Congresso Nacional
El País: Por um Congresso livre, democrático e responsável
Mais de 40 organizações lançam a campanha “Democracia nas Mesas”, em que apresentam uma agenda mínima para o Parlamento
BÁRBARA LIBÓRIO|ELISA DE ARAÚJO|FLÁVIA PELLEGRINO|FELIPPE ANGELI|MARIA MELLO
Em 1º de fevereiro, deputados(as) e senadores(as) tomarão uma decisão que trará consequências determinantes para o futuro do Brasil: a eleição das novas mesas diretoras de ambas as casas do Congresso Nacional.
O governo atual costuma flertar com o autoritarismo e o personalismo: das investigações a jornalistas a pedido do ministro da Justiça ao uso das instituições para proteger Flávio Bolsonaro de investigações, vemos o desapreço às liberdades democráticas e sua dificuldade em separar o privado do público. Soma-se a isso o negacionismo promovido no enfrentamento à covid-19, tendo por consequência o segundo maior número de mortos pela doença no mundo, e a destruição consciente do maior patrimônio nacional, nossas florestas e biomas, enquanto política de governo.
A Nova República veio encerrar a violência institucional da ditadura militar instituída pelo golpe de 1964, estabelecendo como valores inegociáveis a democracia, a diversidade, a liberdade e a separação entre poderes, de modo que nenhum indivíduo ou grupo possa impor seus interesses frente ao conjunto da sociedade.
Com base nestes princípios fundamentais, mais de 40 organizações lançaram nesta semana a campanha “Democracia nas Mesas”, em que apresentam uma agenda mínima para o Parlamento. Esta agenda busca um compromisso público dos(as) candidato(as) às mesas quanto a cinco temas centrais para a crise que o país enfrenta:
(i) A autonomia do Congresso Nacional, pois não podemos correr o risco de ver o Parlamento ser um mero despachante das políticas de um governo cujas políticas são, em geral, contrárias ao interesse público;
(ii) Políticas baseadas em evidências no combate à covid-19, considerando que a gestão da epidemia pelo governo federal é causa direta de milhares de mortes que não precisariam ter ocorrido caso não insistissem na desinformação e na sabotagem consciente a medidas comprovadamente eficazes no combate à covid-19;
(iii) Respeito absoluto às diversidades, liberdades e aos direitos constitucionais, em reação aos ataques sistemáticos aos pilares de nossa democracia plural, a partir de pautas racistas, armamentistas, misóginas, homofóbicas, de militarização e de eliminação dos povos indígenas que agridem os direitos fundamentais de todo(a) o(a) brasileiro(a);
(iv) O combate ao racismo, dimensão estrutural de nossa sociedade e gênese maior da crônica desigualdade social brasileira, da violência urbana que vitima a todos(as), mas numa proporção específica à população negra com contornos de genocídio; e
(v) A defesa do meio ambiente, maior patrimônio nacional e objeto de uma política intencional de destruição pelo governo federal. Não haverá desenvolvimento econômico se o Brasil não retomar imediatamente seu protagonismo ambiental.
Que os(as) parlamentares levem em conta esta agenda e escolham aquele(a) candidato(a) que represente a adesão incondicional a estes princípios. Já é passada a hora de uma reação firme e democrática ao projeto de destruição dos valores republicanos imposto pelo Governo Federal. A sociedade civil está atenta ao debate e não abandonará a defesa da Constituição e dos direitos da cidadania sob nenhuma hipótese. Esperamos que nossos representantes eleitos façam sua parte.
Bárbara Libório é coordenadora do Elas no Congresso na Revista AzMina. Elisa de Araújo é assessora de advocacy nacional da Conectas Direitos Humanos. Flávia Pellegrino é coordenadora de articulação política e advocacy no Pacto pela Democracia. Felippe Angeli é gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz. Maria Mello é componente da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
Silvio Almeida: Democracia e desigualdade devem ocupar lugar central no debate político pós-pandemia
Relação entre os dois temas será central no debate político pós-pandemia
Ano de 2021 começará com enormes desafios e não haverá mais lugar para pensamento idealista apartado dos conflitos da realidade.
Utilizo esta última coluna do ano para tratar do que considero os principais assuntos sobre os quais a sociedade terá que se debruçar nos próximos anos: democracia e desigualdade.
O debate sobre democracia e desigualdade não é recente nem uma novidade. Entretanto, a pandemia, a crise econômica e a incapacidade política demonstrada por grande parte dos governos expuseram as imensas contradições do que se convencionou chamar de democracia e a insuficiência das medidas contra a desigualdade.
O ano de 2020 evidenciou que as garantias jurídico-formais da democracia não são suficientes para assegurar a participação popular no processo político. Governos autoritários, com propensões genocidas e “suicidárias” (na expressão de Paul Virillo) foram eleitos e, utilizando-se da forma democrática, desorganizaram social e economicamente seus respectivos países, instalaram desconfiança no próprio sistema que os permitiu chegar ao poder e foram direta ou indiretamente responsáveis pela morte de milhares de pessoas devido ao modo com que se portaram no contexto da pandemia.
Da mesma forma mostraram-se falhas e limitadas as instituições encarregadas de zelar pela democracia. O domínio das fake news, o ambiente anti-intelectual e a distorção provocada pelos algoritmos das redes sociais colocam em xeque um dos postulados máximos do processo democrático, a informação baseada na verdade. Parte do problema também repousa na maneira como os interesses econômicos e o alinhamento às políticas neoliberais têm se refletido na tolerância da grande imprensa e do sistema de justiça com governos autoritários e comprovadamente incompetentes. Caminhamos para um mundo em que a degradação das condições de vida, a destruição ambiental e a desorientação existencial faz com que se instaure um grave dilema entre democracia e ordem social.
Tratar a questão da desigualdade será também assunto prioritário na próxima quadra histórica. Penso que o tema se desdobrará em duas grandes questões. O primeiro desdobramento será um novo debate sobre o papel do Estado na economia. Os delírios neoliberais de “cada vez menos Estado” mostraram-se um retumbante fracasso, inclusive para o mercado. Sem um sistema forte e coeso de proteção social, como é o caso do Sistema Único de Saúde, a tragédia da Covid-19 poderia ser muito maior. Nesse sentido, a instituição de uma renda básica universal está definitivamente na agenda brasileira, não apenas por sua capacidade de fortalecer o sistema de proteção social, mas pelos impactos positivos da medida sobre o conjunto da economia.
O segundo desdobramento será a questão racial. A ascensão de governos ancorados em um “neoliberalismo autoritário” expôs a forma como o racismo é um elemento organizador da desigualdade. O silêncio teórico da economia acerca do racismo foi quebrado, o que revelou ao fim e ao cabo a insuficiência de políticas de desenvolvimento econômico que não tratam da desigualdade racial. A partir de reflexões sobre política industrial, relações de trabalho, tributação, ciência e tecnologia e empreendedorismo terão que observar os impactos sociais do racismo.
O ano de 2021 começará com enormes desafios teóricos e práticos e não haverá mais lugar para que democracia e desigualdade sejam pensadas de modo idealista e apartado dos conflitos da realidade.
*Silvio Almeida, professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.
José Serra: Encontraremos o caminho
Combatamos de novo o bom combate, dando a mão aos vulneráveis neste momento difícil
No meu primeiro artigo deste ano instei o Congresso Nacional a legislar com responsabilidade, coragem e eficácia, revestindo meus argumentos com dados e fatos. Naquele momento não poderia ter previsto a pandemia que viria, nem o papel que o Congresso assumiria numa das piores conjunturas da nossa História recente. O ano não foi fácil, mas continuo relativamente otimista no prognóstico. Em respeito às pessoas que perderam familiares, amigos, vizinhos, a todos os doentes e aos profissionais da saúde, temos de perseverar.
O cenário econômico e político já se mostrava desafiador no início de 2020. Os problemas sociais e a desigualdade, combinados com retrocessos em áreas como educação, meio ambiente e relações exteriores, formavam uma tempestade perfeita para dificultar qualquer proposta de desenvolvimento econômico e social sustentável. Sejamos claros: não chegaremos longe sem uma pacificação política – com menos disputas e mais diálogo – em torno de programas convergentes de políticas públicas viáveis.
Após a aprovação da reforma da Previdência, a chegada da pandemia e a omissão da ação estatal nas áreas de educação, meio ambiente e relações exteriores deram lugar a um ambiente político infestado de crises e divisões, prevalecendo interesses políticos desconectados da boa gestão pública. E o que é pior: em matéria de crescimento econômico, estamos para encerrar a pior década desde o início do século passado.
Aliás, na área econômica, este ano foi marcado por uma política fiscal difícil em relação à transparência e ao planejamento. Enfrenta-se uma epidemia dramática, com forte elevação do desemprego e das desigualdades, mas o ano se encerra sem um Orçamento bem definido para 2021 – temporariamente engavetado – e com indefinições elementares da prevalência do teto de gastos. Já fui ministro do Planejamento e posso dizer que essa neblina no horizonte fiscal decorre não de erros da área econômica, mas da ausência de rumo do governo.
Não existe vento bom para quem não tem rumo certo.
Os instrumentos de planejamento orçamentário que ajudei a conceber há mais de 30 anos, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias, que resultou de emenda de minha autoria, estão funcionando como verdadeiras âncoras fiscais. Afinal, ainda temos uma meta fiscal para atingir no próximo ano, regida por regras básicas de execução provisória do Orçamento não aprovado. Nessa matéria, o Tribunal de Contas da União teve papel fundamental para reverter a ideia do governo de adotar uma meta fiscal flutuante, que afrontaria a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Tenho por certo que o Congresso Nacional salvou o ano na área educacional ao aprovar as novas regras do Fundeb. Em tempos de pandemia, a luta pela regulamentação desse importante fundo representa a garantia dos investimentos na infraestrutura das escolas públicas, em sentido amplo. Por sorte, o poder de ação do Parlamento nessa matéria mais do que compensou a omissão olímpica do Poder Executivo na área da educação.
Sempre que possível, procuro sustentar meus argumentos com fatos. Penso que o meio ambiente e as relações exteriores – duas áreas de governo fundamentais para o crescimento econômico e o desenvolvimento social – também vêm sofrendo as consequências do despreparo. Na questão ambiental, ficamos de fora da lista de países que participarão do encontro preparatório para a próxima Conferência sobre Mudanças Climáticas – que será realizado no Reino Unido em 2021. E nas relações exteriores presenciamos um caso raríssimo: um candidato a chefe de missão no exterior, apontado pelo chanceler, recusou-se, em plena sabatina, a responder à pergunta de uma senadora! Não foi de estranhar que, diante dessa afronta inusitada à prerrogativa do Senado de confirmar, ou não, sua nomeação, o nome do escolhido do Executivo tivesse sido recusado.
O Congresso vem atuando com responsabilidade ao salvar a educação, aprovando o Fundeb, e ao poupar vidas, aprovando planos de apoio aos governos estaduais e municipais, que basicamente estão na linha de frente do combate à covid-19. Neste ano nasceram no Senado Federal as leis que direcionaram recursos para entidades filantrópicas, bem como para Estados e municípios conseguirem lutar no front da batalha. O auxílio emergencial foi mais uma conquista do Legislativo, a partir de um projeto do Executivo de apenas R$ 200.
O Poder Executivo apresentou uma série de propostas ao Congresso que podem resultar em reformas estruturantes nas áreas econômica e fiscal. É importante ter como alerta alguns sinais inflacionários e o elevado endividamento público, que reduzem a margem de manobra da política fiscal. Nesse sentido, apostar na vacinação de todos os brasileiros, a começar pelos mais vulneráveis, e nas reformas estruturantes é um passo acertado.
Encontraremos o caminho certo. Neste meu último artigo do ano volto a fazer o mesmo convite aos meus pares: é hora de o Parlamento assumir efetivamente suas responsabilidades e partir para a ação. Combatamos novamente o bom combate, dando a mão aos mais vulneráveis nestes momentos tão difíceis.
*Senador (PSDB-SP)
Paulo Fábio Dantas Neto: Congresso Nacional 2021 - Manter sempre teso o arco da promessa
A notícia da incorporação, ontem, dia 18.12, de cinco partidos de esquerda (PT, PDT, PSB, REDE, PCdoB) à frente, já anteriormente formada pelo chamado “Centro Democrático” (DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, PV), que o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, articula para disputar sua sucessão, marca uma aliança política de grande significado. Independente dessa aliança levar ou não a uma candidatura única, importa que se torna bem mais robusto um movimento de amplas dimensões pela independência daquela casa legislativa e de reação à tentativa do Poder Executivo de instrumentalizar o seu comando. Nesse momento o deputado Artur Lira, candidato apoiado pelo Planalto, passa, em tese, à condição de candidato minoritário, se somados como seus adversários os deputados integrantes das bancadas daqueles onze partidos.
Vários tópicos entram em pauta para se analisar as implicações desse fato político. Dentre eles é possível citar o grau de correspondência efetiva que haverá entre as decisões das direções partidárias e o comportamento das bancadas, as repercussões, nas bancadas dos partidos do bloco “centro democrático”, especialmente o PSL e o DEM, dessa aliança com a esquerda, PT incluído e a nova relação que se poderá estabelecer entre as eleições na Câmara e no Senado, por vezes vistas como partes de uma “operação casada”. Cedo para compreender tudo isso. Mais produtivo analisar o contexto mais geral dos processos sucessórios nas duas casas do Congresso, ao qual o fato de ontem se incorpora. Parto da premissa de que o referido processo teve sua dinâmica afetada pelo timing de uma decisão judicial provocada por adversários do movimento unitário que se robustece na Câmara.
Judicialização como refração de um processo político
Como sabido e já bastante comentado, as urnas de 2020 trouxeram más notícias aos bolsonarismo e ao lavajatismo, os grandes vencedores de 2018. É menos evidente, devendo ser salientado, que essas duas faces da direita negativa não metabolizaram a nova disposição do eleitorado, que valorizou a eficácia da política na gestão de municípios e deu sinal verde a políticas de frente democrática de um centro moderado. Poucos dias após a apuração dos votos, juntaram-se para tentar armar a mão do STF contra esse impulso agregador. Tiverem êxito, ainda que por apertada maioria. O tribunal interceptou o processo político que se esboçava nas duas casas do Congresso para a renovação de suas mesas diretoras. Processo que mal começara a entrar em sua fase mais importante, a fixação de candidaturas expressivas de um realinhamento de forças no Legislativo, que só poderia mesmo avançar a partir do resultado eleitoral, como se requer numa democracia.
É bom lembrar que o STF foi formalmente provocado à judicialização preventiva do processo pelo PTB, partido da base governista, que assim fez o primeiro movimento de revide ao veredicto das urnas. Na sequência, uma bem articulada ameaça de “cancelamento” via redes sociais recorreu a palavras chave do dicionário político das eleições de 2016 e 2018 para emparedar o tribunal. Embora usando outro palavreado, não foi diferente a posição da mídia tradicional. Armou-se o raciocínio de que o STF prevaricaria se permitisse a continuidade do jogo político no Legislativo. Conforme esse raciocínio, “os políticos”, fatalmente, rasgariam a Constituição. Logo, caberia ao tribunal antecipar-se, mesmo na ausência de fato concreto, para pôr ordem na “bagunça”. Preconceito antipolítico travestido de prevenção, pois, se é verdade que havia sinais de que um ator importante, o presidente do Senado, movia-se em direção a uma transgressão, sinais opostos partiam de articulações do Presidente da Câmara. E, para além disso, o processo envolvia um conjunto de partidos e lideranças que, por dever de oficio e instinto de sobrevivência política, tenderiam a ser afetados pelo espirito das urnas. Tinha horizonte, ao menos na Câmara, a articulação de uma ampla candidatura comprometida a conservar a independência da Casa frente ao Executivo e o padrão de decisões colegiadas que ali se verificaram nos últimos anos. E se, no caso no Senado, seu presidente passasse da intenção ao gesto para viabilizar sua reeleição, com aparente cobertura de um plano B do Governo aí, sim, o STF seria chamado a se pronunciar perante um fato concreto.
Para não raciocinar sobre hipóteses, o STF poderia ter simplesmente desconhecido a ADIN do PTB. Aliás, se não fosse o preconceito que ali também há contra a lógica do Parlamento, essa poderia ter sido a posição preliminar do presidente do tribunal. Feito relator, o ministro Gilmar Mendes também poderia, como Pilatos, ter ido nessa direção. Não o fez, mas também não foi na linha da interferência no jogo político. Ao contrário, apontou que era assunto do Legislativo, o que lhe rendeu críticas. Se houvesse lavado as mãos seria criticado do mesmo modo, por não ter interferido a tempo para impedir a "bandalheira". Por outro lado, o fechamento prévio da porta à estratégia de Rodrigo Maia (que acabou ocorrendo, contra o voto de Gilmar) pode ter aberto a porta da Câmara dos Deputados a Bolsonaro. O tamanho desse perigo só sabia quem tinha informação sobre a correlação de forças real. Deve ter sido o caso de Mendes, dotando seu voto de razões próprias de um cálculo político. Um pecado? Quem disso escapa, na posição em que ele está? Gilmar foi minimalista e propôs deixar à liderança do outro Poder a decisão sobre os custos políticos comparativos da derrota de um candidato de continuidade que não fosse o próprio Maia e os das implicações de marcar um gol em impedimento. Gol que no fim das contas não valeria, já que habemus STF. Logo, o voto minimalista foi condicional e não rasgou a Carta. Na contra mão de um senso comum que acha realista prejulgar políticos, penso que faria mais bem à saúde das instituições brasileiras se a maioria do STF tivesse seguido o voto de Gilmar Mendes e dado a Rodrigo Maia o benefício da dúvida, mantendo a condicional.
Por que não o fez? Difícil aceitar a hipótese de que tenha sido por razões doutrinárias. Como observou um aluno perspicaz, é curioso que a letra da Carta tenha sido defendida pelos partidários do “direito criativo” e o “jeitinho”, proposto pelos garantistas. Do paradoxo só escapou o ministro Marco Aurélio. Afora ele, parece que gregos e troianos votaram com a lógica da política. O voto de Gilmar tem afinidades eletivas com a política dos políticos. Já a posição da maioria expressa quanto o impacto da ética faxineira da Lava Jato ainda afeta a conduta de parte da cúpula do Judiciário. Alguém me dirá que depois da desmoralização de Moro, essa hipótese é enxergar vida no velhinho que morreu ontem.
Sergio Moro e sua turma entraram em decomposição. O lavajatismo, penso que não. É força latente, atuante na subjetividade de larga faixa da sociedade, mesmo que momentaneamente esteja na penumbra, pela prioridade objetiva da pandemia sobre a corrupção. Vejo-o como um sentimento público em busca de novo intérprete após o fracasso político de Moro. João Dória é um óbvio candidato a esse legado, daí sua dificuldade e sua indisponibilidade para interagir com tudo que cheire a esquerda. Mas Bolsonaro não renunciará ao mesmo legado, daí a guerra sem quartel entre ambos. Bolsonaro, ou a política palaciana, já trabalha para reconectar o legado lavajatista ao seu eclético repertório eleitoral, usando o aparato da segurança pública, sua influência em áreas do MP e as brechas que vai abrindo no Judiciário, prisma sob o qual se deve analisar, a meu ver, a coalizão de veto que aconteceu no STF no julgamento da ADIN do PTB.
Efeitos politicamente regressivos da judicialização
Salta aos olhos que uma frente ampla contra a bolsonarização da Câmara até a npte de ontem ainda não pudera passar de palavra a ato. O jogo político exige harmonização de discursos e de interesses complexos. É preciso gerenciar compromissos político-partidários, distribuir recursos e espaços políticos entre os aliados, no Congresso e fora dele e sintonizar as alianças nesse episódio particular com as que têm 2022 no horizonte e com as ainda mais gerais e permanentes, que importam na defesa das instituições. O encurtamento do prazo para fazer tudo isso teve graves implicações. Admito não ter tido, prospectivamente, no momento em que o STF julgava, a clareza que penso ter disso hoje, após o leite derramado. O candidato fisiológico passou a operar na Câmara com desembaraço bem maior. E mesmo que não seja bem sucedido, que perca a eleição ou mesmo desista dela, a solução alternativa vencedora deverá estar mais distante de ter um perfil político contraposto ao dele. Bolsonaro pode não ganhar a Câmara do jeito que quer, nem controlar o Senado. Mas tampouco será fácil isolá-lo, a não ser que ele deseje.
Por outro lado, foi um teste e tanto para a possibilidade de uma frente política futura que tenha no DEM um eixo de articulação. As tensões no partido acentuaram-se na razão direta da redução do espaço de manobra de Rodrigo Maia. A costura nos bastidores do nome da ministra Teresa Cristina para a cadeira que hoje ele ocupa é um recado claro de que o partido já age para enquadrar o seu personagem até aqui mais destacado. E não é realista esperar que partidos aliados ajudem a dissipar essas tensões. O MDB enxerga a possibilidade de retomar o controle do Congresso. Tucanos, sempre no limiar do discurso hegemônico, têm essa tendência reforçada pelo comando de João Dória. Quanto à esquerda, notou-se, após o julgamento do STF, movimentos erráticos que vão desde alimentar candidatura própria a negociar no varejo turvo de Artur Lira. O gesto político de ontem sinaliza a reversão do segundo tipo de movimento, mas a ideia de candidatura de esquerda à presidência da Câmara não se afastou da boca da presidente nacional do PT.
Existe a possibilidade do passo agregador dessa sexta-feira reverter um perigo que se insinuava no centro político da Câmara dos Deputados e em suas conexões à esquerda, aquele pathos centrífugo que acometeu, a partir de 2017, a coalizão que sustentara o impeachment de Dilma Rousseff e levara Michel Temer à Presidência. A centrifugação da amplíssima articulação do presidente começou quando Rodrigo Janot produziu um artefato midiático com o caso Joesley Batista. A centrifugação do arco de Rodrigo Maia tornou-se possível desde que o STF, também diante de um artefato de apelo midiático, aceitou fazer da sucessão das mesas do Congresso um parto prematuro.
Tirado de tempo, Maia tentou a autoconvocação do Congresso, que suspenderia o recesso parlamentar para não deixar o governo agir solto no breu das tocas. A PEC emergencial não foi pauta capaz de fazer os partidos de centro se moverem e fez a esquerda roer a corda com receio das reformas. Pela enésima vez não confiou no caminho da negociação política, preferindo a comodidade do status quo. O relator governista da PEC não apresentou, é claro, seu relatório e assim sepultou a ideia da convocação extraordinária, cuja serventia iria além da PEC e se estenderia a dois problemas cruciais para o País, no momento, para cuja solução se requer unidade e moderação, logo, vigilância do Congresso. Além das sucessões no próprio Congresso, o da vacinação, interesse público número um, de que tratarei na próxima semana pois não se pode tratá-lo a não ser como foco central.
Com tempo ruim todo mundo também dá bom dia
Em meio a tantos percalços e com o Congresso fechado em janeiro, o campo estará, em tese, livre para o governo operar nas sombras e tentar impor seus candidatos. Mas quem der como certo que o Parlamento foi neutralizado e que aceitará ser humilhado pela leviandade contumaz do Presidente da República pode ter surpresas. Situação oposta ficou patente, também nessa sexta-feira, 18, na tribuna da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa reagiu de modo contundente a uma acusação de Bolsonaro ao Legislativo, qualificando-a de mentirosa e tendo sua narrativa dos fatos, pela qual restabeleceu a verdade, confirmada pelo próprio líder do governo. Fora do plenário, no manifesto que anunciou a ampliação do “Centro Democrático” lê-se que “Os radicalismos se retroalimentam e são fundamentais para explicar a nossa união. Enquanto alguns buscam corroer nossas instituições, nós aqui lutamos para valorizá-las”.
Esses sinais de contraponto à ingerência espúria de outro Poder nas decisões do Legislativo animam, mas não devem iludir quanto a dificuldades de um processo em que a assimetria de recursos de cooptação e de chantagem joga contra a autonomia da instituição e cujo desfecho se dará numa votação secreta. Mas um discurso político forte pela independência da Câmara tem apelo pragmático também. Deputados e senadores, de um modo geral, têm noção do poder de barganha que perdem se elegerem presidentes que se dobrem a um Executivo comandado por um candidato a ditador. Tendem a preferir alguém com moderação no trato com o governo, mas firmeza na defesa do Poder e que cumpra acordos internos. Esse foi o roteiro de construção da liderança de Rodrigo Maia.
Nomes assim não podem ser encontrados se o roteiro para tratar desse problema for o confronto personalizado com Bolsonaro. A resiliência de sua popularidade seduz os mais pragmáticos, porém, seu efeito mais corrosivo é irritar os adversários impacientes, fomentando a dispersão e jogadas para a plateia. Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de maldade que o presidente encarna. Provam-no os sucessivos momentos em que foi desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos. Foi assim no segundo turno de 2018, com o “elle Não!” puxado por um lulo-petismo ferido; foi assim em maio desse ano, quando o mito começou a ressurgir, ainda antes do auxilio emergencial, logo após Sergio Moro supor que o foguetório de artificio de seu rompimento seria um tiro de misericórdia sobre um presidente até então isolado por se opor à política pública do moderado ministro Mandetta; está sendo assim agora quando, uma semana depois de fortes embates com o governador de São Paulo em torno da vacina, pesquisa Datafolha informa que Bolsonaro é bem avaliado por 37% dos entrevistados e que para 52% ele não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pela covid no Brasil.
Na esteira dessas lições o discurso político firme e unitário precisará, nesses pouco mais de trinta dias, ser combinado com a abertura de novas frentes de entendimento com áreas próximas à candidatura de Lira na Câmara e com a bancada governista no Senado. Preparar-se para vencer um embate em condições adversas é um empreendimento em que, afinal, um acordo pode também se tornar razoável. E ele também é possível, se o adversário tiver igualmente juízo atento ao preço pago por Dilma Rousseff por imaginar que poderia politizar plebiscitariamente uma eleição no interior do Legislativo.
Num cenário como esse, estará em posição privilegiada quem, a essa altura, ainda puder intermediar, com êxito, uma negociação do centro democrático do Congresso com as bases parlamentares governistas nas duas casas, em torno de possíveis nomes de consenso. A posição discreta que o ex-presidente Temer ocupa na geografia política do país faz dele alguém que poderia obter um “nada a opor” do governo a tal entendimento sem, necessariamente, precisar de um “tá ok” de Bolsonaro. Até porque não se pode escrever o que o ex-capitão diz. As chances de êxito dessa interlocução provem dela poder se dar, simultaneamente, com o centro e o centrão e favorecer um entendimento autônomo, no Legislativo, para manter teso, numa conjuntura social e sanitária crítica, o arco da promessa de governabilidade com preservação da democracia que exerceu em 2019-2020.
Na falta de um horizonte límpido, a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento articulado da pandemia no Brasil; de cooperações entre governos estaduais e municipais adversários; do auxílio emergencial, do auxílio aos Estados, da votação do Fundeb. Nesses momentos Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental. Sei que o que estou dizendo não responde a certas urgências e convicções, mas o que responde?
Peço, a quem o desfecho dessa coluna decepcionar, que me conceda o benefício de esperar a da próxima semana. Talvez tratando de outro tema crucial, eu possa argumentar melhor pelo bem público que faria um grande acordo político que evitasse a disputa dilacerante que se anuncia pelo controle das mesas diretoras do Congresso. Daqui a 30 dias o país agradeceria se sobre ambas reinasse, soberano, em vez da sucessão, o tema da vacinação. Sem prejuízo de que a frente democrática que se desenhou hoje na Câmara tenha longa vida e ganhe muita força no parlamento e na sociedade. Aliás, um acordo nacional para vencer a crise com aval do Legislativo é uma promessa que depende da solidez do arco.
* Cientista político e professor da UFBa.
Rosângela Bittar: Depois da meia-noite
Rumo à reeleição, afloram os piores instintos políticos. A busca por adesões excita os currais
Para quem não está entendendo o sucesso da plataforma eleitoral antipovo do candidato Arthur Lira à presidência da Câmara, inclusive com o embarque da esquerda na caravana bolsonarista, aqui vai uma explicação. O deputado alagoano e suas costas quentes exploram muito bem, pois a conhecem profundamente, a oportunidade que o calendário oferece.
O tempo do Congresso se divide em dois. No primeiro, os dois anos iniciais do mandato, procuram-se realizar os avanços e as reformas. No segundo biênio, o bom senso dá lugar ao vale-tudo da renovação dos mandatos. Quando coincide com a campanha da reeleição também do presidente da República, a confluência de interesses chega ao paroxismo. É o que está se vendo neste momento.
Deputados e senadores só pensam em poder, emendas e cargos que os ajudem eleitoralmente. No Senado, os prazos são outros, pois o mandato é de oito anos, mas a essência é a mesma.
O ex-deputado e ex-ministro Roberto Brant, com sabedoria mineira, costumava comparar o que ali se passava com as diferentes etapas de uma festa: até a metade, os convidados mantêm a compostura e a elegância, conservam o glamour das novas ideias que trouxeram de casa. Mas, ao bater a meia-noite, tendem ao desespero. Jogam para o ar o que tinham de melhor e partem para o uso e o abuso.
Rumo à reeleição, afloram os piores instintos políticos. A busca por adesões excita os currais. Principalmente se quem vai exercer o poder o faz em nome do presidente da República.
Avanços políticos, alguns verdadeiramente civilizatórios, como foi a extinção do imposto sindical, voltam à mesa de negociação com cínica naturalidade. Celebrado no passado como novo sindicalismo, tal como Jair Bolsonaro foi celebrado como nova política, o malfadado imposto foi reprovado com amplo apoio popular. Para os que dele viviam, os chamados pelegos, a extinção teria sido a razão do enfraquecimento dos sindicatos. Raciocínio que é uma impostura. Sem ele, os sindicatos ganharam autenticidade. Ao associar-se ao projeto, a esquerda atinge o trabalhador em uma de suas mais difíceis conquistas.
Na cabala de votos, sobretudo do PT, o candidato bolsonarista se solidariza também com o período do uso da Petrobrás na montagem de um extenso esquema de corrupção. Acena com a facilitação da volta da candidatura Lula por intermédio da desmoralização da Operação Lava Jato, já abalada por certos equívocos dos principais condutores das investigações. Momento em que os extremos se encontram. Todos deliram na mesma farra eleitoral embora saibam que, Lula, candidato, nunca mais.
Incluiu-se na barganha temática um tranco na Lei da Ficha Limpa, outro avanço com apoio popular prestes a ser perdido. O candidato bolsonarista promete atenuar a lei, quem sabe, abrindo uma janela de fuga. As lacunas são conhecidas, entre elas uma das piores é o poder de juízes locais de fustigar os inimigos políticos com um peteleco jurídico, mas não é nesta circunstância que a discussão será justa e eficiente.
De posse da chave do cofre do governo nesta campanha, o candidato bolsonarista à presidência da Câmara promete reabastecê-lo de recursos, com a aprovação da também defenestrada CPMF. Uma regressão em proporções nunca vistas, camuflada pela infamante versão de que o único obstáculo ao absurdo imposto sobre transações era um capricho do atual presidente da Câmara. O fantasma da meia-noite da virada do mandato vestiu, com isso, sua máscara. A Câmara inteira era aliada da sociedade, contra o imposto. Não se sabe como será agora.
Se ficar a serviço deste projeto de poder, o Congresso deixa de ser proteção para ser ameaça. Pode-se prever o quadro de desequilíbrio que vem por aí. A economia, mal; a recuperação, incerta; o desemprego, subindo; o isolamento internacional, absoluto; o Congresso, servil. Para a sociedade, perplexa, nega-se até a vacina contra a morte.
RPD || José Álvaro Moisés: 'O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum'
As eleições municipais de 2020 passaram o recado que vai na direção oposta da polarização ocorrida em 2018, que permitiu a eleição de Bolsonaro: Guinada ao Centro e criação de frente democrática progressista como itens necessários para vencer o Bolsonarismo em 2022
Por Caetano Araújo e Vinicius Müller
O professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, José Álvaro Moisés, avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do País, e possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.
Entrevistado especial desta 26a edição da Revista Política Democrática Online, o cientista político é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil. Publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995) ,"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.
Para José Álvaro Moisés, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do cientista político José Álvaro Moisés à Revista Política Democrática Online:
Revista Política Democrática (RPD): Os resultados das eleições municipais apontam para uma transferência da liderança e das bandeiras carregadas historicamente por Lula e pelo PT aos candidatos de uma 'nova esquerda', como Boulos e Manuela D´Ávila?
José Álvaro Moisés (JAM): Muito obrigado pela questão que aborda um tema de grande importância. Certamente, é uma perspectiva que se abre para os próximos anos e, nesse sentido, entender esse processo é muito importante para nos. Não tenho certeza se a liderança do Boulos tem solidez suficiente para substituir o que foi a do Lula. Isso se deveria, se ocorresse, ao envolvimento do PT e do próprio Lula com corrupção, ainda que saibamos pouco sobre como foi isso? Quando foi? Quais as provas, etc. Penso que parte do eleitorado brasileiro já deu uma resposta a essa questão. Por isso, emergiram Boulos e algumas outras lideranças jovens de esquerda, com algum conteúdo novo. Mas não acho ainda inteiramente claro qual é o rumo que vão tomar.
A pergunta projeta para o futuro uma possibilidade que não sei se já temos suficientes elementos para responder com clareza. Será que é sólido? Penso que essa possibilidade está vinculada ao fato de que eleitores jovens e uma parte da classe média tem, digamos assim, uma atitude de rejeição em relação às políticas do PT, ao seu hegemonismo, à questão da corrupção e a todas as questões que ficaram sem resposta em tempos recentes, e que podem ter encontrado na liderança de Boulos em São Paulo, Manuela D'Ávila em Porto Alegre e, no caso de Recife, em nomes como de João Campos e da Marília Arraes, uma possibilidade alternativa em relação a esquerda representada pelo PT.
RPD: Após a polarização que se consolidou no país a partir de 2013, parece haver um reajuste do processo eleitoral e político que mostra certo esgotamento desta polarização, algo como um refluxo. Haveria, assim, uma crise dupla, tanto do bolsonarismo quanto da 'esquerda'?
JAM: Primeiro, acho sim que o bolsonarismo entrou em crise. O eleitor passou um recado que vai na direção oposta à polarização de 2018. Não quero entrar no mérito do impeachment da Dilma, mas creio que a polarização começou ali e que, de alguma maneira, se consolidou no resultado de 2018 com a ideia de que o Bolsonaro ocuparia um vazio que tinha sido deixado não só pela esquerda, mas também por todos os líderes democráticos. Vejo, assim, a adesão à candidatura de Boulos e à dos outros jovens líderes de esquerda que mencionei mais como resposta à ansiedade e ao espaço que uma parte da classe média e segmentos esclarecidos abriram em relação ao que aconteceu com o PT. Contudo, o processo eleitoral de 2020 não fez um debate sobre a natureza dessa nova esquerda; muitos aderiram a ela porque foi uma alternativa que pareceu se contrapor ao que está aí, ao bolsonarismo.
À luz dessas considerações, não consigo responder com segurança à pergunta. Quer dizer, não vejo com clareza o que esta nova esquerda vai projetar, ou mesmo até onde é possível falar de uma nova esquerda. Creio, no entanto, que ela não vai encarnar o contraponto que permitiria que o bolsonarismo se reconstituísse. Acho que o bolsonarismo entrou em crise porque não tem conteúdo, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, da tortura e de expressão de uma mentalidade autoritária, de uma visão radicalizada em relação à questão da segurança e tudo o mais que sabemos.
RPD: Neste novo arranjo, mais ao centro e produzido por um certo refluxo, quais seriam os principais temas e atores políticos que se destacam?
JAM: O bolsonarismo refluiu da posição de extrema direita para o centro porque teve muitas derrotas no Congresso e por causa da crescente rejeição de parte dos eleitores. Está tentando migrar para um centro-direita para se salvar.
Quanto as forças democráticas, também fomos, em certo sentido, mais para o centro. Os resultados da eleição apontaram nessa direção pelo lado das forças democráticas e progressistas. Agora, no caso do bolsonarismo - que está tentando ir para o centro - o problema consiste em saber onde ele vai encontrar um possível ponto de solidez ou de consolidação no conjunto dos partidos. A candidatura mais clara quanto a isso, como sabemos, são os partidos do Centrão, especialmente o Progressistas, o Republicanos e talvez o PSD.
Mas o grande risco que vejo nesse quadro é o de o setor democrático e progressista, incluindo a esquerda democrática, não perceber inteiramente a natureza desse jogo. Não podemos cometer o equívoco de eventualmente deixar que o DEM seja atraído para o lado de Bolsonaro, o DEM e algumas outras forças, como o PSD de Gilberto Kassab - um caso mais difícil -, mas no caso do DEM, a possibilidade de se reposicionar em torno do bolsonarismo seria péssimo para o objetivo de levar o governo a uma derrota em 2022.
Assim, não tenho dúvidas quanto ao refluxo do bolsonarismo na direção de um centro-direita. E, por isso, agir para trazer os liberais para o diálogo com o campo da perspectiva progressista é parte do objetivo de derrotar o bolsonarismo, um desafio seríssimo para os democratas.
Nesse sentido, temo que a nova esquerda não seja capaz de perceber a natureza desse desafio e tente, a reboque de uma alegada solidez ao se supor capaz de substituir a figura de Lula, constituir uma alternativa para disputar diretamente com Bolsonaro, o que não acredito que teria sucesso. Creio que a média do eleitor brasileiro não aceitaria uma solução desse tipo.
O ideal seria sermos capazes de compor uma frente democrática de setores liberais - a centro-direita liberal - com a centro-esquerda e, assim, construir uma solida alternativa capaz de enfrentar o bolsonarismo com sucesso. O bolsonarismo buscará sua solidez em torno do Centrão, vale dizer, do PP, Republicanos e talvez o PSD, mas seria bom que não fosse ajudado a ir além disso.
RPD: Qual espaço para partidos tradicionalmente do centro, principalmente da centro-esquerda - como o PSDB - neste novo centro político que parece se consolidar a partir de uma inclinação mais à centro-direita?
JAM: Acho que o papel do PSDB é exatamente o de construir essa alternativa. Quer dizer, alguém na centro-esquerda, que esteja fora da centro-direita, tem, de alguma maneira, de fazer isso, levantar a bandeira de que é importante trazer o DEM para esse campo. Aliás, como disse o Rodrigo Maia, o centro não é um ponto único, o centro são vários pontos, e se nós quisermos trabalhar esse campo teremos de buscar o que você chamou de um equilíbrio capaz de unificar esses pontos do centro. Esse é o grande desafio que está posto tanto para uma parte da esquerda democrática, como para o PSDB. O papel da esquerda progressista, nesse sentido, é levantar o tema da frente para enfrentar Bolsonaro, insistir no tema e chamar para o diálogo as outras forças, e mostrar o quanto isso é fundamental para vencermos o bolsonarismo. A meu ver, esse é o caminho que nós deveríamos propugnar para que a esquerda democrática e progressista desempenhe sua missão nessa conjuntura.
RPD: A construção de uma ampla frente democrática contra Bolsonaro continua na ordem do dia para as forças de oposição?
JAM: Minha premissa é que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria. Isso é uma presunção em relação a um governo que, em realidade, não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment. Mas se desmilinguir por conta própria seria como se eles abrissem mão de governar. Isso não vai acontecer. E é por isso que o projeto da frente democrática tem de ser mantido.
Algo que me surpreendeu nas eleições municipais deste ano foi o recado passado pelos eleitores. Rejeitaram as polarizações extremas e as perspectivas que preconizavam raciocinarmos politicamente com dois extremos. Além disso, também chamaram a atenção para a existência de um espaço de diálogo alternativo situado no centro. Deste ponto de vista, recolocaram o tema da frente na ordem do dia, como o revelam, de um lado, a sinalização de Ciro Gomes em relação ao DEM e, de outro, as conversações de Luciano Huck com algumas lideranças, inclusive com Sergio Moro. Um dos desafios dessas iniciativas é não qualificá-las de partida como sendo de esquerda ou de seu contrário, ainda que em política muito dependa da identidade dos atores que conduzirão as bandeiras.
Afora isso, a frente não poderá ser estritamente eleitoral. Terá de ser suficientemente abrangente para estabelecer as pontes que permitam construir uma alternativa de sentido positivo em torno de temas que os eleitores priorizam. Um deles é o enfrentamento da corrupção, o compromisso dos partidos com o seu combate. Outro é o enfrentamento das desigualdades, ou seja, quais desigualdades e como enfrenta-las? Será preciso buscar a maneira de mobilizar e interpelar o eleitor nessa direção. Desse ponto de vista, quem pode desempenhar esse papel são as forças democráticas progressistas. Esse é o desafio que teremos de enfrentar, e é preciso ter clareza de que esse é o problema fundamental da constituição da tão mencionada frente democrática.
RPD: Qual o papel do PSDB como operador da frente democrática, considerando seu movimento recente em direção à direita do espectro político?
JAM: Penso que a coalisão que se formou em torno da candidatura do Bruno Covas indica um caminho e teve sucesso porque apontou na direção de uma aliança possível, em face de um esforço de alguns dos partidos de se reformularem, não tanto no sentido de uma recuperação de suas práticas tradicionais, mas no sentido de uma reacomodação em relação ao sentimento critico dos eleitores, ainda que um ponto débil do processo tenha sido a escolha do vice. Mas Bruno fez uma campanha clara e a coalisão o projetou como uma nova liderança no PSDB.
Contudo, para se entender o papel que esse partido pode jogar em um plano mais amplo temos de pensar que há um problema aí. Qual é o problema? É que, por uma parte, o PSDB está sob algum efeito de hegemonia do governador João Dória, que não se caracteriza propriamente como uma opção progressista, está mais no campo de uma direita um pouco mais civilizada que Bolsonaro, mas que não tem preocupação, por exemplo, de manter a identidade social democrata do PSDB. Ao passo que, de seu lado, Bruno fez questão, na campanha, não só de fazer referência a lideranças históricas do PSDB, mas também a atores que precisamente representam esse conteúdo social-democrático. Não sabemos se isso levara a algum conflito, e tampouco se prosperarao as iniciativas de diálogo com o DEM com vistas a formação de uma frente democrática de conteúdo progressista. Nem mesmo sabemos, enfim, se o PSDB vai organizar-se para enfrentar Bolsonaro. Ainda é cedo para termos uma resposta em um sentido ou outro. Mas o importante é que as possibilidades estão abertas, quer dizer, inclusive a possibilidade de se constituir uma alternativa que vá na direção de uma aliança do PSDB com o DEM, incluindo, quem sabe, o MDB, como se fez no passado. A pergunta, portanto, é se em 2022 vai-se repetir o cenário de 2018, com candidaturas isoladas, ou se vai -se trabalhar na perspectiva de uma nova coalisão. Mas ainda não temos elementos suficientes para responder com segurança essas questões.
RPD: Até que ponto é possível supor que o debate ancorado em temas haverá de se sobrepor à tradicional “fulanização” das disputas eleitorais?
JAM: Eu não sei se estamos, digamos assim, colocando mais ênfase nos temas fundamentais e menos nos personagens, ou na chamada “fulanização”. Não sei se temos suficiente material para dar uma resposta certa sobre isso. Acho que ambos aspectos estão se misturando nesse momento. O grande tema segue sendo o da formação da frente capaz de derrotar Bolsonaro. Nesse sentido, a temática da fulanização indaga, de alguma maneira, se temos um fulano - ou um nome ou alguns nomes - que unifique as forças democráticas, mas não vejo isso colocado. Desse ponto de vista, um dos desafios mais importantes que teremos será selecionar e definir quem poderá oferecer a alternativa capaz de construir a frente democrática com as características que precisamos que ela tenha, ou seja, de enfrentamento de Bolsonaro e seu conteúdo e, ao mesmo tempo, de enfrentamento da questão central dos progressistas, relativa a questão das desigualdades abismais que caracterizam a sociedade brasileira.
No momento, ainda não temos os nomes que se encaixam nesse projeto. O que indica, portanto, que parte do nosso desafio, além de construir a frente, além de enfrentar os divisionismos tradicionais de nossas forças e as tentativas de hegemonismo, implica em definir os critérios necessários para permitir indicar quem será capaz de mobilizar a sociedade e oferecer suficiente credibilidade para que os eleitores digam: "Nesse contexto, com essa experiência, com as características da coalisão formada, podemos depositar confiança nessa pessoa". Mas nenhum movimento político cria uma liderança em um curto espaço de tempo. Em certo sentido, esse processo terá de se dar com as lideranças que estão se apresentando nessa fase em torno dos nossos desafios, mas ainda não está claro quem construirá o consenso necessário para conduzir a empreitada de enfrentar o bolsonarismo. É tarefa das forças democráticas encontrar essa pessoa.
RPD || Editorial: Horizonte sombrio
Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional. Colheu os frutos do programa de transferência de renda decidido no âmbito do Congresso Nacional, na forma de elevação do percentual de aprovação junto aos eleitores. Finalmente, operou com sucesso a mudança radical de uma estratégia de confronto das instituições, que teria o golpe como único corolário possível, para o funcionamento novo, na forma de “governo parlamentar”, com apoio dos partidos classificads como “centrão”.
Ao fim do ano, contudo, dois contratempos relevantes para os projetos governamentais emergiram. Em primeiro lugar, a derrota de Trump nas eleições americanas, retirando de cena o único contraponto possível aos retrocessos procurados deliberadamente nas relações com a China e a União Europeia. Em segundo lugar, a derrota contundente da grande maioria dos candidatos que obtiveram o apoio presidencial explícito nas eleições municipais de novembro. Aparentemente, em muitos casos o apoio declarado do Presidente teria funcionado como “beijo da morte”, afundando candidaturas até promissoras até aquele momento.
Ambos os revezes acontecem às vésperas da passagem para um ano que promete elevar os problemas do país e do governo a outro patamar. No que respeita ao enfrentamento da pandemia, tudo indica que a incapacidade do governo federal para obter vacinas em quantidade suficiente e planejar sua aplicação ordenada no conjunto da população será desvelada. A situação que se avizinha é a de comparação cotidiana, completamente desfavorável para nós, com países que conseguirão vacinar a tempo sua população.
Na perspectiva econômica, por sua vez, a situação inspira cuidados. O fracasso em conter a pandemia impede uma retomada consistente. Por outro lado, não é viável manter o auxílio no montante atual e a comparação nesse caso acontecerá entre o cidadão de 2020 que recebia um tanto e o de 2021, que passará a receber uma fração desse montante.
Comparações desfavoráveis geralmente são fonte de insatisfação, com potencial para evoluir para rejeição e fúria no plano da política. Num quadro com essas características, índices de popularidade são os primeiros a desaparecer e, na sua ausência, o debate sobre o abreviamento do mandato presidencial pode tomar assento na agenda da política. À luz da experiência recente, esse é o cenário mais provável, num cenário de aprofundamento das diversas crises. No entanto, na perspectiva da experiência mais antiga, que anima setores relevantes do governo, a situação de tempestade poderia, paradoxalmente, reunificar os defensores da ordem a qualquer custo em torno do fortalecimento político do Presidente da República.
RPD || Raul Jungmann: Militares e elites civis - Liderança e responsabilidade
O país convive hoje com um distanciamento entre o poder político, elites civis e as Forças Armadas, avalia Raul Jungmann. Enquanto o poder político se aliena das suas responsabilidades quanto à defesa da nação, os militares, por sua vez, passam a assumir a tutela da existência da nação, inclusive, sem uma liderança civil
Aos 18 dias de novembro de 2016, o Presidente da República, Michel Temer, enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacionais de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, que nós, à época, tínhamos coordenado na qualidade de Ministro da Defesa que éramos. Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o Presidente do Senado e do Congresso, Senador Eunício Oliveira, enviou à Presidência da República os textos, para sanção. Considerando que seu governo estava praticamente findo, o Presidente Temer deixou para seu sucessor a assinatura presidencial que sancionaria os referidos textos.
O Presidente Jair Messias Bolsonaro, entretanto, entendeu que a Política, Estratégia e o Livro Branco eram projetos do governo anterior (e não de Estado, o que eles verdadeiramente são), e não os sancionou. Resultado, até hoje vigem os textos de 2012, até que os projetos em tramitação, referentes ao quadriênio de 2020 a 2024, sejam aprovados. Nós fomos o relator do que hoje é a Lei Complementar 136, que no seu bojo trazia uma novidade histórica. Pela primeira vez, o Congresso Nacional passaria a apreciar e, portanto, a ter o controle das diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta da nossa Constituição Federal. Ao negociar as emendas à proposta original com o Ministro Nélson Jobim, imaginávamos o potencial que teria a análise das mais elevadas decisões quanto a nossa defesa e segurança por parte do parlamento e o diálogo histórico que se travaria entre o poder político e os militares, num claro avanço democrático. Em vão.
Ao longo de dois anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública. Seu parecer, emitido pela Comissão Mista de Inteligência, e não pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas do Congresso, era, claramente, uma colagem das propostas, sem críticas ou aprimoramentos dignos de nota. Já sua votação, nas duas casas, foi simbólica e não nominal, sem debates ou pronunciamento dos líderes. O “histórico diálogo” e o consequente “avanço democrático” fracassaram melancolicamente...Por quê? São três os motivos principais.
As elites civis e o poder político do pais não vislumbram quaisquer ameaças no horizonte a nos desafiar. E, vale lembrar, o nosso último conflito interestatal data de 150 atrás, a Guerra do Paraguai, se descontarmos nossa participação nas I e II guerras mundiais. Secundariamente, defesa e as FFAA não dão retorno político-eleitoral, sendo que as Forças, instituições de Estado, são impessoais, e seu efetivo é infenso a indicações políticas. Por fim, as intervenções militares ao longo da nossa história, sendo a última em 1964, e o fato que parte dos quadros dirigentes da política fizeram oposição ao regime militar, não estimulam pontes e diálogos. Em consequência, hoje existe um distanciamento entre poder político, elites civis e FFAA, que nos leva a uma dupla disfunção.
De um lado, o poder político se aliena das suas responsabilidades quanto à defesa da nação, não a levando a sério. De outro, os militares, cuja “raison d’être” é justamente a defesa nacional, diante do alheamento do poder político sobre a nossa soberania, integridade e independência, passam a assumir a tutela da existência da nação. A segunda das consequências é que a defesa e as FFAA necessitam da liderança civil por bons motivos. Um, que cabe privativamente aos representantes políticos da nação, definir qual defesa necessitamos, seu rumo, estrutura e organização, em face de nossos objetivos nacionais e projeto de desenvolvimento. A segunda é que, sem que líderes civis em diálogo com os militares proponham mudanças, as FFAA, como toda grande corporação, tende a manutenção do status quo. Exemplo disso é o Ministério da Defesa. Sua elaboração levou 5 anos para se concluir, sendo iniciada no primeiro e concluída no segundo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
À época, havia forte resistência no meio militar a sua criação. Dentre outros motivos, porque os quatro ministérios militares existente passariam a se tornar comandos militares das Forças, sob a direção superior de um único ministro, que seria um civil. A criação do Ministério da Defesa é uma exigência da guerra moderna, onde as forças singulares devem estar sob um comando único e superior a elas, como também em razão da complexidade, logística e dimensões adquiridas pelos conflitos bélicos, sobretudo após as duas guerras mundiais. Tanto é fato que a maioria dos países desenvolvidos instituíram ministérios da defesa há décadas, inclusive os sul-americanos, a exemplo da Argentina e Chile.
Cabe notar o que afirmamos: não fora a persistente liderança do poder político, a criação do Ministério da Defesa, uma necessidade militar, ressalve-se, não teria se tornado realidade.
Cabe recordar um outro exemplo. Declarada nossa independência em 1822, as elites Imperiais viram-se a braços com questões estratégicas para a constituição e o futuro do Estado nacional. Elas eram: a manutenção da unidade e integridade do território, a definição das fronteiras e o impedimento que Argentina, Bolívia e Paraguai viessem a formar um polo de poder ao sul, que nos contrastasse e fizesse sombra. Em todas essas complexas tarefas, a elite imperial saiu-se a contento e, em todas elas, fez uso das nossas FFAA. Isto porque, além de ter um projeto de país a construir, elas tinham clareza quanto ao papel e orientação dar as Forças Armadas – algo que nossas elites atuais não possuem.
Findo o regime militar, as Forças Armadas recolheram-se aos quarteis e, durante um quarto de século, viveram num vazio estratégico, sem que lhes fossem atribuídas competências e rumos na nossa renascente democracia e num projeto nacional de desenvolvimento, o que só começa a mudar em 2008 com a 1ª. Estratégia Nacional de Defesa. Já o vazio de interlocução e de diálogo persiste. Na academia, mídia, sociedade, empresariado e no Congresso, raros são os que conhecem o tema defesa, dele entendem e têm diálogo com as Forças e militares. Os partidos políticos lhes dedicam rarefeitas e precárias linhas “de ofício”, meramente declaratórias. Não possuem especialistas, tão pouco unidades de estudo e proposição de políticas públicas. Nas eleições e debates nacionais, a defesa e FFAA primam pela ausência. Democratas de vários matizes delas guardam distância, com também raríssimas exceções.
Dialogar e liderar as nossas Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil, é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana. Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente.
*Ex-Deputado Federal, Ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública.
Cristiano Romero: Quem fala pela maioria silenciosa?
É antiético alegar problema fiscal para suspender auxílio
Todos os grupos de interesse específico tem representantes em Brasília, dentro e fora do Congresso Nacional, alguns com mais e outros com menos força para fazer valer sua participação no orçamento público. É disso que se trata a disputa pelo poder na capital de qualquer República, sob a vigência do Estado democrático de Direito.
O que torna o Brasil um país particularmente injusto é que os pobres, a maioria silenciosa deste imenso território, não têm representação no centro do poder nem quem os defenda por dever de consciência. Isso pode parecer um exagero, mas não o é, afinal, quando olhamos mais de perto iniciativas de políticos e partidos que se jactam por defender os pobres em Brasília, contradições pululam.
Um exemplo: sindicatos de trabalhadores da região do ABC, onde se concentra no Estado de São Paulo a maioria das empresas do setor automotivo, se unem para pressionar o governo, todo ano, a conceder incentivo fiscal às multinacionais. Não se passa um ano, na Ilha de Vera Cruz, desde a década de 1950 sem que essas companhias, originárias das nações mais ricas dom planeta, recebam dinheiro público subsidiado para… permanecerem aqui, onde está o sexto maior mercado (atrás apenas de China, Estados Unidos, Japão, Índia e Alemanha) de automóveis _ este país é também o oitavo maior fabricante.
O último incentivo aprovado para as múltis de carros prevê a liberação de R$ 8 bilhões em dinheiro da Viúva em quatro anos. Provavelmente, esse montante é, em termos relativos, muito menor em relação ao que se dava no passado e deve ser uma mixaria face ao faturamento e ao lucro do setor no país, sejam quais forem esses valores _ sim, leitores, mesmo beneficiário de dinheiro público, as montadoras nunca divulgaram seus números ao povo que as subsidia.
É curioso que ninguém, o parlamento ou mesmo as instituições "democráticas" criadas pelo distinto público para representá-lo e defendê-lo. O dinheiro que essas multinacionais embolsam a título de incentivo não é nada para elas, mas é algo para Ilha de Vera Cruz, onde vivem 50 milhões de miseráveis e, pelo menos, mais cem milhões de pobres.
Ora, como alguém pode achar que a manutenção desse subsídio de alguma forma ajuda pobres e miseráveis deste imenso país? Conceder incentivos ao setor automotivo, a esta altura do jogo, apenas contribui para concentrar ainda mais a renda, tirar de pobres para dar a ricos. Pense duas vezes antes de elogiar o político que defende o "cluster" da indústria automotiva brasileira. Ademais, convenhamos, por que dar incentivo a um setor protegido, contra concorrentes estrangeiros, por barreiras tarifárias (impostos e outros tributos) e não tarifárias (por exemplo, proibição de importação de carros usados)?
Outro exemplo das contradições expostas por grupos políticos que dizem estar em Brasília com a única "missão" de defender os desvalidos vem dos partidos de esquerda, que, por definição, são os mais propensos à formular políticas de combate à pobreza e emancipação das classes menos favorecidas em regimes democráticos. Por aqui, partidos de esquerda estão sempre a postos para proteger privilégios _ e não direitos _ adquiridos pelo funcionalismo público e os servidores de estatais. Não adianta lutar por um salário mínimo mais digno, por mais e melhores escolas, por um atendimento saúde público universal e digno e, ao mesmo tempo, lutar pela manutenção de um Estado caro, ineficiente e injusto, portanto, incompatível com implantação do projeto de nação previsto na Carta Magna de 1988.
É a falta de representação em Brasília que faz com que, nos momentos de dificuldade fiscal, governantes, parlamentares e membros "ilustres" do Poder Judiciário proponham "soluções" que, ao fim e ao cabo, tirem dinheiro de quem já tem pouco (os pobres) e dos que não têm nada (os miseráveis). Por isso, falar de problema fiscal "grave" no momento em que, todos sabemos, milhões de brasileiros (estima-se como algo em torno de 23 milhões de pessoas e suas famílias) ficarão sem renda em meio à maior crise sanitária da história, é terrivelmente doloroso, inclusive, por sabermos que nenhum grupo de interesse específico terá seus direitos suprimidos em nome da emergência que o país e o mundo enfrentam.
Em janeiro, não haverá mais auxílio emergencial. O economista Manuel Pires, do Ibre-FGV, esmiuçou as possibilidades para que Brasília encontre uma solução em relação ao auxílio que não jogue o país numa crise severa em poucas semanas. As conclusões não são animadoras.
- A forma talvez mais direta seria passar uma PEC que determinasse que o novo programa, temporário ou permanente, estaria fora do teto de gastos, assim como já ocorre com itens como créditos extraordinários, Fundeb e a capitalização de estatais.
PECs têm muitas etapas de tramitação nas duas Casas, mas suponhamos que, com um hipotético consenso entre Executivo e Congresso, se tentasse fazer tudo em tempo recorde a ponto de 2021 começar já com algum substituto do auxílio.
Há obstáculos muito sérios nesse caminho. Já foram emitidos sinais do Tribunal de Contas da União de contrariedade em relação a excluir novas despesas do teto de gastos, por causa dos riscos fiscais. Adicionalmente, uma forma tão acintosa de driblar o teto de gastos, mesmo que bem recebida inicialmente pelo Congresso, provavelmente causaria grande estrago nos mercados, com possibilidade de disparada do dólar e queda acentuada das bolsas - o que costuma soar o alarme dos políticos e levar ao recuo.
- Uma segunda via para excluir um novo programa do teto seria prorrogar o estado de emergência e recriar o orçamento de guerra. Isso exigiria a tramitação de PEC, o que esbarra, como já notado, no pouco tempo de funcionamento do Congresso até o recesso.
Com a recriação do orçamento de guerra, seria possível não só criar um Renda Cidadã, mas também incorrer em qualquer despesa acima do teto, sem nenhuma amarra. Certamente seria medida também de grande impacto negativo nos mercados, a menos que uma segunda onda de Covid-19 muito forte a justificasse.
- Finalmente, existe a possibilidade de fazer um programa temporário ou estender o auxílio emergencial - possivelmente com redução de valores e público-alvo - por meio de crédito extraordinário, que não está submetido ao teto. das de lockdown etc. - pode ser caracterizada como algo impossível de prever.
Marcus Pestana: Acima de tudo a liberdade e a democracia
O grande legado do Século XX, com o desfecho da “Era dos Extremos” como descreveu Eric Hobsbawm, foi, a meu juízo, a vitória das ideias de liberdade e democracia como valores universais e permanentes. Ainda que sobrevivam regimes autoritários mundo afora, o ideal democrático permanece sólido como o grande horizonte utópico neste início de Século XXI. Mostra disso são a impressionante mobilização popular na Belarus, as reações às ações desestabilizadoras de Trump no processo eleitoral em curso nos EUA e a resistência ao crescimento do populismo autoritário de extrema-direita em diversos países do planeta.
Há, evidentemente, ameaças e tensões que colocam em xeque a democracia contemporânea. Nunca se discutiu tanto a crise da democracia representativa. Há desafios a exigirem respostas urgentes. Mas não há outro caminho a não ser a democracia, invenção humana com suas virtudes e pecados, e que impõe um diálogo profundo e sincero entre conservadores, liberais, socialdemocratas, socialistas democráticos que convergem em torno da defesa da liberdade e rechaçam qualquer alternativa que rompa o Estado de Direito. Em um mundo e um país mergulhados em radical polarização entre os extremos, que alimentam suas bolhas sectárias, privilegiando a promoção do dissenso e não a política como ferramenta de construção de consensos progressivos através do debate democrático, temos nós, os democratas, a obrigação histórica de criarmos canais de diálogo para o fortalecimento da democracia e das instituições republicanas.
Acabei de ler o ensaio CHAMADO DA TRIBO, de Mário Vargas Llosa, onde o autor, com sua habitual qualidade de texto, narra sua trajetória de conversão do socialismo ao liberalismo, motivada pelas decepções com o socialismo real e o encontro com o liberalismo através de autores como Adam Smith, Ortega y Gasset, Hayek, Karl Popper, Raymond Aron e Isaiah Berlin.
Mas o que chamou atenção na leitura foi o vasto campo de diálogo possível entre conservadores, liberais e progressistas e a convergência que pode ser construída na constituição de um polo democrático para resistir aos apelos e às ameaças dos projetos extremistas, autoritários e radicais.
Temas como liberdade política, de imprensa, de organização e expressão; direitos individuais e valores morais – onde os conservadores são resistentes; papel do Estado no mundo contemporâneo, limites fiscais à expansão do “Welfare State”, ação mais regulatória do que empresarial, parcerias com o setor privado e o terceiro setor; liberdade econômica; equalização de oportunidades com foco prioritário no setor educacional e programas de renda mínima; descentralização e desconcentração do poder; combate à corrupção e compromisso com o reformismo; formam uma bela agenda onde naturalmente não haverá convergência plena, mas que tem que ser enfrentada para a construção de um programa de ação das forças democráticas.
Há poucos meses assistimos perplexos manifestações em favor de um novo AI-5 e do fechamento do Congresso Nacional, com a reinstalação de um regime autoritário. Felizmente, os desdobramentos da realidade e a reação dos setores democráticos desmontaram este cenário de confrontação.
Cabe a todos que acreditamos na democracia sacudir a poeira de certa inércia que nos abraçou desde 2018 e construir uma nova visão de futuro para o país.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Merval Pereira: Cada qual no seu quadrado
O fato de o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ter defendido a necessidade de ser aprovada uma Proposta de Emenda à Constituição para organizar a participação de militares no Poder Executivo, em entrevista à revista Época, demonstra que essa ainda é uma questão não resolvida no nosso presidencialismo, pois foi exacerbada no governo Bolsonaro, que mais que dobrou a participação de militares, da ativa e da reserva, em funções gratificadas na máquina pública.
“Quem quiser vir no futuro para o governo, vai precisar, sem dúvida nenhuma, caminhar automaticamente para a reserva", afirmou. A questão é tão delicada que Rodrigo Maia considera mais prudente, como muitos militares exercem função de ministro, esperar “para não parecer que é contra o ministro A ou ministro B, ou assessor A ou assessor B”.
Para o presidente da Câmara, “não é bom para as Forças Armadas, não é bom para o Brasil” que essa situação persista. Poderíamos aproveitar a oportunidade e incluir nessa PEC dos militares também a necessidade de um parlamentar abrir mão de seu mandato se quiser fazer parte de outro Poder, no caso o Executivo. Da mesma forma que se exige de um membro do Poder Judiciário, como aconteceu com o então juiz Sérgio Moro, que teve que abandonar a carreira para ser ministro da Justiça de Bolsonaro.
Como já escrevi aqui, um congressista faz parte de um poder, o Legislativo, que não tem chefe. Um deputado, um senador, não é subordinado a nenhum chefe. Não pode ser demitido por chefe nenhum. Muito menos pode ser subordinado ao simples chefe de outro poder, o Executivo. A independência de poderes legítima impediria que um deputado ou senador americano seja ministro. Se quiser ser ministro, tem de renunciar ao seu mandato de legislador e virar auxiliar do presidente.
Nos EUA, em exemplo recente, a senadora Hillary Clinton teve de renunciar ao seu mandato para ser Secretária de Estado de Barack Obama. Norberto Bobbio, um dos maiores filósofos políticos do século XX, escreveu a “Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos Clássicos”, onde dá a sua definição sobre política. Para ele, falar em política leva ao conceito de poder, que é a capacidade de se obter os meios para fazer prevalecer suas ideias em uma sociedade. Os poderes políticos são legitimados, dependendo das circunstâncias, pela tradição, pelo despotismo ou pelo consenso, uma característica da democracia.
Na Grécia Antiga, Aristóteles, em “A Política”, tratava dela como inerente à atividade humana, pelo interesse pelas coisas das cidades (pólis). “Fazer política” não é, portanto, apenas uma prática partidária e eleitoral, mas refere-se às atividades do Estado, e como a sociedade se relaciona com ele.
Os militares não podem desejar serem vistos como suportes especiais de um presidente da República, nem devem exercer uma atividade civil como se fosse uma missão dada por seu Comandante em Chefe. O ministro interino da Saúde, General da ativa Eduardo Pazuello, já disse que cumpre ordens: “missão dada é missão cumprida”, repetiu certa vez o mantra militar que exalta a hierarquia e a obediência.
Na vida civil, esse critério não pode prevalecer, pois a relação política pressupõe a dialética. Soube-se recentemente que o General Pazuello não acatou os alertas do comitê de emergência da própria pasta sobre a necessidade de um distanciamento social firme para evitar mais mortes, e sobre o perigo da produção de cloroquina em massa, sob o risco de ficar com estoque parado – o que está acontecendo no momento – simplesmente porque Bolsonaro ordenou a fabricação, ou não concordava com a diretriz.
O corporativismo é tão grande que o presidente mandou o Exército fabricar milhões de comprimidos de cloroquina, e o comandante do Exército, general Edson Pujol, outro dia exaltou o medicamento e o papel do Laboratório do Exército, que produziu uma quantidade excessiva dele. Este é mais um problema grave, porque na Saúde a obediência tem que ser à ciência e às pesquisas.
Mas é impossível termos um médico no ministério porque, se for uma pessoa séria, não vai ficar no cargo. Só serve quem pensa como o presidente e chega-se a essa situação de ele conversar sem máscara com garis e mostrar uma embalagem de cloroquina para as emas do Alvorada.