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Fernando Gabeira: Sombrio panorama na terra do sol

São os preconceitos e o obscurantismo de um obtuso que definem a política contra a covid

Quando desistiu do cargo de ministro da Saúde, a dra. Ludhmila Hajjar afirmou que o panorama no Brasil é sombrio. Diria que é singularmente sombrio, por algumas razões. O Brasil é o único país que teve quatro ministro diferentes durante a pandemia. E desponta como o segundo colocado no mundo em número de mortos, que deve chegar próximo dos 300 mil neste fim de semana.

Para completar o quadro, uma nova variante do coronavírus não só tem contribuído para expandir o vírus, esgotando os leitos de hospital, mas também vai devastando uma parte da juventude, setor da população que estava mais protegido na primeira onda da pandemia.

Apesar de toda a gravidade do momento, a dra. Ludhmila tinha esperanças. Afinal, fora chamada para conversar sobre o cargo pelo presidente Bolsonaro. Isso significava, aparentemente, que o próprio governo queria mudar. Convocava uma especialista para quem a política do governo contra a covid-19 é um conjunto de erros.

A dra. Ludhmila foi massacrada pelos hostes bolsonaristas e o presidente recuou. Ela falava uma linguagem muito próxima do que dizem os médicos e a maioria esmagadora dos políticos. E, consequentemente, muito distante da família Bolsonaro e de seus dogmas diante da pandemia.

Embora não tenha sido escolhida para o ministério, a dra. Ludhmila, em curtas e fragmentadas declarações, acabou reafirmando uma série de pontos vitais no combate ao coronavírus, uma espécie de consenso nacional do qual só não participam a família Bolsonaro e seus seguidores.

Ponto decisivo no seu programa de trabalho era criar um comitê de crise que atendesse governadores e prefeitos 24 horas por dia. Uma resposta ao clamor de todos por uma coordenação nacional.

Outra indicação importante é a ideia de ser preciso adotar medidas de isolamento social, mesmo que se chegue necessariamente a um lockdown em todo o País, grande e complexo demais para ser abordado com uma única medida.

Admitir que não existem remédios eficazes contra a covid-19 não significa que se deva deixar de buscar contatos com todo o mundo científico, com abertura a todas as iniciativas que se mostrem eficazes e seguras. Mas tudo dentro de uma linha de raciocínio que privilegie a vacina.

Esse ponto de intensificar a vacinação como saída não só para poupar vidas, como retomar a economia, é tão consensual que o próprio governo Bolsonaro decidiu adotá-lo depois de meses de hesitação e sabotagem. O ex-ministro Mandetta calcula que era possível começar a vacinação nos últimos meses de 2020 se o governo tivesse aproveitado a oportunidade. Perdemos meses e continuamos perdendo tempo, apesar da contratação de 545 milhões de doses.

Ao falar do tratamento da covid, a dra. Ludhmila mencionou também a necessidade de protocolos e treinamento adequado. Há gente morrendo porque foi intubada de forma equivocada.

Acrescentaria a isso algo que ela não mencionou, mas circula nos meios especializados: a necessidade de contratar mais gente, no mínimo 50 mil novos funcionários. De fato, as equipes de trabalho estão esgotadas, física e psicologicamente.

Um ponto novo no debate foi incluído também nas declarações da dra Ludhmila: a necessidade de um esforço nacional para recuperar vítimas de covid-19, tratar as sequelas, propiciar que voltem ao trabalho. É uma tarefa também para o SUS, uma vez que milhares de pessoas não têm recursos para pagar um processo de reabilitação. Os preços são muito altos. Na briga de governo federal e Estados para que Brasília pagasse leitos de UTI, ficou claro que um único leito desses custa R$ 1.600 por dia. Sem o SUS os pobres morreriam nas enfermarias.

Um novo ministro da Saúde foi escolhido e esses temas foram varridos para debaixo do tapete, ao menos por enquanto. O ministro Marcelo Queiroga não tem projeto próprio. Já disse que executará uma política do governo. É uma versão mais palatável do general Pazuello: um manda, o outro obedece. No fundo, Queiroga está dizendo a mesma coisa, sem refletir como é limitada uma política de governo definida pelos preconceitos e pelo obscurantismo de Bolsonaro.

O presidente sempre subestimou a pandemia, sempre considerou um ato contra o seu governo restringir a circulação de pessoas, sempre acreditou em remédios milagrosos, em vez de investir na vacina, que bombardeou das trincheiras da ideologia e da pura superstição.

O fato de ter-se recusado a aceitar os seus erros e investir na mudança personificada pela dra. Ludhmila mostra também como Bolsonaro está isolado. Nem os presidentes da Câmara e do Senado, ambos eleitos com seu apoio, o acompanham em sua política contra a pandemia.

Ainda não se percebeu que a tão decantada frente ampla existe de uma forma que beira o consenso quando se trata da pandemia. Bolsonaro está só com sua família e a minoria de seguidores. A existência de um quase consenso dessa importância é animadora, mas o fato de instrumentos tão poderosos estarem nas mãos de um presidente obtuso torna o panorama sombrio.


Com armamento da população, Bolsonaro acena para guerra civil, diz Raul Jungmann

Em artigo na revista Política Democrática Online de março, ex-ministro analisa gravidade da política do presidente

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O armamento da população, como pretende o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), fere o papel constitucional das Forças Armadas, segundo o ex-ministro da Defesa e ex-ministro extraordinário da Segurança Pública Raul Jungmann, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março.

A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

De acordo com ele, ao propor armar a todos, o presidente está, consecutivamente: quebrando o monopólio da violência legal, privativa do Estado Nacional, ferindo o papel constitucional da Forças Armadas e acenando com a hipótese de um conflito de brasileiros contra brasileiros, uma guerra civil.

Armamento massivo

“Isso nos motivou a redigir uma carta aberta ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam ações contrárias a política de armamento massivo, alertando para os riscos para a segurança pública e para a estabilidade democrática”, lembra Jungmann, que também é ex-deputado federal.

No curso da divulgação da carta, conta Jungmann, a repercussão superou expectativas na mídia tradicional, nas redes, colunas de opinião e junto a vários formadores de opinião. “O que talvez queira dizer da preocupação das pessoas com o tema e a percepção dos riscos envolvidos numa política armamentista. E existem razões concretas para tal”, assevera.

Em seu artigo na revista da FAP, o ex-ministro cita dados da Polícia Federal, segundo a qual, em 2020, o registro de armas de fogo cresceu 90% em relação ao ano anterior, o maior crescimento de um ano para outro já registrado pela série histórica.

Escalada de mortes

“Do outro lado da moeda, as mortes violentas, que iniciam uma queda em 2018 (ano em que éramos Ministro da Segurança Pública) e continuaram caindo em 2019, retomaram sua escalada em 2020”, pondera ele.

 Na revista Política Democrática Online, o autor lembra, ainda, que entidades diversas da sociedade civil e ongs se mobilizaram promovendo um abaixo assinado em apoio à carta aberta, que, segundo ele, já conta com mais de dez mil assinaturas. O documento deve ser entregue a ministros do STF em breve.

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Luiz Carlos Azedo: Covid-19 traumatiza o Congresso

Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para reduzir a propagação do vírus com medidas mais rígidas de isolamento social

A morte do senador Major Olimpio (PSL-SP) traumatizou o Congresso, principalmente o Senado, cujo presidente, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), decretou luto oficial de 24 horas no Legislativo. Na Câmara, o presidente Arthur Lira (PP-AL) restringiu ao máximo o funcionamento da Casa: proibiu reuniões presenciais das comissões e ampliou o trabalho em home office dos funcionários. Com a morte do terceiro senador por covid-19, a pressão sobre o presidente Jair Bolsonaro para uma mudança na política sanitária aumentou muito. Mesmo na base do governo, a insatisfação é generalizada.

Major Olimpio foi o terceiro senador a falecer vítima da doença, com a diferença de que, aos 58 anos, era bem mais jovem do que Arolde de Oliveira (PSD-RJ), que faleceu em outubro, aos 83 anos, e José Maranhão, de 87 anos, que morreu em fevereiro passado. Dois senadores também contraíram a covid-19, provavelmente na mesma reunião com prefeitos da qual participou Major Olimpio: Lasier Martins (Podemos-RS), que teve alta do Hospital São Lucas, em Porto Alegre, ontem, após 13 dias de internação; e Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que deve receber alta hoje, depois de ser internado na semana passada.

Com a falta de empatia que o caracteriza, o presidente Jair Bolsonaro deu novas declarações colocando em dúvida as informações sobre ocupação de leitos de hospitais, além de criticar, mais uma vez, a política de isolamento social. Suas declarações geraram reações de governadores e prefeitos, ainda mais porque os hospitais, por causa das UTIs lotadas, estão começando a esgotar os estoques de oxigênio e medicamentos usados na intubação de pacientes. Numa live, Bolsonaro anunciou que a nomeação de Marcelo Quei- roga para o Ministério da Saúde será publicada hoje no Diário Oficial da União. O novo ministro está tendo dificuldades para montar sua equipe de trabalho e terá de atuar com o grupo de militares que assessoravam o general Eduardo Pazuello, até que encontre co- legas dispostos a assumir a responsabilidade de combater a pandemia.

Senado Federal decretou luto oficial de 24 horas, no âmbito da Casa, pela morte do senador Major Olimpio (PSL-SP). Foto: Roque de Sá/Agência Senado

Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para reduzir a propagação do vírus com medidas mais rígidas de isolamento social: “Tem um pessoal que continua insistindo no fique em casa e outros que querem trabalhar por ne- cessidade. Eu acho que ficar em casa é uma coisa bacana, quem não quer ficar de férias em casa aí? Mas pouquíssimas pessoas têm poder aquisitivo para ficar sem trabalhar”, disse. Insiste em res- ponsabilizar as medidas sanitárias pela crise econômica: “Temos no Brasil servidores públicos, civis e militares, que podem ficar em casa, que, por enquan- to, não veem sua remuneração, proventos, aposentadorias, pensões ameaçadas. Agora, uma grande parte dos brasileiros, os que vivem na formalidade, com carteira assinada, perde emprego, tem redução de salário.” Chegou a dizer que recorreria ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra as medidas de isolamento, o que será mais um fator de tensão institucional, em nada contribuindo para o enfrentamento da crise sanitária.

Banco do Brasil

O presidente do Banco do Brasil (BB), André Guilherme Brandão, entregou o cargo ontem, por discordar da interferência do presidente Jair Bolsonaro na instituição. É mais uma baixa importante na equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, cada vez menos liberal e mais pragmática. É o segundo presidente do banco a deixar o cargo por divergências com o chefe do Executivo. Para evitar especulações sobre o perfil do novo presidente do banco, o Ministério da Economia anunciou que o cargo será assumido pelo atual diretor do BB Consórcios, Fausto de Andrade.

Bolsonaro quer reforçar o papel social do Banco do Brasil, sendo contrário ao fechamento de agências, apesar da informatização cada vez maior do sistema bancário. O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, tem o perfil desejado por Bolsonaro, que não cansa de elogiá-lo pelo desempenho na distribuição do auxílio emergencial, apesar do alto número de fraudes já identificadas. Fausto de Andrade será o terceiro presidente do Banco do Brasil em pou- co mais de dois anos do governo Bolsonaro. Antes de Brandão, ocupou o cargo Rubem Novaes. O mercado e os funcionários temem a instrumentalização do banco para fins eleitorais.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-covid-19-traumatiza-o-congresso/

Pedro Doria: O método Bolsonaro de intimidar

A violência contínua que existe no discurso do presidente Jair Bolsonaro nos anestesia, aos poucos vai deixando de chocar. O objetivo é este mesmo: anestesiar. É um método, estudado por cientistas políticos em vários cantos do mundo, numa disciplina batizada decadência democrática. Anestesiados, nos distraímos. E, distraídos, não percebemos que a guerra do presidente contra a democracia está ganhando escala. Foi mostra desse ganho de escala o dia em que a Polícia Civil do Rio bateu à porta do youtuber Felipe Neto para informá-lo de que era investigado por chamar o presidente de “genocida”. Com base na Lei de Segurança Nacional.

No caso de Felipe, o problema já passou — a juíza Gisele Guida de Faria, da 38ª Vara Criminal do Rio, viu “flagrante ilegalidade” na investigação e lembrou que a Polícia Civil nem sequer tem competência para investigar “crime contra a honra” do presidente. Além do quê, não é um vereador ou um membro da família do presidente quem tem autoridade de pedir a abertura desse tipo de inquérito. Mas, se Felipe está livre do problema, outros não estão, e ações assim vêm ficando mais comuns.

Em geral, quase sempre via internet, alguém faz um comentário em oposição ao presidente. O ataque, então, vem simultâneo. Pelas redes, é a onda de cancelamento pessoal. Quando não se trata de uma pessoa conhecida, o mundo não percebe. Não vê as mensagens privadas, os muitos tuítes, os comentários de Face, os ataques pelo Insta que aquele indivíduo recebeu. Para um professor universitário gaúcho ou um sociólogo do Tocantins, a pancada é dura. A onda de agressão surge de repente — e dói.

Mas há outro ataque, jurídico, levantando a Lei de Segurança Nacional ou outro argumento. O importante é impor um custo em advogados, ameaçar de perda de emprego. O objetivo é desestruturar emocionalmente, é intimidar. O objetivo é calar qualquer forma de oposição.

Jair Bolsonaro e os seus enxergam o mundo de uma forma particular: tudo é uma guerra de informação. Nisso, ele e a nova leva do populismo autoritário de direita se assemelham muito aos fascistas dos anos 1930. Aquele fascismo não era uma ideologia, uma forma consistente de ver o mundo. Era, isto sim, uma estratégia de alcançar o poder e de se manter no poder. Entre as táticas, estava intimidação pessoal de quem demonstrasse oposição, para deixar claro a todos que o preço de ser contra é alto. Mas a cartilha também incluía uma visão paranoide de como o mundo funciona — capitalistas judeus são responsáveis pela crise econômica alemã, marxistas culturais são quem de fato controla as instituições do Brasil. E uma máquina maciça, usando a tecnologia mais recente — rádio lá, redes sociais aqui —, investia pesado em desinformação para criar bolhas onde informação não entra.

Para Bolsonaro, esta é, pois, uma guerra de informação, e os fatos pouco importam. O relevante no jogo como ele o enxerga é quem convence mais pessoas. Portanto, quando hospitais lotam e mais gente morre, o alarme da sociedade não surge naturalmente. Surge porque seus inimigos atuam como ele, na guerra de informação. Bolsonaro não opera no mundo como ele é. Ele vive num em que a realidade é fabricável.

O Centrão tentou indicar uma ministra da Saúde que poderia ter funcionado. Os militares tentam convencê-lo a adotar uma agenda positiva. Não adianta, nada muda a natureza do escorpião. Mas o perigo que ele representa mudou de escala não só pela forma de intimidar. Desinformação já elegia autoritários que desejam ser ditadores. Nos últimos meses, está também matando em vastas quantidades.


Hamilton Garcia: A viagem redonda - De volta à política de vetos

Nossas instituições democráticas são frágeis, ao contrário da retórica corrente: os partidos mal representam os setores sociais afins, as eleições não refletem satisfatoriamente as inclinações populares – sobretudo no Legislativo – e não propiciam a formação de governos minimamente coesos, a Justiça é seletiva e tendente à proteção de casta, e, como resultado, o sistema político padece cronicamente de legitimidade, fragilizando-se nas crises: não precisa ser um especialista para perceber.

Todavia, nosso problema genético central (verticalismo/insolidarismo) está fora do alcance das ideologias em voga (nacional-populismo x liberalismo), se constituindo em um desafio para além de qualquer ortodoxia, da qual, infelizmente, nossa intelligentsia também se encontra prisioneira, como no mito da caverna (Platão).

A principal causa dessa fragilidade reside numa cultura política, social e institucional, que aparta Estado e sociedade de tal modo que, sob os auspícios das regras institucionais, o voto popular reitera o  afastamento, ao invés de superá-lo, por efeito de um alargamento democrático que não enseja aprofundamento, ou seja, não propicia ao eleitor canais de exercício de sua autonomia face ao poder econômico e burocrático, impelindo os agentes político-partidários à busca do bem comum em meio às inexoráveis diferenças político-ideológicas.

As razões estruturais/normativas de tal dificuldade foram abordadas/indicadas em artigos anteriores (vide Clientelismo, Cargos e Voto – a erosão oligárquica da democracia). Cabe agora apenas delinear o retrocesso precipitado pelo baluartismo das lideranças civis, de todos os quadrantes, diante dos inequívocos sinais emitidos pelas massas desde 2013, ao cabo capturados/interpelados pelo bolsonarismo.

Comecemos pelo mais novo episódio da longa lista de disparates cometidos por essas elites nos últimos anos: o golpe judicial do Ministro Edson Fachin, anulando as decisões do juízo de Curitiba sobre as ações penais que levaram Lula à prisão e inelegibilidade. Não interessa aqui discutir as razões político-jurídicas que motivaram o Ministro – há farto material para consulta sobre o tema –, apenas pontuar sua recepção pela sociedade e certas corporações (sociais e burocráticas) fundamentais para os destinos da nossa democracia.

Comecemos pelos eleitores. Segundo o instituto Paraná Pesquisas, 57,5% dos brasileiros discordaram da decisão de Fachin, contra 37,1% que concordaram; a única região destoante foi a Nordeste, onde 52,6% concordaram e 41,3% discordaram do magistrado. A pesquisa tem números próximos à outra do mesmo instituto, de junho de 2019, onde 58% se disseram favoráveis à manutenção da prisão de Lula, enquanto 36% se posicionaram contra. Fica claro que, para a maioria dos eleitores, ontem e hoje, Lula deve pagar pelos crimes que cometeu e que a tradicional impunidade brasileira parece ser a fonte da inesgotável credibilidade do ex-Juiz Sérgio Moro, reconhecido pela maioria (59,2%), em levantamento de março/21, como um juiz imparcial, mesmo entre os menos escolarizados (53,7%).

Também no topo da pirâmide, importantes empresários manifestam seu veto ao ex-Presidente, beneficiário imediato, embora não exclusivo, da medida judicial, e, crescentemente, também ao mandatário atual. O editorial do dia 9 do jornal Estado de São Paulo, que vocaliza o ponto de vista desta fatia da opinião pública, é taxativo: "Jair Bolsonaro está conseguindo fazer o que parecia impossível. Ao ignorar suas responsabilidades e debochar continuamente dos problemas do País e da saúde dos brasileiros, está abrindo caminho para o retorno político do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, (…) agora que o ministro Edson Fachin anulou todas as condenações do demiurgo de Garanhuns (…). Bolsonaro, por palavras e omissões, ajudou a recriar o monstrengo que já atormentou em demasia este país”.

A duríssima sentença acrescenta um novo ingrediente à crise política, depois da manifesta assunção por parte do ex-Comandante do Exército, Gen. Eduardo Villas Bôas, do veto militar à postulação presidencial do petista; prossegue o editorial: "O assunto é da maior gravidade, pois traz de volta ao cenário político um grande perigo para o País (…): o ressurgimento do fantasma do lulopetismo. (…) O mais famoso ficha-suja do País, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro (…)”.

Coloca-se assim, em linha, de novo, dois vetos que, outrora, em momentos distintos, ao longo dos anos 1950-1960, produziram duas deposições presidenciais (1954, Vargas, e 1964, Goulart) e duas tentativas de deposição (1956, Kubistchek, e 1961, Goulart). Me refiro aqui ao veto militar, empresarial e da classe-média, à Vargas e seus sucessores, e também à Jânio Quadros, que, se aproveitando do primeiro veto, tentou tirar proveito dele ao renunciar à Presidência poucos meses depois de assumí-la, mandando o Vice Goulart para uma missão diplomática na longínqua China comunista, na esperança de assumir poderes excepcionais para governar. O tiro saiu pela culatra porque Quadros não percebera que o veto ao varguismo se estendia à toda forma de populismo, inclusive àquele representado pela direita, onde ele se inseria.

A condenação aos dois populismos está na ordem do dia, não só entre os eleitores e empresários, mas também entre os militares. É o caso do Gen. da Reserva e ex-Ministro Santos Cruz, que, em reação à decisão de Fachin, afirmou: “o Brasil não pode mais depender, nem viver, numa guerra de extremistas. (…) O fanatismo só está atrapalhando o Brasil. (…) A grande parcela da população não quer participar dessa novela sem fim”. Oficiais da Ativa do Exército, que costumam não se manifestar, também falaram, sob anonimato, que a decisão do Ministro do STF pode beneficiar “extremistas” de esquerda e de direita. Mas foi Cruz, involuntariamente, que acabou expondo o estado de espírito da caserna ao pregar moderação: "Tem de esperar, ainda há passos jurídicos. Ninguém tem de se precipitar”.

Até o reservado Gen. da Reserva Sérgio Etchegoyen, ex-Ministro do Governo Temer, se mostrou incomodado com a decisão ministerial, indagando: “Por que essa decisão monocrática que se sobrepõe a dois tribunais colegiados (TRF-4 e STJ) não é um risco à democracia? Ou é um risco para a democracia só quando um general fala?”, em alusão ao tuíte de Villas Bôas, em 2018, que ele justifica como um recado à tropa “para evitar que alguém da reserva dissesse alguma bobagem” – na verdade, alguém da Ativa fizesse alguma bobagem. Aqui, para além da condenação ao ato judicial, temos a volta do velho sentimento militar do Império – que precipitou seu fim – de que a elite civil os discrimina e hostiliza.

A ideia de fazer "alguma bobagem” está posta desde a prisão de Lula, mas agora, depois do indulto de fato que ele recebeu, aparece explicitamente nas falas de dois Gen.s da Reserva: Luiz Paiva, ex-Comandante da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, e Eduardo Barbosa, Presidente do Clube Militar, eleito como Vice na chapa de outro Gen. da Reserva, Hamilton Mourão, hoje na Vice-Presidência da República.

Paiva simplesmente afirma que Fachin "praticamente, arremessou no lixo a Operação Lava Jato e, com ela, a esperança da sociedade num futuro mais digno”, "colocando em risco”, junto com outras medidas tomadas pelo tribunal, "a paz, a harmonia e a própria unidade nacional”. Em sua perspectiva, "o que é supremo não é a lei e sim a Justiça e esta não existe quando a lei é usada contra o bem comum”, alertando que "a liderança nacional" deve ter em mente que as Forças Armadas "ficarão unidas e ao lado da Nação, única detentora de sua lealdade". Por seu turno, Barbosa, considerando a posição de Fachin como "a vitória do banditismo”, não só afirma ser Lula "o maior político criminoso que esse país já conheceu”, como sentencia que "lugar de ladrão é na cadeia”.

Como argumentei em artigo recente (O esgotamento da democracia de clientela), a forte presença do bolsonarismo no interior das médias e baixas patentes da Ativa das Forças Armadas, além das polícias estaduais, coloca Bolsonaro em situação especial nesta crise, distinta daquela vivida por Jânio Quadros, apesar de também ser um de seus pivôs: sua capacidade de dividir os quartéis e, efetivamente, agitar tropas ao arrepio dos Altos Comandantes. Outra diferença significativa entre os dois personagens, separados no tempo por mais de meio século, é que Bolsonaro costuma expressar francamente o que pensa, na linha oposta da astúcia dos velhos populistas do séc. XX, o que, todavia, não é suficiente para lhe garantir a simpatia da cúpula militar ou empresarial, ao contrário do que ocorre com as massas, dada sua dificuldade em exercer liderança positiva.

Gen. da Reserva Paulo Chagas, bolsonarista de primeira hora, é um vocalizador desta percepção de que Bolsonaro não é capaz de "tomar o rumo da harmonia, da União”, se revelando "um narcisista deslumbrado” com o poder, o "que faz com que ele se comporte pensando que é mais do que é na verdade”: um "trapalhão (…) que não cumpre o que promete”, fulmina. Sendo contra o processo de impeachment, Chagas defende, alternativamente, que alguém diga para ele que, "a partir de agora, tem que fazer assim”, o que pode ser entendido como a defesa de um ultimato das cúpulas militares à seu Chefe Supremo – o que, no caso, se parece com um "auto-golpe".

Nada disto nos autoriza vaticinar que marchamos para o mesmo desfecho de 1964, dado que as circunstâncias são outras e os atores também. Apenas sugere que voltamos a um ciclo de crises que parecia superado no séc. XXI, mas que na verdade não o foi. E isto não se deve exclusivamente à mentalidade militar, supostamente tutelatória da cidadania e monopólica do patriotismo, mas, sobretudo, a uma incapacidade crônica das elites civis em olharem para além do próprio umbigo, corporativo ou de domínio, engendrando soluções mais amplas e efetivas sobre os problemas do desenvolvimento, da desigualdade e da justiça no país, que nos enredaram numa teia de estagnação, pobreza e corrupção que parece não ter solução.

Persistir em ignorar tal realidade ou tentar mascará-la com as práticas do neopatrimonialismo/corporativismo ou as narrativas mágicas das velhas ideologias/ortodoxias dos "salvadores" de plantão, tem tudo para nos chafurdar ainda mais na crise, fechando o círculo de nossa mais nova viagem redonda – outra velha sina da civilização brasileira.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[i])


[i] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


Luiz Carlos Azedo: Pior momento de Bolsonaro

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro, fracassou: 56% dos entrevistados o consideram incapaz de liderar

A pesquisa DataFolha de ontem confirmou o que mundo político já estava esperando: o governo Bolsonaro vive o seu pior momento, acumulando desgastes, principalmente em razão das suas atitudes negacionistas em relação à pandemia da covid-19, cujo descontrole assombra o mundo. Segundo o instituto, cresceu para 56% o número de brasileiros que consideram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) incapaz de liderar o país. Em janeiro, eram 50%. A pesquisa caiu como uma bomba no Palácio do Planalto, a jaula de cristal na qual a bolha dos partidários do presidente da República nas redes sociais tem mais influência nas decisões do que todos os demais interlocutores do governo juntos.

Segundo o levantamento, o percentual de brasileiros que consideravam Bolsonaro capaz de liderar caiu de 46% para 42% de janeiro para março, com oscilação negativa no limite da margem de erro. Em abril de 2020, ele era considerado capaz de liderar o país por 52% dos brasileiros, em detrimento de 42% que o julgavam incapaz. Entre os que hoje julgam o presidente mais incapaz estão os mais ricos, que ganham acima de 10 salários mínimos (62%), os que têm curso superior (também com 62%) e moradores da região Nordeste, dos quais 63% julgam o presidente incapaz de liderar o Brasil. A base de apoio de Bolsonaro mais resiliente é formada por moradores das regiões Sul (51%) e Norte/Centro-Oeste (49%) e evangélicos 52%.

O desempenho de Bolsonaro na pandemia é que puxa sua avaliação para baixo: 54% dos entrevistados avaliam como ruim ou péssimo. Na pesquisa anterior, realizada em janeiro, esse índice era de 48%. Segundo o levantamento, 22% consideram ótima ou boa a performance do presidente da República na condução do enfrentamento à pandemia. O índice anterior era de 26%. Esse desempenho fortalece os aliados do governo no Congresso, que pediram a cabeça do general Eduardo Pazuello, defenestrado do Ministério da Saúde, mas não conseguiram emplacar no cargo o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), presidente da Comissão de Seguridade Social da Câmara. Bolsonaro nomeou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro duramente a crise sanitária, fracassou completamente: para 42% dos entrevistados, a responsabilidade é do presidente da República. Os demais responsáveis se- riam: governadores, 20%; e prefeitos: 17%. As atitudes de Bolsonaro contra o isolamento social e o uso de máscaras, e a falta de uma campanha publicitária nacional de mobilização contra a pandemia, fruto também do negacionismo, se refletem no grau de responsabilidade atribuída à própria população: 1%. No ranking dos mais empenhados na luta contra a covid-19, governadores (38%) e prefeitos (28%) deixam Bolsonaro (16%) na rabeira.

Resiliência
Mas que ninguém se iluda, mesmo assim, Bolsonaro tem uma base de apoio muito resiliente, o que ainda lhe assegura um piso confortável de aprovação para quem pretende disputar a reeleição. Por exemplo, em relação ao impeachment, o índice oscilou dentro da margem de erro: 53% eram contrários à abertura de impeachment em janeiro, ante 50% agora; 42% eram favoráveis àquela ocasião; agora, são 46%. A mesma coisa em relação à renúncia de Bolsonaro: 51% avaliam que não deveria renunciar, contra 45% favoráveis. São números desagradáveis, mas não são irreversíveis se o governo se reposicionar em relação à pandemia.

A aposta de Bolsonaro é de que a situação pode ser revertida com a vacinação em massa da população, que está muito atrasada, porém, o governo iniciou uma corrida para comprar imunizantes, todos os que forem possíveis. O atraso nas vacinas existe porque a prioridade era outra, o tratamento precoce com cloroquina. Em outra frente, o Ministério da Cidadania prepara a medida provisória do auxílio emergencial, que Bolsonaro pretendia levar pes- soalmente ao Congresso ainda ontem, mas não ficou pronta. Sua aposta é de que o auxílio mitigará os desgastes com a pandemia, ao possibilitar um alívio à chamada população de “invisíveis”, que perdeu as fontes de renda com a pandemia.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pior-momento-de-bolsonaro/

O Globo: Troca no Ministério da Saúde irrita Arthur Lira e provoca insatisfação no Centrão

Escolha de Marcelo Queiroga incomodou o presidente da Câmara, que preferia médica Ludhmila Hajjar ; senador Ciro Nogueira, presidente do PP, atua para conter os ânimos

Bruno Góes, Paulo Cappelli e Natália Portinari, O Globo

BRASÍLIA – A escolha do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, provocou insatisfação no presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e em seus aliados. Eles demonstram desconfiança com o médico, escolhido por sua ligação com Jair Bolsonaro. A preferência pelo seu nome, porém, contou com o aval do presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PI), que tenta acalmar os ânimos.

Ao concretizar a substituição de Eduardo Pazuello, Bolsonaro rifou a cardiologista Ludhmila Hajjar, apoiada publicamente por Lira. O deputado do PP, segundo interlocutores, ficou "muito chateado".

No partido, Lira havia defendido a indicação de Ludhmila em detrimento do deputado Luizinho (PP-RJ), preferido entre os parlamentares. À bancada, Lira disse que Bolsonaro não aceitaria o nome de um político nesse momento e, então, o ideal era dar apoio a Ludhmila. Quando o presidente mudou de ideia, Lira se irritou.

Em conversa no Palácio do Planalto com o presidente, na tarde de terça-feira, porém, Ciro Nogueira deu aval ao nome do cardiologista. Ao sair do Palácio do Planalto, ele tentou acalmar os ânimos de Lira. Na segunda-feira à noite, após o anúncio de seu nome, Queiroga se reuniu com diversos deputados do PP, como Hiran Gonçalves (RR), Celina Leão (DF), Margarete Coelho (PI) e de outros partidos, como Soraya Santos (PL-RJ).

Parlamentares cobram desde o fim do ano passado o cumprimento de um calendário de vacinação factível e veem como fundamental uma mudança de postura do ministério. Alguns aliados de Lira dizem até mesmo publicamente que não há mais chance para erros.

– O Congresso vai dar o todo apoio. Mas, numa situação grave dessas, o ministro não pode aprender a ser ministro. Tem que ser ministro e colocar em prática o calendário de vacinação – afirma o vice-presidente da Casa, Marcelo Ramos (PL-AM).

Além de condenarem o papel de Pazuello na Saúde, alguns parlamentares esperavam que pudessem ter mais influência no ministério para coordenar as políticas voltadas diretamente para suas bases eleitorais.

Parlamentares do Centrão e aliados de Lira disseram ao GLOBO, em caráter reservado, que a postura de Bolsonaro no episódio poderia incitar retaliações em "votações importantes". Entretanto, essa ainda é uma conjectura diante da insatisfação.

– É um dos ministérios mais delicados de qualquer governo. Não é possível trazer alguém para tentar entender o que está acontecendo. É delicado. Queiroga é uma pessoa que tem capacidade médica, mas não conhece o sistema de saúde. Temos o exemplo do Teich. Quanto tempo ele durou? Um mês. Era extremamente qualificado academicamente, mas o Ministério da Saúde é uma área técnica, mas também política. Em um momento como esse, não dá pra botar pessoa que ainda está tentando entender o que está acontecendo internamente – diz o deputado Hugo Leal (PSD-RJ).


Roberto DaMatta: Viramos jacaré?

Meu senso de antropólogo cultural antigo e de não especialista (hoje, o Brasil é a pátria desses maravilhosos profissionais) prevê que teremos múltiplas vacinas contra o competidor biológico maior, a Covid-19, com suas famílias e linhagens que o governo Bolsonaro incrementa por meio de um pueril negacionismo e por uma adulta e criminosa sabotagem.

O vírus, não custa repetir, além de ser um agente epidêmico mortal e sem intenções (exceto sobreviver), é — tal como as nossas elites, de que somos parte e parcela — um predador invisível e solerte.

Aliás, conforme escreveu um “especialista” chamado Charles Darwin, no mundo natural, além de uma perturbadora ausência de intenção (ou causa final) e de uma óbvia presença de oportunidade, quem melhor se adapta e mais se reproduz triunfa.

O significado dessa desgraçada vitória, devo logo dizer antes que me levem à guilhotina moral, é a grande questão do nosso mundo, já que, de modo claro, ela suprime um outro mundo, uma outra vida e — quem sabe? — engendra uma história alternativa...

Se levamos a sério as premissas darwinistas, cabe honrar ao menos “este mundo” de que estamos certos e onde atuamos. Pois o fato inexorável é o seguinte: se tudo ocorreu ao acaso num planeta igualmente singular, posto que ele próprio é “vivo”, o sentido final da existência não precisa ser justificado por uma outra vida. Ela tem que fazer sentido aqui e agora, como demandam o vírus, os sanitaristas e todos os inesperados. Acima de tudo, os inesperados paradoxalmente previstos (e planejados) dos abismos entre quem tem demais e os despossuídos.

Não é preciso ser um sábio para dirimir os abismos sociais do Brasil. Eles saltam aos olhos quando saímos de casa — se casa temos...

Nesta etapa antropocênica — em que a pandemia impede, entre outras dimensões, que se possam disfarçar as imensas desigualdades mundiais, os vergonhosos abismos sociointelectuais nacionais e os transtornos de um planeta agredido por “empreendedores” esquecidos de que são por ele englobados e foram por ele engendrados —, não há a menor dúvida de que a espécie triunfante, o Homo sapiens, é ao mesmo tempo Deus e algoz do mundo que habita e dele mesmo.

Diz um celebrado mestre-pensador (Claude Lévi-Strauss) que, graças à invenção da linguagem articulada e dos costumes, somos um superpredador com um trajeto semelhante ao do câncer, porque conseguimos uma multiplicação além da Bíblia. Hoje somos onipresentes. A onisciência e a onipotência que nos tornariam divinos está em nossa volta e se afirmam nos laboratórios e nas “armas de destruição em massa”, esse eufemismo para artefatos com o poder de simplesmente assassinar o planeta em nome de alguma desavença nacional!

Avaliando com minha óbvia insuficiência essas pressões, tenho, não obstante, um temor de idoso: imagino, conforme confesso ao meu filho Renato, um consumado biólogo, pesquisador e professor universitário, que o vírus pode ter vindo para ficar.

O que significa esse “ficar” quando o ideal de conforto, satisfação e dignidade depende de um rude individualismo (primeiro eu, depois os meus e em seguida quem pensa e faz como eu!) — uma consciência do mundo que convenientemente inibe reciprocidades, interdependências e só imagina o outro como adversário ou inimigo a ser eliminado (ou cancelado, como se diz atualmente)?

Não deixa de ser paradoxal que o lado mais perturbador do vírus seja sua potência de bloquear o que nos tornou humanos: a sociabilidade ancorada na presença do outro. A dialética da costumeiro e do exótico — do encontro interessado ou espontâneo. Enfim, o que originou as grandes descobertas, inclusive a desses bichos invisíveis que existem ao nosso lado e interagem conosco porque são tão antigos quanto nós.

A habitual negação e a sabotagem do vírus no Brasil — cujo maior responsável é uma atitude emocional e irracional do presidente Bolsonaro e de seus seguidores —não são só um ato de desgoverno desses que permeiam e estruturam a admiração nacional desde que nos entendemos como um coletivo; são um risco para a Humanidade.

Certo que Adão não foi criado no Brasil, mas é igualmente verdadeiro que a Humanidade pode ser radicalmente ameaçada a partir de nossa cuidadosa e precisa negligência negacionista. De nossa incapacidade de realizarmos uma leitura mais abrangente de nosso lugar na Terra.

Enfim, se não nos conscientizarmos do perigo que estamos causando a todo o planeta; se não nos dermos conta de que o vírus impede o comércio, a aliança, a troca em todos os seus níveis que nos fizeram humanos, então vamos virar jacarés.

Cumpriremos um dos mais devastadores vaticínios do mais insensível presidente da nossa história.


Vinicius Torres Freire: Sem vacina e infectado por Bolsonaro, país tem de tomar remédio ruim de juros

BC não tem alternativa no país que Bolsonaro sabota a saúde e a economia

O Banco Central vai aumentar a taxa básica de juros em sua reunião desta quarta-feira (17). Caso não o fizesse, provocaria um tumulto final na economia sob o desgoverno de Jair Bolsonaro. Não importa o que a leitora, que é perspicaz, ache do regime de metas de inflação, da autonomia do BC ou do “neoliberalismo”: haveria tumulto. A curto prazo, não há solução alternativa.

Caso o BC se fingisse de morto, o dólar iria muito além dos R$ 6, de imediato e para começar. A inflação, que já está marcada para ir a perto de 7% anuais lá por junho, por aí ficaria. Esses seriam os primeiros sintomas de coisa ainda pior.

Isto posto, a alta da Selic não vai sair barato, talvez para o crescimento de 2022 e com certeza não para o controle da dívida pública, um problema central do país, qualquer que seja a solução que se imagine para um endividamento ainda sem limite.

Por falta de crédito, taxas de juros de longo prazo muito salgadas, o governo do Brasil se endivida ou rola sua dívida cada vez mais a curto prazo. Uma taxa Selic real (descontada a inflação) em zero ou perto disso até o fim do ano que vem daria um refresco. Não, não é solução. O país está tão arrebentado que dependemos dessas coisas marginais para não afundarmos de vez.

Não, a taxa básica de juros não estaria entre os determinantes da atividade econômica a curtíssimo prazo (menos de um ano), se tanto. O resto de crescimento que se pode salvar em 2021 depende, como é óbvio, de contenção do morticínio, da lotação das UTIs e de vacinas, nada disso à vista antes de meados de abril, se tivermos sorte.

No ritmo atual, em nove dias as UTIs da prefeitura da cidade mais rica do país, São Paulo, estarão lotadas. Se forem abertas mais vagas, em esforço recorde, inédito e talvez limite, lotam em 17 dias.

No mais, o crescimento dependeria da existência de algum governo, com qualquer rumo que fosse. O “teto” de gastos não desabou por um triz neste março. Goste-se ou não desse telhado de vidro já encardido e rachado, entre outros problemas estruturais desde sempre, se o “teto” tivesse desabado agora, sem alternativa bem pensada, estaríamos indo à breca imediata. Bolsonaro tentou derrubar o teto.

O estímulo da política monetária (juros do BC, grosso modo) à retomada econômica será menor. Quão menor? Também dependerá da campanha de alta de juros que o BC levará adiante. Há quem diga que a Selic deve ir apenas dos 2% atuais para 4% no fim do ano. Já seria forte. Na média de opiniões reputadas e preços de mercado, imagina-se que vá a 5,5% ao ano. Uma paulada.

Tanto maior será a paulada quanto maior o desgoverno. As altas do dólar e das commodities são os fatores dominantes da inflação, determinados majoritariamente por motivos externos. A pressão do exterior poderia ser em parte contrabalançada por um governo que tratasse da epidemia e tivesse rumo, qualquer rumo, na economia. Mas Bolsonaro agora tenta sabotar com mais frequência até as últimas proteções contra o caos: vide patada no Banco do Brasil, na Petrobras, a tentativa de sabotar o teto de gastos na votação de PEC Emergencial.

Afora os fatores externos, o dólar está ainda mais alto por causa do endividamento sem limite, porque o Brasil não cresce, porque Bolsonaro seca o chão onde pisa ou cospe seus vitupérios idióticos, facinorosos e autoritários.

Ah, tratávamos do Banco Central. O BC se tornou um barquinho nesse mar de imundície tormentosa. Está sendo levado, não tem o que fazer a não ser atenuar o pior.


Ruy Castro: Abominável senhor dos destinos

Nunca a vida de tantos brasileiros esteve nas mãos de tão poucos, garantidos pelas instituições

Um encontro numa sala reservada do Palácio do Planalto, no último domingo (14), reuniu quatro pessoas. Em jogo na conversa, a vida de centenas de milhares de brasileiros. O resultado da reunião, inevitável pelas circunstâncias, parece indicar que esses brasileiros perderam —muitos que acompanharam o caso pelo celular ou pela televisão talvez não estejam vivos daqui a um mês. Esse desfecho terá as digitais de três dos presentes na sala: Jair Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello e o deputado Flávio Bolsonaro. Já a quarta pessoa, a médica Ludhmila Hajjar, poderá dormir em paz.

O encontro, todos sabemos, referia-se ao convite de Bolsonaro para que ela aceitasse a suposta pasta do Ministério da Saúde no lugar do pesado, mas invertebrado, Pazuello. Para isso, teria de declarar sua sujeição às ordens do verdadeiro ministro, que é Bolsonaro, e assumir a co-autoria na chacina da população pela Covid. Co-autoria esta já garantida a Pazuello, cujos netos lerão nos livros que o vovô foi cúmplice na morte de 265 mil brasileiros pela pandemia. O que a dra. Ludhmilla recusou não foi um convite, mas uma intimação.

O tenebroso nessa reunião é como tantos destinos —o número de vidas perdidas no Brasil ameaça chegar a inacreditáveis 500 mil ou 600 mil— podem depender de tão poucos. Entende-se que Bolsonaro e Pazuello quisessem arguir a dra. Ludhmilla, para certificar-se de que ela seria um capacho à altura de Pazuello. Mas o que Flávio Bolsonaro fazia ali, mesmo em ameaçador silêncio?

Não apenas a saúde no Brasil está refém de um grupo de sujeitos abomináveis. Tudo mais está refém deles. Quando se diz que as instituições "estão funcionando", é para garantir a continuidade do desmoronamento do país.

Já não há instituição do Estado que não esteja visceralmente aparelhada. A costura da provável ditadura está sendo feita por dentro e aos nossos olhos.


Bruno Boghossian: Desastre na pandemia pesa sobre planos de Bolsonaro para 2022

Morticínio abala tentativa do presidente de preservar força para reeleição

Quando a pandemia deu as caras, Jair Bolsonaro apostou todas as fichas em seu projeto de reeleição. O presidente sacrificou os esforços mais urgentes de contenção do vírus e tentou fazer com que a economia continuasse girando à força. A estratégia acentuou a tragédia no país e, agora, ameaça seus próprios planos políticos.

Até a virada do ano, Bolsonaro sustentou sua popularidade com base nesse discurso. O comportamento conflituoso manteve sua base eleitoral coesa, enquanto o pagamento do auxílio emergencial criou um colchão de aprovação ao governo. O morticínio que essa plataforma produziu, no entanto, começa a cobrar um preço do presidente.

A nova pesquisa do Datafolha indica uma tendência continuada de piora nos índices de avaliação de Bolsonaro. Ele nunca teve aprovação significativa durante a crise, mas agora 54% dos brasileiros consideram seu trabalho na pandemia ruim ou péssimo. A reprovação subiu tanto entre os mais pobres (que tiveram o auxílio) como entre os ricos (que já foram o núcleo de sua base de apoio).

O morticínio furou uma blindagem que Bolsonaro tentou construir no último ano. Na sondagem, 43% dos entrevistados citaram o presidente como principal culpado pela situação do país, à frente de governadores (17%) e prefeitos (9%). O número ganha peso porque a responsabilidade de governantes é um componente importante da decisão do eleitor.

Os números sugerem que a saúde é um fator político mais carregado do que Bolsonaro gostaria de admitir. A avaliação negativa do governo nessa área se somou à dificuldade da economia e se refletiu no índice de reprovação ao governo, que subiu para 44%. Mesmo assim, 30% dos brasileiros ainda consideram o trabalho do presidente ótimo ou bom.

O desastre nacional não foi suficiente para fazer com que Bolsonaro abandonasse a sabotagem e o negacionismo. Ele só mudou o discurso sobre a vacina e decidiu trocar o ministro da Saúde quando viu que sua reeleição poderia ficar em risco.


Elio Gaspari: Bolsonaro fritou o bode

O presidente e Pazuello encarnam um tipo de comando primitivo

Quando se acha que aconteceu de tudo, o capitão consegue mais uma. Fritando o general que transformou em bode expiatório, chamou a Brasília a médica Ludhmila Hajjar para convidá-la.

Bolsonaro e Pazuello encarnam um tipo de comando primitivo, às vezes confundido com o folclore da caserna. O general entrou no Ministério da Saúde com uma tropa de ocupação. Colocou 25 oficiais da ativa e da reserva em posições de comando. Um tenente-coronel cuidava das aquisições de insumos estratégicos; outro, de sua logística. Deu no que deu. O coronel secretário-executivo usava um brochinho com uma caveira atravessada por uma faca.

Afora isso, o próprio general dirigiu-se a parlamentares como se fosse um sargento falando a recrutas: “Não falem mais em isolamento social”.

Oficiais exibicionistas ridicularizam comandados. Às vezes mandam soldado puxar carroça. Como ministro, o general Pazuello fez fama mostrando-se como um soldado do capitão ao lembrar que “um manda, e outro obedece”.

O ministro talvez pudesse ter recorrido à memória que o vice-presidente Hamilton Mourão tem da história militar americana. Em 1866, o presidente Andrew Johnson mandou o general Ulysses Grant para uma missão no México. Ele se recusou, e o presidente se enfureceu, vendo no gesto um ato de indisciplina. Grant acabara de vencer a Guerra Civil e explicou: “Eu sou um oficial do Exército e devo obedecer às suas ordens militares. No caso, trata-se de uma missão civil, puramente diplomática, e não estou obrigado a aceitá-la”.

Formação militar nada tem a ver com folclore, muito menos com incompetência administrativa. A hidrelétrica de Itaipu foi construída por um coronel da reserva que morreu sem fortuna ou encrencas. José Costa Cavalcanti havia sido deputado e não elevava o tom de voz. O mais folclórico dos generais-presidentes (João Figueiredo) foi o pior da cepa. Castello Branco não usava a linguagem que Bolsonaro usou na conversa com a médica Ludhmila Hajjar.

O estilo que Bolsonaro cultiva com seu pelotão palaciano tem folclore e falta-lhe conteúdo. O Planalto vive assombrado pelo que considera uma campanha de desinformação. Tanto é assim que uma das primeiras providências de Pazuello foi alterar o boletim estatístico de mortes pela pandemia. Produziu o memorável episódio da formação do consórcio de veículos de imprensa, que faz o serviço a custo zero.

Pazuello passará para a história do ministério como gerente de um desastre. Tornou-se bode expiatório por ter irradiado uma visão negacionista da pandemia. As vacinas de Manaus foram para Macapá, a avalanche de imunizantes não aconteceu, e a CoronaVac chinesa do governador João Doria revelou-se uma dádiva. Durante a última semana de sua gestão, o Brasil tornou-se um dos dez países com mais mortes por milhão de habitantes. Foi a consequência da “conversinha” da nova onda de contágios.

Não precisava ter sido assim. Os Estados Unidos, Reino Unido, Itália e Portugal sofreram no ano passado. Sem as “frescuras” do folclore militar, não estão mais nessa lista maldita.

Que o médico Marcelo Queiroga, nova variante da cepa de ministros de Bolsonaro, tenha sorte.