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Ricardo Noblat: Acuado pelo vírus, Bolsonaro assiste Lula atrair velhos aliados

Versão Lulinha paz e amor de volta à cena

De Guilherme Boulos a Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda na ditadura entre 1967 e 1974, passando por José Sarney (MDB) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), todos admitem votar em Lula se ele disputar com Bolsonaro o segundo turno da eleição do próximo ano. É o tal “arco da sociedade” de antigamente.

Boulos e Delfim são os mais entusiasmados. O primeiro ainda não explicitou seu apoio a Lula porque tem antes de convencer o seu partido. A tarefa de Delfim é mais hercúlea – abrir trincas no paredão do mercado financeiro que resiste a Lula e ainda põe um resto de fé em Bolsonaro à espera das reformas.

Na eleição de 2018, quando o candidato do PSDB a presidente obteve no primeiro turno apenas 5% dos votos válidos, Fernando Henrique, embora amigo de Fernando Haddad (PT), preferiu não votar em ninguém no segundo turno. Arrependeu-se, como admitiu ontem em entrevista a Tales Faria, do UOL:

– Se ficar Lula e Bolsonaro, faço minha culpa, minha culpa e voto no menos ruim.

Fernando Henrique ainda espera que seu partido escolha um nome com chances de derrotar Bolsonaro, mas já avisa: “Se não se opuser a Bolsonaro com firmeza, fracassará”. João Doria (PSDB), governador de São Paulo, recuou do seu propósito de enfrentar Bolsonaro, embora tope enfrentar se seu partido quiser.

João Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, persevera na intenção de bater-se contra o atual presidente. Até aqui, pelo menos, seu nome parece encontrar menor oposição dentro do partido. Na eleição de 2018, o Rio Grande do Sul deu 63% dos seus votos a Bolsonaro no segundo turno.

O MDB de Sarney é também o MDB de Michel Temer que, por enquanto, permanece calado. Em segredo, Temer deu conselhos a Bolsonaro na esperança de que seu governo se ajeitasse. Pouco escutado, retraiu-se. Ele e Lula sempre se deram bem. Dilma não quer conversa com Temer, mas ela está fora do jogo.

Bolsonaro é quem deve se preocupar com sua permanência no jogo. Começou a colher os resultados desastrosos de sua omissão no combate à pandemia. Ou melhor: da sua parceria com a Covid no estrago que ela provoca no país. Sucessivas e recentes pesquisas de opinião pública atestam que ele está ladeira a baixo.

No dia em que o número de mortes alcançou o recorde de 2.798, quase duas por minuto, e a Fundação Oswaldo Cruz anunciou que o país enfrenta o maior colapso hospitalar de sua história, o Datafolha conferiu que a atuação de Bolsonaro na guerra contra o vírus é considerada ruim ou péssima por 54% dos brasileiros.

Na pesquisa Datafolha realizada em 20 e 21 de janeiro último, 48% reprovaram o desempenho dele. Na rodada atual, para 43%, ele é o principal culpado pela fase aguda da pandemia, seguido pelos governadores (17%) e os prefeitos (9%). O índice dos que nunca acreditam no que ele diz oscilou de 41% para 45%.

No ocaso da gestão do general Eduardo Pazuello, substituído no cargo pelo médico bolsonarista Marcelo Queiroga, a avaliação positiva do Ministério da Saúde, de janeiro para cá,  caiu de 35% para 28%, o menor índice desde a chegada do novo coronavírus. A avaliação negativa subiu de 30% para 39%.

Em sua primeira fala como ministro, Queiroga disse a que veio. Recomendou o uso de máscara e a lavagem das mãos, solidarizou-se com as vítimas da Covid e repetiu que dará continuidade ao trabalho de Pazuello e seguirá as orientações de Bolsonaro. É uma nova versão do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Hamilton Mourão, vice-presidente da República, deu razão a Queiroga: “A função do ministro, quem define é o presidente. O ministro é um executor das decisões do presidente. Até por isso, o presidente é o responsável por tudo o que aconteça ou deixe de acontecer, essa é a realidade”. (Maldade com Bolsonaro!!!)

Na célebre e barulhenta reunião ministerial de abril do ano passado, o ministro do Meio Ambiente sugeriu a Bolsonaro “passar a manada” da desregulamentação do setor enquanto a mídia estivesse ocupada com a pandemia. Acuado pelo vírus, Bolsonaro assiste Lula aparar suas eventuais diferenças com antigos aliados.

O futuro assegura um emprego bem pago ao general Pazuello

A quarta estrela será difícil

Se quiser retornar ao quartel, tudo bem. O general Eduardo Pazuello, de saída do Ministério da Saúde, deixou ali grandes amigos. Só não deve contar necessariamente com a quarta estrela que lhe falta no ombro. Doublé de general e de ministro de um governo turbulento, ele desgastou-se no Exército.

Mas o provável é que ganhe uma embaixada para não ficar ao desamparo, e ainda por cima sob o risco de ser chamado a depor diante de um juiz da primeira instância e de ouvir voz de prisão, acusado de improbidade administrativa. Embaixada quer dizer: um emprego bem pago que lhe confira visibilidade.

Pode ser dentro do Palácio do Planalto, a relativa distância do gabinete do presidente Jair Bolsonaro, ou fora, no comando de alguma empresa estatal. Ou como conselheiro de uma dessas empresas. Desabrigado não ficará para não sujeitar-se a vexames e em reconhecimento aos serviços prestados ao ex-capitão.


Rosângela Bittar: Enquanto isso...

Recobrando a liberdade de ir e vir, o ex-presidente Lula reanima velhos contatos

Discretamente, como convém a quem ainda não ganhou certificado de inocência nem a plena reabilitação política, o ex-presidente Lula vai escrevendo, na prática, seu roteiro de candidato. A manifestação da volta, pensada por ele mesmo, um retrato fiel do velho Lula de sempre, contém indicação ampla sobre o que se deve observar nos passos seguintes. Tanto no que revelou como no que escondeu.

pandemia foi a preliminar de efeito político imediato. A simples menção às ações necessárias já resultou na troca do ministro da Saúde. Satisfez o eleitorado só pelo contraste entre suas palavras de mero bom senso e a realidade política atual, forjada na irracionalidade.

Recobrando a liberdade de ir e vir, mesmo que em modo virtual, Lula reanima velhos contatos. Chama a atenção de empresários e convoca políticos amigos, como os caciques do MDB. Partido disseminado por todos os Estados, o MDB é uma federação de lideranças neutras ideologicamente, que agrega civis e militares, empresários e sindicatos, capital e interior, uma salada de referências na sociedade.

Ainda neste campo sua agenda registra o Centrão. O bloco dá sustentação fiel ao presidente Jair Bolsonaro. Mas governo e eleição são duas coisas diferentes, o Centrão está aí, para o que der e vier.

O que ainda não estava implícito nem explícito, mas não surpreende, são os movimentos e conversas de Lula no terreno delicado de suas relações com os militares.

A atualização do episódio, já desgastado, da pressão do general Villas Bôas sobre o STF, em 2018, simplifica os efeitos do constrangimento da época. Agora, Lula está tão aberto às conversas com militares que seus partidários consideram natural uma aproximação objetiva, de alto nível.

Citam o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-secretário de Governo nos primeiros meses da administração Jair Bolsonaro, como um dos nomes para compor a chapa, como vice-presidente. União que permitiria ampla composição, como se deu com o falecido industrial José Alencar nos mandatos presidenciais de Lula. 

O interesse por Santos Cruz revela dois aspectos das preocupações do candidato Lula. Primeiro, o resgate das boas relações com as Forças Armadas. Segundo, a expectativa de colaboração efetiva do general, expurgado do atual governo por um dos filhos do presidente. Saiu como vítima de fake news, uma prática depois banalizada, e deixou a impressão de ser o mais preparado dos colaboradores militares do governo.

Estes movimentos visam também modular a tentativa de politizar o Exército por parte do candidato à reeleição, seu adversário. O presidente Jair Bolsonaro, embora de origem militar, desviou-se do padrão de atuação e comportamento das Forças Armadas. A ambiguidade com que se refere ao "meu Exército" sugere mais seu lado miliciano do que propriamente militar.

Lado este, por sinal, que está em crescimento e ebulição. Certamente não foram as Forças Armadas que atuaram nos violentos episódios de intimidação moral e ameaça física à cardiologista Ludhmila Hajjar, convidada para integrar o governo. Convite recusado depois de dois dias de terror sob o comando do gabinete do ódio.

A investida evidenciou como está avançada a ocupação do território por esta milícia extremista, violenta, agressiva e ilegal do bolsonarismo. Prática de um terrorismo contemporizado pelo presidente, que consolou a vítima com um covarde "faz parte".

Expansão esta que chegou com força ao Congresso. Os presidentes da Câmara e do Senado pagam caro a fatura da sua eleição: o deputado Arthur Lira entregou joias da coroa parlamentar a deputadas da barricada bolsonarista; o senador Rodrigo Pacheco engavetou CPI proposta, dentro das regras, por senadores que pretendem apurar a letal gestão da pandemia pelo presidente da República.


Bernardo Mello Franco: Continuidade é morte

Na reta final do governo, José Sarney entregou o comando do antigo Inamps ao médico que atendia sua família. Ao se apresentar aos colegas, o escolhido arriscou um gracejo: “Sou um dos poucos brasileiros que já viram o presidente nu”. Na lógica do patrimonialismo, estava justificada a nomeação.

Jair Bolsonaro convidou Marcelo Queiroga a assumir o Ministério da Saúde. Qualquer médico seria melhor que o general Eduardo Pazuello, mas o indicado não tem qualquer experiência em gestão pública. Suas credenciais são outras: ele pediu votos para o capitão e é íntimo de Flávio, o primeiro-filho.

Queiroga deu as caras no dia em que o Brasil registrou novo recorde de mortes na pandemia: 2.798. Na primeira declaração pública, ele prometeu “continuidade”. “A política é do governo Bolsonaro. O ministro da Saúde executa a política do governo”, disse.

A gestão de Pazuello foi um desastre político e humanitário. Suas primeiras ações foram militarizar a pasta e maquiar números oficiais para esconder cadáveres. Ele se dizia especialista em logística, mas deixou faltar testes, medicamentos e até oxigênio nos hospitais.

O paraquedista admitiu que, ao ser nomeado, “não sabia nem o que era o SUS”. Não sabia, não quis saber e esnobou quem tentou aconselhá-lo. Em outro surto de sinceridade, ele reconheceu que só estava no cargo para cumprir ordens de Bolsonaro. “Um manda, o outro obedece”, explicou.

Quando Pazuello assumiu, o Brasil contava 14 mil mortos pela Covid. Ontem ultrapassou os 282 mil. O vírus está fora de controle, a vacinação se arrasta a conta-gotas, e o presidente insiste em sabotar as políticas de distanciamento social.

Queiroga será o quarto ministro da Saúde em um ano de pandemia. Henrique Mandetta e Nelson Teich saíram para não rasgar o diploma de médico. Pazuello fez o que fez, e a cardiologista Ludhmila Hajjar recusou o posto ao ver que não teria autonomia para trabalhar.

O amigo do Zero Um pode admirar o capitão, mas precisa mostrar que não será mais um pau-mandado. No cargo que ele vai ocupar, apostar na continuidade é selar um pacto com a morte.


Vera Magalhães: Lockdown já

O Brasil precisa parar por duas semanas. Nosso sistema hospitalar não dá mais conta de resistir a medidas paliativas ou meramente figurativas de distanciamento social nem à recusa suicida de grande parcela da sociedade em fazer o mínimo: a parte de cada um para evitar o morticínio.

A troca de guarda no Ministério da Saúde, já é possível ver, será de seis por meia dúzia. Marcelo Queiroga até conforta pela fala mansa, conciliatória, contrastante com o tom arrogante e desconectado da realidade do general Eduardo Pazuello.

Suas credenciais, que colhi em entrevistas com médicos e dirigentes de entidades médicas, são boas, de alguém zeloso da ciência e das evidências, que não aderirá facilmente a condutas criminosas como as que Pazuello chancelou batendo continência.

Só que isso não basta. Para que se mude o rumo da tragédia sanitária brasileira, que preocupa o mundo e condena o planeta a não superar a pandemia, é preciso que o Brasil pare, se tranque em casa e dê apoio muito mais intensivo e urgente aos que não têm de onde tirar o sustento a não ser na rua e a empresas que quebrarão se fecharem as portas.

Mas elas precisam fechar, sob pena de continuarmos a assistir diariamente à perda de mais de 2.000 pessoas como se isso fosse um dado da natureza.

Não há paralelo em nenhum outro país de tolerância por tanto tempo, e em números tão elevados, com a carnificina. Como se estivéssemos propositalmente jogando gente como nós, brasileiros com todos os direitos e deveres, ao mar para assegurar os poucos coletes salva-vidas restantes. Isso não é aceitável nos planos político, jurídico, ético ou moral. Tal comportamento faz de todos, governantes ou não, cúmplices de chacinas diárias e espalhadas por todo o território nacional.

Faz de nós um país de pessoas que aceitam um pacto macabro com Bolsonaro a favor da morte. Se toparmos ser parte dessa estratégia, a História cobrará não só dele, mas de cada um que viveu na década de 2020.

Parar custará muito em termos de transferência de renda às pessoas, de recursos aos entes subnacionais e de apoio na forma de crédito, isenção tributária ou subsídio a empresas, inclusive com redução de salários.

Mas não há nenhuma outra medida que, na falta criminosa de vacina em quantidade ao menos razoável, nos tire desta guerra em que estamos enfrentando o vírus desarmados.

Em vez de querer tirar uma casquinha obscena da popularidade dos governadores todos os dias, o presidente que somos condenados a ter no tempo mais grave das nossas vidas precisa ajudá-los, dar-lhes um suporte. Precisa ser obrigado a fazer isso pelo Judiciário, que até já ensaiou fazer isso, mas que precisa fazer cumprir suas decisões, senão viram letra morta.

Bolsonaro precisa ser forçado a endossar o lockdown por um Congresso que até aqui tem sido seu comparsa. Fechado com ele por interesses indizíveis, que nada têm a ver com o dos brasileiros que querem um leito e oxigênio para seus pais, avós e filhos.

O cronograma mentiroso de vacinas de Pazuello, que Queiroga endossou alegremente, fala em mais de 500 milhões de doses de imunizantes de procedência diversa até o fim do ano. Não para em pé nem sequer no que promete para março, incluindo no cômputo 8 milhões de unidades procedentes de um laboratório da Índia que nem concluiu a fase 3 de estudos. Trata-se de uma empulhação criminosa.

Ou o lockdown é assumido como política de Estado pelo Brasil, como foi com desassombro por países tão diversos quanto Nova Zelândia, Portugal, Chile e Alemanha, ou amanhã teremos de lidar com números mais sombrios. E por muito tempo, já que Bolsonaro zombou da pandemia, pisoteou cadáveres, desdenhou vacinas e nos trouxe até aqui.


"Bolsonaro não é só um mau soldado. É um fascista incapaz", afirma Alberto Aggio

Em entrevista exclusiva à Política Democrática Online de março, professor da Unesp avalia o governo do presidente como “ameaçador à democracia”

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) diz que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) “gostaria de ser um líder fascista, mas ele fez a vida dentro do Estado, como militar e como parlamentar”. A declaração ocorreu em entrevista exclusiva publicada na edição de março da revista Política Democrática Online.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

Com periodicidade mensal, a revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

“Fascismo caricatural”

Mestre e doutor em História pela USP (Universidade de São Paulo), Aggio afirma que “o fascismo de Bolsonaro é caricatural”. “Sua inclinação é muito mais tradicionalista, de uma sociedade fechada. Bolsonaro é o anti-Popper, é visceralmente contra a sociedade aberta”, critica o professor.

Aggio, que é diretor do blog “Horizontes Democráticos”, voltado para o debate da política contemporânea no Brasil no mundo, também afirma que o presidente é “um pragmático”. “Mas por ser mentalmente restrito é alguém que não tem capacidade de ampliação pelo que ele representa. Em suma, não é efetivamente um líder”, analisa.

Com pós-doutorado nas universidades de Valência (Espanha) e Roma3 (Itália), o historiador afirma que, pelos acordos políticos que estão conseguindo impedir o impeachment, Bolsonaro pode conseguir a reeleição. Mas com uma condição: “Se seus opositores errarem muito, e infelizmente sabemos que isso pode acontecer”, afirma.

Agruras

Na entrevista à revista da FAP, Aggio explica que o fascismo nasceu da sociedade, das agruras do pós-Primeira Guerra. No fundo, de acordo com ele, “Bolsonaro é não só um mau soldado, como disse o General Geisel, mas é também um fascista incapaz”.

Segundo o entrevistado, além da ligação com os militares, a vinculação do presidente com a religião é instrumental, a pauta de costumes reacionária, tradicionalista. “Bolsonaro espelha melhor um regime autoritário a la Salazar ou Franco, do que a la Mussolini ou Hitler, esses, sim, carregaram um projeto ativo e moderno de mundialização, mas foram derrotados”, diz.

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Luiz Carlos Azedo: Apagão logístico na Saúde

Queiroga assume o ministério deslumbrado com o cargo e alinhado com Bolsonaro, mas completamente perdido diante da gravidade da crise sanitária

O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, assume o cargo em meio a um apagão logístico: faltam vacinas, mesmo com o escalonamento da programação, leitos, respiradores, oxigênio, material para intubação, sedativos e pessoal treinado em várias regiões do país. Em São Paulo, o estado com mais recursos, maior rede hospitalar e principal produtor de imunizantes do país, a situação é dramática, com uma morte a cada dois minutos. Queiroga fez, ontem, um discurso ambíguo, no qual defendeu a “política de saúde do presidente Jair Bolsonaro” e, ao mesmo tempo, destacou a importância das “evidências científicas” na condução da pasta, o que é uma contradição. Bolsonaro é contra as medidas de governadores e prefeitos para conter a propagação do vírus e evitar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). Está deslumbrado com o cargo, mas completamente perdido diante da gravidade da situação.

Com a saída de Pazuello, não haverá uma transição, mas continuidade da política que estava sendo implementada por ele. Nenhuma mudança na equipe do ministério, formada por militares, foi anunciada. O novo ministro assumiu a pasta no dia em que o Brasil registrou 2.841 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, recorde absoluto desde o início da pandemia, e 84.362 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Com isso, o número de vítimas fatais da doença chegou a 282.128, e o total de casos, a 11,603 milhões. Falta uma coordenação nacional de combate à pandemia, agravada pelo fato de que o presidente Bolsonaro estimula a desobediência civil e o desrespeito às medidas de isolamento social.

Rio Branco, Rio de Janeiro, João Pessoa, Macapá e Aracaju interromperam a aplicação da primeira dose da vacina contra a covid-19 porque o estoque acabou. Maceió suspendeu a imunização programada para ontem. Em Belford Roxo (RJ), milhares de pessoas se aglomeraram nos postos de vacinação sem conseguir receber a dose, todos idosos. Até agora, o Brasil vacinou cerca de 10 milhões de pessoas, o que equivale a 4,7% da população. É muito pouco, porque a chamada P1, originária de Manaus, já se espalhou por todo o país. Esse vírus mutante é responsável pelo novo perfil da pandemia, com taxa de contaminação mais alta e letalidade maior. Também está hospitalizando pacientes mais jovens, por longo tempo.

Falta de insumos
Em São Paulo, foram 679 novas mortes provocadas pela covid-19 em 24 horas, a maior taxa desde o início da pandemia. O estado totaliza 64.902 óbitos causados pelo coronavírus. Nessa escalada, será inevitável um lockdown em muitas cidades, pois 90% dos leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) para covid-19 estão ocupados. O índice considera hospitais públicos e particulares. Na Grande São Paulo, a taxa média é ainda maior, 90,6%. Em todo o estado, 69 cidades já alcançaram 100% de ocupação de leitos de UTI. São 24.992 pessoas internadas, sendo 10.756 em UTIs e 14.236, em enfermaria.

No Rio Grande do Sul, foram 502 óbitos nas últimas 24 horas. É o maior registro diário em toda a pandemia. A taxa de ocupação dos leitos de UTIs estava em 109,6%. Dos 3.461 pacientes hospitalizados em leitos críticos, 2.534 são de pessoas confirmadas com covid (73,2%). Na rede privada, a situação é ainda mais grave: 135% das vagas de UTI adulto estão ocupadas. No Sistema Público de Saúde (SUS), a taxa é de 99%. Faltam equipamentos; os profissionais de saúde estão esgotados e adoecendo.

Em Mato Grosso, faltam respiradores. Em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá, médicos que trabalham na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Bairro Ipase desmontaram estetoscópios para usar a mangueira do aparelho como mangueira de oxigênio, já que o insumo está em falta. No Ceará, todos os hospitais da rede privada de Fortaleza estão em colapso, com 100% dos leitos de enfermaria e UTI ocupados. No Paraná, 28 hospitais de Curitiba e região estão em colapso, mesmo com o lockdown. Em Santa Catarina, faltam bloqueadores neuromusculares e anestésicos para a realização de intubação de pacientes em tratamento contra a doença. Acabaram os estoques de medicamentos, como Rocuronio, Propofol e Atracúrio.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-apagao-logistico-na-saude/

O Globo: Rejeição a Bolsonaro na condução da crise da pandemia chega a 54%, diz Datafolha

Avaliação negativa cresceu seis pontos em dois meses; reprovação ao governo como um todo é de 44%, também o maior patamar até então

Marco Grillo, O Globo

BRASÍLIA– Em meio à sequência de recordes diários na média móvel de casos de coronavírus e com o país se aproximando do patamar de 3 mil mortes por dia – foram 2.798 nesta terça-feira –, mais da metade dos brasileiros, pela primeira vez, rejeitam a gestão do presidente Jair Bolsonaro na condução da pandemia. Pesquisa Datafolha divulgada na noite desta terça-feira pelo jornal "Folha de S. Paulo" mostra que 54% da população avaliam como ruim ou péssima a atuação presidencial na crise sanitária. Em outro dado colhido pelo instituto, 44% reprovam o governo como um todo – eram 40% no fim de janeiro.

A avaliação negativa sobre a postura do governo no enfrentamento à Covid-19 deu um salto de seis pontos percentuais em dois meses – o índice era de 48% em janeiro. Por outro lado, hoje, 22% acreditam que a atuação é ótima ou boa, enquanto 24% afirmam que é regular – os patamares, em janeiro, eram de 26% e 25%, respectivamente.

Por segmento, a rejeição encontra seu ponto mais alto entre aqueles com ensino superior: 65%. Já o pico de aprovação, 38%, é identificado entre empresários, segmento que, em parte, o presidente busca agradar, combatendo medidas de fechamento do comércio.

Ao serem perguntados sobre quem é o principal culpado pela situação atual da crise vivida pelo país, 43% responderam que é o presidente; 17% dizem que são os governadores; 9% põem a culpa nos prefeitos.

No olhar geral sobre a administração, a reprovação chega a 44%, mesmo patamar de junho do ano passado, último ponto antes de uma sequência de queda turbinada pelo pagamento do auxílio emergencial. Depois de chegar a 32% em dezembro, o índice voltou a subir até repetir o maior valor desde o início do governo. O governo é tido como ótimo ou bom por 30% – eram 31% em janeiro – e como regular por 24% – eram 26% há dois meses.

A aprovação também é maior do que a média entre empresários (55%), moradores do Sul (39%) e evangélicos (37%). A reprovação, por sua vez, tem seus maiores índices entre quem concluiu o ensino superior (55%), pretos (55%), aqueles com renda mensal acima de dez salários mínimos (54%) e entre moradores do Nordeste (49%).

Já o desempenho do Ministério da Saúde, que terá o quarto ministro desde o início da crise sanitária, é considerado ruim ou péssimo por 39% dos brasileiros, um crescimento de nove pontos percentuais em relação a janeiro. Há ainda 32% que consideram a gestão regular, enquanto 28% dizem ser ótima ou boa.

O Datafolha ouviu por telefone 2.023 pessoas nos dias 15 e 16 de março. A margem de erro é de dois pontos para mais ou menos.


Cristiano Romero: Subestimar Jair Bolsonaro é um erro

Negacionismo do presidente tem cálculo político

Jair Messias Bolsonaro não é o primeiro presidente brasileiro cuja habilidade política é subestimada pela maioria dos analistas. Durante um bom tempo, duvidou-se da capacidade de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de governar o país. Antes do petista, era quase unânime a opinião de que Itamar Franco, o vice que assumiu o cargo em decorrência do primeiro impeachment da história do país _ de Fernando Collor de Mello, em 1992 _, de tão “incompetente”, “tolo” e “turrão” acabaria de afundar a nação no caos iniciado por seu antecessor.

Bolsonaro passou 28 anos na Câmara dos Deputados com apenas uma preocupação: reeleger-se a cada quatro anos. Não foi difícil, afinal, sua bandeira, única, sempre foi defender privilégios e vantagens das corporações militares, o que, evidentemente, significou apoiar, de um modo geral, os interesses da burocracia estatal, o Estado dentro do Estado, o poder autóctone deste país, patrimonialista por definição.

O atual presidente defendeu os soldos dos militares durante o período, provavelmente, de maior arrocho salarial do funcionalismo na história _ os primeiros anos de estabilização da economia, após o lançamento do Plano Real, em 1994. Com a queda abrupta dos índices de preços de cerca de 2.800% para 50% ao ano, o enorme desequilíbrio das contas públicas apareceu instantaneamente nos orçamentos, uma vez que, antes, a inflação crônica corroía o valor real da despesa, criando a ilusão de que o setor público não gastava mais do que arrecadava.

Entre outras providências, coube ao primeiro primeiro presidente eleito no pós-Real _ Fernando Henrique Cardoso (PSDB) _ segurar a evolução dos salários do funcionalismo civil e dos militares para conter, minimamente, o déficit público. Ainda no primeiro mandato de FHC (1995-1998), o déficit nominal _ conceito que inclui todas as despesas, inclusive, os juros da dívida _ chegou a 7% do Produto Interno Bruto (PIB).

Para o deputado Jair Bolsonaro, gritar contra o arrocho salarial de FHC e conquistar votos na família militar foi mais fácil que decorar a tabuada do número 1. Isto explica o ódio devotado por militares bolsonaristas ao ex-presidente. Em entrevista ao Valor em 2019, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um dos mais próximos do presidente da República, disse que "Lula é terrível, mas o Fernando Henrique era pior, hein?”, uma óbvia referência ao principal alvo de Bolsonaro nos anos em que era visto apenas como uma figura folclórica da direita brasileira.

Talvez, nem em sonho Bolsonaro tivesse acreditado que, um dia, haveria a chance de sair do folclore para tornar-se o primeiro mandatário do país com a 6a. maior população do planeta, a quarta extensão territorial e a 12a. Maior economia (há poucos anos, caminhava para ser a 5a. Maior, mas esta é outra história). Mas, a tragédia inacreditável do governo da presidente Dilma Rousseff (PT) criou oportunidade única para Bolsonaro ambicionar seu salto inesperado na política nacional.

Em 2015, quando o país já ingressara no segundo ano da mais profunda e longa recessão de sua história, provocada por sucessão inacreditável de equívocos de política econômica cometidos pelo governo Dilma, Bolsonaro e seus seguidores montaram estratégia nas redes sociais para fazer do então deputado o candidato anti-PT, anti-Dilma, “anti-também-tudo-isso-daí”. Com a Operação Lava-Jato fazendo estragos nas hostes tanto do PT quanto do PSDB, a economia atolada numa recessão e o maior líder popular da história do país, Lula, encarcerado, o atual presidente tornou-se rapidamente um fenômeno nas redes sociais, ignorado por alguns, subestimado por muitos, entre os quais, o titular desta coluna.

“Quando a campanha oficial começar, em agosto de 2018, o tempo diminuto de horário eleitoral gratuito frente a outros candidatos fará de Bolsonaro o Celso Russomano da disputa presidencial _ sempre larga na frente, mas nunca chega em primeiro. Vai desidratar nas pesquisas”, dizia-se sobre as perspectivas eleitorais de Bolsonaro. A cada previsão frustrada, analistas experientes da cena política nacional faziam novas projeções, segundo as quais, o então candidato do PSL naufragaria.

Nos livros de História do Brasil, provavelmente na maioria deles, será dito que o presidente ganhara a eleição de 2018 porque, a menos de um mês, sofreu um atentado a faca que o afastou dos debates, de entrevistas e de eventos de campanha com grande potencial de desgastar a imagem do candidato. Depois de errar mais de uma vez em seus prognósticos sobre o destino político-eleitoral de Bolsonaro, o titular desta coluna acredita que atribuir sua vitória à facada é “brigar com a notícia”, como costuma dizer o nobre colega e escritor Sérgio Leo, ex-colunista do Valor.

Bolsonaro ganharia com ou sem facada. Ponto. Seu sucesso deveria ter convencido, senã0 a todos, pelo menos à maioria, de que ninguém chega à presidência de uma das maiores democracias do planeta, eleito pelo voto popular, destituído de inteligência, astúcia, sagacidade política. Para as elites pensantes do país, é mais simples manifestar o quão Bolsonaro é diferente _ para pior _ do que nós somos e desejamos para o projeto de construção de uma nação nestas plagas.

Daí, os erros de avaliação que ajudam a fortalecer o presidente e que, em alguns casos, desvalorizam avanços institucionais na área econômica, notadamente, a aprovação da independência do BC e da PEC emergencial, que criou novo marco regulatório fiscal para todos os entes da Federação, fato que na prática diminui sua compreensão e, portanto, sua legitimação na sociedade.

Na pandemia, com a ajuda do Congresso, Bolsonaro acabou por instituir o maior programa de redução de pobreza da história do país. Seu negacionismo tem cálculo político. Ele esticou a corda na negação da gravidade do vírus e os governadores foram obrigados a adotar medidas rígidas de isolamento, cujo efeito tem sido afastá-los da popularidade. No fim, o presidente virá com a solução, a vacina, que só a União tem condições de comprar em grande quantidade. Não adianta brigar com notícia, Bolsonaro será no momento agudo, aos olhos da população, o pai da vacina.


Queiroga: 'Ministro executa a política do governo', diz sobre 'continuidade' na Saúde

O médico afirmou que não tem 'avaliação' sobre a gestão do general Eduardo Pazuello, nem 'vara de condão' para resolver os problemas da saúde nacional

Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo16 de março de 2021 | 11h12 SAIBA MAIS

BRASÍLIA - Escolhido para ser o quarto ministro da Saúde em plena pandemia, o cardiologista Marcelo Queiroga disse nesta terça-feira, 16, que dará continuidade ao trabalho até agora executado na pasta. "A política é do governo Bolsonaro, não do ministro da Saúde. O ministro executa a política do governo", disse Queiroga.

O médico afirmou que não tem "avaliação" sobre a gestão do general Eduardo Pazuello, nem "vara de condão" para resolver os problemas da saúde nacional.  "O ministro Pazuello tem trabalhado arduamente para melhorar as condições sanitárias do Brasil. Eu fui convocado pelo presidente Bolsonaro para dar continuidade a este trabalho e conseguirmos vencer essa crise na saúde pública brasileira", disse Queiroga ao chegar na sede da Saúde para a sua primeira reunião de trabalho.

O cardiologista foi escolhido na segunda-feira, 15, pelo presidente Jair Bolsonaro ao ministério, após desgaste de Pazuello no cargo. Queiroga reúne-se nesta manhã com o general e sua equipe para tratar da transição de gestões. "Não vim aqui para avaliar a gestão Pazuello. Vim aqui para trabalhar pelo Brasil. Juntamente com o general Pazuello e com outros ministros do governo. O Presidente está muito preocupado com essa situação", disse Queiroga.

Apesar de já ter manifestado rejeição a bandeiras do governo Bolsonaro, como o uso da cloroquina, medicamento ineficaz para covid-19, Queiroga não deve realizar mudanças bruscas na pasta. Ao chegar na sede da Saúde, ele afirmou que o País precisa de "união nacional" para vencer a crise sanitária. "Não tenho vara de condão", disse o médico.

Queiroga disse que as suas posições sobre temas como distanciamento social "são públicas". Ele usou máscara e pediu que os jornalistas não se aglomerem durante as entrevistas.  O novo ministro disse que daria novas declarações após a reunião com Pazuello.

O novo ministro deve acompanhar Pazuello em agendas da Saúde nesta semana. Ambos devem participar de reunião na Câmara dos Deputados, na quarta-feira, 17, e de entrega de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca, envasadas na Fiocruz, em cerimônia no Rio de Janeiro, na mesma data. Pazuello deixou a sua equipe à disposição de Queiroga para a transição na saúde, que deve durar até duas semanas, conforme o presidente Bolsonaro disse na segunda-feira.

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Alon Feuerwerker: Com firma reconhecida

Documento oficial do governo americano informa que os Estados Unidos atuaram (ainda atuam?) junto ao Brasil para evitar que usássemos (usemos?) vacinas russas contra a Covid-19 (leia). Aparentemente, essa pressão tem sido feita sem a oferta de contrapartidas. Por exemplo, os americanos poderiam oferecer-nos vacinas deles em lugar das do concorrente geopolítico.

Pressões desse tipo são esperadas num ambiente global de acirramento das disputas. A principal hoje é entre os Estados Unidos e a China, mas a polarização entre americanos e russos também vai adquirindo desenhos assemelhados aos da Guerra Fria, que durou do pós-2a. Guerra até o colapso e a consequente  extinção da União Soviética.

Mas não é normal que o poder de barganha de um país esteja tão diminuído para uma pressão desse tipo não vir acompanhada de ofertas compensatórias. Afinal, vacinar os brasileiros deveria em teoria interessar ao mundo todo. Ou, pelo menos, ficar bem com o Brasil deveria ser do interesse do ocupante da Casa Branca, qualquer que fosse ele.

O debate político aqui dentro vai muito aquecido, com cada jogador tentando tirar o máximo proveito da desorganização no combate à Covid-19. Parece faltar, entretanto, quem esteja pensando antes de tudo no interesse nacional. E o interesse nacional é um só. Ter e aplicar o maior número de doses de vacina no menor tempo possível.

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Felipe Salto: Remendo novo em tecido velho

É a PEC Emergencial. Tempo perdido em meio à emergência da crise sanitária

No melhor cenário, a chamada PEC Emergencial mudará muito pouco a gestão das contas públicas. Costumo dizer que o Brasil é pródigo em criar regras fiscais, mas nem tanto em cumpri-las. Desta vez, nem mesmo a criação foi promissora. Eventual ajuste decorrente da proposta de emenda à Constituição só virá em 2025. No caso dos Estados e municípios, as medidas serão facultativas e sua aplicação, incerta.

O teto de gastos foi mantido, mas ficou sem sanção para o caso de burla. Rompê-lo poderia ensejar, a partir de agora, crime de responsabilidade. Os gatilhos – medidas automáticas de ajuste –, que já estavam previstos na regra do teto, serão acionados quando as despesas obrigatórias superarem 95% das despesas primárias (não incluem juros da dívida), ambas sujeitas ao teto. Os gatilhos impedem reajuste salarial a servidores, criação de despesas, correção do salário mínimo acima da inflação e contratação de pessoal (a não ser para repor aposentadorias).

As contas da Instituição Fiscal Independente (IFI), contudo, mostram que os 95% só seriam atingidos em 2025. Em 2020 o indicador ficou em 92,6% e em 2021 a projeção é de 93,4%. Assim, levando em conta que o objetivo era tomar medidas “emergenciais”, o porcentual proposto foi mal calibrado. Algumas áreas poderão acionar gatilhos mais cedo, já que a regra será aplicada por Poder e por órgão, mas sem efeito agregado relevante.

Então, não haverá reforço do ajuste fiscal. A ideia do Ministério da Economia era trocar o auxílio emergencial pela aprovação de um programa de consolidação fiscal. Isso não ocorreu. O auxílio foi viabilizado pela PEC, mas não haverá contenção adicional do gasto ou geração de novas receitas em horizonte de quatro anos.

Mais do que isso, em 2022, ano eleitoral, a porta para reajustes salariais estará aberta. O teto de gastos precisará ser observado, mas um eventual espaço orçamentário poderá ser canalizado para beneficiar certas categorias do serviço público. Essa não é uma tendência nova sob o atual governo. Basta ver que a reforma da previdência dos militares, em 2019, garantiu reajustes com custo de R$ 7,1 bilhões já em 2021. O restante dos servidores não ganhou o mesmo tratamento.

Durante a votação da PEC Emergencial na Câmara dos Deputados, o governo firmou acordo que enfraqueceu os gatilhos. A possibilidade de barrar as chamadas progressões e promoções dos servidores, no cenário de gatilhos acionados, saiu do texto. Em live do dia 11 de março, o presidente da República destacou essa blindagem, citando servidores da área de segurança pública e das Forças Armadas. A mudança abrange todos, mas essa revelação de preferência é digna de nota.

Na parte que trata do auxílio emergencial, constitucionalizou-se a permissão para financiá-lo por crédito extraordinário. Essa prerrogativa já estava prevista na Constituição, justificadas a imprevisibilidade e a urgência do gasto. Dado o ritmo lento da vacinação, as medidas restritivas à circulação e ao comércio terão de ser mantidas para preservar vidas e evitar o colapso total do sistema hospitalar. Isso retardará a recuperação da renda e do emprego. O risco é claro: para editar um provável novo crédito extraordinário, fora do teto, outra PEC será requerida.

A PEC Emergencial trata também dos chamados gastos tributários, hoje em torno de R$ 308 bilhões – ou 4,3% do produto interno bruto (PIB). São as desonerações, os regimes especiais e as isenções tributárias que o Estado carrega há décadas sem nenhuma revisão ou avaliação. O texto aprovado obriga o governo a enviar ao Congresso, em até seis meses, um plano para redução dessas renúncias. No entanto, foram ressalvados programas que correspondem a 50% do volume total. No primeiro ano ele teria de diminuir 10% e em até oito anos, a 2% do PIB. Não há sanção prevista para o caso de o plano não ser aprovado, como alertou a jurista Élida Graziane.

As regras criadas para os Estados e municípios contemplam gatilhos iguais aos da União, mas o critério é distinto. Se a despesa corrente ultrapassar 95% da receita corrente, as medidas poderão ser tomadas. A escolha será do prefeito ou do governador. Quem não se ajustar não terá mais aval do Tesouro Nacional em operações de crédito, a exemplo de empréstimos em bancos ou organismos multilaterais. No cálculo do Tesouro, 14 Estados já estariam em condição de acionar os gatilhos (95%). Contudo, pelos dados dos Estados, conforme mostrou a economista Vilma Pinto, nenhum governo estadual atingiu 95% em 2020.

Em resumo, o auxílio sairá do papel, autorizado pela PEC, mas poderá ser insuficiente. As compensações, em termos de redução de despesas ou aumento de receitas, não vieram. O arcabouço fiscal ficará mais complexo e, no caso da União, dificilmente produzirá efeitos concretos antes de 2025, véspera do ano em que a regra do teto poderá ser alterada, conforme prevê a Constituição. A PEC é um remendo novo em tecido velho. Tempo perdido em meio à emergência da crise sanitária.

*Diretor Executivo da IFI e professor do IDP


Pedro Fernando Nery: O que o PIB não vai contar sobre a realidade do País

Crescimento em 2021 não vai refletir situação material de boa parte da população nos próximos meses

Brasil deve crescer em 2021. Possivelmente a alta do PIB será a maior em mais de dez anos. Entretanto, de forma incomum, o crescimento do PIB nos próximos meses deve coincidir com elevações do desemprego e da pobreza – a recordes. O PIB não vai contar boa parte da história.

Vale entender melhor como o PIB tem se comportado. A atividade econômica no Brasil, em 2020, sofreu uma queda menor que a de outros países – em boa parte pelos efeitos do auxílio emergencial. O País chegou a subir posições na lista de maiores economias do mundo, para o 8.º lugar – segundo os dados do Fundo Monetário Internacional (FMI)

A imprensa deu grande ênfase a outro resultado, o de que o Brasil teria na verdade perdido posições nesse ranking, e inclusive saído do top 10. Isso só ocorre em uma comparação menos apropriada, que refletisse menos a variação do PIB e mais a forte queda do real, que diminuiria o valor do nosso PIB em outras moedas.

A comparação mais comum, porém, levando em conta o poder de compra das moedas, teria o Brasil ganhando posições – como nas estimativas do FMI em que supera França e Reino Unido. Afinal, em um dia em que o dólar sobe muito os brasileiros não ficam necessariamente mais pobres.

Se o Brasil ganhou posições na comparação internacional do PIB em 2020, e em 2021 deve crescer bem mais do que na média da última década, qual é então o problema? 

O problema é que o crescimento da economia nos próximos meses não deve alcançar tanto os trabalhadores informais, os desempregados, os fora da força de trabalho. O agravamento da pandemia afetará o emprego informal e também o formal. E o orçamento do auxílio emergencial será um sexto do que foi em 2020. 

Mesmo quando a curva de mortes voltar a níveis menores, muitos ainda estarão afetados pela crise. São trabalhadores de ocupações que demorarão para registrar a normalidade de 2019, ou de empresas que já não existem mais. Ainda que se beneficiem pelo auxílio emergencial reduzido, o novo valor só será pago por alguns meses. Depois, voltaremos ao Bolsa Família, que na ausência de reformas é uma rede incapaz de segurar a alta da pobreza extrema que vai ocorrer. 

A divergência entre a situação mostrada por indicadores da atividade econômica como o PIB e indicadores do mercado de trabalho e renda já ocorre há alguns meses. Com a redução do auxílio emergencial ao fim de 2020, e a sua suspensão na virada do ano, milhões de famílias tiveram uma queda significativa de renda. A situação da pandemia manteve o mercado de trabalho difícil. Mas tudo que indicava que o PIB vinha crescendo.

O Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br), divulgado ontem e considerado uma prévia do PIB, sugere que em janeiro deste ano a economia já estava em patamar próximo do de janeiro de 2020. Mas pelo menos alguns milhões não recuperaram seus empregos, e a pobreza está em alta (o que melhorará um pouco, é verdade, com o novo auxílio, ainda que reduzido).

Veja o leitor que o mero retorno da economia ao nível pré-pandemia, por ocorrer depois de uma queda, significa uma variação positiva: crescimento. Essa espécie de “efeito sanfona” do PIB também acontecerá em outros países, que apresentarão crescimento forte sem que haja melhora das condições de vida em relação a 2019. 

Em especial, PIB crescendo com pobreza crescendo significa aumento da desigualdade. A sociedade deve querer então outras bússolas para este ano que não o PIB. Ele certamente vale a torcida, mas por condições atípicas não vai refletir a evolução da situação material de boa parte da população nos próximos meses.

Para onde devemos olhar então? A taxa de desemprego é agora outro indicador problemático, porque muitos que deixaram de trabalhar não estão necessariamente procurando ativamente uma vaga – porque não querem se contaminar pelo vírus. Eles não são computados na taxa de desemprego. Pelos dados do Google, a procura por vagas até subiu após o fim do auxílio emergencial, mas a piora da covid e as medidas restritivas devem continuar mantendo parte dos sem emprego em casa. 

Assim, a taxa de desemprego tradicional, mesmo aumentando, ainda não vai absorver todo o drama. A imprensa deve passar a divulgar mais estimativas da taxa que contemplem essa população que queria trabalhar, mas não está na busca (desemprego oculto, sombra). Idealmente, o IBGE poderia já fazer essa projeção ao divulgar os resultados da Pnad.

Devemos dar ênfase também às estimativas de taxas de pobreza e de pobreza extrema, que não foram preocupantes em 2020 por conta do amplo auxílio emergencial – que, sabemos, acabou naquele formato. O complicador aqui é outro: essas não são projetadas mensalmente pelo governo. Vale ficar de olho, portanto, no trabalho da academia – como o da FGV Social.

Com a bússola errada será mais difícil chegarmos ao lugar certo.

*Doutor em economia