Congresso Nacional
Em protestos, Bolsonaro faz ameaça golpista ao Supremo Tribunal Federal
Enfraquecido, presidente comparece a atos em Brasília e São Paulo convocados para mobilizar ala mais radical de seus apoiadores
O presidente Jair Bolsonaro discursou nesta terça-feira, feriado de 7 de Setembro, em atos pró-governo, quando voltou a expressar falas em tom golpista, fazer ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF) e criticar o sistema eleitoral do país.
Em São Paulo, diante de apoiadores aglomerados na Avenida Paulista, o presidente renovou seus ataques ao STF, que recentemente prendeu vários de seus aliados e tem tomado algumas iniciativas para impedir que o governo tumultue as eleições de 2022.
Bolsonaro chegou a mencionar pelo nome o ministro Alexandre de Moraes, seu desafeto na Corte e responsável por inquéritos que afetam bolsonaristas. "Ou esse ministro se enquadra ou ele pede pra sair", afirmou. "Não vamos admitir que pessoas como Alexandre de Moraes continuem a violar nossa democracia."
Após ter rejeitada pelo Congresso sua proposta de reforma do sistema eleitoral, o presidente voltou a questionar a idoneidade e a segurança das eleições, apesar de ainda não apresentar evidências que comprovem suas acusações.
"Não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece qualquer segurança", disse. "Não é uma pessoa do Tribunal Superior Eleitoral que vai nos dizer que esse processo é seguro e confiável." Bolsonaro é crítico das urnas eletrônicas e defende o voto impresso auditável, apesar de o TSE ter assegurado que as urnas já são auditáveis.
Protestos contra Bolsonaro no Sete de Setembro
No fim do discurso, Bolsonaro ainda repetiu uma frase que havia dito há poucos dias, sobre seu futuro em Brasília: "[Só saio] preso, morto ou com vitória. Direi aos canalhas que eu nunca serei preso", declarou. "Só Deus me tira de Brasília."
Segundo a Polícia Militar, o ato na Paulista reuniu 125 mil pessoas. Uma manifestação simultânea organizada por grupos de oposição a Bolsonaro no Vale do Anhangabaú, o chamado Grito dos Excluídos, contou com 15 mil pessoas.
Horas antes, o presidente já havia feito ameaças ao Supremo em um primeiro discurso no protesto de Brasília, também parte de uma convocação nacional organizada por ele e aliados.
"Ou o chefe do Poder [Judiciário] enquadra o seu, ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos", disse Bolsonaro, em recado direto ao presidente do STF, Luiz Fux. "Quem age fora dela [Constituição] ou se enquadra, ou pede para sair", completou Bolsonaro, no ato que reuniu apoiadores na capital federal.
"Não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos Três Poderes continue barbarizando a nossa população. Não podemos aceitar mais prisões políticas no nosso Brasil", discursou.
No momento, Bolsonaro enfrenta uma queda constante de aprovação, economia em crise, pandemia, o fantasma de um apagão energético, insatisfação crescente entre o empresariado e denúncias de corrupção.
"[Só saio] preso, morto ou com vitória. Direi aos canalhas que eu nunca serei preso", diz Bolsonaro em São Paulo
Tentativa de demonstrar força
A convocação dos atos deste feriado é encarada como uma tentativa de Bolsonaro de demonstrar alguma força nesse momento de perda de influência e como uma forma de intimidar o STF. Os atos vêm sendo divulgados há semanas pelo presidente, também como uma forma de agitar a ala extremista de sua base.
O foco das falas foi especialmente dirigido aos ministros do STF Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso – este também presidente do TSE –, que são com frequência tratados como inimigos pelo presidente e sua base.
Discurso de Bolsonaro na Esplanada
- https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro/videos/269233055031491/
- https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro/videos/252448776756577
Moraes é responsável por diversos inquéritos que afetam bolsonaristas e determinou a prisão de aliados do presidente, como o deputado Daniel Silveira e o presidente do PTB, Roberto Jefferson, que incitaram violência contra ministros do Supremo.
Já Barroso, na condição de presidente do TSE, se opõe à adoção do voto impresso, uma bandeira bolsonarista, encarada como uma forma de minar a confiança no processo eleitoral e tumultuar as eleições de 2022, que se desenham extremamente desfavoráveis para Bolsonaro, segundo pesquisas.
Bolsonaro também tem um longo histórico de falas a favor de um golpe de Estado no Brasil, e desde que tomou posse tem protagonizado embates tanto com o Judiciário quanto com o Congresso.
Atos de 7 de Setembro
O discurso do presidente não foi transmitido ao vivo por canais de TV ou redes sociais devido a dificuldades técnicas no sinal da região. Algumas filmagens conseguiram captar apenas alguns trechos da fala do presidente, que estava cercado de apoiadores que seguravam placas e faixas pedindo um golpe militar e a dissolução do STF e do Congresso.
Atos bolsonaristas também ocorrem no Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre e outras capitais.
Em Brasília, imagens da manifestação mostraram um comparecimento mais considerável que nos esvaziados protestos bolsonaristas dos últimos meses, mas observadores políticos apontaram que o número de manifestantes foi menor do que o esperado. Filmagens aéreas mostraram vários espaços vazios ao longo da Esplanada. Era também possível ver junto aos canteiros diversos ônibus e caminhões que transportaram manifestantes.
Segundo o jornal Folha de S. Paulo, houve registro de episódios de violência em Brasília. Pelo menos duas pessoas na Esplanada dos Ministérios que participavam dos atos com filmagens foram apontadas como "infiltradas" por manifestantes da base radical do presidente e agredidas com empurrões e socos.
Manifestação na Esplanada, em Brasília, no Sete de Setembro
Em São Paulo, simultaneamente à manifestação na Paulista, ocorria um ato organizado pela oposição, o Grito dos Excluídos, que reuniu milhares de pessoas no Vale do Anhangabaú, região central da cidade. A manifestação é organizada tradicionalmente em 7 de setembro por partidos da esquerda, encabeçados por PT, Psol e PSB, e por centrais sindicais.
Um dos organizadores do evento, o coordenador da Central de Movimentos Populares, Raimundo Bonfim, disse que, pela primeira vez em 27 anos, a manutenção da democracia é o tema central do Grito dos Excluídos, em vez de desemprego, fome e exclusão social.
Segurança reforçada
O Supremo Tribunal Federal, um dos alvos favoritos de críticas dos bolsonaristas, reforçou a segurança do seu prédio para desestimular potenciais atos de depredação ou invasão.
Em várias redes bolsonaristas, seguidores mais fanáticos do presidente têm encarando os protestos do feriado como uma oportunidade de insurreição similar a que ocorreu em 6 de janeiro nos EUA, quando uma turba de apoiadores de Donald Trump invadiu o Capitólio para tentar impedir a confirmação da vitória de Joe Biden, ou como uma chance de estimular as Forças Armadas a aderirem ao movimento.
Influenciadores bolsonaristas já estimularam atos violentos no passado que acabaram não se materializando ou que não geraram o efeito desejado. Dessa forma, analistas apontam que os atos podem se limitar a servir para mais uma vez agitar a base extremista do governo e alimentar a tensão permanente com outros Poderes.
Discurso de Bolsonaro na Paulista
- https://fb.watch/7TIkEEBRjG/
- https://fb.watch/7TInlmYCVK/
- https://fb.watch/7TIpR-s8bE/
- https://fb.watch/7TIqH13cUx/
- https://fb.watch/7TIrogRn-2/
- https://fb.watch/7TIr_8UZq3/
- https://fb.watch/7TIsu4NFBC/
- https://fb.watch/7TIta6NoxU/
- https://fb.watch/7TIuHDXp8k/
Antes de participar do ato com apoiadores, Bolsonaro acompanhou a cerimônia de hasteamento da bandeira ao lado de 16 ministros e do ex-presidente e senador Fernando Collor, nos jardins do Palácio da Alvorada.
Também participaram o vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), e o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), que está no centro de um escândalo envolvendo suspeitas de compra superfaturada de vacinas e favorecimento de empresas.
Em meio ao clima de tensão entre os Poderes estimulado por Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, não participaram da cerimônia de hasteamento da bandeira.
Mais cedo, Pacheco publicou em suas redes sociais uma mensagem sobre a "absoluta defesa do Estado Democrático de Direito".
"Ao tempo em que se celebra o Dia da Independência, expressão forte da liberdade nacional, não deixemos de compreender a nossa mais evidente dependência de algo que deve unir o Brasil: a absoluta defesa do Estado Democrático de Direito", escreveu o senador, que recentemente freou uma investida de Bolsonaro contra o Judiciário ao engavetar um pedido de impeachment apresentado pelo presidente contra o ministro Alexandre de Moraes.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/em-protestos-bolsonaro-faz-amea%C3%A7a-golpista-ao-stf/a-59114324
Senadores repercutem discursos de Bolsonaro em Brasília e em SP
Comentários dos senadores variaram do apoio ao governo até o pedido de impeachment
Agência Senado
A participação do presidente da República, Jair Bolsonaro, em manifestações políticas, em Brasília e em São Paulo, nesta terça-feira (7), nas comemorações do Dia da Independência, gerou opiniões divergentes entre os senadores. Os comentários variaram do apoio ao governo até o pedido de impeachment.
Em dois discursos, pela manhã na Esplanada dos Ministérios, na capital federal, e à tarde na Avenida Paulista, o presidente voltou a questionar a confiabilidade das eleições em urnas eletrônicas e afirmou que não vai obedecer determinações judiciais do ministro do STF Alexandre de Moraes.
A defesa do impeachment de Bolsonaro foi feita pelo líder da Minoria, senador Jean Paul Prates (PT-RN) e pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Vieira apresentou a justificativa para o impeachment em postagem no Twitter.
"A lei 1079 define os crimes de responsabilidade do Presidente da República. No seu art 4º, VIII, fala exatamente do não cumprimento de decisões judiciais. A pena é perda do cargo (impeachment) e dos direitos políticos por até 5 anos. Vocês avisam o [presidente da Câmara, Arthur] Lira, por favor?", publicou.
O líder da minoria foi mais incisivo: "Nem morto, nem preso... derrotado ! Só restam duas alternativas para Bolsonaro depois do dia de hoje: renúncia ou impeachment!", declarou.
A senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) defendeu “punição exemplar” para quem não obedece a Constituição.
"Quando um presidente se recusa a obedecer uma decisão judicial é porque não obedece mais a Constituição Federal, é porque já se transformou num ditador. E quem não cumpre a lei, deve ser exemplarmente punido."
Também pelo Twitter, o senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) reagiu às acusações contra o presidente.
"A mensagem foi clara e não tem absolutamente nada a ver com ataque a STF ou Congresso, muito pelo contrário. Que o pedido de Jair Bolsonaro por respeito à Constituição ecoe nos três Poderes. Que os dez do STF possam resolver internamente o único desestabilizador da democracia no momento".
Ameaças
O líder do PT, senador Paulo Rocha (PA), disse que Bolsonaro "promoveu ataques às instituições democráticas em seu discurso na Avenida Paulista, em ato que defende um golpe de estado no país.”
"Que fique claro: vai ficar só na ameaça. Mas, senhor presidente, ser cassado por ameaçar um Poder da República é real."
Ainda pelo Twitter, o líder do Podemos, senador Álvaro Dias (PR), afirmou que “Bolsonaro faz ameaça golpista a STF em ato com milhares em Brasília”. Ele disse, ainda, que Bolsonaro "em discurso na Av. Paulista avisa que não respeitará mais decisões do Supremo Tribunal Federal. E a pregação da anarquia!"
Os senadores Renan Calheiros (MDB-AL) e Simone Tebet (MDB-MS) postaram o mesmo vídeo com trecho do discurso de Ulysses Guimarães em que ele fala sobre o “ódio e nojo à ditadura e que traidor da Constituição é traidor da pátria”.
Para a líder da Bancada Feminina, “o grito de hoje do presidente da República, recheado de insinuações, ameaças e ações constantes contra a ordem democrática e as liberdades públicas” tem uma resposta:
"O Congresso Nacional está vigilante para conter qualquer tentativa de retrocesso".
População insatisfeita
Em defesa das manifestações, Flávio Bolsonaro afirmou que o número de manifestantes mostra a insatisfação da população com ações, segundo ele, antidemocráticas, de um único ministro do Supremo Tribunal Federal, sem citar o nome do magistrado
"Quem insiste na narrativa cretina de “atos antidemocráticos” ou que milhões de brasileiros estão nas ruas hoje apenas por causa de Jair Bolsonaro vive em outra dimensão. Se recusam a perceber a insatisfação da população ante atos antidemocráticos de um único Ministro do STF", afirmou.
Já Marcos Rogério, líder do Democratas, divulgou nas redes trecho do sobrevoo que fez no helicóptero do presidente Bolsonaro pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, durante a manifestação.
"Este 7 de setembro entrou pra história! Tivemos um dia de manifestações pacíficas e legítimas a favor de um governo. Retrato bem diferente de tempos passados. É democracia fortalecida!", defendeu, reforçando que as manifestações foram espontâneas e que a população foi às ruas defender as pautas que elegeram nas urnas. "O Judiciário não pode se sobrepor ao Legislativo e ao Executivo", completou.
Os senadores Marcio Bittar (MDB-AC), Jorginho Mello (PL-SC) e Soraya Thronicke (PSL-MS) também participaram das manifestações de apoio ao presidente Bolsonaro em Brasília. Para Bittar, foi um “festa da democracia".
"As famílias foram às ruas, no Brasil inteiro, para pedir pela liberdade, saudar seu presidente, reafirmar sua vontade!”, tuitou o senador.
Soraya citou versos do hino da Independência: "Brava gente brasileira! Longe vá temor servil Ou ficar a Pátria livre Ou morrer pelo Brasil."
O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) ressaltou que é necessário refletir sobre o impacto da mobilização popular.
"Participei em Brasília do gigante ato neste 7 de setembro, no qual milhares clamaram por liberdade. Agora, é preciso refletir sobre o impacto das manifestações. Amanhã cedo tratarei no Senado de ações que atendam aos legítimos anseios do povo, pelo bem da democracia."
Financiamento
A suspeita de que as manifestações foram financiadas foi levantada por alguns dos senadores. Humberto Costa (PT-PE), que disse estar oficializando o ministro Alexandre de Moraes para que investigue o financiamento dos atos.
"Precisamos saber quem está pagando essa conta e com que dinheiro", cobrou.
Eliziane reforçou a acusação: "numa manifestação golpista, com faixas em inglês e claramente financiada, o presidente se mostra contra a Constituição e a democracia que o elegeu".
Para a senadora Leila Barros (Cidadania-DF), a crise político-institucional se agravou neste 7 de Setembro.
"Lamentavelmente, o presidente da República tem abdicado de procurar soluções para os problemas do país e ele próprio passou a ser um gerador de problemas e turbulências. Hoje, em pronunciamentos públicos em Brasília e em São Paulo, ele voltou a se comportar de forma antidemocrática e incendiária. Enquanto o presidente utiliza o dinheiro público e a estrutura do governo federal para atacar instituições e fazer campanha política indevida, a crise sanitária persiste, a inflação dispara, o poder aquisitivo das famílias desmancha, o desemprego continua provocando sofrimento", lamentou.
União pelo Brasil
Pela manhã, antes dos discursos de Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, se manifestou pedindo união em torno da defesa da democracia.
"Ao tempo em que se celebra o Dia da Independência, expressão forte da liberdade nacional, não deixemos de compreender a nossa mais evidente dependência de algo que deve unir o Brasil: a absoluta defesa do Estado Democrático de Direito."
As celebrações pelo Dia da Independência não tiveram o tradicional desfile militar na Esplanada dos Ministérios. Em tempos de pandemia de covid-19, a data foi comemorada com uma cerimônia de hasteamento da bandeira nacional no Palácio da Alvorada na manhã desta terça-feira com a presença do presidente Jair Bolsonaro. Participaram da cerimônia, além dos ministros e do vice-presidente, Hamilton Mourão, os senadores Fernando Collor (PROS-AL) e Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ).
Conselho da República
Durante o discurso na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, Bolsonaro anunciou que pretendia se reunir com o Conselho da República, nesta quarta-feira (8), mas a agenda não foi confirmada pelo Planalto. Dirigido pelo presidente da República, esse Conselho é composto pelo vice-presidente da República, os presidentes da Câmara e do Senado, os líderes da maioria e da minoria na Câmara e no Senado, o ministro da Justiça e seis cidadãos brasileiros maiores de 35 anos de idade. Foi criado em 1990 para deliberar sobre intervenção federal, estado de defesa, estado de sítio e questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas.
Randolfe Rodrigues (Rede-AP) disse que já conversou com os líderes partidários para que os dois indicados pelo Senado ao Conselho da República sejam ele e o senador Omar Aziz (PSD-AM).
"Adianto ao Presidente que já estamos prontos para tomar seu depoimento. O Senhor quer estar na condição de testemunha ou investigado Jair Bolsonaro? Estamos ansioso!"
O primeiro vice-presidente do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB) criticou também a convocação do Conselho.
"Um desgoverno, incompetente por excelência, precisa estar gerando instabilidades sempre. Os homens e mulheres consequentes devem continuar trabalhando e reagindo aos autocratas. É hora de saber quem é democrata!"
Críticas também proferidas pelo senador Fabiano Contarato (Rede-ES).
"A convocação do Conselho da República é uma tentativa de dar sobrevida ao carnaval golpista do 7 de setembro: mais cortina de fumaça pra ameaçar os Poderes e manter a claque mobilizada! Bolsonaro ladra, mas não morde. Não temeremos e não haverá aval do Congresso!"
Fonte: Agência Senado
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/09/07/senadores-repercutem-discursos-de-bolsonaro-no-dia-da-independencia-em-brasilia-e-em-sao-paulo
‘Urna eletrônica é motivo de orgulho para todos nós’, diz Jairo Nicolau
Autor de livros sobre política brasileira, professor da UFRJ e da FGV critica ataques de Bolsonaro
Cleomar Almeida, da equipe FAP
Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), o cientista político Jairo Nicolau critica os ataques do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contra a urna eletrônica e ao processo eleitoral brasileiro. Ele concedeu entrevista exclusiva à revista Política Democrática online de setembro (35ª edição), lançada nesta sexta-feira (3/9).
“Esse sistema foi colocado em xeque pelo senhor Jair Bolsonaro. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves”, afirmou ele. A revista é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. O conteúdo pode ser conferido, gratuitamente, na versão flip, no portal da entidade.
Veja, aqui, a versão flip da Política Democrática online de setembro (35ª edição)
Nicolau é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002) e Sistemas Eleitorais. (Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004). O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.
Mestre e doutor em Ciências Políticas no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, Nicolau diz que o processo político eleitoral brasileiro é um dos mais eficientes do mundo. “Continuo otimista com relação a nossa urna eletrônica e, agora, com o voto biométrico. É, sem dúvida, motivo de orgulho, não de polêmica, para todos nós, brasileiros”, asseverou.
"A urna eletrônica foi um grande passo para aperfeiçoar o processo de votação no Brasil. É, assim, um sucesso tanto contra a corrupção como na adulteração da vontade do eleitor no momento da votação e, claro, depois na contagem dos votos", avaliou o cientista político, na entrevista à Política Democrática online de setembro.
Segundo o entrevistado, estima-se que a militância do presidente da República, na suspeição do voto digital, possa ter contaminado cerca de um terço do eleitorado. "O estrago é tão lastimável como irreversível. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves", lamentou.
Nicolau lembrou que, até há pouco tempo, as fraudes ocorriam em dois momentos. O primeiro deles era na votação propriamente dita. “Todos aqui somos da época da urna de lona, da cédula de papel, e nos lembramos de como era difícil controlar as fraudes, mesas sendo arranjadas para facilitar que certas forças políticas comparecessem para encobrir o comparecimento de uma pessoa, votar no lugar de outra”, afirmou.
A fraude, de acordo com o professor, também ocorria na hora da apuração, quando todas as cédulas eram depositadas sobre mesas situadas em ginásios esportivos. “Pegava-se um uma cédula, lia-se o nome de um e cantava-se o nome de outro. Se não tivesse um fiscal ali, na hora de transformar os votos contados para os boletins de urna, ninguém detinha as fraudes. Fui presidente de sessão eleitoral durante muitos anos e acompanhei as apurações e lembro bem de alguns casos”, afirmou.
Na entrevista à revista Política Democrática online, Nicolau também comentou temas como o sistema político brasileiro, reforma política, fragmentação partidária e processo eleitoral, entre outros.
A íntegra da entrevista pode ser conferida na versão flip da revista, disponibilizada no portal da entidade. Os internautas também podem ler, na nova edição, reportagem sobre descaso do governo com a cultura e artigos sobre política, economia, meio ambiente e cultura.
Compõem o conselho editorial da revista o diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado, Caetano Araújo, o jornalista e escritor Francisco Almeida e o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques. A Política Democrática online é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado.
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RPD 35 || Leonardo Ribeiro: Um meteoro no país das pedaladas
Bolsonaro aposta na legalização de pedaladas fiscais com a PEC 23, que traz mudanças sobre a forma de pagamento de precatórios
O orçamento federal será atingido em cheio por um meteoro na forma de precatórios, e um míssil precisa destruí-lo antes do vultoso impacto fiscal. Foi dessa forma que o Ministério da Economia anunciou um passivo de R$ 90 bilhões em 2022, valor bem superior aos R$ 55,0 bilhões do ano corrente. Ato contínuo, o Governo apresentou solução heterodoxa para destruir o tal meteoro: uma Proposta de Emenda Constitucional – a PEC 23 – para parcelar pagamentos de precatórios acima de determinado valor, criando modalidade de ajuste fiscal do tipo “devo, não nego, pago quando puder”. Análise menos ligeira das entranhas da proposta revela negligências e boa dose de irresponsabilidade fiscal por parte das lideranças do Poder executivo, que parecem apostar na legalização de pedaladas fiscais para enfrentar as eleições no ano que vem.
Para começar, é importante reconhecer o tamanho do meteoro anunciado pela equipe econômica. O Poder Executivo conta com R$ 95 bilhões para manter programas governamentais – as chamadas despesas discricionárias. Isto quer dizer que a conta de precatórios a ser paga pelo Governo equivale a um novo orçamento discricionário. Para quem não sabe, despesas discricionárias são aquelas que podem ser cortadas no curto prazo, diferentemente daquelas ditas obrigatórias (previdência social e salários de funcionários públicos, por exemplo). E precatórios nada mais são do que títulos emitidos pelo Governo para atestar a obrigação de se pagar uma quantia de valores a pessoas, ou empresas, que ganharam na justiça o direito de receber do poder público um quinhão de recursos: é uma dívida do Estado.
Sabe-se também que desde 2016 vigora na administração pública federal regra fiscal que impede o crescimento das despesas públicas a taxas superiores à da inflação. Tal regra é conhecida como Teto de gastos. Matematicamente, é fácil demonstrar que o Governo não conseguirá quitar as dívidas com precatórios sem comprometer o funcionamento da máquina pública. Isto porque não há espaço fiscal para acomodar tantas despesas no mesmo orçamento.
Diante desse dilema – pagar precatórios ou manter em operação a máquina pública -, o Governo encaminhou para o Congresso a PEC 23 com objetivo de parcelar o pagamento dos precatórios devidos. A estratégia é clara: postergar o pagamento de despesas obrigatórias para não efetuar cortes no orçamento discricionário em magnitudes que paralisariam a máquina pública. Pode-se dizer que tal medida envolve negligências e irresponsabilidade fiscal.
Negligência por que não fica claro nessa barafunda o motivo pela qual os relatórios oficiais do Governo não identificaram no radar a chegada deste meteoro na forma de precatórios. O anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), por exemplo, não traz análises prévias sobre o crescimento sideral das despesas com precatórios e seus impactos no financiamento das políticas públicas. É impensável imaginar esse tipo de negligência em uma empresa privada de grande porte; porém, é ainda mais espantoso o Ministro da Economia - acostumado a lidar com riscos no mercado financeiro - não ter farejado o aerólito fiscal a tempo. Ou se o fez, não deu a devida importância à transparência de eventos que podem afetar o equilíbrio das contas públicas.
A essa negligência soma-se também boa dose de irresponsabilidade fiscal. O parcelamento de precatórios se resume a uma medida que esconde a situação real das contas públicas, na medida em que posterga o pagamento de despesas obrigatórias. Esse tipo de prática lembra as pedaladas fiscais praticadas nas eleições de 2014: atos ilegais que serviram para gerar resultados fiscais fictícios. Se aprovada a PEC 23 do jeito que foi apresentada pelo Governo, manobras fiscais estariam sendo constitucionalizadas, sinalizando que o Governo federal não honra as dívidas com precatórios, que nada mais são do que obrigações financeiras decorrentes de sentenças judiciais.
De todo modo, o Poder judiciário vem sinalizando caminhos alternativos ao propor teto para pagamento de precatórios - medida similar à proposta do Poder Executivo, mas que dispensaria a necessidade de PEC. No entanto, a participação do Congresso Nacional será fundamental para trazer segurança jurídica. Uma solução poderia ser desenhada no sentido de excluir do Teto de gastos o excesso de gastos com precatórios, fortalecendo-se a governança em torno da gestão fiscal e sentenças judiciais. O parcelamento deve ser evitado a todo custo, pois não se trata de um meteoro no país das pedaladas.
*Leonardo Ribeiro é analista do Senado Federal e especialista em contas públicas. Foi pesquisador visitante da Victoria University, Melbourne, Austrália.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD 35 || Arlindo Fernandes de Oliveira: O que se pode esperar de uma CPI
CPIs têm o poder fiscalizatório sobre aquilo que tem a ver com o trato da coisa pública. Algumas balançaram o país, como a do PC Farias e a CPMI dos Correios
São recorrentes os questionamentos quando alguma casa legislativa institui uma comissão parlamentar de inquérito, a CPI. Um deles é sobre se Comissão vai produzir os resultados que dela se espera ou se “vai dar em pizza”. É tema legítimo e vale a pena comentar. O Congresso Nacional, suas Casas, assim como as instituições do poder legislativos dos estados e municípios têm três funções básicas: legislar, fiscalizar o Poder Executivo e servir de espaço para o debate público. A primeira função é a definida pelo seu nome: “poder legislativo” e as demais lhe são vinculadas.
As comissões existem para dar funcionalidade à Casa, a organização do trabalho parlamentar em comissões se dá por razões práticas. E, numa democracia, cabe a quem venceu as eleições, a maioria, governar. E à minoria cumpre fazer oposição. Assim, as CPIs são a expressão constitucional do direito e do dever da minoria.
Por isso, como reiterou o Supremo Tribunal Federal, o requerimento de uma CPI subscrito por um terço da Casa Legislativa, cria a comissão, e deve implicar sua instalação, desde que fundado em fato determinado e por prazo certo. Como enfatizou o STF, pela voz do Ministro Celso de Mello:
Preenchidos os requisitos constitucionais (CF, art. 58, § 3º), impõe-se a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito, que não depende, por isso mesmo, da vontade aquiescente da maioria legislativa. Atendidas tais exigências (CF, art. 58, § 3º), cumpre, ao Presidente da Casa legislativa, adotar os procedimentos subsequentes e necessários à efetiva instalação da CPI, não se revestindo de legitimação constitucional o ato que busca submeter, ao Plenário da Casa legislativa, quer por intermédio de formulação de Questão de Ordem, quer mediante interposição de recurso ou utilização de qualquer outro meio regimental, a criação de qualquer comissão parlamentar de inquérito. (...)."[1]
Uma CPI dispõe de poderes semelhantes àqueles que as leis endereçam ao Poder Judiciário no momento da instrução processual penal. Por conta deles, e de seu natural apelo mediático, é comum que se exija de uma CPI alcançar propósitos, alguns alheios à sua natureza, como colocar as pessoas investigadas na cadeia ou aplicar as punições que são de competência de outra instituição. Para cobrar de nossos representantes que atuam em CPI as atitudes que constitucionalmente lhe cabem, cabe recordar isso.
Para que a cidadania democrática cobre de uma CPI aquilo que ela pode e deve dar, o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios, que investigou o chamado Mensalão, é didático:
“Os objetivos de uma CPI devem ser claramente definidos e proclamados, até para que não se estimulem ilusões, e não se pretenda alcançar objetivos que não lhe dizem respeito.
Pode-se exigir de uma CPI: que contribua para a transparência da Administração Pública, à medida em que revela, para a cidadania, fatos e circunstâncias que, de outra forma, não seriam de conhecimento público; Que, na qualidade de órgão do Poder Legislativo, possibilite o exame crítico da legislação aplicável ao caso sob investigação; que proponha à Casa respectiva do Congresso Nacional, sempre que cabível, a abertura de processo contra Senador ou Deputado Federal – ou outro agente político - quando o nome desse parlamentar estiver vinculado a fatos ou atos que possam implicar prejuízo à imagem do Congresso Nacional, ou seja, sempre que ali se possa identificar possível quebra do decoro parlamentar; que interceda junto aos órgãos responsáveis da Administração Pública para sustar as irregularidades e/ou práticas lesivas que suas investigações identifiquem; que aponte ao Ministério Público os fatos que possam caracterizar delitos ou prejuízos à Administração Pública para que esse órgão estatal possa promover a responsabilidade civil e penal correspondente; e que proponha modificações no arcabouço legal e institucional, de forma a contribuir para o aperfeiçoamento constante da democracia no País, evitando a reincidência no fato determinado objeto de investigação.”
[1] MS 26.441, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 25-4-2007, Plenário, DJE de 18-12-2009.
* Arlindo Fernandes de Oliveira é consultor legislativo do Senado Federal e especialista em direito constitucional e eleitoral.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD 35 || JCaesar: Charge
* JCaesar, autor da charge da Revista Política Democrática Online, é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA.
** Charge produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD 35 || Sergio Denicoli: Já é 2022 na internet
Bolsonaristas e lulistas já deram início não-oficial à campanha eleitoral para 2022 e estão praticamente sozinhos no campo virtual de batalha
Não se engane com o calendário eleitoral oficial. Nas redes sociais, 2022 já se iniciou. Os candidatos mais atentos estão atuando na velocidade das fibras óticas. Mesmo porque, como a internet é fragmentada em bolhas, o período de campanha determinado pelo TSE é extremamente curto para alavancar uma candidatura. Muito deferente dos nostálgicos anos analógicos, quando a sociedade era pautada pelos jornais, rádios e TV, e o horário eleitoral gratuito marcava de fato o início da disputa.
O curioso desse contexto é que o ano eleitoral realmente começou, mas não para todos. Bolsonaro e Lula já estão confortavelmente em campanha, abarcando 82,9% do total das menções aos presidenciáveis, no Twitter, segundo dados da AP Exata Inteligência Digital, medidos em agosto. O presidente conta com uma fatia maior de menções, atingindo 54%, ao passo que o ex-presidente alcança 28,2% das menções.
Os demais pré-candidatos têm participações residuais. Vez ou outra conseguem polemizar algum tema e aparecem um pouco mais, só que rapidamente voltam a uma expressividade de figurante. Estão nesse patamar Ciro Gomes, João Dória, Eduardo Leite, Rodrigo Pacheco e Sérgio Moro. Os demais nomes, até o momento, são redondamente inexpressivos nas redes.
Bolsonaristas e lulistas, portanto, estão praticamente sozinhos no campo virtual de batalha, que, hoje, é a principal arena da disputa. Bolsonaro atua para desviar o foco dos problemas reais do país e cria uma agenda própria de temas, fazendo com que internautas e a imprensa o sigam.
Assim, conseguiu transformar em amplo debate nacional a questão do voto impresso e agora coloca como prioridade na política brasileira as decisões do Supremo Tribunal Federal, apimentando a cortina de fumaça com o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Morais. É estratégico. Ao pautar a nação de acordo com os temas de seu interesse, o presidente deixa em segundo plano questões como a inflação galopante, a crise energética e o desemprego. Se não agisse proativamente, certamente seria engolido pela agenda baseada nos resultados negativos de setores importantes da gestão federal.
Já Lula evita a agenda ditada por bolsonaristas e busca reforçar sua liderança pessoal, tentando se livrar da imagem de corrupto, que o acompanha desde a Lava Jato. Tem apelado para o lado emocional das redes e busca passar imagem de vigor físico, mostrando as coxas e a jovem namorada, e também esbanja sorrisos, banhos de mar e atitudes conciliadoras. Assim, além de tentar impor a ideia de pertencer a uma esquerda muito próxima do centro, também fecha o espaço para críticas de que, aos 75 anos, já não teria o vigor necessário para comandar o país. Ou seja, mistura vitalidade e diplomacia.
Mas, se as duas principais lideranças políticas do país conseguem dar um banho nos adversários na internet, elas também sofrem para ultrapassar barreiras e falar para além dos convertidos. Romper a bolha de influência é algo extremamente difícil, uma vez que ambos apresentam rejeições bastante altas. Também de acordo com dados de agosto da AP Exata, 60% das menções a Lula no Twitter são negativas. Índice muito próximo do de Bolsonaro, que abarca 62% de menções negativas.
Teoricamente, haveria espaço para uma terceira via. No entanto, para que o eleitor escolha um caminho novo, é preciso que ele enxergue a estrada. E o problema do chamado “centro” é que os nomes que se apresentam não estão sendo vistos como alternativas capazes de romper a polarização.
O mais curioso é que, dominando quase que a totalidade das conversações nas redes, petistas e bolsonaristas dominam também as ruas. Assim, tornam concreta a percepção de que seus líderes têm apoio popular. O centro ainda patina nesse sentido. Tem buscado ocupar espaços de rua e já marcou uma manifestação para o dia 12 de setembro. Mas ainda não entendeu que lideranças abstratas não significam muita coisa. É preciso se libertar das amarras partidárias, das articulações em Brasília, e focar na arena rede. Hoje a terceira via é fatalmente composta por retardatários com dificuldades em alcançar os reais protagonistas do processo.
Desde que a internet se consolidou como o principal meio de debate político, os que não perceberam a mudança e se focam em cartas de protesto divulgadas pela imprensa e entrevistas metódicas, com palavras bonitas bem colocadas, estão sendo excluídos do processo a olhos vistos. Internet é “tiro, porrada e bomba”, mas há ciência por trás, e o mapa a mina são os dados. Lula e Bolsonaro sabem disso, por isso avançaram um ano à frente dos concorrentes.
*Sérgio Denicoli é pós-doutor em Comunicação pela Universidade do Minho (Portugal) e Westminster University (Inglaterra), e também pela Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros “TV digital: sistemas, conceitos e tecnologias”, e “Digital Communication Policies in the Information Society Promotion Stage”. Foi professor na Universidade do Minho, Universidade Lusófona do Porto e Universidade Federal Fluminense. Atualmente é sócio-diretor da AP Exata, empresa que atua na área de big data e inteligência artificial.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD 35 || Otávio do Rêgo Barros: Relações entre civis e militares, uma reflexão
Cabe à sociedade a responsabilidade de garantir o papel das Forças Armadas, fortalecendo-as como instrumento independente de Estado
“Para abolir a guerra há que remover suas causas que residem na imperfeição da natureza humana” (Liddell Hart)
Vivemos tempos sombrios com a falta de ordenamento de nossa realidade. Uma discussão sobre o papel das Forças Armadas se instalou para além dos muros dos quartéis.
A atuação imoderada do chefe do Poder Executivo, a incentivar o envolvimento de militares nas ações políticas de governo, potencializou a questão. Somou-se a esse inconveniente, posturas contestáveis dos outros Poderes da República. O Legislativo, com tendência mesquinha de enxergar os interesses paroquiais, e o Judiciário, em suposta cruzada moralizadora, que ultrapassa o senso cotidiano de equidade. Formou-se um torvelinho de opiniões divergentes, desamparadas de conhecimento qualificado, que anuvia grupos da sociedade.
Tomando por base o trabalho do professor Samuel Huntington, O soldado e o Estado (BIBLIEX, 2016), abordarei aspectos das relações entre civis e militares, contextualizados para o Brasil contemporâneo. Para fins de enquadramento, o livro foi publicado em 1957, período alcunhado de Guerra Fria, no qual a incômoda ascensão da União Soviética se projetava sobre a águia americana.
A incompreensão da sociedade diante da obrigação do profissional das armas em ser pragmático perenizou-se com o correr dos tempos modernos. O militar é o mais pacifista dos integrantes de uma comunidade. Suas experiências o fazem conhecer a desgraça final dos conflitos humanos e os efeitos deletérios para a sociedade. Justifica-se seu pessimismo.
Ele tem o dever de se posicionar publicamente sobre fatos que afetem a missão da organização e o desempenho profissional. O verdadeiro comandante, vestido da couraça envelhecida de homem das armas, jamais permitirá que seu julgamento seja deformado por conveniências políticas.
A responsabilidade do militar perante o Estado é de natureza tríplice. Exerce uma função representativa, uma função consultiva e uma função executiva. O ordenamento dessas relações é capital para a política de defesa do país e procura consolidar um sistema de pesos e contrapesos entre o civil e o militar, sem sacrifício de valores sociais. Nos pratos da balança se equilibram, em posições opostas, o lícito interesse corporativo do militar e o necessário controle pela sociedade em ambiente democrático.
Mais recentemente, o artigo 142 da CF/88, que elenca as missões “pétreas” nas Forças Armadas, vem sofrendo ataques. “Transitou em julgado, não cabe recursos”, embora encontremos grupos defensores de uma revisão sob um entendimento difuso de um papel de poder moderador das Forças Armadas, defendido em ambientes inelásticos, personalistas ou eivados de interesses políticos. Admito a necessidade de se reflexionar a missão constitucional das Forças, incorporando-se dinamismo modernizador ao conceito, que aclare possíveis imperfeições no texto. Não obstante, não se promovam modificações por contenciosos de momento.
Voltemos à balança. Na disputa daqueles interesses está o nó de górdio das relações entre civis e militares. O grau em que eles entram em conflito depende das exigências de segurança externa e interna, e da natureza e força dos valores incrustados na sociedade.
Entre nós, Terra Brasilis, a disputa se amplia pelo afastamento da sociedade ao tema, quase uma irresponsabilidade. Poderíamos justificar o desatino pelo baixo nível educacional que se reflete na incompreensão dos assuntos que envolvem Forças Armadas.
Quem deveria assumir o papel de ator principal da peça defesa nacional? O povo brasileiro consciente! Mas, inconscientemente, ele transfere a responsabilidade de conduzir a cena aos próprios militares.
A simbiose civil militar só se concretiza por meio de uma sólida obra de arte, que os torne interdependentes. Os batentes da ponte são a posição institucional dos militares, sua influência na sociedade, bem como a natureza da ideologia dos grupos nominados. A predominância egoísta de qualquer dos fatores fissura a estrutura, ofendendo a estabilidade da Nação. O que, convenhamos, não se espera em um país maduro democraticamente.
É crucial fortalecer a segurança das instituições sociais, econômicas e políticas contra ameaças externas (das quais a médio prazo estamos libertos) e contenciosos internos (ardentes nos últimos tempos). Esses, a meu ver, sem soluções a curto prazo.
Deixo-lhes uma reflexão: qual a natureza do corpo de militares que a sociedade deseja e pretende arcar? Enxuto e profissional ou abrangente e social? Envolvido em política ou abrigado dessas tentações?
Os cenários de guerra não são mais westfaliano, quando se subordinavam à confrontação entre estados-nação. Agora, viceja a “guerra de quarta geração”, sem fronteiras, inimigos sem rosto e objetivos não palpáveis. O centro de gravidade é a vontade de lutar, e a opinião pública, genuína ou forjada.
Por tudo isso, cabe à sociedade a intransferível responsabilidade de avaliar adequações que possam ser necessárias ao papel das Forças Armadas. Protegê-las contra corsários em busca de credibilidade. Fortalecê-las como instrumento independente de Estado, peça importante da estabilidade interna e da dissuasão externa tão somente em nome do povo brasileiro.
Paz e bem!
* Otávio Santana do Rêgo Barros é general de Divisão do Exército Brasileiro (R1). Doutor em Ciências Militares, foi porta-voz da Presidência da República (2019-2020). Comandou, no Rio de Janeiro, a força de pacificação nos complexos do Alemão e da Penha e a segurança da Rio+20. Foi Chefe do Centro de Comunicação Social do Exército.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD 35 || Jairo Nicolau: "Urna eletrônica é motivo de orgulho, não de polêmica"
ENTREVISTA ESPECIAL - JAIRO NICOLAU
Militância do presidente da República na suspeição do voto digital pode ter contaminado cerca de um terço do eleitorado brasileiro, acredita o cientista político Jairo Nicolau
Por Caetano Araujo, Arlindo Oliveira e André Amado
Entrevistado especial da edição de setembro da Revista Política Democrática Online, o cientista político Jairo Nicolau critica duramente os ataques contínuos do presidente da República à urna eletrônica - e ao processo eleitoral brasileiro -, considerada por ele como um dos processos de votação mais eficientes do mundo. "A urna eletrônica foi um grande passo para aperfeiçoar o processo de votação no Brasil. É, assim, um sucesso tanto contra a corrupção como na adulteração da vontade do eleitor no momento da votação e, claro, depois na contagem dos votos", avalia.
De acordo com o professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), estima-se que a militância do presidente da República na suspeição do voto digital possa ter contaminado cerca de um terço do eleitorado. "O estrago é tão lastimável como irreversível. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves", lamenta.
Mestre e doutor em Ciências Políticas no Iuperj, com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, Jairo é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.
Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Jairo Nicolau também comenta termas como o sistema político brasileiro, reforma política, fragmentação partidária e processo eleitoral, entre outros. Confira, a seguir, os principais trechos:
Revista Política Democrática Online (RPD): Seu livro sobre a história do processo eleitoral no Brasil louva nosso sistema eleitoral por ser isento de fraudes. Como avaliar os questionamentos que se têm levantado recentemente quanto à inteireza do sistema de votação e, em particular, de apuração?
Jairo Nicolau (JN): Dei ênfase à redução das fraudes, não a seu banimento. Até pouco tempo, as fraudes aconteciam em dois momentos. No momento da votação propriamente dita - e todos aqui somos da época da urna de lona, da cédula de papel, e nos lembramos de como era difícil controlar as fraudes, mesas sendo arranjadas para facilitar que certas forças políticas comparecessem para encobrir o comparecimento de uma pessoa, votar no lugar de outra. E, na hora da apuração, quando todas as cédulas eram depositadas sobre mesas situadas em ginásios esportivos. Pegava-se um uma cédula, lia-se o nome de um e cantava-se o nome de outro. Se não tivesse um fiscal ali, na hora de transformar os votos contados para os boletins de urna, ninguém detinha as fraudes. Fui presidente de sessão eleitoral durante muitos anos e acompanhei as apurações e lembro bem de alguns casos.
Esse tipo de fraude terminou com a urna eletrônica. Além da urna eletrônica, temos hoje também um cadastro nacional de eleitores, de que pouca gente fala, que é checado periodicamente para evitar duplicação de entrada de eleitores. Dispomos ainda da leitura biométrica da identificação dos eleitores que exclui qualquer possibilidade de termos um eleitor inscrito em mais de uma sessão eleitoral ou uma pessoa votando em nome da outra. A urna eletrônica é, assim, um sucesso tanto contra a corrupção como na adulteração da vontade do eleitor no momento da votação e, claro, depois na contagem dos votos.
"Nossa fragmentação é tão alta que vamos levar muito tempo para voltar, por exemplo, ao que éramos na década de 90, com oito ou dez partidos. Isso só não aconteceu em 2018 por uma razão puramente contingente, o arrastão bolsonarista"
Subsistem algumas denúncias no atual processo eleitoral, como as de compra de votos, vale dizer, a influência política de alguns segmentos das elites sobre eleitores mais vulneráveis em certas áreas do Brasil. Isso não está mapeado, mas, de fato, ocorre. Ainda não contamos com um sistema de eleição semelhante a países com elevado nível de educação, como na Escandinávia, por exemplo. Mas o que a urna eletrônica fez já foi uma grande conquista. Não se dispõem de estatísticas confiáveis a respeito da confiabilidade das urnas eletrônicas. Estima-se que a militância do presidente da República de suspeição do voto digital possa ter contaminado cerca de um terço do eleitorado. O estrago é tão lastimável como irreversível.
Do nosso lado, dos democratas, das pessoas que acreditam que a urna foi um grande passo de aperfeiçoar o processo de votação no Brasil, resta sempre um movimento de reação. Reação significa campanha, denunciar fake news. Mas o estrago já está feito, justo quando deveríamos estar celebrando o reconhecimento de um dos processos de votação mais eficientes que conseguem traduzir a vontade do eleitor em preferência política do mundo. Diria até que, do ponto de vista da logística, é o melhor do mundo.
E esse sistema foi colocado em xeque pelo senhor Jair Bolsonaro. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves. Continuo otimista com relação a nossa urna eletrônica e, agora, com o voto biométrico. É, sem dúvida, motivo de orgulho, não de polêmica, para todos nós, brasileiros.
RPD: Mais uma vez, estamos presenciando tentativas de alteração do sistema eleitoral a pouco mais de ano do pleito 22. Toda essa movimentação obedece ao receio dos deputados de não se reelegerem reflete, de fato, a necessidade de aprimorar o sistema eleitoral? A seu juízo, que alterações se justificariam para além dos interesses da sobrevivência eleitoral de A, B ou C?
JN: Em razão da regra de que qualquer mudança eleitoral só vale depois de um ano de aprovada, os anos ímpares costumam acumular propostas várias de reforma das regras do processo de votação. Aprovou-se, por exemplo, um calendário de entrada em vigor da cláusula de desempenho, ou seja, que os partidos devem ter uma votação mínima em âmbito nacional para eleições para a Câmara, para o partido ter, depois da eleição, acesso a recursos importantes, como fundo partidário, tempo de televisão. Essa regra já está em vigor, e a legislação prevê que ela vai aumentar até 2030. Ou seja, é possível fazer reformas nas regras eleitorais necessariamente para entrar em vigor na eleição seguinte.
Mas o quadro que a gente tem hoje, pelo menos desde 2014 sobretudo, é que, com algumas reformas, ficou claro que o intuito dos deputados era muito mais de se preservar politicamente do que pensar algum tipo de reforma mais generosa para o país, de aperfeiçoamento do sistema representativo. Acompanho, há muito tempo, os debates na Câmara e compreendo que a motivação dos deputados para reformas não exclui sobrevivência política. Seria estranho imaginar-se partidos cometendo suicídios políticos. Vejamos a questão do voto distrital. Sabemos que, por essa via, partidos de opinião praticamente desapareceriam. Ninguém espera um cálculo político absurdo desse tipo. Defende-se, também, a representação proporcional. Será apenas para proteger os interesses de minoriais? Difícil dizer. Em toda eleição tem um pouco de malícia, de auto-interesse, o que não é necessariamente ruim.
É o que tem acontecido, e aconteceu primeiro com o fundo eleitoral. Quando os deputados e senadores criaram, em 2015, o fundo eleitoral, perceberam que seria estratégico para a sobrevivência política. O dinheiro da campanha viria, sobretudo, do fundo; só faltava criar regras para proteger quem já tinha mandato. Na confecção do fundo, foram muito generosos consigo mesmos. Os partidos maiores ficaram com muito mais dinheiro do que os menores. Como era uma primeira eleição com o fundo, não custava ter deixado uma parte maior para distribuir para os pequenos partidos. Mas, não, eles concentraram o dinheiro do fundo.
"Quando os deputados e senadores criaram, em 2015, o fundo eleitoral, perceberam que seria estratégico para a sobrevivência política. Só faltava criar regras para proteger quem já tinha mandato"
Para proteger a elite política da incerteza da recondução eleitoral, cresceram as perspectivas do chamado Distritão, proposta agora derrotada na Câmara. Na visão dos políticos - tenho muitas dúvidas se eles estavam corretos nessa análise – o Distritão protegeria os deputados que tem mandato. Lembrem-se que, na última eleição, por exemplo, partidos, como o PP, o Progressista, deram muito mais dinheiro para quem tinha mandato, tentando atraí-los para suas legendas. Chegou-se a prometer dois milhões e meio por candidato. Ou seja, o partido não lança candidato à presidência, economiza e, com as sobras, celebra as barganhas. Apoiavam-se em propostas substantivas, republicanas, de melhor servir à cidadania? Não, prevalecia a ideia clássica que move os deputados: o interesse de pessoas, de políticos, nada a ver com os interesses dos partidos.
Reformas desse tipo, que chamo de egoísmo extremado, haverão de conduzir ao desaparecimento de partidos, que se atomizariam e se fragmentariam ante a ânsia incontida dos políticos de sobreviverem abraçandos mandatos, avessos a tudo que possa soar republicano, orgânico, de interesse público.
Não devemos esquecer que, em 2017, houve reforma profunda das regras eleitorais: acabou-se com a coligação e criou-se um sistema de cláusula de desempenho que vai subindo até 2030. O mais curioso é que, até agora, não se testou numa eleição nacional o fim das coligações, muito embora já conste da Constituição, o que um absurdo, é demais. Tanto mais quando já se tenta retirar da Carta Magna o que não foi testado. O que é isso se não é auto interesse? Se há quatro anos era importante para o Brasil acabar com as coligações, o que mudou agora?
A meu ver, esse debate foi muito mal encaminhado, conjugado ainda com essa discussão descabida sobre voto impresso. Com base em minha experiência de estudar esse assunto há muito tempo, digo que nunca vi um debate tão ruim, tão mal feito, tão mal escrito, tão desalinhado como esse das três comissões que o analisaram. É o sinal dos dias, uma legislatura medíocre que se meteu num tema que exige certa especialização e que não poderia ter produzido outra coisa que não um resultado medíocre.
RPD: Seu livro sobre o processo eleitoral para a câmara foi publicado em 2017, meses antes da promulgação da emenda constitucional que proíbe coligação, e a possibilidade de adoção de uma cláusula de barreira de 1,5%, progressiva no tempo, que terminou sendo adotada pela emenda de iniciativa do senador Ferraço. Acredita que a cláusula de desempenho nessa década funcionará com o propósito tal como foi imaginada, isto é, de 2%, 2,5%, em 2026, e 3%, em 2030?
JN: Acho que sim. A gente chegou a tamanho grau de pulverização e fragmentação partidárias que, independentemente do fim da coligação, iniciou-se um processo que se assemelha a uma onda. A onda foi ao máximo com a pulverização de partidos pequenos. Não há congresso algum no mundo que tenha o maior partido representado com menos de 60 membros. Tal hiperfragmentação é disfuncional. A cada votação na Câmara, tem-se de contar com 26 indicações de lideranças. Viu-se isso no processo de impeachment da Dilma. O eleitor não consegue mais seguir um partido diante de tantas siglas. Os políticos não logram criar uma identidade com uma legenda, porque a confusão é total.
É ruim para o presidente. A própria presidente Dilma mencionou que, na época do Fernando Henrique, do Lula, eles tinham cinco, seis partidos na coalizão. No caso dela, eram 14 ou mais.
"Além da urna eletrônica, temos hoje também um cadastro nacional de eleitores, de que pouca gente fala, que é checado periodicamente para evitar duplicação de entrada de eleitores"
Mas há uma razão que me parece fundamental para esse processo que eu estou apontando de encolhimento do quadro, de fragmentação, que é o dinheiro. Quer dizer, não dá para pulverizar o dinheiro, a elite política percebe que tem de concentrá-lo na mão de um número menor do que 26 forças políticas. Já algum movimento nessa direção. Alguns políticos do PSD falam de fusão com o PP e o PSL, que daria um mega partido de direita, ultrapassando 100 deputados, pela primeira vez em mais de 20 anos.
O problema maior pode ser para as pequenas legendas. O que têm acrescentado no debate nacional, com algumas exceções? Muito pouco. A cláusula de desempenho não foi mexida, vai manter-se a mesma, então o que mexe com o dinheiro não é a coligação, lembrando que a coligação é uma decisão do político, o fato de ter a norma não significa que, na prática, ela se concretize. Na campanha de 1986, muito poucos partidos se coligaram. O PT e o PSD, do Kassab, sempre se opuseram a coligações, e não será, agora, quando passam por um bom momento político, que haverão de rever sua posição de base.
Tudo indica, portanto, que quem quer coligar-se não tem cacife e quem não quer vai partir para atuações isoladas em alguns Estados, decididos a não se prestar a dar carona a partidos menores. Daí porque eu achar que o congresso de 2022 vai ser mais compacto do que o atual. Claro, não vamos chegar ao modelo inglês, com dois grandes partidos e alguns partidos pequenininhos. Nossa fragmentação é tão alta que vamos levar muito tempo para voltar, por exemplo, ao que éramos na década de 90, com oito ou dez partidos. Isso só não aconteceu em 2018 por uma razão puramente contingente, o arrastão bolsonarista. Caso contrário, o DEM, PSDB e MDB teriam bancadas mais expressivas com 50, 60 deputados cada um.
Quer dizer, o que o Bolsonaro fez em 2018, com aquele desempenho impressionante no primeiro turno, que se traduziu numa bancada gigantesca de deputados, ajudou, digamos assim, a quebrar um padrão, mas isso, para mim, não continua. Nem sempre há eleições extraordinárias. Vimos muitas eleições depois da redemocratização, e só em uma, um partido, fez o estrago. Se a gente olhar e comparar o que aconteceu com o maior partido do Brasil, o Partido dos Trabalhadores, para chegar a 50 deputados, o PT passou por umas cinco eleições. Teve oito em 82, dobrou para 16 em 86, foi para 30 e poucos em 90, chegou em torno de 50 em 94. Quer dizer, o partido levou uma década e meia ou duas décadas para chegar a 50 deputados, e o PSL numa eleição chegou a isso. Isso nunca tinha acontecido.
O surgimento do PSL trouxe um elemento ainda de fragmentação. Agora, o PSL, não é à toa que ele está buscando uma aliança com outro partido, porque eles estão percebendo que ali de baixo não tem nada, é oco. O partido não tem nome, aquilo ali foi um arrastão ocasional. Eu apostaria, intuitivamente, é uma aposta só de conversa fiada, vamos dizer assim, que uma boa parte, sei lá, 60%, 70% dos deputados do PSL não se reelegem mais, eles entraram ali e vão sumir como surgiram. Para mim, 22 será o momento de compactação política. Mas, de novo, não vai ser a compactação como conhecemos na década de 90, mas tampouco vamos repetir esse modelo de hiperpulverização de 2018.
RPD: Sabemos que nosso sistema eleitoral nas eleições proporcionais não é um sistema frequente no mundo. Normalmente, quem adota o sistema proporcional adota o sistema com alguma forma de fechamento ou pré-ordenamento das listas. Dado que nós temos uma certa singularidade nesse ponto, quais seriam, do ponto de vista dos eleitores, os principais problemas que esse sistema acarreta para nós?
JN: Para mim, o maior efeito desse sistema é que tem muitas formas de organizar-se a representação proporcional. O que há em comum entre os vários países que usam a representação proporcional é o princípio de que cada partido lança uma lista de nomes. Se a gente for na Polônia, na Bulgária, em Portugal, na Espanha, qualquer país do mundo que usa a representação proporcional, o fundamento é: lance uma lista de nomes, o voto dessa lista vai ser contado e nós vamos distribuir as cadeiras proporcionalmente segundo o volume de votos de cada lista. Isso é o que há de comum. Em Portugal, por exemplo, o eleitor não vota em nomes, porque a lista já vem prontinha de casa. Digamos que se no Brasil o sistema português fosse adotado, nós chegaríamos na seção eleitoral, olharíamos a ordem dos nomes. Primeiro lugar, candidato fulano, beltrano, ciclano. Assim funciona em Portugal, de modo de que na hora que se olha para a cédula, só marca um xis onde está seu partido. Como a gente votava para presidente no Brasil na época da cédula de papel, é uma cédula portuguesa para deputados: aparecem o símbolo do partido e o nome. A marcação do lado indica que se comprou o pacote, não se está escolhendo um nome.
"É o sinal dos dias, uma legislatura medíocre que se meteu num tema que exige certa especialização e que não poderia ter produzido outra coisa que não um resultado medíocre"
O que temos no Brasil é um sistema cuja ênfase no nome no candidato é muito forte. Costumo dizer que isso é agravado para os eleitores comuns pelo próprio processo de votação. A urna eletrônica, em que pesem todas as virtudes que identifiquei, não ajuda passar para o eleitor a sensação que ele está votando numa lista e não num nome. Se eu tivesse, por exemplo, um eleitor peruano que usa o sistema brasileiro de lista aberta, ele tem uma cédula grandona com o nome de todos os candidatos e as listas. Ele vai lá e marca um nomezinho na cédula, com todos os candidatos. Claro, no Brasil não daria porque são 400, 500 candidatos. Mas, se fossem 80, na época da cédula de papel, você faz uma cédula peruana, grandona, com retratinho, você vai lá e escolhe o retratinho, você está votando no nome. No Brasil, a gente não tem isso. Então, respondendo a sua pergunta, eu acho que o maior problema que eu vejo na lista aberta é que o papel do político individual é muito grande. E como os Estados cresceram muito em tamanho, a população ficou muito grande e a sociedade brasileira, mais complexa, a política ficou mais democrática, os interesses atomizados da sociedade começaram a adotar o lugar da política, dos partidos, de uma maneira, fazendo uma ligação direta, que não existia no passado. Claro que sempre houve padre, um radialista, um artista da televisão fazendo política, lideranças da sociedade sempre entraram na política da vida. Nem todo mundo precisa começar a carreira política se filiando no diretório local, sendo vereador, depois deputado estadual. Essa carreira, digamos linear, acontece, mas o que eu percebo, recentemente, é que com essa mudança da sociedade brasileira, o atalho entre celebridades, lideranças da sociedade civil e a política, tanto para bem quanto para mal, ficou muito curtinho, ficou muito rápido.
A bancada do PSL é isto, não é? São 50 personalidades, raríssimos políticos de carreira ali, são pouquíssimos. Isso aparece com interesses econômicos, empresários que no passado faziam lobby, tinham amigos na política, começaram a se meter com política. Não estou falando de grandes empresários, do presidente da CNI, não, eu estou falando de empresários locais, dono de uma transportadora, um pecuarista que resolve ele mesmo entrar na política. Interesses, claro, do outro lado, sindicais. Não mais interesses religiosos, a gente não está falando de um líder religioso nacional, a gente está falando de um pastor de uma igreja pequena, de uma região do Rio de Janeiro, o sujeito vai direto. É um pastor de uma igreja rural, não tem atalho, ele entra num partido um ano antes da eleição, se elege federal. Ele é representante de quem? Ele é simplesmente o intermediador em Brasília entre os interesses da igreja e dos moradores lá da região dele.
RPD: A fragmentação está relacionada ao sistema? A falta de transparência e de inteligibilidade para os próprios eleitores está relacionada com isso? O que fazer para poder avançar na solução dessas questões?
JN: Acho que de certa maneira não tem como tirar a responsabilidade do sistema proporcional de lista aberta combinando com a mudança que o país passou. Quando a elite política era mais fechada, ela resolvia bem isso. Digamos, colocava os quadros, pensando até recentemente, no PSDB, nos partidos que fizeram a constituinte. Você tinha uma elite parlamentar que controlava a política e às vezes aparecia uma figura dessa, mas ele ficava na franja do sistema político, ele era em menor número. Agora, o Brasil mudou, o sistema eleitoral é o mesmo. Esse atalho é feito em ligação direta. Como a gente fazia no passado, ligava o carro em ligação direta, você não tem chave, não tem intermediação, isso me preocupa.
Para mim, mesmo uma reforma política, no que a gente está falando aqui de compactação, vai melhorar um pouco a inteligibilidade do sistema, ele vai ficar um pouco mais arrumado, mas essa questão mais funda, do hiperparticularismo dominando a política, que tem a ver com a lista aberta – claro, você pode botar uma lista fechada e não resolver esse problema –, que a lista aberta agrava esse problema eu não tenho dúvida. Isso veio para ficar, ou seja, o legislativo brasileiro está muito pulverizado não só em termos partidários, mas do particularismo dos interesses locais, interesses pontuais. A gente vê uma campanha para deputado, eu lembro que, no ano passado, tinha um sujeito que era representante dos porteiros do Rio de Janeiro, ele queria voto como representantes dos porteiros e trabalhadores nos prédios. “Eu quero representá-los em Brasília”. Veja, não é mais o interesse territorial, é o hiperinteresse. Isso realmente me preocupa, e eu não sei como a gente tem como mudar isso. Porque depois que a gente coloca essas pessoas no Legislativo, aí que elas não vão querer um sistema de lista fechada, porque elas provavelmente vão ficar na rabeira da lista, não é mesmo? É um modo de reprodução que é difícil quebrar nesse caso.
RPD: Devidamente autorizado por sua experiência na academia e nos corredores da política, que proposta gostaria de ver vitoriosa nas mudanças que se insinuam na área eleitoral?
JN: Para ser totalmente honesto, e diante dessas propostas, eu diria nenhuma. Nesse momento, era melhor deixar do jeito que está. A gente fez a reforma em 2017, ela não foi experimentada, eu acho que foi uma reforma que tem mais acertos do que erros. Talvez num momento dois, digamos, a partir da próxima legislatura eleita não com essa excepcionalidade que foi a eleição de 2018, nós possamos começar a discutir, não sei se nessa seguinte ou na outra, talvez uma forma de dar um pouco mais de contenção partidária a essa lista aberta brasileira. Talvez dando aos partidos mecanismos de ordenar a lista, como se faz em Portugal, ou até um formato que é usado em alguns países europeus, que eu gosto, particularmente, que é o seguinte: você fecha a lista, mas dá ao eleitor a opção, caso ele queira, de votar num nome específico. Com isso, caso um nome tenha algum destaque, ele pode se eleger. Quer dizer, você quebra um pouco, dá uma flexibilidade, por isso este modelo se chama lista flexível, à lista. Mas tudo isso pode ser discutido num ambiente em que, primeiro, a gente acabou com as coligações, tem uma certa compactação partidária e fique um ambiente melhor para conversar. Nesse ambiente, agora, desse atomismo que a gente conversou, eu acho melhor não mexer em nada. 2022, com as mesmas regras de 2018, com aperfeiçoamento de um fim da coligação e um aumento dos 2% da cláusula de desempenho.
Saiba mais sobre o entrevistado
Jairo Nicolau
É cientista político, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Mestre e doutor em Ciências Políticas no Iuperj, com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.
Saiba mais sobre os entrevistadores
Caetano Araújo
É graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e Consultor Legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
Arlindo Fernandes de Oliveira
É advogado, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público, IDP, especialista em Ciência Política pela Universidade de Brasília, UnB, bacharel em direito pelo Uniceub. Foi assessor da Câmara dos Deputados e da Assembléia Nacional Constituinte (1984-1092), analista judiciário do Supremo Tribunal Federal (1992-1996) e assessor da Casa Civil da Presidência da República (1995). Professor de Direito Eleitoral no Instituto Legislativo Brasileiro, ILB, desde 2004. Desde 1996, consultor legislativo do Senado Federal, Núcleo de Direito, Área de Direito Constitucional, Eleitoral e Processo Legislativo.
André Amado
É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
RPD 35 || Alberto Aggio: “Que país é esse?”
O Brasil sob o governo de Bolsonaro é sintoma evidente de uma história que precisa ser decifrada, avalia o historiador Alberto Aggio
“O Brasil não é para principiantes”. Quantas vezes já se leu ou ouviu esta frase, atribuída a Antonio Carlos Jobin? Frequentemente, ela é mencionada para atestar a dificuldade de se compreender o país. Está presente em quase todos os exercícios de revisão das principais interpretações sobre a formação histórica brasileira. Comunidades de cientistas sociais se dedicam recorrentemente a pensar e repensar os interprétes do país em encontros científicos, seminários e antologias de ensaios, sem chegarem a conclusões mais definitivas.
Como se sabe, as interpretações sobre o Brasil compõem tradição de enorme multiplicidade em suas abordagens, nada uniforme e harmônica, produzida em diversos momentos da sua história. Uma tradição que ensejou embates inclinados tanto à conciliação quanto ao rechaço a ela. Um paradoxo nem sempre percebido nas disputas políticas e culturais que se desenrolam no presente. Pensar o Brasil nunca foi apenas um exercício acadêmico ou intelectual. Trata-se de um debate que alimenta, o tempo todo, projetos que visam ao futuro do país.
O Brasil, seguramente, não é para principiantes. Contudo, não seria absurdo pensar, ultrapassando o senso comum, que tal asseveração poderia ser aplicada a inúmeros países, dos EUA à Rússia, da China ao México, do Afeganistão à Bolívia, apenas para mencionar alguns exemplos. Em todos eles, há incógnitas a serem decifradas, e seus problemas atuais não são nada simples, como temos visto.
É preciso estabelecer também um questionamento a respeito do exagero de que o Brasil guarda uma excepcionalidade superlativamente distinta de outras experiências históricas, com seus maneirismos típicos dos quais o “jeitinho” ou a “gambiarra” são incensados ad nauseum. Além de um ar de troça e menosprezo, há nesse tipo de leitura soberba que visa desacreditar a tarefa do pensamento na compreensão do país bem como do seu lugar no mundo. Essa forma de conceber o país é inútil e improdutiva diante dos desafios civilizatórios que temos diante de uma mundialização que se impõe a cada dia. Se o Brasil for apenas isso estamos fritos.
O realismo nos indica que, para pensar a experiência histórica brasileira, isolando os esquemas sociológicos abstratos, o exercício da comparação é vital. A equalização ao tempo dos contemporâneos não poderá ser sequer vislumbrada caso não se reconheça que a vida social e política, a economia e os valores civilizatórios são hoje História global. Seria importante pensar intelectualmente o Brasil por meio de uma análise capaz de alocá-lo num quadro comum de problemas de natureza interdependente, entre os quais se podem mencionar os desafios da consolidação da democracia, da inserção na globalização da defesa e afirmação da sustentabilidade ecológica.
Embora não caiba dizer que existe uma linhagem do pensamento brasileiro seguindo essas indicações, há quem já a percorra sob uma chave de leitura que afirma analiticamente que a sobreposição, combinação e síntese entre a matriz ibérica e uma tradução particular do americanismo deram ao país a morfologia da sua formação social. A partir dessa chave, o Brasil pode ser pensado concretamente, ainda que essa não seja uma tarefa exclusiva do pensamento social e de seus intelectuais. A complexidade que daí deriva supõe a recusa à adoção da estratégia de um “tempo exaltado” como solução dos nossos dilemas históricos ao se sugerir, como faz Luiz Werneck Vianna, a proposição de “exploração do transformismo ‘de registro positivo’” como a melhor indicação para a compreensão dos “processos societais novos na sociedade brasileira (...) depois da institucionalização da democracia política em meados dos anos 80”[1].
O Brasil moderno se fez em meio às disputas intelectuais e políticas pela hegemonia no andamento da sua “revolução passiva”, uma história de paradoxos, contradições e incompletudes. Até mesmo movimentos que buscaram caminho modernizador e democrático, como foi o Modernismo de 100 anos atrás, vivenciaram isso e, de acordo com Vinicius Müller, acabaram produzindo “nova situação de exclusão ou, no mínimo, de diferenciação, entre os membros iluminados da intelligentsia e aqueles que, mesmo formando uma grande parte do país, são, segundo esse olhar, analfabetos políticos, ignorantes religiosos, facilmente manipuláveis e/ ou pouco conhecedores da própria história”[2].
Que país é esse? se perguntava um atormentado Renato Russo numa de suas canções no final dos anos 1980. Décadas à frente, ainda perplexos, somos nós que indagamos: que país é esse que entronizou Bolsonaro? Não há como não reconhecer que o Brasil sob Bolsonaro é sintoma evidente de uma história que precisa ser decifrada. Não pode ser visto como um parêntesis. Ele já estava aí, mas não foi percebido em sua barbárie e no seu espantoso espelhismo antiglobalista. Não será possível superá-lo, verdadeiramente, apenas apertando os botões da urna eletrônica, embora esse seja um passo necessário e imprescindível.
[1] VIANNA, L. W. A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 10.
[2] MÜLLER, V. A História como presente. Brasília: FAP, 2020, p. 191-2.
*Alberto Aggio é historiador, professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo Blog Horizontes Democráticos.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD 35 || Marcus Vinícius Furtado: O que resta ainda por dizer sobre Cuba
Regime cubano é imagem da esquerda utópica que falha ao enfrentar as questões políticas, econômicas e sociais destas primeiras décadas do século XXI
Em julho de 2021, os debates em torno da revolução cubana ganharam novo destaque em virtude das manifestações que ocorreram no país. A resposta inicial do governo foi, além da repressão aos protestos, declarar a crise como fruto da persistência do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos a Cuba. Diante da reiteração do mote anti-imperialista, característico da revolução cubana, o presidente Miguel Díaz-Canel convocou os cubanos a ocuparem as ruas em defesa do regime revolucionário.
Tais declarações marcam a existência de um regime ancilosado, refém de seus próprios pressupostos políticos, mas que ainda é capaz de despertar apoios apaixonados em toda a América Latina. Diante disso, é preciso refletir como, mesmo frente aos problemas econômicos e às frequentes demonstrações de autoritarismo, essa defesa é possível.
Quando, no início de 1959, os guerrilheiros liderados por Fidel Castro adentraram em Havana, havia a expectativa de que finalmente a América Latina poderia realizar seus desígnios utópicos. Retomando em chave revolucionária a Nuestra América de José Martí, Castro atacava o domínio norte-americano e afirmava a rebeldia dos cubanos como estratégia vitoriosa na conquista da libertação política e econômica da ilha.
Na América Latina, os impactos da revolução, como demonstra Alberto Aggio[1], impulsionaram a formação de uma cultura revolucionária característica do continente. Nessa imaginação revolucionária há uma cisão entre reforma e revolução que, além de fixar o caminho insurrecional como paradigma, estabelece o Terceiro Mundo e a própria América Latina como novos polos revolucionários diante da estagnação política da URSS.
Em termos políticos, essa cisão promoveu rearranjos nas esquerdas de diversos países. Contrapondo-se à necessidade de uma etapa democrático-burguesa como antessala do socialismo, a leitura cubana orientou o rompimento de parcela das esquerdas com as burguesias nacionais e os partidos comunistas. No continente dilacerado pelo imperialismo, a violência revolucionária apareceu como a possibilidade de redenção e liberdade.
Nas décadas seguintes, a retórica heroica da revolução conviveu com as dificuldades internas e as necessidades de posicionamento político no intrincado xadrez da Guerra Fria. Por um lado, o modelo revolucionário cubano, orientado por uma perspectiva de libertação nacional impulsionada pela rebeldia guerrilheira, se distanciava da estrutura partidária soviética. Por outro, frente às ameaças norte-americanas e ao embargo econômico, Havana buscou estabelecer relação de maior aproximação e segurança com Moscou.
Internamente, as propostas de uma revolução afastada dos dogmatismos e da excessiva centralização do poder logo desapareceram. Conforme demonstra Silvia Cézar Miskulin[2], as posturas autoritárias do regime em relação à intelectualidade cubana foram estabelecidas nos primeiros anos da revolução, alguns anos antes do célebre caso Padilla. Concomitantemente, como demarca Claudia Hilb[3], o voluntarismo e a expectativa do estabelecimento de profundas transformações históricas orientaram a produção de um poder centralizado no Estado e na figura de seu líder.
Nesse sentido, as realizações que sustentam o imaginário da revolução cubana, a exemplo das políticas públicas nas áreas de educação e saúde, são indissociáveis dessa estrutura autoritária e planificada construída nas décadas subsequentes à revolução. Com o desaparecimento da URSS, para além dos problemas internos, o regime cubano revela com mais profundidade seu caráter insular. Não fortuitamente, protestos de intensidade semelhante aos atuais ocorreram na ilha em 1994, logo após a debacle soviética.
Portanto, a defesa da revolução cubana parte de uma dissociação que, ao enfocar o desenvolvimento social da ilha, encobre as fragilidades desse sistema social e trata os protestos contra o desabastecimento e a morosidade da vacinação como manifestações de espírito contrarrevolucionário. Mais grave, essa dissociação guarda incômodo silêncio em relação à persistência de um regime ditatorial, terminando por legitimar o autoritarismo e o velho paradigma insurrecional.
Distante da rebeldia dos barbudos, o regime revolucionário cubano, permanentemente ancorado nos dilemas políticos do século XX, é uma imagem opaca e esmorecida das utopias latino-americanas que teimam em mobilizar determinados setores das esquerdas do continente, entravando o enfrentamento das novas questões políticas, econômicas e sociais dessas primeiras décadas do século XXI.
[1] AGGIO, Alberto. A teoria pura da revolução. SP: O Estado da Arte, 2021. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/teoria-pura-revolucao-aggio-hd/
[2] MISKULIN, Silvia Cezar. Os intelectuais cubanos a política cultural da revolução (1961-1973). SP: Alameda, 2009.
[3] HILB, Claudia. Silêncio Cuba: a esquerda democrática diante do regime da revolução cubana. SP: Paz e Terra, 2010.
* Marcus Vinícius Furtado é pós-doutorando em História pela Unesp-Franca. Publicou os livros Em um rabo de foguete: trauma e cultura política em Ferreira Gullar e A arquitetura fractal de Antonio Gramsci: História e política nos Cadernos do Cárcere.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD 35 || Autores - Edição de Setembro/2021
Jairo Nicolau
Entrevistado especial da edição número 35 da Revista Política Democrática Online (Setembro/2021), Jairo Nicolau é cientista político. É professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Mestre e doutor em Ciências Políticas no Iuperj, com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.
Caetano Araújo
Graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino, é um dos entrevistadores do cientista político Jairo Nicolau. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
Arlindo Fernandes de Oliveira
É autor do artigo O que se pode esperar de uma CPI e um dos entrevistadores do cientista político Jairo Nicolau. É advogado, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público, IDP, especialista em Ciência Política pela Universidade de Brasília, UnB, bacharel em direito pelo Uniceub. Foi assessor da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte (1984-1092), analista judiciário do Supremo Tribunal Federal (1992-1996) e assessor da Casa Civil da Presidência da República (1995). Professor de Direito Eleitoral no Instituto Legislativo Brasileiro, ILB, desde 2004. Desde 1996, consultor legislativo do Senado Federal, Núcleo de Direito, Área de Direito Constitucional, Eleitoral e Processo Legislativo.
André Amado
Um dos entrevistadores do cientista político Jairo Nicolau, também é autor do artigo A construção de um personagem. É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online. É autor de diversos livros, entre eles, A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Cleomar Almeida
Autor da reportagem especial Do prenúncio à nova tragédia – Caso Cinemateca confirma descaso com cultura. Graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.
Otávio Santana do Rêgo Barros
Autor do artigo Relações entre civis e militares, uma reflexão, é general de Divisão do Exército Brasileiro (R1). Doutor em Ciências Militares, foi porta-voz da Presidência da República (2019-2020). Comandou, no Rio de Janeiro, a força de pacificação nos complexos do Alemão e da Penha e a segurança da Rio+20. Foi Chefe do Centro de Comunicação Social do Exército.
Alberto Aggio
Autor do artigo "Que país é esse?". É historiador, professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo Blog Horizontes Democráticos.
Antônio Carlos de Medeiros
Autor do artigo O Congresso Nacional sob escrutínio. É pós-doutor em Ciência Política pela The London School of Economics and Political Science.
Sérgio Denicoli
É autor do artigo Já é 2022 na internet. É pós-doutor em Comunicação pela Universidade do Minho (Portugal) e Westminster University (Inglaterra), e também pela Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros “TV digital: sistemas, conceitos e tecnologias”, e “Digital Communication Policies in the Information Society Promotion Stage”. Foi professor na Universidade do Minho, Universidade Lusófona do Porto e Universidade Federal Fluminense. Atualmente é sócio-diretor da AP Exata, empresa que atua na área de big data e inteligência artificial.
Valdir Oliveira
Autor do artigo Retomada da economia na tempestade perfeita, é superintendente do Sebrae no DF. Foi secretário de Desenvolvimento Econômico do governo de Rodrigo Rollemberg (PSB).
Leonardo Ribeiro
Autor do artigo Um meteoro no país das pedaladas, é analista do Senado Federal e especialista em contas públicas. Foi pesquisador visitante da Victoria University, Melbourne, Austrália.
JCaesar
Autor da charge da Revista Política Democrática Online, é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA. É autor da charge publicada pela Revista Política Democrática Online.
Marcus Vinícius Furtado
É pós-doutorando em História pela Unesp-Franca e autor do artigo O que resta ainda por dizer sobre Cuba. Publicou os livros Em um rabo de foguete: trauma e cultura política em Ferreira Gullar e A arquitetura fractal de Antonio Gramsci: História e política nos Cadernos do Cárcere.
Lilia Lustosa
Autora do artigo A poética política de Glauber, é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, França.
Henrique Brandão
Jornalista e escritor, é autor do artigo Giocondo, um comunista abnegado e gentil.