Ah se os economistas e os políticos discordassem e convergissem com tamanha criatividade!   

*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online


Valor Econômico: Volta de Lula deve apressar Huck, diz Roberto Freire

Apresentador mostrou interesse no atual cenário eleitoral e na viabilidade de uma candidatura de Mandetta

Por Cristian Klein, Valor Econômico

RIO - A volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jogo eleitoral fortalece a polarização entre o PT e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mas atores políticos ligados ao apresentador de TV Luciano Huck (sem partido) ainda consideram que haja espaço para uma candidatura competitiva mais centrista, na disputa pela Presidência do ano que vem.

Logo depois da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que devolveu os direitos políticos a Lula, na segunda-feira, Huck conversou com o presidente nacional do Cidadania, o ex-deputado Roberto Freire, sobre a nova conjuntura. O Cidadania é um dos partidos cotados para abrigar o apresentador, caso ele decida concorrer.

Segundo Freire, os dois não trataram de filiação, mas Huck se mostrou interessado em saber da avaliação do dirigente sobre o cenário eleitoral e a quantas anda a possibilidade de fusão entre o Cidadania e o Partido Verde, legendas ameaçadas pela cláusula de barreira. Também abordaram a viabilidade de uma candidatura do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS).

Para Freire, a entrada de Lula não muda, em essência, a polarização que estava desenhada entre Bolsonaro e o PT. O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, derrotado em 2018, já havia começado a circular em pré-campanha pelo país, mas cancelou a visita que faria hoje e amanhã ao Rio, depois do pronunciamento feito ontem em que Lula falou como candidato.

Freire disse que Lula elegível só torna “a polarização mais explícita”, o que “viabiliza melhor a alternativa do campo democrático”. “Ajuda a busca por unidade nas articulações feitas hoje”, afirmou ao Valor o dirigente, para quem Huck “é o melhor candidato para discutir o Brasil do século 21”.

O presidente do Cidadania diz que seu partido é o único em que Huck tem a garantia de concorrer, enquanto em outras siglas, como o DEM, isso não é certo. “Nem para o Mandetta há garantia”, diz, afirmando que a sigla está dividida entre os que querem apoiar Bolsonaro ou outras candidaturas, como a do governador de São Paulo João Doria (PSDB) ou do também tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul. Por causa da reviravolta no cenário, o PSDB antecipou as prévias que seriam realizadas no ano que vem para outubro.

Freire diz que o apresentador ainda tem tempo para definir se concorre ao Planalto ou permanece na TV Globo, mas a volta de Lula vai acelerar a tomada de decisão. No entorno de Huck, segundo apurou o Valor, a expectativa é que uma decisão possa ser tomada "mais para o fim do segundo semestre". "Até o prazo limite de filiação, em 4 de abril, é uma eternidade", conta esta fonte.

Na visão do Freire, Lula e Bolsonaro são fortes candidatos para chegarem ao segundo turno, mas o antipetismo continua em alta, acrescido do forte antibolsonarismo. As rejeições favoreceriam a candidatura centrista. Para o outro interlocutor do apresentador, Lula "está sem conexão com a classe média e o centro da política brasileira" pois teve que se "abraçar com a esquerda tradicional, o corporativismo", durante o período em que se defendia dos processos da Lava-Jato e dos 580 dias em que passou na prisão em Curitiba, apoiado pela militância. Isso o impediria de fazer um movimento em direção ao centro, como esboçado pelo ex-presidente no discurso de ontem. "A candidatura do Lula não esmaga o centro", afirma.

Por outro lado, acrescenta, Bolsonaro também tem perdido eleitores mais centristas. E Ciro Gomes (PDT) vai ser um candidato com discurso muito similar ao de Lula, "contra as reformas". "Vai ter uma dissidência do outro lado também", diz a fonte, minimizando a necessidade ou a possibilidade de que haja uma unidade grande do centro, em torno de um só candidato, numa composição improvável entre os tucanos, Huck e Mandetta.

Freire conta que as conversas sobre fusão envolvem o presidente do Partido Verde, José Luiz Penna, e Eduardo Jorge, que concorreu à Presidência pelo PV em 2014 e foi vice na chapa de Marina Silva (Rede) em 2018. Desse projeto também está próximo o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ), que rompeu com o partido e procura nova legenda.

Segundo apurou o Valor, Huck já recebeu convites oficiais de pelo menos cinco partidos: PSB, PSD, Cidadania, Podemos e DEM, além de uma sondagem do MDB.


Ruth de Aquino: Lula não é santo mas fez milagre

Nenhum cientista, nenhuma manchete, nenhum general, nenhum empresário, nenhum pastor, nenhuma recessão e nem mesmo os recordes sucessivos de mortos por Covid, nada disso produziu o milagre testemunhado pelo país nesta quarta-feira. Foi Lula quem “obrigou” Bolsonaro a usar máscara, defender vacinas e pedir imunizantes à China.

Nem mesmo a vacinação da mãe, Olinda, com a comunista Coronavac provocou essa transmutação radical de Bolsonaro. Lembram outubro de 2020? “A da China nós não compraremos, é decisão minha, mesmo se for aprovada pela Anvisa”. “Eu não tomo vacina (contra Covid), não interessa se tem uma ordem, seja de quem for, eu não vou tomar a vacina”. Sempre desencorajou uso de máscaras, à revelia do mundo. Citava “efeitos colaterais”. Seu filho Eduardo foi mais grosso em vídeo nas redes: “Enfia (a máscara) no rabo, gente, porra!” Que vergonha, deputado. Que vergonha. 

O discurso eleitoral de Lula no sindicato dos metalúrgicos, convocando a população a usar máscaras e se vacinar, mudou tudo. Bolsonaro se apresentou imediatamente depois em um bloco de mascarados. Disse que sempre foi a favor de se imunizar. O milagre estendeu-se aos filhos Flávio e Carlos, tocados com a anulação das condenações de Lula. “Nossa arma é a vacina” passou a ser o slogan da família. Cara de pau. A arma de Bolsonaro sempre foi o trabuco mesmo. Sua arma é a que cospe tiros, palavrões, bacilos e cloroquina. “Vacinaremos dezenas de milhões de brasileiros”. O verbo está no tempo errado. O futuro deveria ser pretérito. É imperfeito e condicional na voz de Pazuello, o general passivo da ativa. Pazuello não via o porquê de “tanta ansiedade e angústia” da nação em dezembro. E hoje? “O sistema de saúde não colapsou nem vai colapsar”. Que vergonha, ministro. Que vergonha.

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o vice-presidente Mourão afirma que “faltou uma campanha intensiva de conscientização da população”. Não, Mourão, faltou conscientizar Bolsonaro e seu ministro da Saúde. Olhe agora Joe Biden nos Estados Unidos. Cem milhões de doses serão aplicadas nos 50 primeiros dias de governo e quase toda a população adulta estará vacinada até julho. Uma questão de liderança.

O Brasil ficou sem hospitais de campanha, sem leitos, sem oxigênio, sem vacina, limitado a jogar corpos em frigoríficos. Deveríamos vacinar, dia e noite, ao menos 1 milhão de brasileiros. É inadmissível interromper a imunização por falta de doses. 

Temos uma em cada quatro mortes por Covid no planeta. Somos o epicentro de uma calamidade sem controle. O STF precisa continuar a cobrar de Bolsonaro o repasse de recursos aos estados. O ministro Lewandowski deu prazo até o fim da semana. O STF precisa também cobrar explicações sem desculpas esfarrapadas. Qual é a culpa do Poder Executivo na tragédia, Supremo Tribunal Federal? Bolsonaro não quis ter vacinas já em dezembro. Semana passada, mandou comprar vacina na casa da tua mãe. 

Nunca foi tão fácil fazer oposição. É só ter bom senso. Contra o destempero, recomenda-se cautela. Lula se comparou no discurso a um escravo que leva 100 chibatadas. Disse que foi vítima do maior erro jurídico em 500 anos de história. Menos, Lula. Inspire-se nos líderes autênticos que saíram da prisão com maior estatura e modéstia, como Mujica e Mandela, e não nos populistas que se gabam demais e derrapam em mentiras. Você criticou o fanatismo dos bolsonaristas. Não estimule o fanatismo dos petistas. Não precisamos de santos. Precisamos de presidente. 


Murillo de Aragão: O acaso sempre aparece

É mais fácil prever o futuro em questões judiciais do que o passado

No Brasil dos últimos anos, é mais fácil prever o futuro em questões judiciais do que o passado. A competência do juízo federal sobre algumas iniciativas da Lava-Jato foi questionada tempos atrás. Talvez temendo o patrulhamento da opinião pública e da imprensa, o Supremo Tribunal Federal tenha deixado de lado uma questão que parecia óbvia e não esclareceu devidamente os limites das investigações da operação que se transformou em catarse.

Para o país e o mundo, a tardia definição da questão é um vexame, ainda que a decisão do ministro Edson Fachin possa ser juridicamente precisa. Mas por que o STF não delimitou claramente os limites da investigação? Por que o ex-juiz Sergio Moro não encaminhou a investigação para o juízo competente?

Ambas as respostas devem, obrigatoriamente, conter componentes não jurídicos e, obviamente, políticos. O establishment não quis salvar o ex-presidente Lula pelo que fez e pelo que poderia fazer após a derrocada de sua protégée, Dilma Rousseff. Os abusos da Lava-Jato eram como mentiras sinceras.

Por seu lado, Moro não abria mão de processar e julgar Lula, mesmo sob questionamentos consistentes, pois contava com a aliança jurídico-midiática para validar os seus movimentos e condenar o ex-presidente.

Ao fim e ao cabo, os excessos lavajatistas terminaram comprometendo a Operação Lava-Jato, podendo jogar as investigações sobre Lula para as calendas. Ainda que a decisão de Fachin possa ser revista pelo plenário do STF. Outro fato que importa é o seguinte: Lula, que estava na lateralidade do jogo político, volta a ter relevância, mesmo que não saia candidato à Presidência em 2022. Sua reabilitação vitaliza seu papel como candidato ou cabo eleitoral.

 “Lula, que estava na lateralidade do jogo político, volta a ter relevância, mesmo que não saia candidato”

A terceira consequência é que o episódio Lula-Fachin poderá deflagrar o desmonte da Operação Lava-Jato, que, mesmo com seus abusos e excessos, provocou avanços institucionais importantes.

Ademais, o episódio jogou um balde de incertezas na conjuntura jurídica e política. A decisão de Fachin será mantida? No caso de ser mantida, como proteger a parte sadia da Lava-Jato? Qual será o futuro político de Moro? A polarização Bolsonaro versus Lula será predominante? Como fica o centro político?

É cedo para respostas definitivas. Lula, caso seja candidato, tem o desafio de unir a esquerda e buscar apoios ao centro. Bolsonaro tem outros desafios mais imediatos, como lidar com a pandemia e promover o crescimento econômico. O centro político, que não definiu qual caminho escolher na sucessão, se vê pressionado a tomar um rumo.

O curioso é que a polarização direita-­esquerda não eliminará a característica central da política brasileira: com ou sem o desmonte da Lava-Jato, quem definirá o próximo presidente da República será o eleitorado não radical.

Uma questão preocupante: a política continuará a ser profundamente afetada pelas decisões do Judiciário e, até mesmo, por decisões monocráticas que surgem como raios em céu azul? A imprevisibilidade afeta o processo de consolidação de nossas instituições tanto quanto nossas elites se iludirem com processos catárticos como soluções de prateleira aos desvios de nossa política.

Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729


Claudia Safatle: Delfim vê Lula como próximo presidente

“Sem a dúvida, dado o quadro, votaria nele de novo”, diz ex-ministro

Delfim Netto foi um dos primeiros deputados a declarar apoio à candidatura de Lula em 2002, sob o argumento de que seria importante eleger o candidato do PT, pois ele faria uma administração ruinosa, e o partido não mais voltaria ao poder. “Eu me enganei”, disse o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento a esta coluna, ontem.

“O senhor votaria nele novamente?”

 “Diante do quadro que está aí, não tenho a menor dúvida”, respondeu Delfim, que completa 93 anos no dia 1º de maio.

Depois da decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou todo o processo do petista em Curitiba, “não tem pecha de ladrão que pegue mais nele [Lula]”. O ex-ministro e ex-deputado considera que a ação de Fachin “zerou o jogo” e muito provavelmente Lula, em um confronto com Jair Bolsonaro, será o próximo presidente do Brasil.

Depois de passar 580 dias na prisão e ser solto em novembro de 2019, agora Lula foi recolocado como possível candidato à Presidência da República pelo STF. Na quarta-feira ele fez um longo pronunciamento seguido de entrevista que, para Delfim, revelou “um orador brilhante”, com uma ideia clara sobre o país que queremos: “democrático, vigoroso e mais igualitário”.

A exposição que fez no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo mostra que Lula “amadureceu dramaticamente e, talvez, para mais ninguém esse longo tempo na prisão tenha sido tão produtivo”. Ambos, Delfim Netto e Lula, têm uma relação de profunda amizade. “Fiquei feliz ao vê-lo em plena forma”, comentou o ex-ministro.

Se eventualmente Lula vier a ser eleito presidente da República em 2022, ele viria carregado de mágoas ou não as tem mais? A essa pergunta Delfim responde:

“Esse negócio de não ter mágoas é tudo mentira. Acho que não há ninguém que não tenha mágoas, mas há pessoas que são capazes de agir mesmo não usando as mágoas, e ele é um desses”.

E o mercado, como se comportaria? A Faria Lima esboçaria alguma reação? Delfim acredita que não haveria qualquer reação contrária. Afinal, não houve desde então presidente que mais protegeu o mercado financeiro e teve boa relação com os empresários.

Duas características de Lula impressionam Delfim. “Ele tem uma técnica de reunir as pessoas e provocá-las. Eu assisti à reunião dele com Guido Mantega [ministro da Fazenda] e Henrique Meirelles [então presidente do Banco Central] em que ele provocava os dois e depois arbitrava. E a esquerda que Lula representa nada mais é do que uma preocupação com a questão social. “Em uma reunião patrocinada pelo PT em São Paulo, em que se discutia o socialismo, Lula levantou-se e falou: ‘Esse negócio de igualdade é ótimo, mas sem uma hierarquia nada funciona”, relatou o ex-ministro.

Fontes oficiais avaliam que foi até bom Lula ser recolocado na disputa eleitoral, pois assim os bolsonaristas no governo ficam “mais espertos”. As duras críticas feitas por Lula ao governo ajudaram a forjar o Bolsonaro das últimas horas, um mandatário que passou a usar máscaras e parece estar empenhado em arranjar vacinas para imunizar a população, em lugar de afrontar os protocolos que evitam a contaminação por covid-19 e negligenciar a compra de vacinas, patrocinando medicamentos sem qualquer comprovação científica.

Mais medidas

Aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Emergencial, o governo ainda deve aguardar a aprovação do Orçamento da União para este ano antes de anunciar novas medidas de combate aos efeitos da pandemia. A pasta da Economia estuda, junto com outras áreas do governo, medidas de oferta de crédito para empresas, nos moldes da lei que reduziu a jornada de trabalho e os salários, dentre outras. A ideia é usar menos recursos do Tesouro Nacional e aumentar a participação do setor financeiro.

Mesmo não tendo saído exatamente como o governo queria, a PEC Emergencial pode ser vista como um “divisor de águas” para Jair Bolsonaro, na visão de fontes qualificadas que temiam uma nova vitória das corporações, desta vez da polícia, na questão dos reajustes salariais. Afinal, Bolsonaro pressionou, em vão, por mudanças para garantir a progressão e o aumento dos salários dos policiais.

“Era o rigor no gasto público e o compromisso de dispor de vacinas para imunizar a população ou um mergulho no populismo”, disse uma fonte oficial.

A proposta viabiliza a retomada do pagamento do auxílio emergencial e estabelece gatilhos a serem acionados em caso de descumprimento do teto de gastos públicos. O texto flexibiliza regras fiscais para financiar o benefício e prevê um limite para gastos fora do teto de R$ 44 bilhões.

Pelos cálculos da área técnica do governo, seriam três grupos beneficiários do auxílio: pai solteiro receberia R$ 150; o casal receberia R$ 250, e mãe solteira, R$ 350 por mais quatro meses, até o fim do primeiro semestre. Os valores podem ser ligeiramente diferentes desde que a média ponderada seja equivalente à um benefício médio de R$ 250.

A área econômica avalia que no fim do primeiro semestre o país terá vacinado boa parte da população, e o segundo semestre seria o da tão esperada retomada do crescimento.


César Felício: Poder supremo

Judiciário, na prática, exerce um poder moderador

Se há algo que muda de forma surpreendente no Brasil é o entendimento do Judiciário sobre um fato. A anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, manobra desesperada do ministro Edson Fachin para impedir a derrubada por completo de todas as punições determinadas no âmbito da Lava-Jato, é a maior tradução disso. Em uma corte antes tão escrupulosa com a forma, o Supremo Tribunal Federal agora é mais flexível em suas decisões. A questão de Curitiba não ser o foro adequado para se decidir sobre todos os casos no âmbito da operação já havia sido tratada pelo STF antes, e Fachin não concordava com a tese.. Agora foi uma das bases da decisão do ministro.

“Política é como nuvem, cada hora de um jeito”, frase em geral atribuída ao antigo governador mineiro Magalhães Pinto, aplica-se também ao entendimento da magistratura em determinadas questões. A conjuntura tem prevalecido sobre a doutrina.

É útil lembrar da sucessão de fatos do março de 2016. Não faz tanto tempo, cinco anos, e o Supremo Tribunal Federal pouco mudou. Entraram na corte Alexandre Moraes (2017) e Kassio Nunes Marques (2020). A guinada, entretanto, foi suprema.

O mês começou com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, virando réu no Supremo Tribunal Federal, por dez votos a zero, no dia 2. Na manhã seguinte, vazou a delação do senador Delcídio do Amaral implicando tanto a presidente Dilma Rousseff quanto Lula.

Em paralelo, a Lava-Jato acelerava. Lula foi levado coercitivamente para depor em 4 de março. O empresário Marcelo Odebrecht foi condenado a 19 anos e 4 meses de prisão no dia 8.

Degenerava a situação política. Em 12 de março, o PMDB rompia com o governo federal. Atos contra Dilma reuniram 500 mil pessoas no dia 15. No inesquecível 16 de março, Dilma nomeou Lula ministro da Casa Civil e o juiz Sergio Moro divulgou o famoso áudio entre os dois, fora do período permitido para a escuta e apesar da citação a pessoas com foro privilegiado. A posse foi suspensa por Gilmar Mendes no dia seguinte e não houve nenhuma punição para o magistrado. No dia 22, Rosa Weber negou recurso de Lula.

O contraste com o Supremo de 2021 é evidente. O atual presidente da Câmara, Arthur Lira, deixa de ser réu em ação penal, depois de o Supremo voltar atrás na aceitação da denúncia sobre o quadrilhão do PP. A decretação da suspeição de Moro é iminente. Lula está livre para concorrer.

Não se pode entender a reviravolta sem mencionar o vazamento de mensagens entre Moro e integrantes da Lava-Jato, mostrando que havia uma promiscuidade entre a Justiça e o Ministério Público na operação. Mas isso não explica tudo. Não é apenas Lula que está sendo redimido. A mão pesada está sendo retirada de toda classe política.

Foi o cientista político Humberto Dantas, da Faculdade de Sociologia de São Paulo (Fesp) e do Centro de Liderança Pública (CLP), que alertou em artigo para a falta de sincronia entre o março de 2016 e o deste ano. “Há muitas análises sobre o impacto eleitoral do retorno de Lula ao cenário, sempre condicionadas pelas circunstâncias. O momento para Bolsonaro é péssimo, isso pode mudar. Já a instabilidade de decisões do Judiciário é algo que começa a se tornar preocupante”, afirmou.

Para Dantas, a Justiça cometeu atropelos em 2016 ao tolerar extravagâncias da Operação Lava-Jato, que desvirtuaram a investigação contra Lula, e se desdiz agora. Constata-se que temos um Judiciário de conjuntura, atento sempre para a direção que o vento sopra. Ele não vê no movimento um “mea culpa” do Judiciário em relação a erros passados, mas a permanência de um padrão que se destaca pela insegurança. “Diminui a expectativa da sociedade por imparcialidade na corte”, constata.

Ele também vê a mesma falta de constância na decisão que levou ao cárcere o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), tomada pelo ministro Alexandre de Moraes. Se Silveira fez ataques às instituições e colocou em risco a segurança nacional, o então deputado Jair Bolsonaro não fez o mesmo em repetidas ocasiões durante sua vida parlamentar, sem jamais sofrer sanção nenhuma?

O Supremo avança além de suas competências, legisla sobre questão eleitoral, pode influir tão decisivamente na eleição de 2022 quanto influiu na última. A situação jurídica de Lula, por exemplo, permanece precária. Não é impossível que ele seja retirado do quadro dos candidatos em breve, ou na vigésima-quinta hora.

O Judiciário exerce, hoje, um verdadeiro poder moderador. Cioso de seus privilégios, do topo à base. Ontem um juiz federal substituto em Brasília, Rolando Spanholo, garantiu em liminar à Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages) o direito de importar e aplicar vacinas contra covid-19 exclusivamente para “seus associados e respectivos familiares”.

A sociedade e o Congresso toleram o Judiciário assim porque os arroubos autoritários do presidente Jair Bolsonaro e dos seus apoiadores estressam o sistema democrático, deixam sempre a ruptura no horizonte e a muralha de contenção que existe está na magistratura. Mas Dantas pergunta: o que aconteceria se a Justiça, no futuro, ficasse alinhada a um Executivo com viés ditatorial?

O exercício é sinistro, sobretudo quando se enxerga o passado recente. Sem entrar no mérito das decisões, o Judiciário foi fundamental tanto para que o impeachment de Dilma se concretizasse há cinco anos, quanto para que Michel Temer concluísse o mandato, ao rejeitar a impugnação eleitoral da chapa de 2014. É ali, e não nos quartéis, que se concentra poder real. O que faz com que se olhe com redobrada atenção para a próxima escolha de Jair Bolsonaro para compor a corte, no próximo mês.

*César Felício é editor de Política.


Celso Ming: Vacina e economia

Uns entendem que o presidente Jair Bolsonaro não tem estratégia na sua política econômica. Outros, que não tem rumo. Outros, ainda, que ele não sabe o que quer.

É bom começar por discordar desses últimos. Bolsonaro sabe o que quer. Mais que tudo, ele quer se reeleger em 2022. Porém, a partir daí, fica tudo muito confuso, especialmente desde segunda-feira, quando inesperadamente o Supremo limpou a ficha do ex-presidente Lula e o tornou elegível.

Para garantir sua chance de se reeleger, Bolsonaro sabe que tem de mostrar serviço na economia. Não poderá pretender sucesso nas eleições se o desemprego continuar atingindo 13,5% da população ativa, se a renda continuar despencando, se continuar o ritmo de falência de milhares de empresas, se tantas e tradicionais fábricas começam a ser fechadas, como aconteceu com a Ford em Santo André, com a Mercedes Benz em Iracemápolis, com a 3M em São José do Rio Preto e com a Sony em Manaus.

A razão pela qual Bolsonaro se rebelou contra as medidas de distanciamento social para enfrentar a covid-19 e se rebelou nesta quinta-feira diante da nova “fase emergencial” decretada pelo governo do Estado de São Paulo é o fato de que elas derrubam o consumo, o faturamento do comércio e da indústria, produzem desemprego. É uma atitude imediatista e contraproducente, porque a melhor forma de conter o contágio e de retomar a atividade e o emprego é isolar temporariamente a população.

Bolsonaro recomendou remédios sem eficácia contra a covid-19, como a cloroquina, e desprezou qualquer coordenação do contra-ataque ao vírus. Até mesmo na sua especialidade, a logística, o atual ministro da Saúde, o general intendente  Eduardo Pazuello, teve atuação desastrada. Faltou UTI, faltou oxigênio, faltaram seringas, falta vacina, faltou tudo, sobrou incompetência.

Se admira a política sanitária de Israel, como afirma, Bolsonaro teria feito o que Israel vem fazendo: depois de ter isolado a população, acelerou a vacinação. Hoje Israel apresenta o maior índice de vacinação do mundo: 104,81 doses ministradas por 100 habitantes.

A maneira mais eficaz de combater o coronavírus e de reerguer a economia é a vacina. O ministro da Economia tem lançado todos os dias advertências nesse sentido. Mas também nesse ponto, Bolsonaro teve atitude desastrosa. Boicotou as vacinas e impediu a importação de suprimentos enquanto estiveram disponíveis.

Nas últimas semanas parou de meter medo na população e parece ter mudado em alguma coisa sua atitude. Parece ter entendido que devesse adotar uma espécie de plano vacina, tomou a iniciativa de reunir-se com representante da Pfizer e encomendou um lote de 14 milhões de doses ao Brasil até junho. Nesta quarta-feira, sancionou projeto de lei aprovado pelo Congresso que autoriza o setor privado a comprar vacinas.

Ainda é pouco e muito tarde. E sabe-se lá se essa repentina conversão é para valer. O País se aproxima das 300 mil mortes pela covid-19. Apesar da forte recuperação mundial, a atividade econômica interna ainda não encontrou sustentação, a renda vai se desmilinguindo, o desânimo se espalha. E não fica claro como essa nova postura de Bolsonaro em relação à vacina pode ajudar a dar coerência à política econômica.


Eliane Cantanhêde: Lula é o oponente ideal para Bolsonaro, mas Lula e pandemia, juntos, ameaçam a reeleição

Jair Bolsonaro correu sozinho no páreo até aqui, mas passou a ter oposição

Com a falta de leitos e a disparada de mortes, o Exército Brasileiro logo estará entre duas alternativas: ir para a rua garantir o lockdown e salvar vidas, como propõe a senadora Kátia Abreu, ou, depois, usar seus caminhões para transportar corpos, como advertiu o então ministro Luiz Henrique Mandetta para o presidente Jair Bolsonaro, ao selar sua demissão do governo ainda no início da pandemia. O presidente não sabe ouvir a verdade. Degolou o ministro. 

Mandetta caiu por defender isolamento social e Nelson Teich, por se recusar a adotar um medicamento rejeitado no mundo inteiro contra o coronavírus. Bolsonaro, então, foi buscar um general da ativa para ignorar o isolamento, liberar geral a cloroquina e bater continência para qualquer barbaridade – inclusive contra vacinas e até contra máscaras. 

Só um ser na face da Terra é capaz de fazer Bolsonaro cair na real: Luiz Inácio Lula da Silva. Ao entrar na campanha presidencial de 2022, na quarta-feira, Lula já empurrou Bolsonaro para o campo minado onde ele é mais vulnerável, exatamente a pandemia, que pode, ou deve, chegar a 300 mil mortos ainda em março. Os conselheiros do presidente, muito terraplanistas e pouco científicos, previam 2.100... 

Bolsonaro sentiu o golpe de Lula quase imediatamente. Logo depois da fala de Lula, que estava de máscara, pediu licença para tirá-la e passou álcool teatralmente no microfone, eis que o presidente aparece numa cerimônia do Planalto de máscara! Ele nunca usa, nem nos palácios, nas padarias, nas ruas, nem mesmo ao abraçar velhos e crianças em campanha política pelo País e já tentou até desacreditar o uso de máscaras numa live da internet. Foi patético! 

Para piorar, o senador Flávio Bolsonaro, o “01”, esse da mansão mal explicada de R$ 6 milhões, pediu para a tropa viralizar a nova mensagem do pai: “Nossa arma é a vacina!”. Como assim? Todo mundo sabe que as “armas” dos Bolsonaros não são as vacinas, são revólveres, pistolas, rifles, balas. E que, para o presidente, a “vacina chinesa do Doria” (que a mãe dele tomou) causa “morte, invalidez e anomalia”. E alguém se esqueceu? “Não vou tomar, ponto final.” 

O papai Jair e o irmão “01” tentaram, portanto, dar uma cambalhota no negacionismo, mas a única coisa que conseguiram foi aumentar a montanha de frases, imagens e atos que Lula já tem fartamente à disposição sobre o negacionismo de Bolsonaro, apontado como o pior líder do mundo na pandemia. E se esqueceram de avisar da guinada para o deputado Eduardo Bolsonaro, o “03”. 

Em Israel, sem saber que agora máscara é legal, vacina é bacana e era para dar o dito pelo não dito, lá foi ele xingar a imprensa de “mequetrefe” por cobrar uso de máscara e divulgar que, numa comparação impregnada de simbologia, a comitiva liderada pelo chanceler Ernesto Araújo tirou foto sem máscara no embarque no Brasil e com ela no desembarque em Tel-Aviv. E o vexame do chanceler? Mas deixa pra lá. O fundamental é que estavam todos lá para um ato místico: orar para um spray milagroso. 

A imprensa é mequetrefe, intrometida, enxerida e, assim, descobre mansões, rachadinhas, Queiroz, Wassef e informações privilegiadas da Petrobrás... A real ameaça é um presidente que se mete onde não deve, ataca a ciência, a inteligência, as pesquisas, as estatísticas, o ambiente, a cultura, a OMS, os parceiros prioritários do Brasil. Reclama que os governadores estão “destruindo” a economia, mas ele próprio destrói vidas. 

Detestem ou não Lula, ele traz duas novidades para o ambiente macabramente contaminado do Brasil. Jair Bolsonaro correu sozinho no páreo até aqui, mas passou a ter oposição. E o petista é considerado o oponente dos seus sonhos, mas Lula e pandemia, juntos, podem ser mortais para a reeleição.