Congresso Nacional
Marco Aurélio Nogueira: O vírus Bolsonaro
Onde estão as forças, as instituições e as pessoas dispostas a frear a insanidade presidencial?
É difícil não se horrorizar ao ver as fotos de Jair Bolsonaro participando de um ato contra o Congresso, abraçando pessoas e apertando as mãos de seguidores.
É pavoroso constatar que existem pessoas que tratam a atual situação de calamidade pública como se fosse uma “armação da mídia”, pessoas cegas em seu fanatismo, indiferentes a milhões de brasileiros. Posam de verde e amarelo e se dizem patriotas, mas são traidores da Pátria, se quisermos falar assim.
Um presidente que infringe regras e orientações estabelecidas por seu próprio governo é uma aberração. Ele debocha daquilo que deveria ser norma de conduta. Põe em risco a saúde da população e mostra não estar à altura da crise em que nos encontramos, que é epidemiológica e mundial, mas é também política, moral, econômica. O País está parado, à espera de alguém que o lidere e governe.
Em se tratando de Jair Bolsonaro, não dá para dizer que chegamos ao fundo do poço. Dele podemos esperar coisas sempre piores, mais graves, deletérias. Trata-se de um presidente que faz do poder um jogo de vida e morte, o contrário do que se esperaria de alguém eleito para governar um País enorme, complexo, diversificado. É um exibicionista, agarrado a ‘lives’ patéticas, nas quais demonstra toda a sua grosseria, seus maus modos, seu egocentrismo, sua irresponsabilidade. Tanto pode aparecer de máscara como se estivesse em quarentena, quanto pode cair nos braços da galera que o acompanha como se não houvesse amanhã.
Bolsonaro é uma versão do vírus do fanatismo populista e retrógrado, essa monstruosidade que se espalhou pelo mundo como uma pandemia. É uma ameaça à sociedade, à democracia, à dignidade humana.
Até quando o País suportará? Onde estão as forças, as instituições e as pessoas dispostas a frear a insanidade presidencial? O presidente hoje conspira abertamente contra seu próprio governo. Seus ministros e assessores parecem achar graça em suas peripécias, pensam que não atrapalharão demais, acham que ‘o cara é assim mesmo, é o jeito dele’. E a trupe de seguidores segue atrás, batendo bumbo e tirando fotos, contra tudo e contra todos.
Aqueles que compõem o governo atual e lhe dão sustentação ou são covardes irresponsáveis, que temem fazer alguma coisa, ou estão mancomunados com a mesma fúria de destruição que o presidente exibe, de modo cada vez mais escancarado.
Paulo Fábio Dantas Neto: Prudência e urgência (razões de tática e estratégia políticas)
Pouco mais de um ano de governo Bolsonaro e tornou-se um bordão, aceito em amplos ambientes, a ideia de que os democratas brasileiros precisam se articular e se entender para derrotar a estratégia de enfraquecimento da democracia representativa, levada a cabo pelo Presidente da República. Situação limite essa, pois caberia, a quem ocupa esse posto, ser justamente o mais poderoso e eficaz defensor do regime e da Constituição, graças aos quais chegou aonde está. Os fatos, porém, já não deixam dúvida de que temos um presidente subversivo da lei e da ordem. Esse ponto é tacitamente reconhecido, seja por quem aplaude, seja por quem abomina a sua conduta golpista. Quem aplaude admite lhe dar ainda mais poderes para, supostamente, mandar os políticos embora. Quem abomina, busca a melhor maneira de atalhar esse seu caminho.
No campo bolsonarista, eventuais dúvidas táticas sobre como levar ao sucesso a sua estratégia golpista resolvem-se com ordens do dia de um capitão que se tornou especialista em constranger generais. A ordem em vigor, no momento, convoca abertamente, para o próximo domingo, 15/03, uma manifestação de rua, fisicamente próxima à Praça do Três Poderes, para aclamar o presidente e contestar as autoridades ocupantes dos dois outros poderes da República. A essa altura, a sociedade, apreensiva, já se pergunta, com razão, o que farão a Polícia Militar e as Forças Armadas se algum dos dois poderes postos na berlinda solicitar, legitimamente, sua proteção, em caso dessa manifestação sair dos limites razoáveis e degenerar em agressão direta como, aqui e ali, há muito tempo se ensaia. Augusto Heleno esteve só, em sua provocação golpista? Poderia ser devidamente “enquadrado”, por seus interlocutores na ativa, depois daquelas declarações? Autoridades militares responsáveis e comprometidas com a democracia terão força para não deixar que o ovo da serpente alimente os apetites e contamine a corrente sanguínea de seus pares e comandados?
Essas perguntas não calam porque nenhuma pessoa sensata, que observe com atenção a cena política atual, ignora que as cúpulas dessas corporações já podem estar sofrendo uma dupla pressão nas bases que, por hierarquia profissional, comandam. Refiro-me à disseminação, pelo aparelho de doutrinação bolsonarista, em estratos mais baixos da oficialidade das forças armadas, de uma nostálgica ideologia golpista e salvacionista que a derrota do regime autoritário na transição democrática dos anos de 1980, seguida de três décadas de democracia, puseram em desuso naquele ambiente. Em que grau essa subversão de valores democráticos já avançou recentemente na corporação é algo que só pode ser sabido por quem detém informações privilegiadas. Mas o processo preocupa, assim como deve preocupar também a pressão corporativa que pode emanar, em grau crescente, ainda mais embaixo, diante de uma eventual indisposição, por dever constitucional, de comandantes militares com um presidente subversivo. Sim, pois esse presidente e seus filhos propagam um discurso demagógico que acena às tropas com vantagens materiais e, no caso de policiais transgressores da lei, também com uma odiosa impunidade.
Já nas instituições civis e no campo político heterogêneo que se opõe a essa aventura, parece ainda estar longe o momento em que uma estratégia comum será pactuada. Ela convém, entre outras razões, para tornar consequente a tática de evitar o confronto, que tem sido intuitivamente adotada por todos, por cálculo político racional, e/ou por receio de retrocesso institucional. Paciência e moderação têm sido as contraordens que até aqui interditaram o caminho, democraticamente justificável, de um processo de impeachment, para o qual o presidente já forneceu vários motivos, cometendo sucessivos crimes de responsabilidade.
O bom senso já nos sugere supor que esses crimes estão sendo cometidos deliberadamente, como um risco calculado, para antecipar um confronto político, num momento em que se sabe ainda não existir, no Congresso, maioria qualificada para impedir o presidente. E ela não existe justamente porque ainda não há, no eleitorado, clara rejeição ao presidente (como já existe na sociedade civil), nem há, no empresariado, convicção sobre o malogro da atual política econômica. Com eleitores divididos e empresários indecisos, o Congresso fica neutralizado para um confronto, embora possa operar – e tem operado - como importante força política de contenção do golpismo presidencial.
Assim, ao usarem o cálculo político, lideranças do Congresso e das demais instituições civis têm conseguido evitar que Bolsonaro converta a eventual rejeição de uma denúncia contra si em capital político, isto é, em trunfo para avançar mais em sua estratégia golpista. Ao falarem com prudência sobre o tema, as forças políticas mais responsáveis do País têm evitado dar, ao bolsonarismo, o pretexto que busca para colocar a sociedade (e as forças armadas) diante de um dilema crucial entre um quadro de desordem e uma solução autoritária. Cenário plausível, pois não temos mais direito a duvidar de que a lógica miliciana que guia o Presidente não hesitará em fomentar (inclusive apelando à violência e ao terror) tal quadro problemático para obter tal solução.
Tudo correto, portanto, com a tática dos democratas. Mas alguma tática, por mais racional e prudente que seja, pode ter sucesso, em política, se não estiver ligada, de modo politicamente convincente, a uma estratégia? É possível defender a democracia com eficácia política pensando só em prevenir, isto é, tratando-a - para reiterar jargão conhecido - como plantinha tenra que se deve regar todo dia, tal qual bem alertava Octávio Mangabeira, como sugestão de conduta virtuosa para tempos normais? Se não estamos em estado de exceção, mas estamos num tempo de gravidade excepcional, é preciso ver que a democracia é mais que uma planta tenra. Sequer é só uma árvore.
É complexa floresta de instituições, direitos e interesses, que pode ser agredida, inclusive, pelo manejo demagógico dessa malha. A democracia representativa precisa não apenas ter, mas demonstrar, sempre, a força necessária para dissuadir aventureiros, quando eles a testam.
A missão não é fácil pois o terreno do trabalho atual é pantanoso. A estratégia dos golpistas é ajudada pela imagem má que políticos e partidos têm perante a sociedade e o eleitorado. Aqui não tenho como me deter sobre razões e não razões desse fenômeno, mas chamo a atenção para o fato de que a imagem negativa se refere a apenas um lado da realidade da democracia representativa.
O outro lado, muito positivo, é o suculento inventário de conquistas democráticas que encontram no Congresso uma usina de processamento. A agenda de políticas públicas socialmente positivas avançou muito no Brasil desde que superamos a ditadura militar e isso se deve, fortemente, a processos de elaboração e negociação legislativa. No fundo, o povo sabe disso e não se pode precipitadamente achar que sua insatisfação com outros aspectos da atividade de representação política leve a que ele queira abrir mão dela, seja para entregar seu futuro a ditadores, seja para cair na ilusão de que pode, como povo, governar diretamente o País. Pode ter faltado ao povo brasileiro, no passado, ocasiões de participação maior, para exercer uma cidadania mais qualificada e pode estar lhe faltando hoje um cardápio de representantes de melhor qualidade. Mas algum senso de medidas não lhe falta, mesmo quando suas necessidades e medos abrem espaço a demagogias populistas. Por isso, entre nós, jamais tiveram durabilidade aventuras caudilhescas irresponsáveis, ou discursos meramente utópicos. Nossas elites políticas, mesmo quando não democráticas, precisaram sempre negociar sua legitimação no terreno das realizações concretas.
Mas preocupa, e muito, a ausência ou, ao menos, a invisibilidade, na atual conjuntura, de uma estratégia política comum das forças democráticas, que se preocupe com movimentos táticos, mas também as prepare, desde já, para desdobramentos que não se pode prever de antemão. Deixo claro que não se trata de propor que persigam objetivos político-eleitorais que supostamente possam unir democratas de direita, de centro e de esquerda. Isso é quimera. Trata-se de cuidar, em conjunto, da preservação de condições para que disputas democráticas continuem acontecendo. Isso passa por não deixar dúvidas na opinião pública sobre a capacidade das instituições se fazerem respeitar, inclusive pelos poderosos. Do mesmo modo, não se trata de fazer análises adivinhadoras de cenários futuros, como se ações políticas devessem se orientar por essas especulações. Sabemos que nenhuma linha de ação tem futuro se não se ancorar no que há, no aqui e no agora. Trata-se é de não deixar que um poderoso inimigo da democracia representativa jogue solto e decrete o futuro como resultado de ações ousadas no presente. Ponho-me entre aspas para recorrer a uma metáfora que usei em artigo publicado há três meses: “um desafio à política positiva é ser eficaz na conjuntura. Seus praticantes não podem ser uma zaga que olha para a bola, com foco eleitoral em 2022, sem marcar o atacante demolidor” (Política positiva e política negativa, Estadão, 01.12.2019).
Na ausência de estratégia defensiva comum, cada zagueiro age à sua maneira. Declarações do ex-presidente Lula, em recente homenagem que recebeu da esquerda francesa, se ajustam como uma luva à metáfora acima. Aposta suas fichas num novo embate eleitoral polarizado, em 2022. Nessa posição há dupla racionalidade política: objetivamente, ele lidera, de fato, o partido que ainda é a maior força eleitoral da oposição e que, por isso, pode pensar em desafiar eleitoralmente o bolsonarismo, nem que seja para conservar essa condição de polo de oposição, que conquistou em 2018. E, subjetivamente, Lula raciocina ser esse o melhor modo de seguir politizando seu embate com a Justiça brasileira. Porém, ao dizer que esperar 2022 é dever democrático, ele não apenas descarta, por ora e por realismo político, a defesa de um processo de impeachment. Vai mais longe e admite que Bolsonaro ainda não cometeu crime de responsabilidade que o justifique. Relaxando assim na marcação do atacante agressivo, esse “bom mocismo” fará, da ala do lado esquerdo da defesa democrática, uma avenida. Quantos gols serão marcados por ali até um zagueiro democrata poder se arriscar a um contra-ataque nesse sonhado 2022? Em quanto já estará o placar em favor do time cuja estratégia é asfixiar a democracia? Que chance haverá de haver uma eleição livre?
Zagueiros democráticos mais ao centro (os do fugidio centro político e os que ocupam posições institucionais centrais) costumam usar retórica crítica mais contida que a do PT, porém têm sido mais diligentes na marcação do atacante. Ainda assim não escapam da carapuça da metáfora. Marcam por zona, evitando o enfrentamento individual, justamente porque operam instituições e – é preciso reconhecer - elas objetivamente têm impedido, até aqui, demolições explícitas. Mas os recuos que conseguem impor revelam-se efêmeros porque dirigem ao atacante seguidas advertências, mas não sanções por violação das regras. Assim, no momento seguinte, novos ataques voltam a deixar a defesa em permanente estado de tensão e perigo. Contudo, prevalece sempre a tática da paciência de jardineiros de plantas tenras, sancionada por recentes declarações do também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um experimentado político orgânico que a realidade quer converter em outsider. Aos atores com seu perfil político e aos que detém poder real também cabe fazer a mesma pergunta que pode ser feita à esquerda petista: até que ponto arranhões parciais restantes após cada escaramuça poderão esgarçar - ou já esgarçaram, de algum modo - o tecido da democracia, a ponto de comprometer a chance de chegar-se a 2022 ao menos no compasso da situação atual? O enfrentamento, que táticas prudenciais querem evitar agora, poderá ser evitado se, em dado momento, a infiltração antidemocrática tiver corroído o Estado a ponto de setores decisivos seus comportarem-se como milícias? Haverá eleições “normais” se o bolsonarismo pressentir uma derrota eleitoral? E havendo eleições que, porventura, confirmem sua derrota, haverá paz para que haja governo? Que poder de retaliação terão, então, caminhoneiros em pé de guerra e policiais amotinados, se os laços que os une hoje ao bolsonarismo prosperarem por um continuado e desabrido uso não republicano do poder? E que reação se pode esperar das instâncias judiciais diante dessas retaliações, após as mudanças que podem ser feitas no STF até lá?
Zagueiros com um terceiro tipo de perfil político são imprescindíveis numa hora dessas. Refiro-me a uma direita conservadora que ainda não entrou para valer em campo e precisa entrar. Um cochilo da ala direita, na marcação de um atacante que se apresenta como conservador, embora seja o seu oposto, pode ter efeito bem mais devastador para a democracia representativa do que cálculos políticos e eleitorais de uma esquerda fora do poder. Um conservadorismo político que mereça esse nome não pode, depois de tantas lições do passado, compactuar com uma estratégia desestabilizadora da ordem e das instituições moderadoras, que tenta emparedar o Congresso, intimidar o Judiciário e sabotar, ao modo do chavismo (ver Demétrio Magnoli, “O povo e Exército” – FSP, 29.02.2020) a hierarquia das forças armadas. Principalmente não pode chancelar uma propaganda ideológica que quer desacreditar a conciliação como método, no intuito (quimérico, mas nem por isso menos perigoso) de eliminar a chamada “dialética da ambiguidade”, uma marca de origem da nossa tradição política. Conservadores que se prezam não podem coonestar com a conspiração de um governo passageiro para sufocar e assassinar uma tradição nacional.
Democratas ao centro e à esquerda não podem perder de vista que convencer conservadores a tirar o oxigênio da aventura golpista é o objetivo que pode firmar uma estratégia política comum, que falta aos democratas de todos os matizes para darem consequência política realista – portanto, eficácia - à conduta tática prudencial que têm adotado. Essa conduta precisa deixar de ser só intuitiva e reativa, para ser também racional e propositiva. O momento exige equilibrar sensos de prudência e de urgência para dar à sociedade a confiança em que a democracia é a melhor opção e em que golpistas serão enfrentados não só no terreno das ideias, mas também no da política real.
Se a consequência dessa atitude realista será a abertura de um processo de impeachment não é possível antecipar. Mas não se pode tirar a hipótese da agenda, ainda que ela não esteja na ordem do dia. Criar um abismo lógico entre essa eventualidade e a conduta prudencial é um suicídio político prévio. Equivale a subestimar o poder do adversário de provocar destruição e desordem. A conduta prudencial ajuda-nos não apenas a evitar esses males. Também nos afasta da conduta imprudente de, num ambiente polarizado, fazer política sem um objetivo estratégico no horizonte.
*Cientista político e professor da UFBa
Ascânio Seleme: A quem o Congresso assusta
Brasil superaria muito mais rapidamente suas crises sob regime parlamentarista
Um grande número de brasileiros odeia o Congresso Nacional ou dele tem pavor. Estas pessoas enxergam no Parlamento um poço por onde escorrem todas as economias nacionais ou boa parte delas. Olham para deputados e senadores e só conseguem ver larápios, usurpadores das riquezas nacionais. Dizem sem se constranger que são eles que destroem o Brasil impedindo que gente digna e honesta, como Jair Bolsonaro, trabalhe. As convocações para o ato do dia 15 de março carregam esse vício de nascença, já que todos os problemas do Brasil têm origem no Congresso. Por esta ótica, enfrentar, atacar, desonrar o Congresso significa dar uma chance ao Brasil.
Vejo exatamente o contrário. Pelo ritmo alucinado com que se escala a intolerância política no Brasil, onde até a primeira-dama do país é vilipendiada pelo radicalismo, o Parlamento pode ser a única saída. Já testamos uma vez a alternativa parlamentarista. Funcionou provisoriamente para que João Goulart pudesse assumir o cargo aberto pela renúncia de Jânio Quadros. Como os militares não aceitavam Jango, achou-se a opção parlamentar.
Fabricada às pressas para resolver um impasse, não durou. Como também não durou o governo de Jango, derrubado pelo golpe de 1964, menos de dois anos depois.
O parlamentarismo é discutido nas redes sociais como uma armação que está sendo tramada no Congresso para tirar poder de Bolsonaro. Um golpe contra o presidente eleito democraticamente, denunciam. Bobagem. O tema não está na pauta da Câmara ou do Senado. Depois, para se fazer uma mudança de sistema de governo é obrigatório que todo o país participe do debate. Além disso, para aprovar uma emenda constitucional nesse sentido seriam necessários dois terços dos votos do Congresso, impossível de se alcançar nas circunstâncias atuais.
Claro que o modo beligerante de governar de Bolsonaro, o tumultuador da República, acaba gerando especulações. Certamente o Brasil superaria muito mais rapidamente suas crises sob um regime parlamentarista. E sem os traumas que geram no país, como o que resultou do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Se fosse primeira-ministra, Dilma deixaria o palácio mais cedo, e o país seguiria tranquilamente sua rotina com novo governo formado pelo Parlamento. Poderia ser até com o PT.
Se Bolsonaro fosse primeiro-ministro, com certeza não causaria esses tormentos quase diários que angustiam até mesmo os seus mais fiéis seguidores. Seria mais cauteloso. Ou cairia antes de completar a obra para a qual foi eleito. Nenhum problema em mudar de governo. Nos regimes parlamentaristas muitas vezes se muda a administração sem que se altere a orientação política ou mesmo o partido ou a coalizão que a sustenta. Mudanças passam a ser naturais e viram regra para se manter a estabilidade do país e a própria governabilidade.
Outra vantagem do parlamentarismo é que o servidor público passa a ser mais exigido, porque permanece na função enquanto as lideranças se alternam no governo. As políticas em andamento e a memória dessas políticas não mudam ou desaparecem a cada quatro ou oito anos. Isso dá sentido de seguimento e continuidade a diretrizes que são nacionais, suprapartidárias e não pertencem a um setor ou outro do espectro político. E é bom também porque governar fica mais fácil e barato.
Alguém pode dizer que com este Congresso que está aí não dá para contar. Meia verdade. Primeiro, porque há excelentes deputados e senadores trabalhando seriamente pelo Brasil. Depois, não tenham dúvida, a qualidade da representação parlamentar brasileira melhoraria muito. Os eleitores saberiam que o seu voto teria novo significado. Os parlamentares eleitos seriam os responsáveis pela formação do governo.
Pena que a discussão sobre a mudança de sistema só prospere em tempos de crise, quando um presidente vai mal. Ocorreu na gestão de Michel Temer, depois do escândalo da JBS. E pode vir à tona agora, com temem os bolsonaristas, em contraponto ao permanente embate do chefe do Executivo contra o Congresso, o Judiciário, a imprensa e quem quer que se mova em direção contrária à sua.
Ribamar Oliveira: Regulamentação chegou muito tarde
Agilidade do governo teria evitado os problemas ocorridos no início deste ano envolvendo o Orçamento impositivo
Por mais incrível que possa parecer, somente nesta semana o governo tomou a iniciativa de encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei alterando a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), válida para 2020, estabelecendo normas para aplicação, com segurança jurídica, do chamado Orçamento impositivo. Ou seja, os pneus estão sendo trocados com o carro em movimento.
Na exposição de motivos que acompanha o projeto de lei, o ministro da Economia, Paulo Guedes, comete uma impropriedade. Ele diz ao presidente Jair Bolsonaro que a regulamentação está sendo feita agora porque, quando as emendas constitucionais 100 e 102, que instituíram o Orçamento impositivo, foram promulgadas, o projeto da LDO válido para 2020 já tinha sido aprovado pelo plenário da Comissão Mista de Orçamento do Congresso (CMO).
Na verdade, a emenda constitucional 100 foi promulgada no dia 26 de junho de 2019, quando o relator do projeto da LDO, deputado Cacá Leão (PP-BA), nem sequer tinha apresentado o seu relatório, o que só foi feito no dia 7 de julho do ano passado. Foi a EC 100 que determinou ser dever da administração “executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”.
Na época, a EC 100 causou grande preocupação dentro da área técnica do governo, pois não estava explícito no texto constitucional que as programações orçamentárias poderiam ser contingenciadas para o cumprimento das metas fiscais ou do teto de gastos. Nem mesmo que elas não poderiam ser executadas em caso de impedimento de ordem técnica.
Em negociação direta com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a área econômica do governo acertou um texto a ser incluído em outra proposta de emenda constitucional para deixar todas essas questões explícitas.
A EC 102, aprovada no dia 26 de setembro de 2019, simplesmente determinou que a execução orçamentária se subordina ao cumprimento de dispositivos constitucionais e legais que estabeleçam metas fiscais ou limites de despesas. Ela explicitou também que a obrigatoriedade da execução não impede o cancelamento necessário à abertura de créditos adicionais e não se aplica nos casos de impedimentos de ordem técnica devidamente justificados.
O Orçamento impositivo foi instituído, portanto, pela EC 100, de junho. O projeto da LDO foi aprovado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso no dia 8 de agosto de 2019. Havia portanto, tempo suficiente para que o governo pedisse ao relator que paralisasse a tramitação do projeto, enquanto a EC 102 não fosse aprovada. Mesmo porque o Congresso Nacional só aprovou a LDO válida para 2020 no dia 9 de outubro do ano passado.
Seria possível, portanto, fazer as alterações no projeto da LDO, estabelecendo normas para a aplicação do Orçamento impositivo, com segurança jurídica. O que teria evitado os problemas ocorridos no início deste ano, quando as dúvidas sobre a aplicação da EC 100 dificultaram enormemente a execução orçamentária.
Em meio a todas as incertezas sobre a execução do Orçamento impositivo, o veto do presidente Bolsonaro ao artigo 64 da LDO adicionou um elemento politicamente explosivo. O presidente considerou contrário ao interesse público que os parlamentares indicassem os beneficiários de suas emendas e a prioridade de execução.
Em reação, os senadores e deputados aprovaram a Lei 13.957, explicitando a obrigatoriedade de execução das emendas do relator-geral do Orçamento e das comissões do Senado e da Câmara e reinstituindo os mesmos critérios de indicação e de prioridade que tinham sido vetados anteriormente. O presidente vetou novamente.
Quando o Orçamento para 2020 foi aprovado, descobriu-se que o relator-geral tinha feito emendas no valor de R$ 30 bilhões. Nunca antes um relator-geral tinha feito emendas nesse montante. Elas eram diferentes, pois ele cortou algumas programações propostas pelo governo e, ao mesmo tempo, as incluiu no Orçamento como emendas suas, com acréscimo de valor. Na área técnica do Executivo, esse procedimento é chamado de “emenda cachorro”, pois lembra um cachorro mordendo o próprio rabo.
Com esse mecanismo, o relator retirou do governo a gestão sobre uma montanha de investimentos e passou a ser a pessoa a indicar o nome dos beneficiários dos recursos e a prioridade de execução. Uma das emendas do relator-geral, por exemplo, destinou R$ 351,7 milhões para a ação de policiamento, fiscalização, combate à criminalidade e corrupção. Parece não haver dúvidas de que cabe ao ministro da Justiça e da Segurança Pública definir os beneficiários dessa ação e a prioridade de execução, e não ao relator-geral do Orçamento.
Finalmente, a proposta de regulamentação das ECs 100 e 102 chegou nesta semana ao Congresso. Junto com ela, um projeto que acaba com a possibilidade de o relator-geral apresentar a chamada “emenda cachorro”. Se o projeto for aprovado, ele só poderá indicar os beneficiários dos acréscimos que ele fez nas programações originais do Executivo.
Os projetos foram encaminhados após um acordo, feito pelo governo com as lideranças políticas, para a manutenção do veto do presidente ao artigo 64 da LDO. Ontem, o veto de Bolsonaro foi mantido e os parlamentares poderiam votar, à noite, as propostas de mudanças na LDO.
No caso da regulamentação do Orçamento impositivo, propriamente dito, o projeto define que o contingenciamento das emendas parlamentares será feito na mesma proporção aplicável às demais despesas do Executivo, que os restos a pagar de exercícios anteriores estarão dentro do limite financeiro anual de cada órgão e que o Executivo poderá remanejar os recursos de despesas que não estão sendo executadas para pagar outras.
Assinatura
A exposição de motivos de um dos dois projetos que alteram a LDO, justamente aquele que trata das emendas do relator-geral, não é assinado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Mas pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos.
El País: Rede de ‘fake news’ via WhatsApp é ativada para mobilizar base bolsonarista contra Congresso
Bolsonaro coloca Parlamento na mira do núcleo mais fiel de seguidores enquanto negocia com parlamentares manutenção de veto a Orçamento Impositivo. Entre as pautas, está a defesa de intervenção militar
Gil Alessi, do El País
Apoiadores do Governo Bolsonaro voltaram a usar a tática de disseminar notícias falsas e factoides para mobilizar o núcleo duro de seus seguidores contra um suposto inimigo. Com a ajuda dos grupos de Whatsapp, páginas em redes sociais e blogs de extrema direita elegeram o alvo da vez. Trata-se do Congresso Nacional, acusado por ministros de “chantagear” o presidente. Com o aval de Bolsonaro, que disseminou um vídeo sobre o tema, o Legislativo entrou na mira dos atos convocados para o dia 15 de março, cujas pautas incluem até o fechamento da Casas parlamentares via intervenção militar.
Oficialmente, nem movimentos nem parlamentares que apoiam a mobilização pró-Governo convocada falam em investida contra o Parlamento ou de intervenção militar. Mas vários materiais apócrifos em circulação vão neste sentido. “Nós temos que ir às ruas, mas pedindo intervenção militar já. Estamos cansados de ir às ruas só protestar, pois continua tudo na mesma. Esses bandidos esquerdistas só fazem rir do povo e continuam fazendo coisas ainda piores contra o Brasil.” “Os generais aguardam a ordem do povo”, diz um dos pôsters que usa imagens de generais da reserva que integram o Governo, como o vice Hamilton Mourão.
É difícil mensurar o alcance deste tipo de mensagem, uma vez que existem centenas de grupos de transmissão ligados ao bolsonorismo e boa parte deles replica conteúdo falso. Mas fica evidente que este movimento ganha força quando embalado pelo presidente e seu staff. Outro a aparecer nas mensagens que fazem alusão à ligação entre as Forças Armadas e o Governo é o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno. Heleno é uma peça-chave na mobilização. Ele foi gravado em conversa com colegas criticando o Congresso. “Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se”, disse. Exaltado, o militar também orientou o presidente a “convocar o povo às ruas”.
Dias depois foi a vez de Bolsonaro dar seu recado e confirmar o Congresso como principal alvo para seus seguidores. O presidente compartilhou dois vídeos para seus contatos de whatsapp convocando a população para um protesto contra o Legislativo no dia 15 de março, segundo reportou a colunista do jornal O Estado de S. Paulo Vera Magalhães —posteriormente, ela foi alvo de ataques por parte da chamada “milícia virtual” de Bolsonaro—. O conteúdo do vídeo enviado, uma clara afronta ao Legislativo, gerou críticas da oposição e até de ministros do Supremo Tribunal Federal. A oposição fez circular que já pensava na possibilidade de pedir a abertura de um impeachment contra o presidente.
O discurso contra o Congresso levantado pelo presidente não é novo: com uma articulação política deficiente na Câmara e no Senado, o Planalto e membros de seu primeiro escalão costumam insuflar a tese de que os parlamentares não deixam Bolsonaro governar. Seriam todos defensores do “toma-lá-dá-cá”, da “velha política”. Dessa vez, o pano de fundo da fala de Heleno e de Bolsonaro é o chamado “orçamento impositivo”, aprovado pelo Parlamento em novembro passado. Pela medida, os parlamentares decidiram transferir do Executivo para o Legislativo a gerência sobre 30,1 bilhões de reais do Orçamento da União.
Bolsonaro vetou a medida e tentava chegar a um acordo para que o Parlamento mantivesse a sua versão nesta terça —embora nas redes sociais, no entanto, tenha mantido o discurso de que não havia negociação alguma com o Legislativo. Ao longo do dia, um acerto chegou a ser anunciado entre parlamentares e o Governo para manter o veto do presidente. O texto seria votado na sessão conjunta do Congresso nesta própria terça, mas acabou não acontecendo. O motivo foi a insegurança da cúpula do Senado sobre a futura regulamentação do orçamento impositivo enviada pelo Planalto.
O que havia sido combinado com o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, era que três projetos de regulamentação do orçamento impositivo seriam enviados pela manhã, para serem votados no fim do dia. Os textos, contudo, só chegaram no fim da tarde e geraram mais dúvidas do que certezas. Dois técnicos da Câmara ouvidos pela reportagem disseram que não era possível saber quais eram as mudanças efetivas. Assim, o presidente do Senado e do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), decidiu suspender a sessão e adiar a conclusão da votação para esta quarta-feira.
Retórica dos grupos
Se na vida real de Brasília há negociação para valer entre Congresso e Planalto, nos grupos de WhatsApp o que vale é o discurso de Bolsonaro. Na semana passada, o presidente mentiu sobre o endosso feito aos protestos de 15 de março com a pauta anti-Congresso. Em sua transmissão ao vivo na quinta-feira nas redes sociais, o presidente afirmou que o vídeo que ele havia compartilhado era de 2015, e não 2020, e que se tratava de uma convocatória para ato contra a então presidenta Dilma Rousseff. “É um vídeo que eu peço o comparecimento do pessoal no dia 15 de março de 2015, que, por coincidência, foi num domingo”, afirmou. No entanto, o presidente desconsiderou que o vídeo tem imagens suas, então candidato à Presidência, levando uma facada em Juiz de Fora (MG), episódio ocorrido em setembro de 2018. Ato contínuo, a mensagem foi repercutida em um grupo bolsonarista: “Urgente! Não caiam na nova jogada suja da esquerda. Pegaram um vídeo antigo no YouTube do então deputado federal Bolsonaro, onde ele pede para que a população compareça as manifestações do dia 15 de março. Só que essas manifestações eram sobre o impeachment da Dilma”, diz uma mensagem.
A máquina de propaganda bolsonarista no WhatsApp também resgata textos antigos de origem apócrifa e os faz recircular como se fossem novos. Uma mensagem atribuída ao major-brigadeiro Jaime Rodrigues Sanchez, da Aeronáutica, que já havia sido compartilhada no início de 2019, voltou à tona neste ambiente virtual tóxico. “Ele [o major Sanchez] citou uma ‘sucuri de duas cabeças’, representada ‘pelo Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional’, que ‘tramam e apertam seu abraço letal’ em torno do presidente”, diz a mensagem. A reportagem não conseguiu entrar em contato com o major, que está na reserva, para confirmar a autoria do texto replicado. Cerca de 12% do eleitorado, segundo pesquisa Datafolha divulgada em janeiro, acredita que a ditadura é o melhor para o Brasil.
O clima de hostilidade com o Congresso atingiu um patamar tão alto que até uma viagem do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para a Espanha, na semana passada, ganhou contornos de conspiração contra Bolsonaro. Um suposto tuíte da Embaixada da Espanha no Brasil feito na quinta-feira anunciava as reuniões do deputado com autoridades locais, e colocava na lista de tópicos abordados: “democracia, parlamentarismo e futuro do Brasil”. A inclusão da palavra “parlamentarismo” bastou para que os sites de extrema direita alinhados ao presidente noticiassem que Maia estava “tramando um golpe” contra o Planalto. Procurada, a Embaixada não quis se pronunciar sobre a polêmica, mas tuitou que “a visita de Rodrigo Maia teve só caráter institucional. Antes e depois da posse, o Governo de Jair Bolsonaro sabe que conta com o respeito, amizade e cooperação plena desta Embaixada”.
Bolívar Lamounier: Aprendendo com o mundo animal
Os ouvidos brasilienses são como os da naja, ou da mamba-negra: incuravelmente surdos
Aproveitei os feriados para estudar atentamente as serpentes peçonhentas. Estou convencido de que esse é um bom caminho para entendermos melhor o Brasil – não só as elites, mas grande parte da sociedade.
Em pelo menos três atributos, estou seguro de que as referidas serpentes se parecem muito conosco. O primeiro é que, como nós, elas se acham o máximo. Acreditam ter sido criadas por Deus e bonitas por natureza. E algumas são de fato maravilhosas, como as corais (a falsa e a verdadeira), com o lindo tom de vermelho de que se revestem. Devo também admitir que em certos aspectos elas têm razão. Imaginem um animal que não tem asas nem pernas e consegue percorrer grandes distâncias, só deslizando, com grande elegância.
O segundo ponto não é tão favorável a elas. Todas as serpentes venenosas se julgam poderosas, imbatíveis, inexoráveis. Aptas a estraçalhar qualquer adversário. Pensam que, sentindo fome, basta sair para um rápido passeio e... crau! Algum gaiato será servido no jantar.
Mas nesse aspecto elas se enganam redondamente. Mesmo as piores, as mais fortes, as capazes de inocular um terrível veneno em suas presas, trucidando-as, também podem ser abatidas por estas, e mesmo, vejam bem, por pequenos animais. Um engano comum e fatal é o que costuma ocorrer quando uma mamba-negra enfrenta um mangusto (moongoose em inglês, mangoustin em francês). A mamba-negra é uma das mais letais que se conhecem. Com cerca de dois metros de comprimento, é uma máquina de matar. Já o mangusto é um bichinho simpático, parecido com um cachorro de tamanho médio, com cerca de 50 a 70 centímetros de comprimento. Tem uma cauda volumosa e um focinho comprido. O que melhor o distingue, vejam só, são seus hábitos culinários. Não dispensa um pequeno roedor, mas gosta mesmo é de cobras peçonhentas – como a mamba-negra. Quando os dois se encontram, ela logo levanta a cabeça, colocando-se em posição de bote. E ele, vocês acham que conserva uns cinco metros de distância? Qual nada! Aproxima-se até meio metro e começa a provocá-la. Dá voltas em torno dela, como se estivesse dançando, vai numa direção e volta na outra, tratando de desorientá-la. Na verdade, ele está é procurando um flanco, um momento em que lhe possa desfechar uma mordida pela nuca. A certa altura, irritada e já quase exasperada, ela perde a paciência e desfere seguidos botes contra ele, errando todos. Os reflexos e a velocidade do rapaz são incríveis. Quando a mamba-negra começa a se cansar, o flanco finalmente aparece e ele a liquida com uma só mordida.
Igualmente instrutivos são os gatos selvagens, que também habitam as áreas quentes da África e da Ásia. São comuns nos desertos da Namíbia, por exemplo. Menores que os mangustos, eles são de certa forma até mais audaciosos, pois se aproximam realmente das cobras e ficam praticamente parados. O que os distingue é, como direi, um DNA de boxeador. Com as patas dianteiras, eles desferem um belo soco de cima para baixo nas serpentes e, quando elas começam a se recuperar, desferem outro com a outra pata. Depois de 10 ou 15 pancadas como essas, eles cravam os dentes na cabeça delas, certificando-se de que elas já partiram desta para melhor. Aí eles pegam o celular e ligam para a patroa, pedindo-lhe para caprichar porque o jantar vai ser supimpa.
Pois, então, aqui chegamos ao terceiro ponto, talvez o mais importante para compreendermos nossa política e nos compreendermos como sociedade. Pouca gente sabe disso, mas todas as cobras são surdas. Enxergam mal e não ouvem bulhufas. Mas como, indagará meu leitor, e a poderosa naja indiana, que dança ao som da flauta tocada pelo encantador de serpentes. Dança nada. Do som da flauta ela não faz a menor ideia. O que ela faz é acompanhar os movimentos corporais do encantador, sempre em posição de bote.
O Brasil também – talvez não todo ele, mas a maioria das elites e das camadas médias – é absolutamente surdo. Aos congressistas e aos juízes do STF, por exemplo, você pode dizer quantas vezes quiser que o Brasil precisa urgentemente de reformas muito mais drásticas do que essas que temos discutido, que acreditar em recuperação econômica se não conseguimos um crescimento do PIB de sequer 3% ao ano é pura ilusão... Os ouvidos brasilienses são como os da naja indiana, ou da mamba-negra, ou da cascavel. Iguais, incuravelmente surdos. Tente dizer-lhes que, crescendo 3% ao ano, levaremos algo como 30 anos para dobrar nossa pífia renda anual por habitante. Ou que não estamos investindo nem o mínimo necessário para manter a infraestrutura. Que não iremos a lugar algum sem uma reforma política séria e um ministro alfabetizado na Educação. E que os megaproblemas de nossa sociedade (violência, corrupção...) continuarão a se agravar enquanto não dermos uma guaribada em nosso aparelho auditivo...
Nessa hipótese, daqui a 15 ou 20 anos estaremos desprotegidos e o jeito será importar mangustos e gatos selvagens em grande quantidade.
* Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Folha de S. Paulo: Ilação é tentativa rasteira de tumultuar República, diz Bolsonaro após divulgar vídeo de apoio a ato
Presidente não nega ter compartilhado gravação por WhatsApp e diz que mensagens no aplicativo são de 'cunho pessoal'
O presidente Jair Bolsonaro chamou de "tentativas rasteiras de tumultuar a República" as interpretações sobre ele ter compartilhado um vídeo em apoio a atos contra o Congresso em 15 de março.
Ele escreveu em rede social e não negou ter enviado a amigos por WhatsApp um vídeo que convoca a população a ir às ruas. Afirmou usar esse aplicativo para trocar mensagens de "cunho pessoal".
"Qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República", completou o presidente em publicação nas redes sociais nesta quarta-feira (26).
'Nós não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. Foda-se'. General Heleno ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), na manhã de terça (17), em fala que não sabia que estava sendo gravada, sobre o que qualifica de chantagens do Legislativo para avançar sobre o dinheiro do Executivo Pedro Ladeira - 28.nov.2019/Folhapress
Na breve mensagem, a primeira manifestação de Bolsonaro sobre o caso, não há qualquer menção ao conteúdo do vídeo.
O post nas redes sociais foi feito horas antes de o presidente embarcar do Guarujá, onde passou o feriado de Carnaval, para Brasília. Ele ocorre também depois de reações de repúdio ao vídeo de representantes de outros Poderes, da sociedade civil e de ex-presidentes da República.
Líderes políticos como os ex-presidentes Lula e Fernando Henrique Cardoso e o presidente da OAB manifestaram repúdio na noite de terça-feira (25) à iniciativa de Bolsonaro de compartilhar vídeos que convocam manifestações para o próximo dia 15 a seu favor e contra o Congresso.
O decano do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Celso de Mello, afirmou nesta quarta que a conclamação de Bolsonaro para ato contra a corte e o Congresso, "se confirmada", revela "a face sombria de um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional, que ignora o sentido fundamental da separação de Poderes, que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce e cujo ato de inequívoca hostilidade aos demais Poderes da República traduz gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático!!!".
Em texto enviado à Folha por escrito, Celso de Mello afirma ainda: "O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República".
A manifestação marcada para o próximo dia 15 é uma reação à fala do ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, que chamou o Congresso de "chantagista" na semana passada.
Bolsonaro encaminhou a amigos vídeos que convocam a população a ir às ruas para defendê-lo.
A informação foi confirmada à Folha pelo ex-deputado federal Alberto Fraga, amigo do presidente. Outro vídeo, diferente do recebido por Fraga, mas exaltando a manifestação do dia 15, também foi compartilhado por Bolsonaro, como revelou o jornal O Estado de S. Paulo.
A atriz Regina Duarte, escolhida neste ano por Bolsonaro para a Secretaria Especial da Cultura do governo, também compartilhou em rede social texto de apoio ao ato. "15 de março. Gen Heleno/Cap Bolsonaro. O Brasil é nosso, não dos políticos de sempre", diz a mensagem.
O presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, disse que o ato de Bolsonaro, se confirmado, pode abrir caminho para pedido de impeachment.
“Entendo que é inadmissível, o presidente está mais uma vez traindo o que jurou ao Congresso em sua posse, quando jurou defender a Constituição Federal. A Constituição e a democracia não podem tolerar um presidente que conspira por sua supressão”, afirmou Santa Cruz.
Segundo ele, a convocação pode se enquadrar no artigo 85 da Constituição, que diz que “são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: [...] o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”.
A fala de Heleno que inspirou a convocação das manifestações foi no último dia 18. Em um áudio captado durante uma transmissão em rede social, o ministro foi flagrado dizendo que o presidente não poderia aceitar que o Legislativo queira avançar sobre o dinheiro do Executivo.
"Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. Foda-se", disse aos ministros Paulo Guedes (Economia) e general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).
Em publicação em rede social, Lula chamou o episódio de Bolsonaro de "mais um gesto autoritário de quem agride a liberdade e os direitos todos os dias".
"É urgente que o Congresso Nacional, as instituições e a sociedade se posicionem diante de mais esse ataque para defender a democracia."
Fernando Henrique Cardoso, também em rede social, disse: "A ser verdade, como parece, que o próprio Pr tuitou [na verdade, enviou a amigos por WhatsApp] convocando uma manifestação contra o Congresso (a democracia) estamos com uma crise institucional de consequências gravíssimas. Calar seria concordar. Melhor gritar enquanto de tem voz, mesmo no Carnaval, com poucos ouvindo."
El País: General Heleno diz que parlamentares “chantageiam” Governo e abre novo embate com o Congresso
Flagrado em áudio privado, ministro reclama do Parlamento por tentar avançar no controle do orçamento. Maia reage e chama general da reserva de “radical ideológico”
A queda de braço entre o Executivo e o Congresso ganhou músculos nesta quarta-feira em Brasília, quando veio a público uma gravação vazada do ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, em que expunha sua insatisfação com os parlamentares. Heleno se queixava da pressão do Parlamento por derrubar os vetos do presidente Jair Bolsonaro ao orçamento impositivo. Sem os vetos, deputados e senadores teriam mais controle sobre os recursos do orçamento. Sem saber que estava sendo gravado, o general falou em “chantagem” do Legislativo para aumentar o controle sobre o dinheiro do orçamento da União, segundo o jornal O Globo. “Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente o tempo todo. Foda-se”, disse Heleno, na presença do ministro da Economia, Paulo Guedes, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. A fala do general foi captada em transmissão ao vivo da presidência da República em cerimônia de hasteamento da bandeira no Palácio do Planalto.
Sua fala caiu como uma bomba nas já tensas relações entre os dois poderes. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, rebateu a fala do general um tom acima do habitual. Maia qualificou o ministro do GSI como “radical ideológico”. “Geralmente na vida, quando a gente vai ficando mais velho vai ganhando equilíbrio, experiência e paciência. O ministro pelo jeito está ficando mais velho e está falando como um jovem”, declarou na manhã desta quarta. “Uma pena que um ministro com tantos títulos tenha se transformado num radical ideológico”.
O imbróglio obrigou Heleno a se explicar no Twitter nesta quarta. “Externei minha visão sobre as insaciáveis reivindicações de alguns parlamentares por fatias do orçamento impositivo, o que reduz, substancialmente, o orçamento do Poder Executivo e de seus respectivos ministérios. Isso, a meu ver, prejudica a atuação do Executivo e contraria os preceitos de um regime presidencialista”, escreveu Heleno, que avaliou o vazamento do áudio como “mais um lamentável episódio de invasão de privacidade, hábito louvado no Brasil”.
Em mais um lamentável episódio de invasão de privacidade, hábito louvado no Brasil, vazou para a imprensa uma conversa que tive com o Dr. Paulo Guedes e o Gen. Ramos.
O Legislativo se articula para ganhar mais poder sobre parte de 80 bilhões de reais do orçamento. Os parlamentares querem ter controle sobre 30 bilhões desse total. O Governo não está de acordo com esse movimento do Congresso. Mas coube a Heleno, ainda que involuntariamente, o papel de porta-voz dessa insatisfação do Planalto. Segundo ele, “as insaciáveis reivindicações” de parlamentares por fatias do chamado orçamento impositivo prejudicam a atuação do Governo, o que transparece, segundo ele, um desejo de implementar o parlamentarismo no Brasil. “Se desejam o parlamentarismo, mudem a constituição. Sendo assim, não falarei mais sobre o assunto”, completou no Twitter.
Troca de farpas e harmonia
Rodrigo Maia aproveitou o episódio para alfinetar o general. Segundo Maia, não houve por parte de Heleno nenhum tipo de ataque ao Parlamento quando o Congresso “estava votando o aumento do salário dele como militar da reserva”. “Quero saber deles se ele acha que o Parlamento foi chantageado por ele ou por alguém para votar o projeto de lei das Forças Armadas”, afirmou Maia. A troca de farpas acontece em um momento em que o Governo Bolsonaro tenta encampar no Congresso uma séria de medidas econômicas, como a reforma administrativa, o pacto federativo e a reforma tributária.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) também se manifestou sobre a fala de Heleno. O senador disse, por meio de nota, que “nenhum ataque à democracia será tolerado pelo Parlamento”.“O momento, mais do que nunca, é de defesa da democracia, independência e harmonia dos poderes para trabalhar pelo país”, completou o presidente do Senado.
Alon Feuerwerker: O Congresso está condenado a aprovar as reformas
A pesquisa Veja/FSB mais recente mostra leve subida na avaliação do governo Jair Bolsonaro, enquanto a do Congresso Nacional, na melhor das hipóteses, anda de lado. O presidente beneficia-se da evolução, ainda que lenta e intermitente, do PIB e principalmente do emprego. O Legislativo continua com sua imagem no mesmo lugar, ruim, apesar de cantado dia e noite em prosa e verso como o “adulto responsável pelo avanço das indispensáveis reformas”.
O Congresso e seus líderes parecem presos a uma armadilha. Se andam com as reformas da dupla Bolsonaro/Paulo Guedes e a população sente no bolso melhoras na economia, quem come o bolo é o Executivo. Se colocam dificuldades à agenda, serão incinerados pela opinião pública que há anos vende ao país a infalibilidade dessas reformas. E se entregarem a mercadoria e mesmo assim a coisa desandar na economia? Vão dizer deles que não entregaram o suficiente.
Na vida prática, o Congresso não tem alternativa, vai ter de aprovar alguma coisa na linha exigida, para não ser acusado de travar o avanço do país. Por isso, são vazias de significado material as especulações sobre quanto o estilo verbal do presidente da República atrapalha a produção da fábrica de leis econômicas. Ou, agora, quanto a prevalência de militares no Palácio pode estar incomodando os políticos. Estes não têm opção fora andar na linha imposta.
Foi assim com a mudança nas aposentadorias. Ao longo de 2019 proliferaram teses sobre os graves riscos corridos pela reforma da previdência por causa da suposta desarticulação política do Executivo. Na real nunca houve desarticulação. As circunstâncias permitiram que o governo aprovasse a coisa apenas com custo orçamentário, sem ter de nomear ministros indicados pelas bancadas. Sem as "porteiras fechadas". A liberação/promessa recorde de emendas resolveu.
O quadro na essência não mudou desde então, assim como não mudou a correlação de forças no Parlamento. A oposição continua a depender de alianças com os presidentes da Câmara e do Senado e com o dito centrão para não ser esmagada. Daí que os chefes do Legislativo reúnam hoje um poder indisputado. Mas poder para quê? No bottom line, tirando as espumas que entretêm a plateia, para fazer o que o Planalto e ministério da Economia consideram essencial.
A economia ofereceu alguma decepção no final do ano para quem esperava uma decolagem mais vertical. As vendas não foram tão brilhantes quanto o anunciado. A verdade é que as autoridades econômicas só prometem mesmo alívio verdadeiro e consistente para o final deste mandato de Bolsonaro. Até lá, o público terá de satisfazer-se com alívios pontuais. Estes parecem estar bastando para manter os bons índices de aprovação do governo.
A dúvida de sempre: até quando?
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Míriam Leitão: Não se enganem. Nada disso é normal
Presidência militarizada, Câmara sendo palco de calúnia sexista, ministro ofendendo grupos sociais, livros censurados. Nada disso é normal
Há quem prefira o autoengano. O governo hostiliza a imprensa, e o filho do presidente dá sequência a uma difamação sexista contra uma jornalista, da tribuna da Câmara. O presidente se cerca de militares da ativa. O ministro da Economia ofende grupos sociais. A Educação está sob o comando de um despreparado. Alguns ministros vivem em permanente delírio ideológico. Os indígenas são ameaçados pelo desmonte da Funai e pelo lobby da mineração e do ruralismo atrasado. Livros são censurados nos estados. A cultura é atacada. Há quem ache que o país não está diante do risco à democracia, apenas vive as agruras de um governo ruim. E existem os que consideram que o importante é a economia.
Existe mesmo uma diferença entre governo ruim e ameaça à democracia, mas, no caso, nós vivemos os dois problemas. As instituições funcionam mal até pela dificuldade de reagir a todos os absurdos que ocorrem simultaneamente. Quando um tribunal superior decide que uma pessoa que ofende os negros pode ocupar um cargo criado para a promoção da igualdade racial, é a Justiça que está funcionando mal. O Procurador-Geral da República, desde que assumiu, tem atuado como se fosse um braço do Executivo. O Supremo Tribunal Federal (STF) parece às vezes perdido no redemoinho de suas divergências.
A calúnia contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da “Folha de S.Paulo”, foi cometida dentro do Congresso Nacional. O depoente de uma CPI praticou o crime diante dos parlamentares. Um deles, filho do presidente, reafirmou a acusação sexista. É mais um ataque à imprensa, num tempo em que este é o esporte favorito do presidente. Mas é também uma demonstração prática dos problemas do país. Alguém se sente livre para mentir e caluniar usando o espaço de uma comissão da Câmara e é apoiado por um parlamentar.
Não é normal que um general da ativa, chefe do Estado Maior do Exército, ocupe a Casa Civil, nem que o Planalto tenha apenas ministros militares e dois deles da ativa. Não é bom para as próprias Forças Armadas. Essa simbiose com o governo seria ruim em qualquer administração, mas é muito pior quando o chefe do Executivo cria conflitos com grupos da sociedade, divide a nação, faz constante exaltação do autoritarismo e apresenta projetos que ofendem direitos constitucionais. As Forças Armadas são instituições do Estado, com a obrigação de manter e proteger a Constituição. Deveriam preservar sua capacidade de diálogo com todo o país, neste momento de tão aguda fratura. O trauma da ruptura institucional comandada por generais é recente demais.
Não é normal que um governo estadual se sinta no direito de retirar das mãos de estudantes livros clássicos, um deles escrito pelo mestre maior da nossa literatura. A leitura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, do genial Machado de Assis, precisa ser estimulada e não proibida. É tão despropositada a ideia de colocar livros em um índex que muitos reagem apenas com incredulidade e desprezo. O obscurantismo, a censura, o retrocesso são graves demais.
A economia nunca poderá ir bem num país enfermo. Não há uma bolha em que se possa isolá-la. Mesmo se houvesse essa capacidade de separação da realidade, é preciso entender que a economia não está nada bem. Se no mercado financeiro, se alguns líderes empresariais querem vender esse otimismo falso é porque têm interesses específicos. A verdade, que bons empresários e economistas lúcidos sabem, é que o mercado de trabalho exclui um número exorbitante de brasileiros, o país ainda tem déficit em suas contas, a alta excessiva do dólar cria distorções e a incerteza tem aumentado.
A crise econômica foi herdada por este governo, mas ele está cometendo o erro de subestimar os desafios. O ambiente de conflito constante com diversos grupos da sociedade, provocado pelo governo, esse clima de estresse permanente, não é bom para quem faz projetos de longo prazo no país. Quando o cenário de ruptura tem que ser considerado, os investidores se afastam.
Quem prefere o autoengano pode viver melhor no presente, mas deixa de ver os avisos antecedentes do perigo e, portanto, não se prepara para enfrentá-lo. Manter a consciência dos riscos é a atitude mais sensata em época tão difícil quanto a atual. Nada do que tem nos acontecido é normal.
Vinicius Torres Freire: Generais ocupam Planalto, Congresso se irrita com governo
Congresso fica mais independente; núcleo original da gestão de governo se desfez
Jair Bolsonaro deve manter em 2020 o mesmo padrão de relacionamento com o Congresso observado em 2019: nenhum. Haveria ao menos um padrão mínimo de governo?
O Planalto é mais e mais ocupado por oficiais-generais.
Podem colocar ordem na zorra da coordenação administrativa, embora não tenham experiência de articulação de governo, ministerial, e ainda menos parlamentar.
O núcleo original de ministros “da casa”, com assento no Planalto, acaba de se desmanchar de vez com a provável nomeação de um oficial-general de quatro estrelas para a Casa Civil.
Gustavo Bebianno foi demitido da Secretaria-Geral ainda em fevereiro do ano passado; o general Santos Cruz caiu da Secretaria de Governo em agosto em junho. Ambos foram abatidos com humilhação pela filhocracia, adepta da seita do orvalho de cavalo. Onyx Lorenzoni deve deixar oficialmente a Casa Civil, onde de fato jamais esteve, por inoperância.
A Secretaria de Governo é ora comandada por um general de quatro estrelas da ativa, Luiz Ramos. A Casa Civil pode ir para outro general de exército da ativa, Braga Netto, que seria outro chefe de Estado-Maior do Exército a ir para o governo, como foi o caso do ministro da Defesa, Fernando de Azevedo. Como foi o caso, aliás, dos generais-ministros Sérgio Etchegoyen (Gabinete de Segurança Institucional, GSI) e Luna e Silva (Defesa) no governo de Michel Temer.
A Secretaria-Geral é ocupada por um major PM, Jorge Oliveira, de longa relação familiar com os Bolsonaro, que tenta ser um gerente-geral jurídico-administrativo. Depois de uma quarentena na geladeira política, em parte autoimposta, o vice-presidente-general Hamilton Mourão foi convocado para conter a balbúrdia em parte da área ambiental, assumindo o Conselho da Amazônia.
Depois de levarem rasteiras inesperadas por eles mesmos quando pareciam conter as áreas mais lunáticas do governo (Itamaraty, filhocracia fazendo bagunça no play do Planalto), os oficiais-generais parecem dar a volta por cima de modo também imprevisto. O comando do Exército fica ainda mais identificado com o governo.
O sentido da mudança ainda é difícil de decifrar, como tanto no governo Bolsonaro.
Ao que parece, para o presidente, militares teriam a capacidade de gerência, mas não estariam inclinados a fazer carreira política ou sombra para Bolsonaro.
Para lideranças do Congresso, os generais são criaturas com quem se pode dialogar de modo razoável, racional e profissional, mas que não têm traquejo para articulações políticas maiores. Enquanto o comando do Congresso tiver lideranças mais ou menos comprometidas com isso que se chama de “agenda de reformas”, toca e comanda o barco.
Isso vai durar? Os parlamentares pouco ganham do governo, têm cada vez mais poder sobre o Orçamento (emendas e investimentos em particular), são enxovalhados pelas milícias virtuais e aos poucos vão se cansando de carregar o piano de medidas impopulares.
Por ora, o governo tem maioria acidental, instável e desestruturada para aprovar linhas gerais da “agenda liberal”, que nem é exatamente a de Paulo Guedes. Mas por que continuariam a apoiar o programa geral da elite e de parte do governo se do governo não precisam ou dele pouco recebem?
Não há pontes entre governo e Congresso, apenas pinguelas. Os comandantes do Exército ocupam o Planalto. Ministros da ala lunática continuam quase todos fora da casinha. Assim começa a política do ano dois da nova era.
O que pode definir sucesso de Bolsonaro? Felipe Nunes analisa na Política Democrática online
Em revista da FAP, pós-doutor em ciência política diz que presidente levanta polêmicas pautadas nos desejos mais íntimos das pessoas
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O professor de comunicação política, eleições e análise de dados na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Felipe Nunes diz que o sucesso do governo de Jair Bolsonaro dependerá de resultados econômicos, os quais, conforme analisa, poderão garantir, ou não, a reeleição do presidente em 2022. Essa análise está publicada na reportagem especial da 15ª edição da revista mensal Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.
» Acesse aqui a 15ª edição da revista Política Democrática online
Nunes é PhD em ciência política, mestre em estatística pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e está produzindo livro sobre a eleição de Bolsonaro em 2018. Segundo ele, depois de o governo passar a etapa da Reforma da Previdência em 2019, o presidente terá de oferecer à população muito mais do que mostrou até agora.
“Embora a eleição tenha sido em torno dos costumes, o que vai definir o sucesso do governo, ou não, é a pauta econômica”, afirma o professor da UFMG, na reportagem especial da revista Política Democrática online. “Se conseguir ter resultados econômicos expressivos, quando isso se associar à pauta de costumes, ele terá resultado mais expressivo”, acentua.
A pauta econômica, na avaliação de Nunes, estabelece uma linha muito tênue entre o sucesso e o insucesso de Bolsonaro. “Se os resultados econômicos não vierem, a pauta de costumes não será suficiente para convencer a maioria da sociedade e, por isso, manterá unida apenas a base eleitoral mais próxima. Para ganhar uma eleição de novo, ele terá de mostrar resultados econômicos”, enfatiza.
O professor da UFMG observa que Bolsonaro é o primeiro presidente brasileiro a incluir a pauta de costumes e valores na política nacional. “Ele é o primeiro eleito para o cargo com temas que dizem respeito a valores cotidianos, de dentro da casa das pessoas. Isso significa uma quebra de paradigma muito grande. Talvez por isso os políticos brasileiros tenham dificuldade de fazer oposição efetiva ao governo”, afirma o pesquisador.
Nunes reforça que o presidente infla discussões sem caráter técnico, informações e evidências. “Ele move polêmicas pautadas no desejo, no gostar das pessoas, nas preferências mais íntimas que elas têm. As pessoas passaram a discutir política de forma não mais objetiva, mas totalmente emocional, cada uma tentando confirmar aquilo em que já acredita”, diz.
Todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online serão divulgados no site e nas redes sociais da FAP ao longo dos próximos dias. O conselho editorial da publicação é composto por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.
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