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Fernando Gabeira: Pandemia e lição de casa

Já estamos um pouco cansados de falar da pandemia. Quem caiu, quem não caiu, amigo entubado, amigo extubado, CoronaVac, AstraZeneca, vozes abafadas pelas máscaras, CPIs, mentiras e gravações.

Mas a Humanidade tem de enfrentar seus erros e fazer a lição de casa, pois, nas condições de crise ambiental, novas pandemias podem nos atacar.

Um passo importante foi a comissão especial criada pela OMS, que divulgou seu relatório. Nele, o grupo liderado pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia Helen Clark aponta os erros da própria OMS, que perdeu um mês antes de decretar a emergência.

Governos locais — com seu negacionismo, isso conhecemos bem —também foram responsáveis por políticas destruidoras.

Em outras palavras, a tragédia que o mundo vive hoje poderia ter sido evitada. Comissões internacionais como essa são importantes para despertar uma nova consciência. No final da década dos 60, o Clube de Roma publicou um relatório de personalidades políticas alertando para a produção e o consumo insustentáveis. Isso foi um marco.

No meu entender, existe uma lição implícita na pandemia, já absorvida no século XIX por Humboldt. Ao escalar a montanha do vulcão Chimborazo, ele compreendeu algo que já estava amadurecendo em seu pensamento: os elementos da natureza são interligados, ela é uma rede viva e, portanto, vulnerável.

Lição semelhante pode ser transplantada para a política internacional num caso de pandemia. Estamos todos no mesmo barco. Ninguém estará a salvo enquanto todos não estiverem a salvo.

Daí meu apoio à quebra das patentes, mesmo sabendo que o efeito imediato da medida não é tão promissor quanto a distribuição de vacinas por países que têm mais do que necessitam para vacinar sua população.

Essa noção de interdependência deve ser levada também para o plano interno, em que, sem solidariedade, dificilmente atravessaremos a crise.

O governo brasileiro fez tudo errado. Negou a pandemia, resistiu à vacina e contribuiu para que tivéssemos um número absurdo de mortes.

Como se não bastasse isso, o desmatamento na Amazônia atinge números recordes, o Congresso acaba com as leis que definem o licenciamento ambiental.

O processo de destruição da natureza será mais acentuado no Brasil, sem falar no aumento da pobreza, por remarmos contra a corrente mundial que defende a sustentabilidade.

O governo e o Congresso não respeitam o alerta sobre uma exploração sustentável da natureza. E muito menos os conselhos para preservar vidas durante uma pandemia.

Simultaneamente, portanto, criam as bases de uma nova pandemia e estabelecem a política negacionista de um sacrifício humano ainda maior.

A única esperança, se isso merece o nome de esperança, é que não conseguirão destruir tudo nem matar todos os brasileiros até 2022.

É simples: ou deixam o poder, ou acabam com o Brasil.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/pandemia-e-licao-de-casa.html


Ricardo Noblat: Balanço das descobertas feitas até aqui pela CPI da Covid-19

Duas semanas, não mais do que duas semanas bastaram para que a CPI da Covid-19 no Senado ouvisse de meia dúzia de depoentes a revelação de fatos que confirmam a incúria do governo do presidente Jair Bolsonaro no combate à doença.

Os mais graves deles:

1) Houve uma tentativa de mudar a bula da cloroquina, medicamento sem eficácia contra o vírus, mas defendido com obsessão pelo presidente da República e seus áulicos;

2) O vereador Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, participou de reuniões para a compra de vacinas, embora não tenha cargo formal dentro do governo do pai;

3) O governo recusou sete propostas de compra da vacina Pfizer, só aceitando a sétima. Com isso, o país deixou de receber 1,5 milhões de doses em dezembro passado e 3 milhões até o final de março.

À CPI, o Ministério da Economia admitiu que não reservou dinheiro no Orçamento da União para o combate, este ano, da Covid. Acreditou que a pandemia estava no finalzinho.

O senador Omar Aziz (PDS-AM), presidente da CPI, não tem mais dúvidas:

– Pelo que já apuramos, pelo que eu estou vendo nos depoimentos, nunca houve o compromisso da compra da vacina. Sempre se tratou das questões da cloroquina, da ivermectina e de protocolos.

Novas descobertas poderão ser feitas com o depoimento marcado para a próxima quarta-feira do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde. Ele só poderá ficar calado até certo ponto.

A CPI tem mais de 70 dias pela frente para concluir seus trabalhos. O prazo deverá ser prorrogado por mais de 90. Daí o desespero de Bolsonaro que radicaliza seu discurso justamente por causa disso.

General, ministro da Defesa, discursa em manifestação bolsonarista

Braga Neto sobe em carro de som em Brasília e diz que as Forças Armadas estão prontas para garantir a volta ao trabalho dos brasileiros

Quando o presidente da República diz, referindo-se a Lula, que “eles tiraram da cadeia o maior canalha da história do país”, sabendo, como sabe Jair Bolsonaro, que quem tirou foi a mais alta Corte de Justiça, o que ele pretende com isso?

Elementar, meus caros: jogar o povo, particularmente seus devotos, contra a mais alta Corte de Justiça do país, no caso o Supremo Tribunal Federal. Indiretamente, assina embaixo dos cartazes exibidos por eles que pregam o fechamento do tribunal.

Isso é ou não é estímulo ao golpe que está na dele e na cabeça dos seus seguidores mais radicais? Relaxem, não haverá golpe. Não há disposição dos militares para instalar por aqui uma nova ditadura. General não dá golpe para beneficiar ex-capitão.

O general Braga Neto, ministro da Defesa, participou da manifestação de apoio a Bolsonaro promovida ontem, em Brasília, por evangélicos e ruralistas. Passeou entre eles, posou para fotos e discursou em cima do caminhão de som. A certa altura, avisou:

– As Forças Armadas estão prontas para garantir que todos tenham direito de trabalhar.

No início da semana, Bolsonaro havia dito que está pronto um decreto que assinará em breve acabando com as medidas de isolamento baixadas por governadores e prefeitos. Um blefe, ao que tudo indica, porque o Supremo conferiu a eles tal poder.

Braga Neto endossou o blefe. Ora, ninguém está impedido de sair de casa para trabalhar. Então as Forças Armadas abandonariam os quartéis para não prender ninguém. Para quê? Para assegurar o direito a aglomerações e o acesso de banhistas às praias?

O general, apesar do seu cargo, não fala pela boca dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, a não ser sobre questões administrativas. E os comandantes estão calados, a uma distância segura do governo para não serem contaminados.

Candidato que aparece na rabeira das pesquisas de intenção de voto, confrontado com seus números, não passa recibo. Ou tenta desacreditar as pesquisas ou afirma que ainda falta muito tempo para o dia da eleição e que até lá ultrapassará seus concorrentes.

No momento, em segundo lugar, faltando ainda 20 semanas para o primeiro turno da eleição do ano que vem, Bolsonaro passa recibo do seu incômodo e parte para atacar Lula com insultos do mais baixo nível. É coisa de político amador e assustado!

Pela primeira vez, a parcela dos brasileiros que apoia o impeachment de Bolsonaro é numericamente superior à parcela dos que são contra, segundo a mais recente pesquisa Datafolha (49% a 46%). Em abril de 2020, 53% rejeitavam o impeachment.

Assim como o golpe, não haverá impeachment. À oposição não interessa e ela não tem votos para aprová-lo no Congresso. Lula torce para enfrentar Bolsonaro porque acredita que poderá derrotá-lo. Bolsonaro já torceu para enfrentar Lula, agora não.

Lula calcula que Bolsonaro chegará mais fraco do que está em outubro do próximo ano. Hoje, 58% dos eleitores dizem que Bolsonaro não tem capacidade de liderar o Brasil; e 50% dizem que nunca confiam nas declarações que ele faz.

A taxa de confiança plena é a menor desde o início da série histórica de pesquisas do Datafolha em agosto de 2019, ao passo que a desconfiança total é a maior do período. Bolsonaro parece admitir uma eventual derrota ao falar em “votos auditáveis”.

Voto auditável para ele é voto impresso, abolido porque facilita a ocorrência de fraudes. Voto eletrônico é também auditável e mais seguro. Desde já, Bolsonaro empenha-se em construir uma narrativa para não aceitar o resultado da eleição se perdê-la.

Fonte:

Blog do Noblat/Metrópoles

https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/balanco-das-descobertas-feitas-ate-aqui-pela-cpi-da-covid-19


O Globo: Orçamento paralelo de R$ 20 bilhões irriga órgãos dominados pelo Centrão

Natália Portinari, O Globo

BRASÍLIA — O “Orçamento paralelo” em emendas de R$ 20 bilhões em 2020, controlado por deputados e senadores governistas, foi direcionado para diversos órgãos chefiados por indicados do Centrão. O loteamento de cargos no governo federal permitiu que parlamentares tivessem ainda mais controle sobre o destino da verba indicada por eles.

A negociação foi operacionalizada através das emendas de relator, uma fatia do Orçamento usada para investimentos, obras e reforço para os caixas de municípios na área de saúde e educação. Governistas usaram a verba para irrigar suas bases eleitorais com verbas “extra”, além das emendas individuais de R$ 16 milhões a que cada um tem direito.

Os recursos que constituem o “Orçamento paralelo”, distribuído de forma desigual e sem transparência entre os parlamentares pela cúpula do Congresso em acordo com o governo federal, são provenientes das emendas de relator. O relator do Orçamento repassa informalmente as indicações de verbas de líderes partidários para a União, que depois autoriza os repasses dos ministérios demandados. É diferente de quando deputados e senadores indicam o destino de suas emendas parlamentares formalmente na peça orçamentária: eles têm direito a exatamente o mesmo valor, sejam da oposição ou governistas, e o Executivo é obrigado a fazer os pagamentos.

No Ministério da Educação, por exemplo, os valores empenhados (autorizados para pagamento) de emendas de relator chegam a R$ 2 bilhões. Deste valor, R$ 1,5 bilhão foi parar no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), cujo gestor, Marcelo Lopes da Ponte, é indicado do presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). No órgão há ainda uma diretoria controlada por um quadro do PL, Garigham Amarante Pinto.

A maior parte das emendas de relator foi destinada ao Ministério do Desenvolvimento Regional: R$ 8 bilhões. Dessa quantia, pelo menos R$ 1,2 bilhão foi para a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba(Codevasf). Desde o fim de 2019, o órgão é chefiado por um indicado do deputado Elmar Nascimento (DEM-BA).

Líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) tem um aliado seu, Aurivalter Cordeiro, à frente da superintendência do órgão em Pernambuco. Ele fez uma indicação de R$ 175 milhões na autarquia, mais de dez vezes o valor de uma emenda individual no Congresso. A cidade de Petrolina (PE), administrada pelo filho de Bezerra, Miguel Coelho, assinou um convênio de R$ 46 milhões com o órgão para pavimentação e abastecimento de água no fim de 2020.

Como revelou o GLOBO, na Codevasf, mais de 90% da verba das emendas de relator foi indicada por aliados do governo Bolsonaro no Congresso. Nas superintendências regionais do órgão, além do indicado de Bezerra Coelho, há chefes apadrinhados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), Hildo Rocha (MDB-MA) e Arthur Maia (DEM-BA).

Comandada pelo Centrão, a Codevasf atua prioritariamente em projetos na região do rio São Francisco. Sua área de abrangência, porém, foi ampliada pelo Congresso e vai hoje do Amapá a Minas Gerais. Inaugurado neste ano, o escritório do Amapá foi uma vitória de Davi Alcolumbre (DEM-AP), ex-presidente do Senado. Ele fez uma indicação de R$ 98 milhões em emendas de relator à Codevasf para seu estado, pedido atendido pelo órgão.

Procurado, Alcolumbre defendeu a indicação. “A instalação da companhia no meu estado mudará para sempre a rota de desenvolvimento local. Ter o Amapá na Codevasf significa mais desenvolvimento para o meu estado. Isto porque, assegurados por lei, vamos ter como aprimorar nossas condições socioambientais regionais e de bem-estar”, disse em nota.

Indicações por WhatsApp

As emendas de relator foram repartidas entre deputados e senadores pelos líderes partidários. Uma lista com a divisão foi enviada à Secretaria de Governo, que, por sua vez, repassou os pedidos aos ministérios e cuidou da liberação, concentrada no fim do ano.

— No ano passado, quem centralizou (a distribuição das emendas de relator) foi a própria Secretaria de Governo — diz o deputado Hildo Rocha.

Deputados e senadores ouvidos pelo GLOBO relatam que nem sempre há uma indicação formal das emendas de relator como a que ocorreu no Ministério do Desenvolvimento Regional. Em muitos casos os pedidos são feitos pelo WhatsApp ou em planilhas manejadas por assessores das quais não há registro. Por isso, não há transparência sobre a distribuição.

O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), também nas mãos do Centrão, recebeu R$ 225 milhões para assentamentos rurais. O presidente é Geraldo Melo Filho, indicado pelo ministro Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral da Presidência) e filiado ao DEM. Nas superintendências, há dezenas de indicações políticas. Os deputados Marx Beltrão (PSD-AL), Zé Silva (SD-MG) e Josimar de Maranhãozinho (PL-MA) já emplacaram chefes regionais.

 

 

Fonte:

O Globo

https://oglobo.globo.com/brasil/orcamento-paralelo-de-20-bilhoes-irriga-orgaos-dominados-pelo-centrao-25020909


Correio Braziliense: ‘A ficha do brasileiro demorou a cair’, diz Marco Aurélio Mello

Por Ana Dubeux

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello enxerga uma espécie de delay coletivo do Brasil em relação à pandemia. “Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia… Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões”, diz, nesta entrevista.

Defensor do isolamento, ele acredita que a pandemia alerta sobre a necessidade de restabelecer valores caros à vida em sociedade. E preocupa-se: “A ficha do brasileiro demorou muito a cair. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva — a militar — para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante”.

Após mais de três décadas como ministro do STF e 42 anos de magistratura, Marco Aurélio está na antessala da aposentadoria, marcada para julho próximo. Mas avisa: “Não morrerei de tédio”. Não morre, nem nunca deixou ninguém morrer, é fato.

Ministro que nunca se furtou a declarações fortes e posicionamentos, ele afirma não ter arrependimentos e se declara um “estivador do direito”, referindo-se à carga de processos que hoje um ministro acumula. “Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes”. Pretende se dedicar agora à vida acadêmica.

Ser ministro do Supremo durante mais de 30 anos cansa? Do que se arrepende? Do que se orgulha?
Orgulho-me do Supremo que encontrei em 1990, quando, na gestão do ministro Néri da Silveira, tomei posse. Havia integrado o Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Regional do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho. Sempre decidi segundo ciência e consciência possuídas. Daí não haver qualquer arrependimento. Magistratura é opção de vida, e é preciso atuar sempre buscando o melhor, procurando conciliar o trinômio lei, direito e justiça, visando a entrega da prestação jurisdicional a tempo e modo. Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes. Atuo em colegiado julgador há 42 anos e completarei, em 13 de junho próximo, 31 no Supremo, com o sentimento do dever cívico cumprido. Continuarei na área acadêmica, na presidência do Instituto UniCeub de Altos Estudos. Estejam certos: não morrerei de tédio. O crescimento é infindável.

O senhor foi professor na Universidade de Brasília e no Ceub. Que lembranças tem desse contato com novas gerações?
A melhor lembrança possível, e sigo no mundo acadêmico. Estive ontem na Universidade de Brasília, continuo no UniCeub e palestrei diversas vezes nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. O contato com as novas gerações é enriquecedor, no que se percebe mentes abertas.

Quais mudanças o senhor destacaria na Justiça brasileira desde 1990, quando foi escolhido para o Supremo?
Houve o aprimoramento da atuação da Justiça. O que ocorre, no Brasil, é que não se caminha, por exemplo, para solucionar conflito de interesse na mesa de negociações. O País conta com lei moderníssima sobre arbitragem, mas dificilmente se tem descompasso solucionado mediante a atuação de árbitros. O brasileiro somente acredita em uma solução, a solução ditada pelo Estado-juiz. Então, há a judicialização em massa, que acaba emperrando a máquina judiciária.

As demandas da sociedade ampliaram a necessidade de o Judiciário modernizar-se, principalmente diante da pandemia. Como o STF pode contribuir no esforço para reduzir os impactos sociais da covid-19?
O Supremo somente atua mediante provocação, buscando, no âmbito de competência inimaginável, muito grande, conciliar celeridade e conteúdo. O Tribunal, não me canso de repetir, é o guarda maior da Constituição Federal. A segurança jurídica pressupõe a observância irrestrita, por todos, do arcabouço normativo.

Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
É preciso haver avanço cultural. De qualquer forma, a pandemia implicou alerta quanto à necessidade de preservar valores caros à convivência. A sociedade sairá mais fortalecida dessa quadra.

É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?
Em primeiro lugar, julgo, integrando o Supremo, destinos e não papéis. Sempre busco – sei que é utopia – a perfeição. Não há tensão propriamente dita. Sou um juiz à antiga, trazendo processos para a residência. Vou ao Tribunal apenas nos dias de sessão. Aliás, ia ao Tribunal, porque, agora, quando se tem reunião de integrantes, ocorre mediante videoconferência. Como julgador, cuido muito da parte humanística. Por isso tenho sempre aberto um romance. Estou lendo obra de Hilary Mantel, sobre a Inglaterra da época de Henrique VIII, O Espelho e a Luz. Admiro muito essa escritora.

O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Tenho presente, há mais de um ano, que a vacina maior é a revelada pelo isolamento. Então o mantenho, desde março de 2020, e vou tocando a vida, buscando deixar, no gabinete, o menor resíduo possível para o sucessor, considerada a aposentadoria que se avizinha, em 5 de julho do corrente ano.

Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
Os homens públicos devem ter os olhos voltados ao bem-estar social. No caso do Brasil, precisa haver atenção ímpar com os menos afortunados, proporcionando-se educação, saúde e segurança pública.

O momento exige resiliência e ativismo solidário. Engajou-se pessoalmente em alguma atividade coletiva a distância?
Exige dedicação e a busca do resgate desse predicado que é a solidariedade. Não me sobra tempo para estar engajado em outra atividade, além da acadêmica e judicante. Costumo dizer que hoje não sou, ante a carga de processos, um operador do Direito, mas sim um estivador.

Que ensinamento este momento nos deixa?
O relativo à necessidade de respeito à natureza. Em pleno século XXI, o homem veio a perceber, com essa pandemia, a fragilidade e que deve cuidar da mãe terra.

O senhor vive em Brasília há mais de 30 anos, como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Aqui cheguei, em 1981. A ficha do brasileiro demorou muito a cair quanto ao momento vivenciado, quanto aos efeitos da pandemia. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva – a militar – para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante. A conscientização passa, de qualquer forma, por uma mudança na percepção da vida gregária, da vida em sociedade.

Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia, os efeitos que poderia causar. Sempre é tempo de tomar decisões visando o melhor, considerados os brasileiros. Sim, os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões. Observa-se o que ocorreu em outros países, como a Inglaterra, em que medidas foram adotadas.

A importância da união em torno de um projeto suprapartidário, para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos, é possível?
É possível desde que haja, como disse, conscientização, sobretudo dos homens públicos, e que não prevaleçam interesses isolados, momentâneos e que não levam ao bem-estar geral.

Fonte:

Correio Braziliense

https://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/a-ficha-do-brasileiro-demorou-a-cair-diz-marco-aurelio-mello/


Bruno Carazza: Nuvem de palavras

Descontados os intervalos, já se passaram 38 horas e 46 minutos de depoimentos desde que o senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia, convocou para se sentar à mesa a primeira testemunha: o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

Desde então já foram realizadas seis oitivas de personagens que, em diferentes partes do roteiro, foram protagonistas ou coadjuvantes, vilões ou mocinhos, neste filme de terror que já teve mais de 435 mil vítimas.

Já subiram ao palco da CPI os ex-ministros da Saúde Mandetta (cuja audiência durou 7 horas e 20 minutos) e Nelson Teich (5 horas e 26 minutos), o atual responsável pela pasta Marcelo Queiroga (8 horas e 2 minutos), além do diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária Antônio Barra Torres (5 horas e 27 minutos), o ex-secretário de comunicação social do governo Fabio Wajngarten (7 horas e 17 minutos) e o gerente-geral da farmacêutica Pfizer na América Latina Carlos Murillo (5 horas e 14 minutos).

Ao se analisar a íntegra dos depoimentos de todos os convocados até agora, aqueles que gostariam de ver o presidente da República sendo encurralado desde as primeiras perguntas podem ter se decepcionado. Durante os depoimentos dos ministros da Saúde, o nome de Bolsonaro foi muito pouco mencionado – para ser mais exato, apenas quatro vezes (uma por Mandetta e Teich e duas por Queiroga).

À medida que a CPI começar a convocar testemunhas que tiveram envolvimento mais específico e direto com os diversos aspectos da gestão governamental da pandemia, o risco de exposição de Bolsonaro e de sua família começa a aumentar consideravelmente. Prova disso é o fato de que o sobrenome “Bolsonaro” foi citado 18 vezes por Fabio Wajngarten e mais oito vezes pelo executivo da Pfizer Carlos Murillo.

Na nuvem de palavras proferidas nos seis primeiros debates da CPI, podemos encontrar outra pista sobre o rumo que as investigações podem tomar. O tema da cloroquina teve 84 menções, a maioria concentrada nas respostas dos ministros da Saúde e do presidente da Anvisa. No entanto, o termo “vacina” e seus derivados foram utilizados 586 vezes, apresentando alta incidência em todos os testemunhos feitos, o que indica que esse é um assunto com um potencial explosivo muito maior para o governo.

Do outro lado da mesa, também podemos encontrar informações interessantes sobre o andamento dos trabalhos da Comissão. Tentando captar o tamanho da participação de cada membro da Comissão nos depoimentos, realizei um exercício bastante simples. Compilei a íntegra das notas taquigráficas de cada sessão da CPI disponível na página do Senado na internet e contabilizei o total de caracteres utilizados por cada parlamentar durante suas perguntas e comentários dirigidos aos depoentes.

Conforme pode ser visto no gráfico, o protagonismo é exercido pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), seguido do presidente Aziz e do vice-presidente Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Até aí não há nada demais, visto que esses três postos têm prerrogativas regimentais para conduzir os trabalhos da comissão, o que justifica terem mais tempo e espaço para falar. Mas há alguns pontos interessantes a serem observados.

De acordo com a mesma métrica, a defesa de Bolsonaro vem sendo capitaneada por Marcos Rogério (DEM-RO) e Luis Carlos Heinze (PP-RS), enquanto Ciro Nogueira (PP-PI) tem uma das atuações mais apagadas da CPI. Com o governo atravessando um de seus piores momentos desde a posse, o relativo silêncio do poderoso cacique do Centrão vale mais do que mil palavras.

Do lado da oposição ao governo, uma das vozes mais críticas contra a gestão de Bolsonaro na pandemia ainda se mostra discreta na comissão. Tasso Jereissati (PSDB-CE) recentemente chegou a cogitar publicamente a possibilidade de concorrer à presidência em 2022. Ao não tomar para si os holofotes na CPI da Covid, contudo, o tucano dá margens a se pensar de que esse desejo talvez não seja tão forte assim.

Voltando à nuvem de palavras, as referências a “Manaus” e “oxigênio” apareceram somente em 53 ocasiões nas duas primeiras semanas de trabalhos da CPI, indicando que esse é um flanco que ainda foi pouco explorado, pelo menos por enquanto.

Mas se o general Pazuello tiver a coragem de encarar os senadores na próxima quarta (19/05), pode sair daí a palavra-chave para se começar a demonstrar a responsabilidade do governo neste morticínio.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/politica/coluna/nuvem-de-palavras.ghtml


Celso Rocha de Barros: Vai ser homem, Pazuello?

A CPI da Covid está descobrindo evidências de um assassinato em massa. Segundo o depoimento do gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, Bolsonaro desprezou várias ofertas de vacinas da empresa. Na estimativa do epidemiologista Pedro Hallal, só essa decisão de Bolsonaro causou entre 5.000 e 25 mil mortes.

Só essa decisão: não estamos levando em conta os ataques de Bolsonaro à Coronavac, que é responsável por cerca de 80% das vacinas do Brasil; nem da adesão tardia e parcial ao consórcio Covax Facility (entramos comprando 10% de nossas necessidades, poderíamos ter pedido até 50%); nem das vacinas já aplicadas que podem perder eficácia porque o governo federal mandou estados e municípios gastarem as reservas de Coronavac que guardavam para a segunda dose, inflando assim o número de vacinados; nem de toda a sequência de crimes documentados de Bolsonaro durante a pandemia que não se relacionam a vacinas.

A verdade é que, não fossem os adversários, reais (Doria) ou imaginários (China), de Bolsonaro, o número de brasileiros vacinados seria próximo de zero. A OMS, organizadora do consórcio Covax, também foi alvo constante de ataques bolsonaristas.

Os depoimentos à CPI também vêm reforçando a impressão de que o negacionismo bolsonarista no combate à pandemia teve base ideológica. Segundo os depoimentos, extremistas como Carlos Bolsonaro e Filipe Martins participavam das reuniões com vendedores de vacina sem terem qualquer qualificação na área médica, em suas próprias especialidades ou em qualquer outro ramo da aventura humana. Se estavam ali, era para garantir a aposta na imunidade de rebanho, na guerra contra a China e contra os “globalistas” da OMS.

E além dos capangas e soldados rasos do “Consultório do Crime”, começam a aparecer os suspeitos de serem as fontes de dinheiro e assessoria técnica. O ex-ministro Mandetta já havia declarado que Bolsonaro parecia ignorar os conselhos da área técnica porque tinha um aconselhamento paralelo.

As atenções da CPI agora se viram para o empresário Carlos Wizard, que pode ter sido o chefe dessa rede, e para a médica Nise Yamaguchi. Segundo o depoimento do presidente da Anvisa, o almirante Barra Torres, Yamaguchi defendeu a proposta de mudar a bula de remédios para mentir que eles curavam Covid-19.

É bom lembrar: Bolsonaro mandou os trabalhadores para a morte com a ilusão de que os remédios falsos os manteriam seguros. Nunca acreditou, de fato, na eficácia da cloroquina. Em suas memórias, o ex-ministro Mandetta diz que “nunca houve na cabeça dele a preocupação da cloroquina como um caminho de saúde. A preocupação dele era sempre ‘vamos dar esse remédio porque com essa caixinha de cloroquina na mão os trabalhadores voltarão a produzir’”. (p.133).

A próxima grande atração da CPI será o general Pazuello, ministro da Saúde durante a maior parte da mortandade. Pazuello ficou famoso por cancelar uma compra de Coronavac a mando de Bolsonaro, dizendo que “um manda e o outro obedece”.Agora vai ter que decidir se acaba como bode expiatório da pandemia ou se conta para os senadores quem lhe deu ordem para deixar que centenas de milhares de brasileiros morressem sem vacina.E aí, Pazuello, vai ser homem?


Malu Gaspar: Disputa sobre dinheiro para combate à Covid pode prejudicar governo na CPI

O desfecho de um embate entre o Ministério da Economia e o Tribunal de Contas da União sobre as verbas repassadas pelo governo federal a estados e municípios para o combate da pandemia de Covid-19 em 2020 pode afetar o rumo da CPI da Covid no Senado. E por ironia, se a equipe econômica vencer a disputa, o governo de Jair Bolsonaro perde seu principal argumento de defesa na comissão.

A discussão se dá em torno dos R$ 79 bilhões extras que o governo repassou a estados e municípios como ajuda de emergência para o combate à Covid. O TCU entende que o dinheiro é federal e, por isso, tem de ser acompanhado pelos órgãos de controle de Brasília. Já a Secretaria do Tesouro do Ministério da Economia considera que, uma vez feito o repasse, a verba passa a ser dos estados, e portanto não cabe fiscalização, nem responsabilidade da União.

Na CPI, os governistas defendem justamente o contrário da equipe de Paulo Guedes: que a comissão tem que investigar também o uso do dinheiro repassado, uma vez que, por ter origem na União, há responsabilidade federal.

O argumento foi a forma que os partidários de Bolsonaro encontraram de incluir governadores e prefeitos na lista de investigados, já que o regimento do Senado diz que CPIs abertas na Casa não podem investigar estados.

A pendenga em torno de quem deve fiscalizar o dinheiro da pandemia começou em junho, quando a área técnica do tribunal de contas abriu uma representação para discutir a natureza jurídica dos repasses federais. Isso porque na corte se considerava que as leis que criaram as transferências não são claras sobre o assunto.

Àquela altura, o governo já havia transferido R$ 25 bilhões a governadores e prefeitos. Em dezembro, o plenário do TCU decidiu que a verba é federal. Mas a pedido do Ministério da Economia, a Advocacia-Geral da União recorreu, e o ministro relator, Benjamin Zymler, suspendeu seus efeitos para reavaliar o caso.

A decisão, portanto, está paralisada, sem data prevista para novo julgamento. E como ela está suspensa, neste momento vale a posição do Ministério da Economia, que diz que a responsabilidade pelo dinheiro é dos estados, não da União.

O imbróglio já provoca disputas nos estados, onde há dezenas investigações sobre desvios dos recursos. Num deles, Pernambuco, a prefeitura de Recife tenta derrubar a apuração do Ministério Público Federal argumentando justamente que fiscalizar o uso do dinheiro não é mais atribuição federal, e sim estadual.

A solução para o impasse depende do TCU, que vai precisar julgar em breve a quem pertence o dinheiro. Se não para orientar a CPI, pelo menos para resolver uma questão bastante prática.

Com a mudança de atribuição de federal para estadual, os R$ 79 bilhões deixaram de contar para o cálculo das receitas da União, que funcionam como parâmetro para os limites de gastos estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Dessa forma, as receitas do governo caíram 10% em dezembro passado, o que fez com que vários órgãos federais tivessem seus limites de gastos com pessoal estourados de uma hora para outra.

A questão terá que ser decidida, já que a partir de maio esses órgãos federais têm que mandar para o Tesouro relatórios de gestão. E se ficar comprovado que eles estão gastando mais do que o permitido, terão de cortar despesas, congelar promoções e concursos, por exemplo.

A pressão desses setores para que o Ministério da Economia assuma a responsabilidade sobre os recursos tende a aumentar. Do outro lado estarão os governos estaduais, que não gostariam de enfrentar a fiscalização do Ministério Público Federal e da própria CPI da Covid. Quem perde, em um caso ou em outro, é o governo Bolsonaro.

Se a tese da equipe econômica for vencedora, Bolsonaro terá mais problemas na CPI, já a convocação de governadores vai perder força. E se o TCU sair ganhando, quem perde é a equipe de Paulo Guedes.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/disputa-sobre-dinheiro-para-combate-covid-pode-prejudicar-governo-na-cpi.html


Demétrio Magnoli: Quem é a polícia do B?

Tudo bandido!, decretou Hamilton Mourão horas depois do massacre no Jacarezinho, em 6 de maio, quando indagado sobre 27 das 28 vítimas fatais. O vice-presidente só conhecia a identidade do policial morto. Os supostos criminosos não tinham sido processados, julgados ou condenados. A segunda maior autoridade do país oferecia seu amparo a execuções extrajudiciais.

Mais: classificando como “bandidos” as vítimas ainda não identificadas, dizia implicitamente que são criminosos os que residem ou simplesmente circulam pelo Jacarezinho. A frase, síntese da barbárie nacional, esclarece os protocolos ocultos de ação da polícia no Rio de Janeiro. Desde o fracasso da política das UPPs, restaurou-se o padrão de invasão de favelas em operações letais. O pressuposto é que as favelas são terra estrangeira e seus moradores, combatentes inimigos.

Exige-se a investigação da Operação Exceptis, cujo nome de batismo enviava uma mensagem voluntária de deboche ao STF e uma outra, involuntária, a todo o país: a polícia do Rio não reconhece as leis regulares, mas apenas suas próprias leis, de “exceção”. O que procurar, porém, na investigação?

A resposta depende da hipótese inicial. Se acreditamos que a polícia do Rio é um corpo armado que opera sem planejamento e sem protocolos, a investigação deveria restringir-se aos desvios em relação aos padrões normais de ação policial e terminar com a punição dos agentes culpados. Mas tudo indica que a polícia segue planejamento e protocolos bem definidos, embora ocultos.

Na cidade do Rio, quase 60% da superfície dos territórios controlados por grupos armados irregulares encontram-se sob o comando de milícias, ou seja, da polícia do B. Apenas 15% são controlados por facções do crime, enquanto 25% são áreas de parceria ou disputa. Contudo a imensa maioria das operações policiais incide sobre os territórios de facções. É coisa incomum a ação da polícia oficial nos territórios de milícias — e mais raros ainda, os eventos de choques entre policiais e milicianos. Não estaríamos diante de uma aliança tácita entre a polícia e as milícias para estender o controle territorial das segundas?

O Jacarezinho situa-se nas vizinhanças da Cidade da Polícia, base principal das chefias e unidades operacionais da Polícia Civil. A favela vive sob a maior facção criminosa do Rio, um grupo sanguinário que nunca faz parceria com as milícias. A facção concorrente, pelo contrário, não rejeita parcerias baseadas numa nítida divisão de trabalho: os traficantes cuidam da venda de drogas, enquanto os milicianos dedicam-se à extorsão de comerciantes e moradores. A seleção do Jacarezinho para a Operação Exceptis parece obedecer a uma lógica de negócios. Quem ganha com uma eventual troca de guarda na favela?

A estúpida “guerra às drogas” é o pano de fundo e o álibi, mas não a causa, do massacre mais recente. Polícia é política. Uma investigação verdadeira do banho de sangue teria que ir muito além da operação no Jacarezinho, em busca das conexões subterrâneas entre a polícia oficial e a polícia do B.

O prefeito Eduardo Paes oscilou entre a condenação à violência da polícia e a crítica às restrições impostas pelo STF às ações policiais. “Se a reação for tão radical quanto a operação de ontem, um ‘ah, então libera geral esse território aqui para fazerem o que quiserem’, nós vamos viver esse pêndulo terrível que vitimiza principalmente as pessoas que moram em comunidades.” O “pêndulo terrível”, porém, instalou-se há décadas, e o “libera geral” exprime a postura estatal diante das milícias.

Paes identifica corretamente “as pessoas que moram em comunidades” como as vítimas da crônica guerra suja no Rio. Contudo finge que a solução encontra-se em olhar para outro lado, isto é, voltar à estranha “normalidade” vigente na segunda maior metrópole do país. Se ele se preocupa com as vítimas, deve clamar por uma “reação radical”: a implantação do Estado de Direito no conjunto da cidade que administra. Para isso, antes de tudo, é preciso reconhecer que a polícia oficial já não se distingue da polícia do B.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/quem-e-policia-do-b.html


Carlos Pereira: A grama do vizinho é mais verde que a minha

presidencialismo multipartidário requer, como condição sine qua non, o uso discricionário de moedas de troca pelo presidente. Essa não é uma opção moral do governante. É uma necessidade para que o jogo político alcance funcionalidade em um ambiente em que o partido do presidente não desfruta de maioria legislativa. Governos e sociedades que negam esse imperativo pagam custos mais altos de governabilidade.

Regimes parlamentaristas costumam ter partidos fortes, ideológicos e programáticos, capazes de ofertar suporte legislativo estável a um governo em troca da alocação de ministérios e outros espaços de poder a parceiros que façam parte da coalizão de governo.

Já presidencialismos multipartidários, como o brasileiro, não possuem partidos políticos programáticos. Aqui os partidos são ideologicamente amorfos. Os acordos na construção de maiorias legislativas não se dão em torno de princípios, ideologias ou agendas de políticas universais. Se dão em troca de acesso a poderes e recursos orçamentários necessários à implementação de políticas locais com a digital do parlamentar, que são cruciais para a sua sobrevivência eleitoral em um ambiente altamente competitivo.

Esse jogo causa pruridos morais a muitas pessoas no Brasil. Elas querem um sistema político que não possuem. Elas idealizam um sistema político asséptico que não existe. Sempre se lamentam, como se a grama do vizinho fosse mais verde que a sua.

Gerou perplexidade a informação de que o governo Bolsonaro estava fazendo uso de um suposto “orçamento secreto”, travestido da rubrica de “emendas de relator” (Rp 9), em troca de apoio no Congresso. Ao contrário das outras emendas (individuais, de bancada e de comissão), que teriam regras específicas quanto ao número, valores, destino e teria a sua execução obrigatória, as emendas de relator seriam distribuídas de forma sigilosa, conforme a conveniência política do governo e seu destino seria informalmente indicado pelo parlamentar.

A alocação de recurso proveniente de emendas sempre foi distribuída de forma desigual entre parlamentares. Existe ampla evidência na ciência política brasileira que mostra que o parlamentar que se comporta de forma congruente aos interesses do Executivo apresenta maiores chances de ver suas emendas executadas. Desta forma, não existe inovação do governo Bolsonaro em premiar desproporcionalmente aliados. O grande problema dessas emendas Rp 9 é que sua alocação e execução estão fora do alcance da sociedade e de órgãos de controle como o MP, TCU e CGU, dando margem a comportamentos desviantes, como o esquema de compra de tratores supostamente superfaturados, conhecido como “tratoraço da Codevasf”.

Mesmo que o presidencialismo multipartidário não possa prescindir de moedas de troca, isso não significa que elas tenham que ser ilegais ou dar margem a ilegalidades.

A execução impositiva das emendas individuais e coletivas, surgida a partir de erros sucessivos na gerência de coalizões, especialmente nos governos Dilma e Bolsonaro, fez com que o Executivo perdesse liquidez nas trocas políticas. Ficou restrito fundamentalmente a moedas menos flexíveis, como ministérios e cargos na burocracia. Era esperado, portanto, que o mercado político, cedo ou tarde, encontrasse novas moedas que destravassem as relações entre Executivo e Legislativo.

O jogo de Bolsonaro com o Legislativo fica ainda mais difícil porque, além de ter demorado para montar uma coalizão minoritária, o fez em condições de fragilidade. Ele perdeu o que tinha (discricionariedade na execução das emendas) e não quer gastar o que ainda tem, já que tem preferido alocar ministérios a quem não faz parte da coalizão ou quem não tem assento e nem voto no Congresso, como os amigos militares.

*Cientista Político e Professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE), Rio de Janeiro

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-grama-do-vizinho-e-mais-verde-que-a-minha,70003717207


Santos Cruz: ‘Instituições não aceitarão ações aventureiras’

Em entrevista à revista Política Democrática Online de maio, ex-ministro de articulação política de Bolsonaro critica “festa dos irresponsáveis”

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Ex-ministro de articulação política do governo Bolsonaro, o general Carlos Alberto Santos Cruz defende a vacinação como a saída para retomar a normalidade, inclusive econômica, elenca os efeitos da falta de respeito institucional no país e critica o que chama de “festa dos irresponsáveis”.

Santos Cruz concedeu entrevista à revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), lançada nesta sexta-feira (14/5), pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, vinculada ao Cidadania e que produz e edita a publicação. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no portal da entidade.

Veja a versão flip da 31ª edição da Política Democrática Online: maio de 2021

O general considera que a democracia brasileira “corre alguns riscos, mas não no sistema e, sim, em pontos específicos”. Ele diz não acreditar que uma medida aventureira qualquer venha a ter resposta positiva. “Não acredito porque as instituições, embora fracas e carentes de aperfeiçoamento continuado, existem e não vão aceitar ações aventureiras por parte do governante”, afirma.

Fanatismo

No caso das Forças Armadas, cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, Santos Cruz não vê a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional. “Outros riscos decorrem de atos fomentados por grupos de fanáticos, cujo desenlace é sempre a violência. O fanatismo é de fato um risco, mas não o vejo capaz de contaminar a sociedade”, avalia.

As Forças Armadas, segundo o ex-ministro, têm dentro delas um sistema de liderança que abarca todos os militares. “Individualmente, são todos eleitores, e podem votar em quem quiser. Não há problema nenhum. Mas, uma vez de uniforme e dentro da instituição, o militar segue o comando institucional. Isso é uma cultura”, acentua.

Ao longo de 47 anos de carreira no Exército, o general diz nunca ter visto discussões de caráter político dentro da corporação. “Zero discussões acerca de política. É cultural. Entrou no quartel, acabou a discussão. Você pode ir discutindo no carro. Entrou no quartel, acabou”, destaca.

“Efeitos preocupantes”

Na avaliação do ex-ministro, um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e funcional tem efeitos graves para a sociedade. “Isso tem efeitos multiplicadores preocupantes. Por exemplo, a conduta de fanáticos, de pequenos grupos de extremistas desqualificados, de baixíssimo nível. Essa conduta tem influência e não contribuirá para conduzir o país a boas soluções”, observa.

Veja todos os autores da 31ª edição da revista Política Democrática Online

Santos Cruz diz, ainda, que o país assiste a “uma festa dos irresponsáveis”. “A internet é uma ferramenta de comunicação fantástica. Só que, da maneira como se está observando, é uma verdadeira festa de exageros, oportuna para os fanáticos, para gente sem limites”, afirma.

A entrevista na íntegra está disponível para leitura na versão flip da revista, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

 

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Míriam Leitão: Revelações das falas e do silêncio

Duas semanas de CPI e o Brasil já sabe: um general da ativa quer esconder a verdade do país, o presidente governa com uma estrutura clandestina, o ministro da Economia não percebeu um fato que mudou totalmente o cenário econômico, o ex-secretário de comunicação do Planalto desconhece o impacto da fala do presidente, o governo desprezou vacinas que poderiam ter salvado vidas de milhares de brasileiros. O que se confirmou, e que sabíamos antes, é que o governo é parte fundamental da tragédia que infelicita o Brasil.

A CPI provou que esta era a hora de a CPI funcionar. Houve quem dissesse que neste momento não se deveria abrir a investigação. Errado. É exatamente quando se pode influenciar na realidade, e tentar mudá-la, que faz sentido ter uma Comissão Parlamentar. Depois que tudo for apenas passado, o que se poderá fazer a não ser a arqueologia das nossas dores? O Senado em boa hora está investigando, interrogando, procurando as informações que podem mudar o presente. É tenso? Claro que é, mas este é o momento. Não poderia tardar mais.

As informações trazidas à tona foram valiosas porque descortinaram a cena brasileira. O governo ignorou a oferta das vacinas. Agora se sabe que um milhão e meio poderiam ter chegado em dezembro e três milhões no primeiro trimestre. Apenas da Pfizer. Viveremos com a dor do “quem sabe”, como diria o deputado Alencar Furtado. Quem sabe as vidas que poderíamos ter salvado, se a imunização tivesse começado em dezembro? E não tardou mais graças ao governo de São Paulo. A primeira vacina a chegar no braço da brasileira Monica Calazans foi a coronavac, produzida no Butantan por insistência do governo paulista. O presidente Jair Bolsonaro era contra. Tentou disseminar mentiras sobre o imunizante, revogou o contrato assinado pelo submisso general Pazuello, brigou com a China.

Os militares e os economistas do governo saem mal desta pandemia e desta CPI. Por dever de ofício, nas duas profissões é necessário ter visão estratégica. Não tiveram. A elite militar fez uma aposta de alto risco na simbiose com o governo Bolsonaro. Agora, um general da ativa tem medo de ir à CPI e ser preso por falar mentira. E recorreu ao STF para esconder o que sabe, o mesmo Supremo que os filhos e seguidores do presidente gostariam de fechar. Treinados em cursos de estratégia, os generais não perceberam o óbvio. Era fácil ver. A missão das Forças Armadas é manter o país unido. Bolsonaro sempre apostou no conflito e na divisão.

O Ministério da Economia não viu a dimensão do evento que alterava rigorosamente tudo no cenário econômico por dois anos. O primeiro erro foi, no início da pandemia, não levar a sério as projeções de casos e de mortes, como revelou o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. Houve quem na área econômica fizesse projeções coincidentes com as do Ministério da Saúde daquela época. Contudo, a avaliação que prevaleceu, até pela posição do ministro Paulo Guedes, foi a que subestimava a duração e a profundidade da pandemia. Com o cenário errado, foram tomadas decisões erradas. Uma delas foi ignorar por meses a carta da Pfizer, dirigida também a Paulo Guedes. No final do ano, os cenaristas da Economia olhavam o indicador de distanciamento social caindo e achavam que isso levaria ao retorno da atividade econômica. Na verdade, a queda das medidas protetivas produziu um aumento do contágio. Mesmo quando os números de casos e mortes voltaram a subir os economistas do governo insistiam nas previsões equivocadas.

A CPI também mostrou que Bolsonaro governa com um gabinete clandestino no qual se misturam filhos, amigos dos filhos, pessoas estranhas ao serviço público. É completamente irregular do ponto de vista institucional que uma autoridade municipal, no caso o vereador Carlos Bolsonaro, tenha poderes na administração federal. Um governo nas sombras não é auditável e não está sob a supervisão de órgãos de controle. O que foi dito até agora trouxe muitas informações, mas o silêncio do general também será revelador. Pazuello não pode contar o que sabe sem se incriminar. Que espanto.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/revelacoes-das-falas-e-do-silencio.html


Bernardo Mello Franco: O silêncio do general

Há dez anos, o estamento militar se uniu para combater a Comissão Nacional da Verdade. Os generais temiam que a revelação de crimes da ditadura causasse dano à imagem das Forças Armadas. Faltou visão estratégica: o pior estava por vir com Eduardo Pazuello.

A passagem do general pelo Ministério da Saúde implodiu o mito da eficiência dos militares. O oficial afastou técnicos e aparelhou a pasta com coronéis, majores e capitães. O resultado foi uma gestão caótica, que abraçou o negacionismo, atrasou a compra de vacinas e deixou faltar oxigênio em hospitais.

Pazuello também desmontou o marketing da bravura dos homens de farda. Para não perder o cargo, o general se humilhou publicamente diante do capitão. “É simples assim: um manda, e o outro obedece”, explicou, ao ser desautorizado na negociação com o Instituto Butantan.

A CPI da Covid já causou novos desgastes a Pazuello e ao Exército. Depois de usar uma desculpa esfarrapada para adiar seu depoimento, o ex-ministro apelou ao Supremo pelo direito de permanecer calado.

O habeas corpus concedido pelo ministro Ricardo Lewandowski segue a jurisprudência do tribunal. A Constituição também é clara: ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. No entanto, a blindagem jurídica terá efeitos adversos. O silêncio do general deve agravar sua desmoralização diante dos senadores e da opinião pública.

Ainda que compareça em trajes civis, Pazuello representará o Exército na CPI. Ele é general da ativa, loteou o ministério entre colegas da caserna e agora é defendido pela Advocacia-Geral da União. É impossível separar o personagem da instituição que o abriga e acoberta.

Há outros riscos à vista para o general fujão. Apesar de ter garantido seu direito ao silêncio, Lewandowski ressaltou que ele precisará responder a perguntas que envolvam “fatos e condutas relativas a terceiros”. Nesses casos, valerá o compromisso de dizer a verdade. Se mentir aos senadores, o ex-ministro poderá ser responsabilizado por falso testemunho.

O relator Renan Calheiros deixou claro que o habeas corpus não resolve todos os problemas de Pazuello. “Interrogatório bom não busca confissões, quer acusações sobre terceiros. Com relação a ele, outros falarão”, avisou.

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O drama dos Covas

Duas décadas depois, Bruno Covas repete o drama do avô. Mario Covas descobriu um câncer no auge da carreira política. Havia acabado de se reeleger governador de São Paulo. Ele rompeu uma tradição da política brasileira e manteve os cidadãos informados sobre a doença. Morreu em 2001, aos 70 anos.

O prefeito Bruno também escolheu enfrentar a tragédia pessoal com transparência. Além de explicar cada etapa do tratamento, usou as redes sociais para divulgar mensagens de fé e otimismo. Na quinta-feira, ele publicou a última foto no hospital. Na sexta, os médicos informaram que seu estado de saúde era irreversível.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/o-silencio-do-general.html