Congresso Nacional
Carlos Pereira: Por que apenas sobreviver?
Uma coalizão reformista requer uma gerência profissional e não amadora
A decisão de montar uma coalizão com os partidos que fazem parte do Centrão e a vitória de seus candidatos, Arthur Lira (Progressistas-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), à presidência da Câmara e do Senado, trouxe para o presidente Jair Bolsonaro um desafio ainda maior pela frente: o de escolher como vai gerenciar sua coalizão.
Minhas pesquisas sobre gerência de coalizões indicam que quanto maior o número de partidos participando da coalizão, maior a heterogeneidade entre eles, menor a proporcionalidade na alocação de recursos, e maior a incongruência entre as preferências da coalizão e do Congresso, maiores serão os problemas de coordenação e os custos de governabilidade e menor o sucesso legislativo.
A coalizão construída por Bolsonaro é, até o momento, minoritária. O número de cadeiras ocupadas pelos dez partidos que fazem parte do Centrão totaliza apenas 204 das 513 existentes. Ou seja, nos termos atuais, é fundamentalmente uma coalizão “negativa”, com capacidade apenas de veto às iniciativas legislativas indesejáveis para o governo (impeachment, por exemplo). Não é uma coalizão proativa ou promotora de reformas.
Apesar de ser minoritária, a coalizão de Bolsonaro possui um número muito alto de partidos, o que dificulta a sua coordenação. Entretanto, ela é relativamente homogênea do ponto de vista ideológico, composta basicamente por partidos de centro-direita, o que diminui os custos de transação. Outro aspecto facilitador de governabilidade da coalizão do presidente é que seus partidos estão muito próximos da preferência mediana da Câmara dos Deputados, que é de direita.
Se a ambição de Bolsonaro fosse a aprovação de uma agenda ampla de reformas no Congresso, ele teria plenas condições de montar uma coalizão majoritária, convidando alguns dos partidos próximos da mediana da Câmara. Poderia, por exemplo, fazer uma oferta a potenciais partidos aliados como Podemos (13), Novo (8), Democratas (29) e PSL (55), ou mesmo a partidos supostamente neutros como PV (4), Cidadania (7) e MDB (34).
A principal fragilidade da coalizão do governo Bolsonaro é a desproporcionalidade na alocação de poder e de recursos entre os parceiros, pois o presidente não tem levado em consideração o peso político de cada um deles na Câmara. Dos 23 ministérios, apenas sete são alocados para ministros filiados a partidos políticos, dos quais três não pertencem aos que fazem parte formalmente da sua coalizão. Uma reforma ministerial se faz urgente e necessária.
Se Bolsonaro não corrigir essa desproporcionalidade, animosidades vão surgir e a coalizão vai apresentar fissuras e ressentimentos. Os partidos não se sentirão comprometidos com o governo e terão incentivos a inflacionar o preço do apoio a cada nova votação que o presidente sinalizar como prioridade na sua agenda.
A estratégia anunciada, de “esperar para ver” como o Centrão se comporta primeiro e premiá-los depois, certamente aumentará os custos de gerência. Como o jogo é de repetição, a melhor estratégia é premiar os parceiros proporcionalmente ex ante para comprometê-los com uma agenda de votações em vez de recompensá-los ex post a cada votação.
Estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir sua coalizão de forma profissional e não amadora.
*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de empresas (FGV EBAPE)
Luiz Carlos Azedo: Centrão X Anvisa - Novo front de guerra da vacina se forma no país
Líder do governo na Câmara e ex-ministro da Saúde, Ricardo Barros está à frente das críticas mais incisivas à agência responsável por autorizar o uso de imunizantes no Brasil. Parlamentar ressalta que a legislação se impõe sobre normas internas
A polêmica entre o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), e o presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, é a primeira queda de braços entre os políticos do Centrão e os militares do governo Bolsonaro após a eleição do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Colega de bancada de Lira, Barros foi um dos protagonistas da campanha que conquistou 302 votos na Casa. Engenheiro e ex-prefeito de Maringá (PR), o líder do governo é um dos nomes cotados para substituir o general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, do qual foi titular no governo Michel Temer. Quer liberar vacinas importadas em cinco dias, sem testagem no Brasil.
Médico e contra-almirante, Barra Torres comanda a Anvisa como se estivesse num navio. Responde por tudo a bordo e tem prestigiado o corpo técnico da autarquia, cujo padrão de excelência é reconhecido internacionalmente. A pressão de Barros sobre a Anvisa, segundo o próprio, é uma questão do Congresso e não do governo. Os deputados e senadores voltaram do recesso pressionados pelos eleitores a resolverem logo o problema da vacina. “A Anvisa tem seu ritmo e sua visão de velocidade e, o Congresso tem a velocidade do povo. Fomos para a base e vimos o retorno: o maior receio é da falta de vacina”, justificou. O parlamentar tem sido duro com os técnicos da Anvisa, defendendo a mudança de legislação, se for o caso, para liberação dos medicamentos.
Barra Torres, que vem atuando sob fortes pressões do próprio presidente Jair Bolsonaro, dos governadores e do corpo científico, é diplomático, mas politizou a crise. “A quem interessa o enfraquecimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária?”, pergunta. Em entrevista, na semana passada, disse que sempre teve uma boa relação com Barros e defendeu a agência: “É a mais rápida do mundo em análise de protocolos vacinais”, disse. Barra Torres nega que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ou qualquer ministro da Saúde em sua gestão tenha feito qualquer tipo de pressão à Anvisa, antes ou durante a pandemia de covid-19: “O presidente da República, Jair Bolsonaro, nunca, em momento algum, exerceu qualquer tipo de pressão sobre a agência. Nunca fez um pedido, nunca disse 'gostaria que aprovasse isso ou aquilo'. E ele é o chefe do Executivo. Nunca fez”, afirmou Torres.
Briga de laboratórios
O que esticou a corda entre o líder do governo na Câmara e o presidente da Anvisa foram as dificuldades para liberação das vacinas já aprovadas no exterior para uso imediato no Brasil, entre as quais a vacina russa Sputnik V. Das 11 vacinas já em uso no mundo, todas aprovadas por agências reguladoras reconhecidas internacionalmente, somente duas, até agora, estão sendo usadas no Brasil, o que aumentou o estresse entre os políticos e a agência. Segundo Ricardo Barros, a exigência de 10 dias para a liberação do uso emergencial, como queria a Anvisa, é ilegal. “O presidente deve sancionar a medida aprovada pelo Congresso que estabelece 5 dias; a própria Anvisa havia estabelecido um prazo de 72 horas”, esclarece.
Segundo Ricardo Barros, a exigência de testagem em território nacional para vacinas já aprovadas por agências reguladoras no exterior custa US$ 80 milhões, o que dificulta a compra de vacinas. “Sem essa exigência, não faltará vacinas; todos os governos e planos de saúde poderão comprar. Cerca de 50 milhões de brasileiros têm plano de saúde, haverá vacina pra todos”, argumenta o líder do governo.
No caso da Sputnik V, há um ingrediente a mais: a disputa entre a Fiocruz e o Butantan e a União Química, fabricante da Sputnik V no Brasil. O presidente da empresa, Fernando Marques, acusou os laboratórios públicos de dificultarem a chegada de vacinas produzidas por laboratórios privados. A Sputnik V é produzida pela farmacêutica, que tem um acordo com o Fundo Soberano da Rússia e o Instituto Gamaleya para receber tecnologia e trazer doses prontas do imunizante para o Brasil.
Até o momento, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária autorizou duas vacinas, produzidas por laboratórios públicos brasileiros: a Coronavac, do Butantan, e a AstraZeneca, da Fiocruz. A Sputnik é a primeira fabricante privada a firmar contrato de venda de vacinas com o governo brasileiro. Seriam 10 milhões de doses, inicialmente. Mas, antes da nova vacina ser utilizada, a União Química precisa obter a autorização de uso emergencial da vacina no Brasil.
Correio Braziliense: 'Auxílio é importante, mas com responsabilidade', defende diretor da IFI
Felipe Salto admite a importância da criação de um benefício emergencial para os mais vulneráveis, de preferência, fora do Bolsa Família e de forma temporária. Ele também considera a vacinação essencial para a retomada econômica
Vicente Nunes e Rosana Hessel, Correio Braziliense
O economista Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, demonstra preocupação com o excesso das propostas na lista de 35 prioridades apresentadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso. Para ele, a inclusão de pautas de costumes atrapalha o andamento dos trabalhos do Legislativo, pois as reais prioridades do país são a saúde e a economia. Nesse sentido, ele considera a vacinação em massa e o auxílio emergencial, que não provoque desequilíbrio fiscal elevado, os assuntos mais urgentes. “É preciso que o governo acelere essa questão da vacinação contra a covid-19 para que a economia possa ter uma recuperação, ainda que pequena, mas garantida, neste ano, porque ainda não está”, afirma.
Em relação ao auxílio, Salto acredita que o melhor formato seria fora do Bolsa Família, usando um modelo temporário e mais focado. Especialista em contas públicas, ele reconhece que o fato de o governo ter avançado pouco nas reformas limita uma ação mais contundente para socorrer os mais vulneráveis. No entender dele, os problemas estruturais do país continuam os mesmos e precisam ser encarados, pois a dívida pública está muito elevada e continuará crescendo por um longo período.
Pelas projeções da IFI, o país permanecerá com as contas no vermelho por pelo menos até 2030, num cenário conservador. Com isso, é mínimo o espaço para a criação de um novo auxílio emergencial sem comprometer o Orçamento e o teto de gastos — emenda constitucional que limita o crescimento das despesas pela inflação do ano anterior. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Salto ao Correio.
As reformas vão andar agora? Em uma lista de 35 itens, nada é prioritário.
Pois é. Reformas, nesse sentido genérico, não resolvem muito o problema. Precisamos saber mais claramente quais são as prioridades de verdade. A PEC Emergencial, por exemplo, dependendo do desenho, pode ajudar numa questão importante, que é o teto de gastos. A emenda 95, aprovada em 2016, prevê os chamados gatilhos, que seriam as medidas automáticas de ajuste. Mas a interpretação majoritária é de que seria necessária uma mudança de um trecho dessa emenda para poder acionar os gatilhos. O diabo mora nos detalhes. Não sabemos, ainda, qual será a proposta. E as outras reformas são relevantes, como a tributária e a administrativa, que estão na mesa. Contudo, é preciso saber exatamente quais são as propostas que o governo tem. No modelo brasileiro de presidencialismo de coalizão, a Presidência tem um papel fundamental e o Ministério da Economia, também. Eles são os definidores da agenda.
Nos últimos dois anos, não vimos um papel ativo do Planalto e do Ministério da Economia. A reforma da Previdência, por exemplo, só foi aprovada graças ao esforço do Congresso. Desta vez, o empenho vai ser maior? Por quê?
A reforma da Previdência tem um mérito importante do governo Michel Temer, que definiu essa pauta como prioritária e trabalhou muito por ela. Pelas razões políticas que sabemos, atrasou. Mas ele amadureceu a discussão. Fazia tricô com quatro agulhas. O governo atual conseguiu terminar, então, mérito dele. Agora, nas outras agendas, está tudo muito confuso. O Ministério da Economia, por exemplo, vive falando do imposto de transações financeiras. E, ao mesmo tempo, mandou uma proposta de reforma tributária para o Congresso prevendo a unificação do PIS e da Cofins. Em paralelo, o Congresso tem duas PECs sobre reforma tributária, a 45 (na Câmara) e a 110 (no Senado), que tratam de outro tema mais abrangente, que é o IVA nacional ou o IVA dual — um, para o governo federal e, outro, para estados e municípios. Esses temas precisam ser mais bem detalhados, porque não está claro.
E ainda há a covid...
No meio disso tudo, há as medidas que são ainda mais prioritárias. É preciso que o governo acelere a vacinação para que a economia possa ter uma recuperação, ainda que pequena, mas garantida, neste ano – porque ainda não está. Há uma incerteza muito grande, e isso tem a ver com a dificuldade de se ter um plano mais coeso e bem executado para a vacinação. Com isso, a pauta econômica e fiscal também se funde com a da saúde. E o Orçamento que abrange tudo isso está em aberto. Achei positivo o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, anunciar que a CMO (Comissão Mista de Orçamento) deve ser instalada nesta terça-feira. A Comissão vai ser o local para a discussão de muitas coisas, inclusive, o auxílio emergencial, e outras questões envolvendo gastos com saúde, como comportar tudo no Orçamento, que está sem margem alguma.
Será possível recriar o auxílio emergencial?
O auxílio emergencial é muito importante, porque, no ano passado, a população ocupada no mercado de trabalho diminuiu bastante, e, neste ano, vai se recuperar menos do que caiu. Então, haverá um contingente de pessoas que estão à margem de qualquer tipo de recebimento de renda formal ou mesmo no mercado informal. E a pandemia continua evoluindo. Algum auxílio, aparentemente, pelo que avaliamos, é possível que seja necessário. A questão é como fazer isso com responsabilidade fiscal.
Mas tem espaço no Orçamento?
Se olharmos a LDO para 2021, a despesa discricionária está em R$ 83,9 bilhões, sem contar os
R$ 16,3 bilhões de emendas parlamentares, que são impositivas. Esse é o menor nível de despesa discricionária da série. O risco de romper o teto é elevado porque a despesa discricionária, que é a variável de ajuste, está bastante exaurida. Para resolver essa questão, existem dois caminhos. O governo deveria eleger uma série de despesas que poderiam ser cortadas ou contingenciadas, inclusive, gastos obrigatórios. Claro que tudo isso tem um custo político. Se o governo for mexer em subsídio creditício, que é uma despesa que está sujeita ao teto, ele vai enfrentar aqueles que defendem cada um dos programas que estão lá nessa rubrica. Tem também mais de 50 mil cargos a título de reposição de aposentadorias de servidores previstos no PLOA. Só isso já tem um efeito de R$ 2,4 bilhões. O que seria importante é verificar despesas que podem ser cortadas para mostrar que está havendo um esforço fiscal. O outro caminho é via crédito extraordinário, que está previsto na Constituição para situações de imprevisibilidade e de urgência e, claro, que tem que ter critérios. Seria importante o governo sinalizar medidas compensatórias e não partir direto para uma coisa extrateto. Essas são as duas possibilidades.
É melhor retomar o auxílio ou ampliar o Bolsa Família?
O Bolsa Família é um programa de sucesso e bem avaliado, inclusive, pela academia. Ele beneficia muita gente com um valor orçamentário anual, em torno de R$ 35 bilhões, que é relativamente baixo para o benefício que ele produz (na economia). São discussões diferentes. A reformulação dos programas sociais seria importante, com melhor focalização, porque temos Benefício de Prestação Continuada (BPC), Bolsa Família, abono salarial, tudo para públicos diferenciados. Agora, a discussão do auxílio é mais imediata. É uma transferência que precisar ser feita, temporariamente, para resolver algo que não estava previsto, que foi a crise da covid-19 que se abateu sobre nós. O benefício pode ser resolvido pelo Bolsa Família. Mas o ideal é ter uma ação concreta direcionada para essa finalidade e, em paralelo, discutir a eficiência dos programas sociais, como melhor focalizar.
O Brasil precisa de um programa de renda mínima?
Nós já temos o Bolsa Família, que é um programa importante nesse sentido. Ele poderia ser ampliado. Agora, qualquer discussão a respeito de um novo programa precisaria ser pensada também do ponto de vista do equilíbrio fiscal. A dívida pública bruta, no ano passado, encerrou em 89,3% do PIB. Foi mais baixo em relação ao que se projetava, mas houve um efeito do PIB, que ficou mais alto por causa da inflação. Quando comparada à evolução da dívida, foram 15 pontos percentuais do PIB de aumento em relação aos 74,3% de dezembro de 2019. É uma dívida gigantesca, que vai continuar crescendo ainda por algum tempo. Por isso, o governo precisa anunciar um plano de médio prazo para mostrar quando essa relação dívida-PIB voltará a ficar sustentável. Essa falta de um horizonte para as contas públicas me preocupa até mais do que as questões de curtíssimo prazo. O momento é de exceção, que exige medidas excepcionais.
As propostas apontadas pelo governo são paliativas?
A PEC Emergencial é uma tentativa de dar uma sobrevida ao teto de gastos, permitindo acionar os gatilhos da regra. É claro que o teto, nas condições atuais do cenário base, não vai aguentar até o 10º ano, quando está previsto na emenda a alteração do indexador. Não podemos perder de vista que os problemas estruturais continuam, infelizmente, sendo os mesmos de 10 anos atrás: uma despesa obrigatória grande e crescente e um espaço para investimento cada vez menor. O Estado vem perdendo capacidade para investir e está aumentando, cada vez mais, a pressão das despesas. Claro que parte dessas despesas também tem a ver com a melhora de vida das pessoas, porque tem saúde e gastos sociais, mas será preciso uma reestruturação muito mais complexa do que apenas a discussão da PEC Emergencial.
Mas a PEC Emergencial ainda está em pé? Ela foi enviada ao Congresso no fim de 2019.
Quando o governo enviou ao Congresso essa PEC Emergencial em 2019, ele prometia que ela seria aprovada até dezembro daquele ano. Então, está muito atrasada essa previsão que o governo tinha.
Arthur Lira e Rodrigo Pacheco disseram que a reforma tributária pode ser aprovada em até oito meses. Acredita nisso?
A questão tributária é a mais complexa de todas, porque envolve várias trincheiras de batalha. Tem a trincheira dos estados e municípios contra a União, porque, nessa situação em que todo mundo está, o desejo dos entes federativos é ter mais receita e não menos. E tem, também, a questão da autonomia, porque, com a criação do IVA, estados e municípios perderiam o ICMS e o ISS. Não é uma questão trivial, ainda que as compensações fossem feitas e fosse criado o mecanismo automático para a distribuição das receitas que seriam arrecadadas centralmente. Mas essa é a primeira trincheira. A segunda é a setorial. O setor de serviços ainda não engoliu essa questão de ter aumento de tributação. Não se fala muito que esse segmento é subtributado. Só que é difícil sair de um equilíbrio ruim para um equilíbrio melhor, em que a indústria seria menos tributada com o IVA e o setor de serviços, que não tem uma cadeia de produção tão longa, tem dificuldade de acumular crédito. E, como vai tudo para o destino, obviamente, vai ter um aumento de tributação. E tem a terceira frente de batalha que é o fato de a União e o Ministério da Economia quererem aumentar a receita. O próprio ministro Paulo Guedes vive falando no imposto de transações financeiras, ou seja, está implícito aí um ajuste pelo lado da receita também. Isso é muito complicado. Acho positivo que as novas lideranças do Congresso indiquem que isso é uma prioridade, mas não vai ser fácil. Há pouco tempo para conseguir avançar nesse tema tão complicado.
Passados dois anos, é possível considerar que o governo Bolsonaro é reformista ou é mais discurso?
Eu acho que não é um governo reformista. O Ministério da Economia, sob a liderança do Paulo Guedes, tem essa intenção. Começou com aquela história das privatizações, de reduzir o tamanho do Estado, de fazer um enxugamento de gastos... Ele até prometeu zerar o deficit primário em um ano, mas percebeu que era impossível. Na verdade, o discurso da área econômica vai numa direção mais liberalizante, mas, na prática, o governo vai em outra direção. Até agora, com mais da metade do mandato, além da reforma da Previdência, não teve mais nada de relevância aprovado. O que podemos constatar é que as agendas que foram consideradas prioritárias, em algum momento, ainda não avançaram.
O presidente Bolsonaro já deixou claro como quer que a pauta de costumes ande, como excludente de ilicitude, ampliação ao acesso ao porte de armas... Isso é prioridade quando o país está atrasado na vacinação e ainda não tem Orçamento aprovado? Há riscos dessa agenda de costumes se sobrepor a das reformas?
A agenda de costumes que está refletida na lista de prioridades do governo é uma coisa que já se sabia que era intenção do presidente. E, claro, ela ocupa espaço e tempo no Congresso. Mas o que mais me preocupa na lista de 35 prioridades é que são muitos itens e não se sabe, ao certo, qual é a pauta prioritária e o que virá primeiro. Agora, as agendas de saúde e de economia deveriam ser prioritárias.
O cenário básico da IFI prevê deficit primário até 2030. É possível que fique pior?
O nosso cenário atual prevê que o deficit público diminuirá aos poucos até 2030, quando ainda estará negativo, em torno de 0,8% do PIB. Nos próximos anos, o quadro vai melhorando, porque a receita aumentará com algum crescimento do PIB, de 2% a 2,5% na média da década. E, do lado da despesa, nossa previsão não considera nenhuma, digamos assim, estripulia. O nosso cenário é bastante conservador. E, ainda assim, não é suficiente para vermos o superavit primário voltar em um período mais curto. Isso só acontecerá depois de 2030.
Fernando Gabeira: Roteiro para tempos difíceis
O Congresso caiu nas mãos de Bolsonaro. É o fato da semana.
Um bolsonarista escreveu no Instagram que me ver chorar na TV não tinha preço. Usava o termo chorar em sentido figurado. Certamente expressei tristeza com a vitória de Arthur Lira, coroada com uma festa para 300 pessoas, sem máscaras, numa mansão do Lago.
Mas se, como no poema, o bolsonarista nunca conheceu quem tivesse levado porrada, muito prazer, me apresento.
Situações difíceis não devem nos intimidar, embora seja assustador pensar na continuidade de um governo que mata as pessoas com seu obscurantismo e destrói vorazmente os recursos naturais de um dos mais belos países do mundo.
Muita gente acha que Bolsonaro tornou-se mais forte em 22, porque controla o Congresso. Temer controlava, mas jamais foi uma alternativa eleitoral viável.
As coisas não passam por aí. Pelo contrário, as relações de toma lá dá cá, as diárias afirmações de que é dando que se recebe, apenas reforçam a aura de decadência que envolve a política no Brasil.
A ideia de uma frente não se esvai porque alguns setores saltaram do barco. O que a fortalece, de fato, não são as letrinhas que designam partidos, nem necessariamente o número de deputados e senadores que a compõem.
O importante para uma oposição é compreender essa nova relação de forças no Congresso e olhar mais para fora, buscar o apoio da sociedade, batendo em alguns pontos essenciais. Um deles é denunciar o estelionato eleitoral de Bolsonaro, separando-o das pessoas que acreditaram em seu discurso.
Os outros estão claros na própria conjuntura: apoio emergencial para milhões de necessitados, defesa da ciência na condução da política contra a pandemia e luta para que todos se vacinem de forma eficaz e segura.
Esse encontro com a sociedade poderá ser mais amplo ainda na medida em que a vacinação avance. Muitos discutem as eleições de 22, quem será candidato, quem vai vencer.
É um tema inescapável. No entanto, daqui até lá, há muita luta, muitas peripécias. Os nomes devem surgir desse processo. Não creio em candidaturas que ficam abrigadas da tempestade e aparecem apenas no momento eleitoral.
Bolsonaro, Witzel e outras figuras se elegeram num momento de decadência da política. Nas próximas eleições, possivelmente viveremos um clima em que não só a política, mas também as novidades radicais decaíram. Daí a importância do que sobrou de resistência, de como se mostrará no processo, sua habilidade para unir, coragem para encarar o governo de frente.
Grande parte dos analistas descarta o impeachment quando um governo passa a dominar o Congresso. É razoável. Mas não se pode ver o Congresso como um bloco impermeável à pressão popular.
É preciso trabalhar com todos os cenários, sabendo que são tempos quase tão difíceis como no período da ditadura. É verdade que agora existe liberdade de imprensa, mas, no entanto, desapareceu um clima mais fraterno entre os opositores.
E isso não apenas porque a história moderna do Brasil colocou em campos opostos os que lutaram pelas eleições diretas.
O debate político não é mais mediado exclusivamente pela imprensa profissional. Ele vive noutras plataformas, deformado por fake news e num clima de agressividade verbal sem precedentes.
Um agradável lugar-comum que sempre vale a pena repetir: a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.
É urgente evitar mortes e, simultaneamente, desenvolver as lutas que possam fortalecer uma vontade de tirar o Brasil dessa condição de pária sanitário e ambiental, dominado pelo obscurantismo.
Perdemos o Congresso, é verdade. Mas algum o dia o tivemos? Por enquanto, a parte que nos toca é uma modesta minoria. Vamos com ela, com o que sobrar, pois resistir ainda é melhor do que tudo.
Monica de Bolle: Índia, Rússia e China reinventaram a economia com foco na saúde pública para a covid-19
Cabe pensar como os países devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece
Nesses primeiros dias de fevereiro a Anvisa suspendeu a exigência de que ensaios clínicos de fase III sejam conduzidos no país para qualquer empresa farmacêutica que queira solicitar o uso emergencial de vacinas. Diferentemente do que circulou, a agência não deixou de exigir os ensaios de fase III, que nos fornecem as informações sobre a segurança e a eficácia das vacinas, sendo, portanto, críticos. O que a Anvisa fez foi remover a exigência de que eles sejam feitos em território nacional. A decisão produz efeitos de pronto. Abre espaço para que o Governo negocie a compra de mais doses de outras vacinas, ampliando o leque de imunizantes disponível à população.
O Ministério da Saúde, por exemplo, está em vias de negociar a compra de doses da vacina Sputnik V, produzida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia, e da Covaxin, produzida pelo laboratório Bharat Biotech, da Índia. A Sputnik V jáestá sendo usada em cerca de 16 países, embora os ensaios de fase III ainda estejam na fase final de conclusão. A Índia, por sua vez, começou a vacinar sua população com a Covaxin, vacina de vírus inativado (como a Coronavac), mesmo sem os dados dos ensaios clínicos. Caso a Anvisa venha a aprovar o uso dessas vacinas —e espero que os faça tendo disponíveis os dados dos ensaios de fase III—, o Brasil passará a usar vacinas de três países emergentes com os quais compunha os BRICs: China, Índia, Rússia.
Tenho pensado muito na importância desses três países nas campanhas de vacinação dos países emergentes, que não tiveram acesso às vacinas gênicas, as da Pfizer e da Moderna, ou mesmo a outros imunizantes. É fato documentado, inclusive por mim e coautores em artigo recém-publicado pelo Peterson Institute for International Economics, que os países ricos adotaram a estratégia de comprar o máximo de doses que podiam de tais imunizantes, sem dar muita atenção à necessidade de cooperação global. Nesse contexto, países como Rússia, China e Índia perceberam a saúde pública como eixo reconfigurante da economia e viram nessa reconfiguração a oportunidade de serem fornecedores de vacinas para o resto do mundo, em que a escassez vacinal é a realidade.
O movimento dos três países suscita outras inquietações. A pergunta que todos se fazem é: quando a pandemia irá acabar? Penso, no entanto, que a pergunta é equivocada. Não temos resposta para ela, o que ficou ainda mais evidente com o surgimento de variantes virais preocupantes, as chamadas VOCs (Variants of Concern). O SARS-CoV-2, o vírus causador da covid-19, é ardiloso. O mais provável é que tenhamos de lidar com ele por tempo prolongado, atualizando vacinas à medida que ele encontre novas formas de escapar às nossas respostas imunológicas. Desse ponto de vista, podemos passar de uma pandemia aguda para uma pandemia crônica, ou seja, talvez tenhamos de aprender a conviver com o vírus e suas inevitáveis novas formas. Foi assim com outro vírus causador de doença distinta, a aids. Embora muitos não pensem tanto no assunto hoje em dia, a aids ainda é uma pandemia de acordo com as definições da Organização Mundial da Saúde (OMS). A diferença é que passamos de uma pandemia aguda para uma crônica.
Sendo esse o cenário adiante de nós, cabe pensar como as economias devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece. Porque, sim, há muitas oportunidades nesse cenário, como mostram no presente as ações da Rússia, da China, da Índia.
Como disse, os três países reorganizaram sua economia com centro na saúde pública, e isso faz sentido por motivos diversos: da segurança nacional à proteção social, da ordenação dos gastos públicos ao meio ambiente. No caso do meio ambiente, ter a saúde pública como eixo de políticas públicas significa garantir a existência de uma rede abrangente de saneamento básico, reduzir a poluição do ar, as emissões de carbono, preservar as reservas naturais para, inclusive, evitar o contato com novos vírus zoonóticos, aqueles capazes de pular espécies chegando a nós.
No caso do Brasil, não faltam vantagens comparativas para uma reorganização da economia nesses moldes. Temos um sistema de saúde público bem montado, dispomos de recursos naturais, possuímos alguma capacitação tecnológica. Nossas competências e experiências sanitárias sobram, já tendo sido motivo de orgulho nacional. A reorientação da nossa economia para a saúde pública sob o pano de fundo de uma pandemia crônica possibilitaria o renascimento da nossa indústria farmacêutica, voltada para as necessidades domésticas e para o abastecimento do mercado internacional, como têm feito a Rússia, a Índia, a China.
Novos empregos seriam criados, assim, na indústria e se abririam chances reais de inserção no comércio internacional, nas cadeias de valor ligadas à saúde. Tal inserção, por sua vez, ajudar-nos-ia a ampliar as possibilidades de saltos tecnológicos, que hoje inexistem. Economias voltadas para a saúde necessitam de serviços diversos, que vão de cuidadores e acompanhantes a profissionais de alta qualificação. O setor de serviços, tão abalado pela pandemia, teria a oportunidade de se reerguer a partir desse eixo, sobretudo com as necessidades que já surgem. São muitas as pessoas afetadas por sequelas de covid-19 e a elas muitas mais se somarão. Essas pessoas precisarão de atendimentos diversos.
Deixaríamos de fazer as reformas necessárias para o país? Pelo contrário. Faríamos essas reformas, agora com objetivo claro: sustentar e aprimorar o eixo central da saúde pública. O objetivo da reforma administrativa? A saúde pública. O objetivo da reforma tributária? A saúde pública. O objetivo de outras reformas fiscais? A saúde pública.
A pandemia nos tem apresentado muitas tragédias, dificuldades, dilemas, conflitos. Em meio à gestão de uma crise humanitária aguda, não é fácil elaborar o que sobrevirá. Mas é muito importante começar a fazê-lo, e isso implica abrir mão dessa espécie de pensamento mágico de que a pandemia vai acabar. A pandemia aguda, sem dúvida, acabará. Mas dela virá a pandemia crônica, essa que nos oferece o desafio e a oportunidade de uma transformação real da economia brasileira. A economia do cuidado é aquela que tem na saúde pública o eixo central e que se desenha explorando a reconfiguração do mundo que o vírus nos está apresentando. É claro que não acredito que o Brasil irá trilhar esse caminho nos próximos dois anos, com um Governo antibrasileiro. É mais provável que o país seja testemunha do que outros farão para pôr a saúde pública no centro das suas políticas. Mas quem sabe se os assistindo dessa vez, pela primeira vez, nós não nos articulamos para aproveitar a oportunidade visível, mesmo que tardiamente.
Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics.
Luiz Werneck Vianna: Encontro marcado (se possível, suspenso por força maior)
Com os êxitos eleitorais das forças conservadoras no Senado e na Câmara Federal experimentamos um momento inédito na política brasileira de captura dos instrumentos do poder por parte de elites parasitárias do Estado, agrupadas no chamado Centrão, assim conhecido na linguagem dos jornais, melhor designado pelos cientistas sociais como o reduto do nosso atraso político-social. Tais elites nos acompanham ao longo do nosso processo de modernização, de Vargas a Lula, sempre como coadjuvantes, fornecendo bases de sustentação em seus rincões aos diferentes surtos de modernização que se sucederam na história republicana moderna no processo de imposição do capitalismo brasileiro.
Foi assim com a política de Vargas, que nos trouxe ao moderno da industrialização em aliança com o atraso – basta lembrar sua recusa em levar a legislação trabalhista ao campo –, com a de JK, com a do regime militar de1964, especialmente no desenvolvimentismo do governo Médici, que confiou sua política à Arena, partido formatado com as elites do atraso. Chegamos à modernização por meio desse conúbio, classicamente uma modernização conservadora, que nos embaraçou em nosso movimento em direção ao moderno.
O ineditismo da hora presente reside, pois, nessa abstrusa situação em que o coadjuvante chega ao proscênio na ausência de um protagonista. Para que um ator exerça protagonismo em cena é indispensável que ele seja portador de um papel ativo na condução de um enredo em que ele centralize o sentido das ações, papel que o Centrão, por natureza um conjunto amorfo de políticos sem luz própria, não tem como exercer. Bolsonaro igualmente não cabe nesse perfil, presidente acidental que chega ao governo num lance de fortuna e que tem como único projeto a conservação do poder, desconfiado como os tiranos clássicos de tudo e de todos ao seu redor.
O cenário é de desconcertante miséria política numa sociedade carente de lideranças que lhe apontem um rumo em meio às suas dolorosas aflições pela ação de uma cruel pandemia, acossada pelo desemprego e com boa parte dela às portas da miséria absoluta. As respostas a essa situação de descalabro inaudito são desalentadoras, como a do prefeito de Salvador, ACM Neto, virtual candidato ao governo do seu estado, indicando seu alinhamento a Bolsonaro, como foi a do ex-presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, que por cálculos mesquinhos sentou-se em cima de dezenas petições em favor do impeachment presidencial. E chegam ao inacreditável com a recusa de Lula de compor uma ampla coalizão democrática na próxima sucessão presidencial em nome de uma candidatura do seu partido.
Não há governo e nem sequer uma oposição digna desse nome, assombrada diante da mula sem cabeça assentada em seu destino a sociedade clama por uma voz e ações que venham a seu socorro, que somente podem provir de suas entranhas, como estão vindo das comunidades populares e dos seus artistas e intelectuais, dos profissionais da saúde e das nossas maiores personalidades intelectuais, que fazem coro aos parlamentares que receberam no Congresso o presidente que aí está aos brados de facínora genocida.
Mais do que denunciar o caráter perverso do atual governo, por sua incúria em enfrentar a pandemia, os movimentos que se fazem presentes na luta contra ela têm importado em impulsos para a auto-organização da vida social, registrando-se inclusive petições de impeachment apresentadas por personalidades das atividades de saúde pública. Cabe ao campo democrático amplificar a ressonância dessas vozes traduzindo-as em um sonoro clamor público, chave acionada para nos livrar do horror a que estamos submetidos.
É verdade que temos um encontro marcado com o que aí está em 2022, se não conseguirmos antecipar essa data com um reparador impeachment. Para ele devemos nos preparar, em primeiro lugar com a apresentação de um projeto de soerguimento do país, de reanimação da sua vida econômica e cultural que devolva esperança aos brasileiros. Sobretudo com a articulação de uma frente política tão ampla quanto possível, e que encontre suporte na sociedade civil na forma que aprendemos a fazer nas lutas contra o regime militar.
As condições para tal empreendimento estão dadas e visíveis a olho nu, como no cenário internacional em que a potência dominante defenestrou o populismo reacionário de Trump, e entroniza como eixo estratégico da sua política os temas ao meio ambiente e dos direitos humanos, calcanhares de Aquiles do atual governo que logo sentirá os efeitos perturbadores dessa nova orientação. Internamente, o experimento exótico de um governo dominado pelo Centrão com a consistência das gelatinas, em que pesem as cabriolas hermenêuticas que rolam por aí, promete ser minado pela fúria dos apetites desencontrados dos seus quadros numa feroz competição que ignora quem a arbitre, tal como se testemunha no interior do DEM, satélite enrustido do Centrão.
A composição dessa frente implica em engenho e arte por parte das forças democráticas, particularmente da esquerda, artífice de importância crucial de sua elaboração, cabendo a ela tecer os fios de comunicação entre as forças convergentes no propósito maior de servir a afirmação dos seus valores e princípios. Não chegou ainda a hora da fulanização, para se usar uma expressão de Fernando Henrique, ela virá do processo de construção da frente democrática conforme sustenta Guilherme Boulos em sua resposta a uma precoce proposta de candidatura por parte do PT.
É preciso reconhecer que os recentes resultados negativos nas eleições congressuais adensaram a neblina dos mares que singramos, mas contamos com os bons conselhos do poeta que nos recomenda que, em meio ao nevoeiro, levemos o barco devagar. Devagar, mas em frente, sugerem as suas palavras. A tempestade já passou, ficaram para trás os delírios de um novo AI-5, e é preciso tirar proveito da aragem amável que nos bafeja, seguir viagem ao lugar pretendido. Se formos firmes e prudentes, ele está logo ali, ao alcance da mão.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio
Antonio Delfim Netto: O que devemos esperar de 2021
Chegou a hora de olharmos para a frente e decidir o que queremos para o Brasil
O ano de 2020 foi doloroso. Um período dedicado ao enfrentamento de uma inesperada e devastadora pandemia, que exigiu respostas para a saúde e medidas econômicas céleres para atravessar um choque sem precedentes em quase um século.
A longo dos meses, os governos aprenderam —alguns de maneira mais eficiente do que outros— a aperfeiçoar os estímulos destinados a salvar vidas, empregos e o tecido produtivo, com resultados palpáveis que mitigaram o estrago previsto quando tudo começou.
O Brasil, entretanto, não aproveitou a parte do segundo semestre que poderia ter sido utilizada para começar a endereçar os problemas mais urgentes do país. Adentramos 2021 sem nem sequer termos aprovado o Orçamento para o ano, consequência das disputas no Legislativo e da falta de interesse do Executivo.
Passadas as eleições para o comando das duas casas, chegou a hora de olharmos para a frente e decidir o que queremos para o Brasil. A conjuntura econômica em que o país se encontra é mais adversa do que no pré-pandemia, fruto da monumental elevação da dívida e do déficit público, ambos necessários para o enfrentamento da crise. Isso significa que as escolhas a serem feitas serão ainda mais duras e necessárias.
O Legislativo precisa recuperar o sopro de reformismo que experimentou durante o governo Temer e o início do governo Bolsonaro. O Executivo deve decidir se tem interesse e comprometimento com o futuro do país e com a agenda econômica apoiada abertamente apenas por parte do governo.
As reformas necessárias estão todas postas, mas, sem a liderança do Executivo em trabalhar a sua agenda econômica junto ao Legislativo e estabelecer prioridades, é difícil acreditar que sejam bem-sucedidas.
No curto prazo, a reorganização das contas públicas e a indicação clara de sustentabilidade para a trajetória da dívida são condições necessárias para a saúde macroeconômica do país. É disso que dependem a construção crível de um programa social mais robusto e inclusivo, a ampliação do espaço para o investimento público no Orçamento e a garantia de que a política monetária poderá atuar sem sobressaltos. Optar pela ampliação pura e simples do endividamento público é a saída mais fácil, e a que escolhemos de maneira reiterada. Suas consequências sempre vêm depois, e não costumam poupar as camadas mais vulneráveis da população.
À prioridade zero soma-se o enfrentamento definitivo da reforma do Estado para dar maior eficiência ao funcionamento da máquina pública e controlar o crescimento de suas despesas, além de atacar privilégios e penduricalhos de uma casta não eleita que se apropriou do poder.
*Antonio Delfim Netto é economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.
Conrado Hübner Mendes: Crime de responsabilidade? Acho que sim, acho que não
Indigência do debate jurídico converte impeachment em outra coisa
O impeachment atormenta analistas. Diferente de sistemas parlamentaristas, onde se pode remover, sem maiores rapapés, o chefe do Executivo, uma Constituição presidencialista estipula que a destituição de presidente ocorra em virtude de crime de responsabilidade. E esse julgamento deve se dar numa Casa regida pelas paixões e interesses da competição eleitoral, não pelo desapego e serenidade que a aplicação da lei exige.
O Parlamento, instituição constituída pela lógica da barganha, deveria, nesse caso único, funcionar pela lógica da justiça. Pedimos que deputados e senadores ajam como juízes e ignorem a eleição de amanhã. Para encerrar o imbróglio entre os que ressaltam o aspecto jurídico e os que destacam o caráter político do impeachment, resolvemos classificá-lo como instituto "jurídico-político". Um acordo russomanniano: confuso para ambas as partes.
Não pergunte o que isso significa porque não tem quase nada resolvido. Nem na prática, muito menos na teoria (transtornada com a prática). O debate público sobre o impeachment de Jair Bolsonaro tem promovido o encontro de três figuras.
O cidadão indignado na torcida, perguntado se deve haver impeachment, responde "claro, tomara" (um tipo de "wishful thinking"). O analista político pondera se há condições conjunturais que galvanizem o impeachment. Às vezes, não passa de um erudito chutismo (chamemos de "chuteful thinking"). Vem o jurista e avalia se há crime de responsabilidade. Algumas declarações moram na fronteira do achismo ( "achoful thinking", se me permitem).
A situação piora quando os três personagens se fundem num só e as muitas perguntas político-empíricas (se há apoio, se as condições devem estar dadas ou podem ser criadas, se as consequências serão positivas ou traumáticas, se eventual derrota fortalecerá Bolsonaro etc.) passam a interferir e a esvaziar a pergunta jurídico-normativa (se há crime).
O componente jurídico desse híbrido "jurídico-político" vira peça decorativa e o debate criterioso sobre crime de responsabilidade acaba interditado. O jurista se deixa calar pelo cientista político. A pergunta jurídica evapora e convertemos o impeachment em voto de desconfiança. Disfarçamos a prática parlamentarista por meio dessa sangrenta e espetacular burocracia de um impeachment.
O disfarce produz outra consequência perversa. Políticos se aproveitam do rebaixamento da pergunta jurídica e, quando indagados sobre a existência de crime, qualquer "acho que não" passa impune na esfera pública. Com base na opinião vulgar, justifica a não abertura do processo e ainda alega que a razão é jurídica.
A mais intrigante especificidade política de um impeachment está aí: ao contrário de um promotor ou de um juiz, que não podem não processar um crime comum, exceto por razões jurídicas, a Câmara dos Deputados pode decidir que um processo por crime de responsabilidade não é conveniente, mesmo havendo grande consenso sobre o crime. Ao invocar um palpite jurídico qualquer sobre o crime, tentam se eximir da responsabilidade política pela inércia.
O procedimento da Câmara dos Deputados, ainda por cima, dá ao seu presidente o poder de, à revelia do plenário, bloquear o impeachment. E passamos o último ano sem poder escrutinar publicamente crimes de responsabilidade de Jair Bolsonaro com base no "acho que não" de Rodrigo Maia. Arthur Lira não hesitará em usar do mesmo expediente. O argumento jurídico virou uma pechincha.
Antes de julgar e punir, investigar e argumentar. Temos sido sonegados dessa oportunidade elementar.
*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Folha de S. Paulo: Bolsonaro planeja reforma ministerial a conta-gotas para testar fidelidade de centrão
Presidente foi aconselhado a nomear agora dois indicados de siglas aliadas e a deixar mais mudanças para o segundo trimestre
Gustavo Uribe, Daniel Carvalho e Thiago Resende, Folha de S. Paulo
Com a vitória de dois aliados para comandar o Senado e a Câmara, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) discute agora fazer uma reforma ministerial a conta-gotas para testar a fidelidade dos partidos do centrão à pauta governista.
O presidente ouviu de ministros que participam da articulação politica que, neste primeiro momento, a abertura de um espaço amplo para a base aliada na Esplanada dos Ministérios pode ter efeitos indesejados no futuro.
O primeiro deles é o risco de sofrer traições em votações de projetos, já que hoje a ocupação de espaços não está vinculada diretamente à pauta governista.
Para evitar surpresas negativas, a estratégia defendida é a de que o presidente só entregue os cargos prometidos após a aprovação de propostas prioritárias.
O segundo efeito é a possibilidade de que um pagamento integral da fatura estimule os partidos do centrão a exigir mais espaço no primeiro e no segundo escalões em um futuro próximo, obrigando o presidente a entregar mais cargos do que o pretendido inicialmente.
Para evitar esses efeitos colaterais em médio prazo, a ideia avaliada por Bolsonaro é, neste primeiro momento, nomear indicados dos partidos aliados em apenas duas pastas: Cidadania e Desenvolvimento Regional.
A primeira seria usada para fazer um aceno à Câmara, e a segunda, uma sinalização ao Senado.
Na segunda-feira (1º), Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira (PP-PI) venceram com grande vantagem seus adversários no Senado e na Câmara, respectivamente, após intervenção do Palácio do Planalto, que ofereceu emendas e cargos.
Apesar das vitórias expressivas, o Planalto ainda não sabe o tamanho real de sua nova base aliada, já que os 302 votos recebidos por Lira (de 513 deputados) e os 57 que elegeram Pacheco (de 81 senadores) não são, necessariamente, de parlamentares bolsonaristas.
Para abrir espaço na pasta da Cidadania, como a Folha noticiou no mês passado, a ideia é transferir o ministro Onyx Lorenzoni (DEM) para a Secretaria-Geral, que desde o início do ano está sem ministro efetivo.
Para acomodar Onyx, a pasta deve ser desidratada, perdendo o comando da SAJ (Subchefia para Assuntos Jurídicos), que passará a ser vinculada diretamente ao gabinete presidencial.
Para o comando da Cidadania, o favorito é o deputado federal Márcio Marinho (Republicanos-BA), que integra a bancada evangélica e é próximo do presidente nacional do Republicanos, Marcos Pereira (SP). A legenda se alinhou a Lira após indicações de cargos na máquina federal.
Marinho foi líder do partido em 2016, quando o Republicanos, na época ainda chamado de PRB, desembarcou do governo Dilma Rousseff (PT) e anunciou apoio ao impeachment da petista. Um dos pontos de discordância alegados era a política econômica.
No ano passado, ele defendeu a ampliação do auxílio emergencial para atender também a profissionais do setor cultural, o que sofreu resistência da equipe econômica.
O Ministério da Cidadania foi responsável pelo pagamento do auxílio financeiro e cuida do programa Bolsa Família, que, no planos do governo, deve ser reforçado.
Já o comando de Desenvolvimento Regional foi oferecido ao agora ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP), que recusou o convite. Ele, porém, quer indicar um aliado para o posto.
O principal nome avaliado por ele para a posição é o do líder do governo no Congresso, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO).
A nomeação dele serviria como uma compensação ao MDB, partido com a maior bancada do Senado, e que, após pressão do Palácio do Planalto, abriu mão do apoio à candidatura da senadora Simone Tebet (MDB-MS) ao comando da Casa.
Pela nova estratégia do governo, as demais mudanças em pastas ministeriais ficariam para o segundo trimestre deste ano, período em que o Planalto pretende aprovar a reforma administrativa, formulada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
O segundo pacote de mudanças pode envolver, por exemplo, a recriação do Ministério do Esporte e a alteração no comando da Saúde. Para o primeiro posto, a principal cotada é a deputada federal Celina Leão (PP-DF), aliada de Lira.
Para o segundo, é defendido desde o ano passado o nome do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), que foi ministro da pasta durante o governo de Michel Temer (MDB). O nome dele já foi citado em reunião recente promovida na Casa Civil.
Bolsonaro ainda não decidiu se irá recriar a pasta de Indústria e Comércio, desmembrando a estrutura da Economia. Caso ele leve adiante a proposta, mesmo a contragosto de Guedes, a ideia é que ela seja entregue também ao Republicanos.
Apesar da pressão pela saída do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o presidente tem sinalizado que não fará mudanças por ora. Bolsonaro, contudo, não descarta trocá-lo a qualquer momento caso o desgaste da imagem dele se agrave.
Para o Itamaraty, três nomes são avaliados, sendo dois embaixadores: André Corrêa do Lago, hoje na Índia, e Nestor Forster, nos EUA.
O primeiro é neto do diplomata Oswaldo Aranha e ajudou a destravar o transporte das vacinas da Índia. O segundo tem o apoio do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
Com a indicação, além de nomear alguém de sua confiança para o cargo de ministro, o presidente sinalizaria ao governo do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, uma mudança de postura ao escolher um novo chanceler.
Uma terceira opção em análise é o nome do atual secretário de Assuntos Estratégicos, almirante Flávio Rocha. Além de falar cinco idiomas, o militar já foi enviado pelo presidente para missões diplomáticas no Líbano e na Argentina.
Maílson da Nóbrega: Como Bolsonaro prejudica o Banco do Brasil
É o primeiro presidente a interferir na gestão administrativa do BB. Isso tem consequências
Dias atrás noticiou-se que o presidente Jair Bolsonaro iria demitir o presidente do Banco do Brasil (BB), André Brandão, no cargo havia apenas quatro meses. Motivo: sua irritação com o anúncio, pelo BB, de um programa de demissão voluntária, que estimava a adesão de 5 mil funcionários, e o fechamento de 112 agências. As ações do banco despencaram na B3.
Bolsonaro já havia interferido na gestão do BB. Em 2019 mandou o banco suspender a veiculação de um comercial de TV que buscava atrair grupos jovens, até mesmo com apelo a questões de raça e gênero. O vídeo recebeu elogios de especialistas, mas irritou um presidente sensível a pautas de costumes e ignorante da realidade do banco.
Nesses dois casos, o BB seguia estratégia para se manter competitivo no sistema bancário. Essa realidade foi iniciada a partir de 1986, quando o banco perdeu o acesso à “conta de movimento”, um mecanismo que lhe conferia suprimento automático, ilimitado e sem custos de recursos do Banco Central (BC).
Com o tempo, a “conta de movimento” tornou-se insustentável. Ela provocava emissões de moeda, que precisavam ser neutralizadas pelo BC, mediante venda de títulos públicos federais. Os empréstimos do BB impactavam o endividamento da União e eram fonte de pressões inflacionárias. A “conta de movimento” foi extinta em 1986.
Essa mudança criou um desafio para o BB, o de sobreviver sem o acesso fácil e grátis a recursos do BC. O risco de falência foi evitado mediante injeção de capital da União, nos anos 1990. De lá para cá, o banco modernizou-se, adotou novas práticas gerenciais e ajustou sua estrutura à nova realidade.
Hoje, o novo desafio é adaptar-se a um ambiente crescentemente competitivo. O BB tem de se preparar, via eficiência, para concorrer com seus pares no setor privado. Seus concorrentes têm reduzido quadros de pessoal e fechado agências. As medidas do BB eram coerentes com essa realidade.
Nada disso foi inteiramente absorvido por grande parte da classe política, que ainda enxerga o BB pelas lentes dos tempos da “conta de movimento”. De tempos em tempos surgem pressões para que o banco amplie seus empréstimos a juros abaixo do mercado ou para que seja utilizado para forçar os bancos privados a reduzir suas taxas de juros, como se continuasse a obter recursos no BC, sem custos. Dilma Rousseff deu ordens ao banco para emprestar mais a juros camaradas, impactando sua rentabilidade. Bolsonaro parece ter a mesma visão ultrapassada. Pior, vem mostrando não entender os poderes do acionista controlador. É o primeiro presidente a interferir na gestão administrativa do banco.
A demissão do presidente do BB, ao que se diz, foi suspensa por conselho dos que alertaram Bolsonaro sobre os riscos da imprudência. Acionistas minoritários nacionais e estrangeiros poderiam buscar a responsabilização administrativa ou judicial do presidente, alegando o crime de abuso do controlador.
O BB tem naturalmente dificuldades de competir com os bancos privados, dados os custos que lhe são inerentes. Entre eles, pode-se mencionar a sede em Brasília, que desconsidera as características de sistemas financeiros em todo o mundo, qual seja, a concentração em certas cidades, o que propicia economias de aglomeração. Os bancos se agregam em Nova York, São Francisco, Londres, Frankfurt, Zurique, Amsterdã, Paris, Roma e outras praças relevantes. No Brasil, isso ocorre em São Paulo.
Além disso, o Banco do Brasil está sujeito a outros ônus, como o de submeter-se às regras de concorrência pública para adquirir equipamentos e serviços, bem como à volatilidade administrativa derivada da substituição de sua diretoria ao sabor das mudanças de governo, ou mesmo antes, como já aconteceu na atual administração.
O mercado financeiro identifica e precifica os riscos da interferência do governo no BB. As ações do banco sofrem um desconto em relação aos seus principais pares do sistema bancário. O desconto médio tem oscilado em torno de 30%, mas costuma subir em momentos de intervenção governamental. Passou de 50% em 2015-2016, quando a presidente Dilma Rousseff deu ordens para o banco aumentar empréstimos e reduzir juros. Agora chegou perto disso, com o voluntarismo inconsequente de Bolsonaro. No começo do governo Lula, o BB chegou a exibir um prêmio sobre as ações de seus concorrentes privados, quando a percepção era de que não havia ingerência externa na sua gestão.
A demissão do presidente do BB foi evitada, mas a possibilidade de sua ocorrência neste governo pode ter deixado consequências. O presidente do BB, detentor de uma carreira bem-sucedida em importantes bancos privados, deve ter-se dado conta de que não dispõe da autonomia que lhe fora assegurada quando do convite para dirigi-lo. Doravante terá de pensar duas ou mais vezes quando tiver de tomar decisões, avaliando quais delas poderiam excitar os instintos intervencionistas e autoritários do presidente. É um novo custo. O mal está feito.
SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA
Afonso Benites: Lira acomoda oposição, mas acordo reduz participação de mulheres
Grupo do novo presidente do Legislativo aumentou de 3 para 4 membros na Mesa Diretora. Oposição terá duas vagas e só uma ocupada por uma mulher. Depois de ameaças, grupo de Baleia Rossi não levou tema ao STF
Primeiro bate. Depois assopra. Assim foram as primeiras 24 horas da gestão do neobolsonarista Arthur Lira (PP-AL) na Presidência da Câmara dos Deputados. Temendo a judicialização de um tema interno do Legislativo, o parlamentar alagoano líder do Centrão deu um passo atrás e desistiu de cancelar todas candidaturas dos membros do bloco opositor ao seu na disputa pelo comando da Casa. Na reunião de líderes, Lira chegou a um denominador comum com outras lideranças em que seu grupo político acabou ganhando quatro vagas dentre as seis da Mesa Diretora. As outras duas, acabaram com os apoiadores de Baleia Rossi (MDB-SP).
Até a noite de segunda-feira, as seis cadeiras seriam divididas igualitariamente, três para cada bloco parlamentar. No entanto, assim que eleito, Lira decidiu invalidar a inscrição do grupo de Baleia Rossi e embaralhou o jogo. O motivo foi que o PT havia entregue seus documentos de inscrição da chapa seis minutos além do horário permitido, o qu, na sua visão, causaria um vício formal ao processo, mas mesmo assim foi aceito por Rodrigo Maia. Sua estratégia era ocupar cinco das seis vagas ainda em disputa da Mesa Diretora. Diante da repercussão, nesta terça-feira, negociou a nova configuração. Alguns deputados disseram que ele chegou querendo imprimir o seu tom à administração, que oscila entre a firmeza e a abertura ao diálogo. “O ato foi necessário, não para dar um pé na porta, mas um freio de arrumação”, afirmou minutos após ser eleito em entrevista à emissora CNN Brasil.
A solução de Lira resultou que a Mesa Diretora será ocupada assim: o PL indicará a primeira-vice-presidência, o PSD, a segunda. A primeira secretaria, que é responsável pelo orçamento da Casa, será do PSL. A segunda secretaria fica com o PT. A terceira, com o PSB. E a quarta, com o Republicanos. Desses, apenas petistas e peessebistas não são originalmente do grupo de Lira. Com a nova composição, o PSDB e a REDE acabam excluídos do processo.
Na nova configuração, também há uma considerável redução da participação feminina na cúpula gerencial da Câmara. Antes, havia a expectativa que três dos seis postos chaves ―excluindo a presidência― fossem ocupados por mulheres. Agora, apenas o nome de Marília Arraes, pelo PT, deverá figurar entre as dirigentes da Casa. Antes as outras indicadas seriam Rose Modesto (PSDB-MS) e Joenia Wapichana (REDE-RR). Havia um simbolismo nessas nomeações, já que apenas 15% da Câmara é ocupada por mulheres. No caso de Joenia, ela seria a primeira indígena a ocupar um cargo de comando na Casa.
Tradicionalmente, a ocupação dos cargos na Mesa Diretora ocorre de maneira proporcional. Ou seja, os maiores partidos ou blocos partidários indicam quem ocupará cada função. Se a decisão de implosão do grupo de Baleia persistisse como ameaçou Lira, apenas o PT entre os dez apoiadores de Baleia Rossi poderia indicar um membro. Como quem estivesse doutrinando os seus pares, Lira disse ao final do encontro dos líderes partidários que espera que os deputados tenham entendido como serão tomadas as decisões de sua gestão. “Nós trataremos democraticamente, sempre por maioria, ou decisões da Mesa ou decisões do colégio de líderes. Nada mais de decisões isoladas, como dissemos durante a campanha”, afirmou aos jornalistas.
Com a decisão da madrugada, os parlamentares que se sentiram prejudicados ameaçaram ingressar com uma ação conjunta no Supremo Tribunal Federal, o que não ocorreu em decorrência da composição ajustada por Lira e os líderes ao longo da tarde.
Por que a disputa?
Essas funções de dirigentes na Câmara são consideradas estratégicas pois, por meio delas, os parlamentares ganham destaque midiático, podem contratar assessores comissionados e administram orçamentos internos. Além de substituir o presidente, o primeiro-vice-presidente da Câmara é o responsável por analisar os requerimentos de informação a outros órgãos públicos. O segundo-vice analisa os pedidos de reembolso de despesas dos deputados e age como uma ponte institucional com órgãos dos Legislativos de Estados e Municípios.
O primeiro-secretário é uma espécie de prefeito da Câmara. O segundo zela pelas relações internacionais da Casa, o que inclui a emissão de passaportes para os deputados e o estágio universitário. O terceiro-secretário analisa requerimentos de licença e justificativas de ausência dos parlamentes assim como dá autorização prévia de reembolso de despesas com passagens aéreas internacionais. Já o quarto-secretário controla os apartamentos funcionais da Casa.
Cláudio Gonçalves Couto: Quando o rabo abana o cachorro, ou a eterna volta do Centrão que nunca se foi
Pressionado pelas ameaças de impeachment e pelas investigações que o acossam, Bolsonaro inverteu a lógica do presidencialismo de coalizão com as eleições de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco
Durante seu primeiro ano e meio de mandato, Jair Bolsonaro tentou cumprir uma promessa impossível que fez a seus eleitores, mas que a bem da verdade fez mesmo foi a si próprio: governar sem base de sustentação no Congresso. No país do presidencialismo de coalizão, Bolsonaro fez muitos crerem (e talvez ele mesmo tenha acreditado) que montar uma coalizão presidencial decorreria de uma escolha do presidente, em vez de ser uma imposição institucional. O apoio desbragado de seu Governo a Arthur Lira na Câmara e a Rodrigo Pacheco no Senado mostraram que, ao menos momentaneamente, o chefe de Governo cedeu à realidade do funcionamento de nosso presidencialismo multipartidário.
A coalizão que Bolsonaro agora monta, contudo, tem lá suas particularidades. Primeiramente porque, diferentemente de seus antecessores, o atual mandatário não dispõe de um partido que possa capitanear essa aliança. Sarney contou com o velho PMDB, FHC com o PSDB e Lula com o PT. Jair dinamitou as relações com a legenda de ocasião pela qual se elegeu e para cujo inchaço contribuiu —o PSL. No lugar dela, ficou sem nada, já que a tentativa de construir o Aliança pelo Brasil naufragou miseravelmente. O resultado imediato desse fracasso foi o grande fiasco presidencial nas eleições municipais, em que o presidente não dispôs de uma agremiação sua, que pudesse fazer crescer e reforçar sua base país afora —para além do insucesso quase geral dos candidatos avulsos apoiados por ele.
O outro desdobramento dessa situação aparece agora. O presidente é mais caudatário de uma coalizão legislativa à qual aderiu do que o contrário. Durante obiênio de Rodrigo Maia se falava em parlamentarismo branco, uma analogia imprecisa para descrever o que era, na realidade um Governo congressual. Nesse contexto, o Executivo, indisposto a articular uma base parlamentar e incapaz de liderar o processo legislativo, reivindicava os méritos pela aprovação de medidas que, embora convergissem com sua agenda na área econômica, eram aprovadas mais a despeito do que graças ao Governo. Não à toa colheu seguidas derrotas na derrubada de vetos, caducidade de medidas provisórias e irrelevância congressual da pauta reacionária de costumes.
Pressionado pelas ameaças de impeachment e pelas investigações que o acossam, acossam seus familiares e apoiadores radicais, Bolsonaro inverteu a lógica do presidencialismo de coalizão, em que os partidos do assim chamado Centrão aderem ao Governo do dia em troca de benesses estatais —razão pela qual entendo que sejam mais bem definidos como partidos de adesão. Em vez disso, é Bolsonaro que adere a eles, mostrando que por vezes, na política, ocorre de o rabo abanar o cachorro.
Tal inversão é reveladora não só da fragilidade estrutural desse Governo —dependente que é da proteção dos partidos de adesão por meio de uma coalizão defensiva—, mas também do quão tênue é a conversão de Bolsonaro à moderação democrática inerente ao presidencialismo de coalizão. O presidente da segunda metade do mandato não se tornou mais comedido; apenas recuou. Para isso, lançou mão dos vultosos recursos disponibilizados pelo “orçamento de guerra” da pandemia para cooptar a maioria que elegeu Arthur Lira, provocando rachas em partidos que até então mantinham certa independência com relação ao Executivo, como o DEM, o PSDB e o MDB.
O caso do DEM é particularmente notável e merece comentário à parte. A agremiação logrou, durante os anos petistas, manter-se na oposição. Isso levou à sua diminuição congressual, com parlamentares menos programáticos abandonando o barco e rumando para os partidos de adesão que constituíram a base fisiológica das coalizões petistas (PP, PL/PR, PTB, PRB, PSD, PMDB). A longa travessia no deserto pareceu ser recompensada com a entrada no Governo Temer, a conquista da presidência da Câmara por Rodrigo Maia e o bom desempenho nas últimas eleições municipais. Ou seja, o DEM mostrou não se tratar de um partido de adesão —à diferença do PMDB. Mas eis que agora o partido sucumbe ao fisiologismo e ao regionalismo (notadamente o baiano), embarcando de vez na nau adesista. Embora tenda a render frutos no plano regional, tal manobra reduz muito a capacidade do partido de liderar uma coligação competitiva nas próximas disputas presidenciais. Afinal, partidos programaticamente invertebrados têm dificuldade de se incumbir dessa tarefa.
É bem verdade que para esse desfecho contribuiu decisivamente o estilo imperial e a voracidade de Rodrigo Maia. Ao mesmo tempo que se indispôs com os colegas de Câmara, dispensando-lhes mais desdém do que atenção, apostou demasiadamente na possibilidade (sempre algo dissimulada) de uma nova recondução à presidência da Casa. Seu fracasso nesse intento acabou por levar de roldão também as pretensões de seu colega de partido e então presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Com isso, Maia não apenas se isolou no DEM e fora dele, mas perdeu o timing para construir sua sucessão. Quando tentou fazê-lo, Lira já estava muitas braçadas à frente, contando ainda com o substancial auxílio da busca aflita do Governo por proteção congressual. Ambição em excesso (como na relutância em construir um sucessor para valer) e não fazer as coisas no tempo certo são dois erros mortais que frequentemente acometem políticos até então bem-sucedidos, mas inebriados com o próprio sucesso. Costumam custar caro, como mostram tantos casos na história.
A questão agora é saber se o Governo Bolsonaro terá mais do que proteção congressual, ao menos enquanto compensar para os partidos de adesão e suas lideranças se manterem atrelados ao barco governista. No Senado, a maioria que elegeu Pacheco contra a candidata identificada com o lavajatismo, Simone Tebet, congrega forças que estão muito longe de apoiar o bolsonarismo e suas agendas —como PT, PDT e Rede. Na Câmara, embora Lira não tenha tido o apoio dos partidos da oposição de esquerda, contou com votos que ultrapassam em muito as hostes bolsonarescas, e que dificilmente se repetirão quando (e se) temas da pauta reacionária de costumes forem a votação. Ou seja, uma coisa é ter apoio suficiente para evitar um impeachment, CPIs incômodas e outras iniciativas tormentosas —ou seja, uma base defensiva. Outra, bem diferente, é fazer avançar uma agenda própria altamente controversa, contando para isso com os votos de uma coalizão que o Governo não lidera, pois em vez de ela ter aderido a ele, foi ele que aderiu a ela.
E tudo isso, claro, sem contar com a forma como tal base se comportará caso se mantenha a queda de popularidade do atual presidente. Nessa frente, as perspectivas não são das melhores, tendo em vista a situação econômica, a condução na pandemia e, por último, mas não menos importante, a decepção que Bolsonaro provocou em boa parte de seus antigos eleitores ao fazer justamente aquilo que prometera combater: a velha política do Centrão —ainda que em sua versão invertida.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV EAESP, produtor do canal do YouTube e podcast ‘Fora da Política Não há Salvação’.