Congresso Nacional

Carlos Alberto Torres: O dilema fundamental da democracia bloqueada

Existem duas formas de olhar para a atual conjuntura política; essas duas formas compõem dois aspectos de uma única realidade inseparável. Mas essas formas de olhar correspondem a interesses diferentes; logo, dependendo do seu ponto de vista, você pode chegar a conclusões e a posições políticas diferentes.

Esses dois olhares deveriam representar os mesmos interesses sociais, mas isso não está acontecendo neste momento da história brasileira. Esta a razão central do bloqueio do desenvolvimento de nossa democracia.

Esses dois olhares, entretanto, não estão escondidos nos subterrâneos de nossas consciências. Eles são conscientes, e cada um deles conhece, claramente, um ao outro. Eles formam o dilema fundamental da democracia bloqueada.

O primeiro olhar corresponde ao interesse da sociedade. Naturalmente, a sociedade não está satisfeita com o seu sistema político-partidário-eleitoral. Por que? Os eleitos tanto para o executivo como para o legislativo, via de regra, não parecem fazer da política a arte de zelar pelo bem comum; como foi desnudado pela Lava-Jato, a corrupção tornou-se o meio fundamental para financiar a conquista e a manutenção do poder político; o sistema político, partidário e eleitoral é extremamente caro para resultados de eficiência e eficácia sociais tão pífios; a corrupção, hoje, está associada à falência, ineficiência e desmoralização dos serviços públicos, particularmente nas áreas de saúde, educação e segurança.

O segundo olhar corresponde ao interesse da maioria dos políticos com mandato nos poderes executivo e legislativo federal, e ao de suas respectivas máquinas partidárias. Agem, agora, para tentar viabilizar as suas reeleições e sobreviver. Surpreendidos pelas apurações da Lava-Jato, denunciados, réus, os principais caciques partidários agem por meio da "reforma política", cujos acertos se dão na calada da noite, como em verdadeira "blitzkrieg" contra a sociedade. A única coisa que conseguem conceber é torná-la ainda mais exorbitantemente cara, com o "Fundo de Financiamento da Democracia" e com o "Distritão", para favorecer a eleição dos caciques partidários, dos representantes das oligarquias locais e o poder econômico. Ou seja, um sistema político-partidário-eleitoral, que já é ruim, e que elegeu os Dilma's, os Temer's, os Renan's e os Cunha's, essa lamentável representação, eles pretendem piorá-lo ainda em várias vezes mais!

Se esses olhares são conscientes e compõem realidades que podem ser descritas com dados, fatos, provas e evidências, por que persistem? É que, a justificar esse segundo olhar, "rodam" por trás, como programas ou algoritmos (*) automáticos, arraigadas concepções e comportamentos sociais, e se propagam como "memes (**)", de caráter cultural, histórico, filosófico, político, sociológico, econômico, etc., sobre como funciona - ou devem funcionar - as instituições políticas da sociedade.

É no Congresso Nacional que se encontram e reproduzem essas práticas ao nível da República. Alguns justificam, embora por trás dos panos, a corrupção, o patrimonialismo, o fisiologismo e o corporativismo, porque "sempre foi assim", isentando-se; outros, porque a política perderia qualquer interesse se não fosse um "negócio" onde pudessem enriquecer com ela, alegando, pragmaticamente, que o "ser humano é assim mesmo - egoísta"; outros, ainda, implicitamente aceitando as concepções acima, a justificam como a expressão da "luta de classes", como defendida por uma certa esquerda autoritária e conservadora, alegando que, se os que defendem os interesses dos trabalhadores não roubarem, como o fazem os representantes das "elites" - ou das classes dominantes -, não conseguirão ter recursos para financiar as campanhas eleitorais, que estão cada vez mais caras.

Por isso, não importa o matiz ideológico e político que digam ter, neste momento histórico a maioria dos partidos atua, conservadoramente, contra o desenvolvimento da democracia. Isto é bem ilustrado quando se constata que, porque temem a Lava-Jato, unem-se e agem, em "santa aliança", para combate-la e se manterem impunes; ou, ainda, na proposta da reforma política, cujo relator é o deputado federal Vicente Cândido (PT-SP), quando o PMDB, o PT e o PSDB, junto com os partidos do chamado "centrão", defendem a criação do acintoso fundo de financiamento da democracia para aumentarem os seus privilégios. Louve-se os parlamentares e partidos que, embora minoritários, travam uma verdadeira batalha contra a impunidade, e são contra essa reforma política regressiva.

Mas as reações sociais estão sendo imensas, pois existe um divórcio entre o interesse da sociedade e o do sistema político! Esta é uma contradição fundamental que precisa ser resolvida no interesse da sociedade. Ou melhor, no interesse da democracia. Em síntese, é uma tarefa para os democratas. Ela não é fácil, pois onde esteja um democrata indignado, seja como um simples cidadão, ou como um futuro candidato nas eleições de 2018, terá que discutir, propor e agir para realizar essa tarefa histórica: a de desbloquear o desenvolvimento da democracia brasileira.

Existe em meio à grave crise algo que nos consola! Podemos ousar resistir: primeiro, porque não estamos sozinhos, pois milhões de brasileiros estão tão indignados quanto nós; segundo, porque não se extinguiu a força do movimento democrático, que culminou com a Constituição de 1988; terceiro, porque a democracia conquistada nos conduziu a um Estado Democrático de Direito com estabilidade institucional. Isto nos favorece. Portanto, não devemos desanimar, pois a hora é agora. E é hora de luta!


Folha de S. Paulo: A um ano da campanha na TV, incerteza inédita ronda ciclo eleitoral

A um ano do início da campanha à Presidência no rádio e na TV, que começa em 26 de agosto de 2018, o cenário eleitoral está indefinido, sem clareza de quem serão os candidatos das principais forças.

Por Thais Bilenky, Folha de S. Paulo

O enfraquecimento da polarização entre PT e PSDB, com ambos os partidos desgastados com a Operação Lava Jato, produz uma proliferação de nomes que poderão disputar o Planalto.

Torna a situação mais complexa a impopularidade do presidente Michel Temer (PMDB), o que inibe uma candidatura óbvia como representante da continuidade, rompendo com a lógica observada desde 1994.

Entre os tucanos, o senador Aécio Neves (MG), ao apoiar o impeachment de Dilma Rousseff (PT), seria o herdeiro natural da recuperação econômica que se esperava com a posse de Temer.

Atingido pela Lava Jato, abriu espaço para o governador paulista, Geraldo Alckmin, pleitear a candidatura.

O desgaste da classe política tradicional, contudo, vem servindo de palanque para o prefeito paulistano, João Doria, apresentar-se como representante do "novo".

A disputa velada entre o governador e o prefeito reorganiza forças dentro do PSDB e mesmo fora, com sondagens do Democratas e do PMDB a Doria.

Um líder tucano admite que a polarização entre PSDB e PT se esgarçou, pelo menos no retrato instantâneo. Pode vir a se reorganizar em eventual segundo turno, ele afirma, mas talvez não dite a campanha desde o primeiro.

Da parte do PT, a incógnita quanto à viabilidade jurídica da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, condenado em primeira instância na Lava Jato, deixa a centro-esquerda em compasso de espera.

Enquanto o ex-presidente faz sua caravana pelo Nordeste, o ex-prefeito paulistano Fernando Haddad ocupa o posto de plano B. O ex-ministro Ciro Gomes (PDT) já disse que não disputaria com Lula e flerta com a eventualidade de formar chapa com Haddad.

Sem clareza de quem será e o que defenderá o candidato do PSDB, o governo dá sinais de que pode lançar nome próprio como o ministro Henrique Meirelles (Fazenda).

A conjunção desses fatores leva analistas a apostarem que, se a eleição chegar ao segundo turno, terá candidatos com votação baixa.

SARNEYZAÇÃO
Os principais ganhadores do cenário de indefinição são os 'outsiders', os candidatos que correm por fora dos partidos mais tradicionais, afirmou Rafael Cortez, da consultoria Tendências.

"Ainda que enfrentem condições difíceis por conta das regras de tempo de TV e eventualmente de doação de recursos públicos, a barreira para o segundo turno deve diminuir, viabilizando nomes como Jair Bolsonaro (PSC) e Marina Silva (Rede Sustentabilidade)", disse o analista.

Para Cortez, o quadro atual se assemelha ao de 1989, com fragmentação de candidaturas e sem perspectiva entre o eleitorado de continuidade do governo, o que ele define como sarneyzação.

Na perspectiva histórica, "as eleições presidenciais têm se comportado quase como plebiscitos do governo em questão. Se bem avaliado, tende a gerar continuidade. Sem isso, todas as candidaturas vão ter de trabalhar a persuasão eleitoral", disse.

Em comparação, em agosto de 2013, salvo por Marina, que ainda não definira que sairia como vice de Eduardo Campos pelo PSB, o quadro era relativamente previsível, com Aécio disputando pelo PSDB e Dilma pelo PT.

Mais uma vez, Marina não deixa claro se e como entrará na disputa. Sem estrutura partidária robusta e em meio à indefinição de Lula, ela se restringe a gestos: reuniu-se com artistas no Rio, em julho, uma vez na casa da empresária Paula Lavigne e outra na do ator Marcos Palmeira.

No campo da extrema direita, Bolsonaro viaja o país há mais de um ano para falar de seu projeto nacional. Pretende deixar o PSC e se filiar ao PEN para viabilizar a candidatura. O seu adversário imediato é Doria, com quem pode vir a disputar a parcela mais centrista de seu potencial eleitorado.


'Alckmin é o primeiro da fila no PSDB para disputar a Presidência em 2018', diz Tasso Jereissati

Presidente interino do partido afirma que convenção nacional tucana vai abrir espaço para cabeças-pretas 'de mentalidade'

Por Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo

O senador Tasso Jereissati (CE), presidente interino do PSDB, revelou ao Estado que não pretende disputar a presidência do partido no dia 9 de dezembro, quando ocorrerá a convenção nacional tucana. A ideia, diz ele, é abrir espaço para um nome que seja "cabeça-preta de mentalidade". O dirigente também afirmou que o governador Geraldo Alckmin é o primeiro na fila para disputar a Presidência da República em 2018. Sobre o fato de o senador Aécio Neves (MG) continuar como presidente licenciado, foi taxativo: "O presidente do partido sou eu e só eu".

O senhor pretende disputar a presidência do PSDB na convenção do partido marcada para dezembro?
Não. Faço questão de conduzir o processo com bastante isenção. Por isso, não devo ser candidato à presidência do PSDB. Defendo que seja um nome novo, alguém da nova geração e com mensagem mais fresca.

Quais nomes se encaixam nesse perfil?
São muitos nomes bons na Câmara, Senado e entre os prefeitos. Se eu falar de algum específico, isso acabaria ferindo ou esquecendo alguém. A quantidade de quadros novos que está surgindo no partido me entusiasmou a fazer esse movimento.

A ideia é que um “cabeça-preta” assuma o comando do PSDB e lidere o partido em 2018?
Um cabeça-preta de mentalidade. Não estou excluindo ninguém.

O que deve mudar no estatuto?
Encarreguei o deputado federal Carlos Sampaio (SP) de organizar um grupo para discutir o novo estatuto. Ele está começando a trabalhar nisso esta semana.

A atual direção executiva nacional do PSDB tem um perfil muito parlamentar. Deve ocorrer alguma mudança na configuração?
A gente sente que há muita distância dos prefeitos. Eles estão na ponta do partido e vivem o dia a dia. Defendo que haja uma participação dos prefeitos, talvez com mais de um na executiva. Deve ter também uma participação dos presidentes regionais.

Desde a fundação do PSDB, em 1988, nunca houve uma disputa de teses em convenção nacional. Ficou essa fama de partidos de caciques. Isso deve mudar?
A disputa é de ideias. Ao longo desse período (até dezembro) serão discutidas ideias e teses. Em paralelo, teremos o novo estatuto e programa do partido. Se não tiver um nome de consenso (para a presidência), então vai ter disputa. Tudo pode acontecer. Sempre tem a primeira vez.

Há vários grupos se aproximando do partido, como o MBL. Qual o objetivo disso?
Estamos abertos. Queremos receber a influência de todos esses movimentos que estão nascendo por aí, que são influenciados pelas redes sociais. Vamos conversar com todos. São muito importantes na formação de opinião pública. Temos que estar antenados com todos.

Avalia disputar o governo do Ceará?
Não pretendo mais voltar ao Executivo. Também defendo a renovação no Ceará. O ideal é um processo de renovação lá também.

Qual é a sua relação com o governador Camilo Santana, do PT?
A relação pessoal é ótima. Nossas posições políticas são diferentes, especialmente no plano nacional. Mas ele é uma pessoa bem intencionada.

Quer dizer que, no Ceará, o PSDB não vai fazer um discurso antipetista, como o do João Doria, em 2018?
Nem no Ceará nem no Brasil. Não é o nosso estilo. Existem no partido várias nuances e o João Doria representa uma delas. Mas na média do PSDB, o discurso que queremos levar para a convenção não é anti, é pró.

Então o PSDB não deve polarizar com o PT?
Essa política de nós contra eles é um desserviço para o Brasil. Além de dividir, traz violência, desrespeito e intolerância. É um péssimo sinal para democracia.

O grupo de tucanos que defendem a permanência do PSDB no governo federal deve tentar emplacar um nome na convenção de dezembro?
Essa discussão de ficar ou sair está vencida no partido. Agora é olhar pra frente.

Acredita que essa bandeira do parlamentarismo vai mobilizar a militância do PSDB?
Vou me empenhar para quem sim. Acredito no parlamentarismo há muitos anos. Essas crises políticas que têm afetado a vida do brasileiro desde a redemocratização têm provado que o presidencialismo de cooptação (termo usado em vídeo mea-culpa do partido criado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso) está falido, quebrou.

Os quatro ministros do PSDB no governo podem ser considerados da cota pessoal do presidente Michel Temer?
Não acredito em cota pessoal. As posições do PSDB no Congresso em relação às reformas e projetos importantes para o País não mudam um milímetro pelo fato de ter ou não ministro. A presença deles no ministério não tem influência na nossa posição política, nem na agenda de reconstrução do partido. A agenda do governo pode ser uma e a do partido outra. As agendas podem divergir.

A convenção vai marcar prévias para escolher o candidato à Presidência da República?
Se não chegarem a um consenso sobre o candidato, terá prévia.

O senhor esteve na quinta-feira (24) com o governador Geraldo Alckmin em Brasília. Qual foi a pauta?
Alckmin é uma das lideranças mais importantes do partido há muito tempo. Trocamos ideias sobre o futuro do partido.

O governador é hoje o nome mais bem posicionado para disputar o Palácio do Planalto em 2018?
Sim. Ele é o primeiro da fila.

E o João Doria?
Ele também é um quadro. Foi eleito prefeito no primeiro turno e está credenciado para disputar qualquer cargo neste País, mas dentro do partido o Alckmin está à frente.

O que precisa mudar no PSDB, um partido considerado de caciques?
É preciso fazer uma autocrítica. Em alguns setores estamos distantes do que a população quer da política. Temos que ir para a rua e ver onde temos que melhorar. A militância do PSDB está desencantada com a política. A política ainda é a base da democracia.

O senhor tentou entregar o cargo de presidente interino várias vezes, mas o Aécio não aceitou. Por quê?
Eu não queria assumir a presidência do PSDB. Assumi em uma emergência, como coisa temporária. Não fazia parte do meu plano de vida.

Mas o fato é que até dezembro o partido continua tendo dois presidentes, um alinhado com Temer e outra com posição mais independente...
O presidente de fato do PSDB sou eu, e só eu. Isso foi acertado graças ao desprendimento do Aécio.

 


Demétrio Magnoli: O stalinismo limpava a História de inimigos; no Brasil, ensaia-se eliminar os amigos, para protegê-los

 

The Commissar Vanishes (1997), de David King, é uma fascinante história da falsificação de fotografias e imagens artísticas na URSS. "A erradicação física dos oponentes de Stalin, pelas mãos da polícia secreta", escreveu King, referindo-se aos grandes expurgos dos anos 30, "foi celeramente seguida pela sua obliteração de todas as formas de existência pictórica". A ditadura stalinista limpava a História de seus inimigos.

No Brasil, hoje, inversamente, ensaia-se eliminar os amigos, a fim de protegê-los. É o que faz Mathias Alencastro, ao contar as aventuras da Odebrecht em Angola sem mencionar nenhuma vez o nome próprio Lula (Folha, 21/8).

Alencastro apoia-se na delação de Emilio Odebrecht para recordar a longevidade da parceria entre a Odebrecht e o cleptocrático ditador angolano José Eduardo dos Santos, iniciada nos anos 80, mas esquece-se do que confessou o mesmo delator sobre a singularidade do período iniciado em 2003. A diferença crucial pode ser sintetizada numa sigla de cinco letras que também foi suprimida de sua pintura: BNDES.

Angola representa 28% do total de financiamentos do BNDES para obras no exterior, ocupando o primeiro lugar, à frente da Venezuela (22%), da República Dominicana e da Argentina (16% cada). Dos R$ 14 bilhões destinados a Angola, a Odebrecht abocanhou 79%. Antes de 2003, porém, eram quase insignificantes os financiamentos públicos brasileiros para Angola –e, em geral, para obras no exterior.

A exclusão de Lula e do BNDES da obra do articulista é o pilar estrutural de uma tese, não um deslize informativo. A tese: a Odebrecht "era a ponte através da qual os governos brasileiros entravam em Angola, e não o contrário".

Se assim fosse, Angola deveria ganhar a distinção de mosca branca: Lula funcionou como "ponte" através da qual a Odebrecht expandiu seu império por terras da Venezuela, da República Dominicana, da Argentina, do Panamá, do Peru e de Cuba (em todos casos, à óbvia exceção de Cuba, onde dispensam-se marqueteiros, com auxílio do inefável João Santana). Mas Angola é só outra mosca preta, como atesta a confissão de Emilio Odebrecht.

Segundo seu depoimento, Emilio solicitou os bons ofícios de Lula para que a Odebrecht fosse favorecida em Angola. O patriarca também disse que, após a crise financeira de 2008/2009, quando desabaram as receitas petrolíferas angolanas, o BNDES tornou-se a única fonte significativa de recursos para a empresa no país africano.

De fato, em meados de 2010, o BNDES abriu nova linha de crédito destinada a obras em Angola, no valor de US$ 1 bilhão. As relações especiais entre Lula e José Eduardo dos Santos prosseguiram durante o governo Dilma. Em 7 de maio de 2014, os dois se reuniram no palácio presidencial, em Luanda.

O encontro realizou-se durante seminário organizado pelo Instituto Lula e pela Fundação José Eduardo dos Santos, a engrenagem montada para converter rendas petrolíferas angolanas em bens patrimoniais da família Santos.

A conexão angolana não beneficiou apenas a Odebrecht (e, provavelmente, a quadrilha Santos). Lula proferiu palestras em Angola em julho de 2011, um ano após a liberação dos créditos do BNDES, e maio de 2014, na véspera do encontro com Santos. As duas foram patrocinadas pela Odebrecht e, de acordo com Alexandrino Alencar, elo operacional entre Emilio e Lula, renderam um total direto de US$ 400 mil ao palestrante. Nas palavras de Alencar, "construímos juntos o programa de palestras como uma forma de remuneração do ex-presidente".

A erradicação narrativa de Lula serve, tanto quanto a obliteração pictórica dos inimigos de Stalin, a um exercício de revisionismo histórico. "Uma foto pode parecer esquisita, como resultado de retoques brutais", esclarece David King. A observação não vale exclusivamente para as pinceladas dos aerógrafos soviéticos.

 


Marco Aurélio Nogueira: A reforma que não cabe em si

 

Ou reformamos a política (cultura, condutas, valores) ou é melhor deixar como está. Enquanto candidatos e postulantes a candidato cruzam o País em busca de cacife e visibilidade, no dia a dia da política o desacerto é grande. Fala-se muito, esclarece-se pouco.

É a reforma política, essa musa maltratada, menina dos olhos e objeto de desejo dos operadores políticos, que ressurge sempre que as brechas se fecham. Tratada como cataplasma universal, antídoto contra os males que afligiriam partidos, parlamentares e eleitores, funciona entre nós como um alarme de repetição. Ao se aproximarem as eleições, ele dispara. Alega-se que é para “salvar a política” e “resgatar o sistema”, mas na verdade o sangue ferve para que se ache um jeito de arrumar dinheiro com que financiar campanhas e facilitar a (re)eleição dos interessados.

Com isso, a agenda nacional é invadida por uma sucessão caótica de soluções salvacionistas para “melhorar a política”. O quadro fica tão confuso que se chega ao ponto de concluir que o melhor talvez seja deixar tudo como está para ver como é que fica.

Há duas maneiras de pensar as relações entre reforma e política. Falamos em “reforma política” quando queremos propor que as regras do jogo sejam modificadas para que respondam melhor às exigências da sociedade, sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em “reforma da política” quando quisermos postular que o modo como se faz política precisa ser alterado.

Essas duas maneiras deveriam caminhar juntas, alimentando-se reciprocamente. O postulado institucionalista, bastante em voga, prega que condutas e valores são fortemente influenciados pelas instituições: as regras fazem o ator, mediante restrições, condicionamentos e incentivos. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta.

Sistemas concebidos para permitir a equilibrada representação das distintas propostas políticas – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcionais – não levam a que necessariamente todas as propostas se façam representar, caso os mais fortes ajam de forma predatória ou degradem as disputas eleitorais. O voto distrital, por exigir a concentração dos votos em territórios determinados, promove uma inflexão localista e desestimula a discussão política geral, mas não impede que os partidos apresentem candidatos ideológicos e convidem os eleitores a fugir da província. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles cria dificuldades para que ela se expanda. Mas a corrupção pode crescer de forma exponencial, caso alguns germes não tratados ganhem força na sociedade, no meio político ou administrativo.

O sistema político brasileiro não parece funcionar bem. A “classe política” não se mostra preparada para lidar com os novos tempos. É atrasada. Há partidos em excesso, constituídos como projetos pessoais, graças a uma legislação permissiva. Isso dá sentido a cláusulas de desempenho, que podem coibir a formação oportunista de legendas inconsistentes. O sistema se reproduz e funciona, mas entrega pouco à sociedade, não produz resultados nem consensos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia. Não surpreende que os cidadãos não o valorizem.

O problema a resolver nesta fase crítica da vida nacional não é de natureza sistêmica. Não tem que ver com regras. O presidencialismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituição por uma modalidade de parlamentarismo que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamentarismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcional pelo distrital, e acordarmos no dia seguinte com os mesmos políticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulamenta injetará maior racionalidade ao sistema e reduzirá a fragmentação parlamentar, mas não produzirá obrigatoriamente partidos melhores e decisões mais equilibradas nem eliminará a mixórdia programática e a pobreza de ideias.

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo. Está difícil imaginar como é que o País encontrará eixo.

Na sociedade civil, coração ético do Estado, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que as redes sejam a praia dos falantes. Aí dorme o problema principal, pois, sem um ativismo democrático que articule interesses e pressione por um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperação do Estado.

Poucos percebem que a democracia perde qualidade não tanto porque o sistema político derrapa, mas porque os cidadãos democráticos não conseguem se articular entre si. Os liberais democráticos não se projetam, a esquerda moderada e a centro-esquerda são inoperantes e a esquerda “pura”, radicalizada, é prisioneira de seus fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Tais vetores da democracia estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade conquistada ao longo da democratização do País.

Sem energia mediadora e disposição para que se alcancem zonas consistentes de entendimento, poderemos fazer a mais bem bolada reforma política, que pouca coisa mudará. Em suma, ou reformamos a política (a cultura, as condutas, os valores) ou é melhor deixar tudo como está. A reforma de que necessitamos poderá ser beneficiada por ajustes pontuais, mas só terá como se completar se vier acompanhada de cidadãos mais bem educados politicamente, capazes de se fazerem representar por uma “classe política” mais qualificada em termos intelectuais e ético-políticos.

Avanços políticos substantivos estão associados a como as relações sociais se reproduzem, à estrutura produtiva, à qualidade da cidadania, às interações entre governantes e governados. Em que medida o sistema político pode responder por tais avanços é algo sempre em aberto.

 


Alberto Aggio: Entre dois polos, como reconstruir o centro?

Postulação centrista traria à cena política um ator indispensável para a estabilidade

O ano de 2018 chegou. A razão disso está no fato de que a polarização política sofreu um claro deslocamento. Depois do impeachment, tudo indicava que ela ficaria contida no encarniçado embate da oposição contra o governo, com a primeira vociferando contra a legitimidade do segundo. Os ecos dessa retórica tornaram-se, dia a dia, menos audíveis e as mobilizações, cada vez menores.

2018 chegou e a polarização deslocou-se para a dimensão político-eleitoral. A mudança é perceptível e com ela os dois polos em contraposição deixaram de ser o PT e o PSDB, substituídos por duas postulações à Presidência da República. Lula expressando uma esquerda de discurso sectário em pugna com a direita extremada de Jair Bolsonaro, que representa a mesma coisa em sentido inverso. Na imprevisibilidade reinante, ambos podem chegar inteiros ou acabados a 2018, e, ao invés do acirramento da polarização, paradoxalmente, o discurso dos polos pode se voltar contra postulações diferenciadas que venham a surgir.

Porém, este é um quadro incompleto. O centro político, combatido historicamente pelo PT e conspurcado nos seus governos, é ainda o grande ausente. Ao centro, a fragmentação é expressiva, o que leva a prever grande dificuldade eleitoral para esse campo, que poderá lançar um ou mais postulantes.

Não resta dúvida de que uma postulação ao centro, especialmente se for como expressão de um campo democrático, representaria a reintrodução na cena política de um ator indispensável à estabilidade, com vistas a projetarmos avanços civilizatórios dos quais o País se afastou injustificadamente. Por opção e convicção, Lula e Bolsonaro ocupam extremos opostos e revelam uma evidente ausência de cultura política democrática que possa fazê-los se aproximar produtivamente do centro político. Uma recomposição do centro teria, pelo menos, a virtude de gerar a expectativa de superação da política de facções que se instalou nos últimos anos, comprometendo nossa convivência política.

Tema complexo, é um equívoco imaginar que o centro seja algo fixo, incapaz de se ressignificar. Ele se tornou relevante política e analiticamente na avaliação das democracias europeias do pós-guerra. Os restos do fascismo, a presença da esquerda comunista e socialista e a emergência da guerra fria jogaram luz em correntes políticas que buscavam afastar o perigo de os extremismos alcançarem o poder. Desse lugar “defensivo” nasceram e se afirmaram as seguidas metamorfoses do centro político, que ainda marcam nosso tempo.

Nem sempre o centro foi ocupado por um partido hegemônico equidistante entre a direita e a esquerda, responsável pelo equilíbrio do sistema político. No Chile, por exemplo, o Partido Radical cumpriu esse papel, mas quando a Democracia Cristã (DC) assumiu seu lugar, no final da década de 1950, o centro político assumiu nova configuração, passando a ser um centro “excêntrico”, ou seja, mais um polo do sistema político, perdendo a função anterior de equilíbrio. Essa não foi a causa principal, mas foi determinante para que a democracia ruísse em 1973. Na Itália, as lições do Chile levaram o Partido Comunista Italiano e a DC a projetarem o famoso compromesso storico, que ressignificaria o centro político a partir da esquerda, mas essa estratégia fracassou.

A política brasileira desconhece um partido de centro como fator de equilíbrio. Antes de 1964, a exclusão do PCB dispensava essa função, facilitada também pela ausência de autodefinição de um ou vários partidos “de direita”. A nossa geografia político-partidária, cheia de claros e escuros, foi o inverso da chilena, o que não nos aliviou da ocorrência de golpes de Estado no correr do século 20. Aqui, o centro é ocupado de forma instrumental, produzindo inercialmente uma lógica centrípeta que conduz e reproduz o sistema.

Durante o período militar, afirmou-se a disjuntiva “situação” e “oposição”, simplificando o sistema e fatiando o centro entre os dois polos subalternizados. No interior dessa disjuntiva, lideranças do liberalismo e do comunismo, em “frente política” contra o regime, arquitetaram uma aliança da esquerda com o centro, abrindo-se a possibilidade entre nós de circulação da noção de “campo democrático”. Essa estratégia levou a transição à democracia a bom porto.

Apesar da reprodução da disjuntiva situação/oposição na nova situação democrática, a lógica centrípeta permaneceu vigente e se afirmou com a imposição do chamado “presidencialismo de coalizão”, que guiou o País nos últimos anos. Esse arranjo se sustentou fundado em consensos fáticos, como as reformas sociais inclusivas, uma competição eleitoral aceitável, mesmo com graves distorções na representação, e um controle fiscal legitimado.

A conexão desses três pontos se desfez nos governos Dilma. Em termos fiscais, o impacto da decomposição se mostrou insustentável. Foi isso que impulsionou o impeachment, com apoio efetivo de massas. Não corresponde à verdade, portanto, a lenda de que o impeachment ocorreu para resguardar os parlamentares do PMDB do alcance da Operação Lava Jato. Essa é uma interpretação tão simplista quanto ideológica.

O pós-impeachment ensejava o retorno da política e uma reconfiguração do centro. Contudo, o PMDB, carro-chefe do “Centrão”, que se sustentou nos governos petistas e hoje sustenta Temer, perdeu a grande oportunidade de levar adiante projetos de reforma que poderiam criar uma nova base programática para futuros consensos.

Não é equivocada a avaliação de que, do ponto de vista democrático, o centro político foi perdido e não será fácil recuperá-lo. Repor a convivência política como terreno comum e postular uma reforma do Estado, com vistas ao bem-estar efetivo da população, podem se constituir em pontos de partida para uma nova combinação entre “reforma social” e democracia política, a ensejar um novo “arranjo centrista” entre nós.

 

 


Helena Chagas: As privatizações do PMDB

Nada como não ter votos. Só mesmo um presidente que não foi eleito, sabe que não tem a menor chance de sê-lo no futuro e não tem qualquer compromisso com programas aprovados nas urnas para fazer tudo o que Michel Temer está fazendo. Sob o argumento do rombo estratosférico nas contas públicas, vamos vender a Eletrobras, a Casa da Moeda, os aeroportos - incluindo a jóia da coroa, Congonhas - e até abrir parte do setor de tráfego e segurança aéreos ao capital privado.

Nada a observar sobre o cavalo-de-pau privatista do Executivo peemedebista se, em algum momento, esse programa tivesse sido apresentado e discutido com o país - como normalmente se faz em campanhas eleitorais, debates, entrevistas, programas de TV. Há sentido, do ponto de vista fiscal e da própria eficiência do Estado, na privatização de algumas empresas. Há fartas razões a justificar a concessão de certos serviços à iniciativa privada.

Só que o distinto público não pode ir dormir um dia num país cheio de estatais, ainda que ineficientes, e acordar no outro com todas elas na prateleira do supermercado. É preciso ter um modelo pronto, detalhado e amplamente discutido. É necessário haver regras que dêem segurança aos compradores e novos investidores - que, obviamente, querem o lucro - mas, sobretudo, garantam ao consumidor que ele será beneficiado com serviços melhores e não terá que pagar mais.

É o mínimo que se espera para assegurar que não haverá privatização feita na bacia das almas, enchendo o bolso de todo mundo, menos daqueles que pagam as contas. É na forma como essas coisas são feitas que mora o perigo.

Há muitos e muitos anos não se falava em privatizar a Eletrobras, e o anúncio da decisão de vender a combalida empresa pegou todo mundo no susto. Não ficou bem explicado nem quando e nem como as coisas vão acontecer. Políticos desconfiados de Minas e do Nordeste correram para tirar do pacote Furnas e Chesf. Então para elas não vale?

A oposição, meio apática, pouco reagiu - a não ser pela ex-presidente Dilma Rousseff, que virou alvo por causa da mudança de regras que promoveu no setor e apanhou sozinha.

Mas mercado e investidores, ávidos pelos novos negócios em meio ao deserto em que vivem hoje, entraram em estado de euforia, mesmo sem dados mais concretos sobre a privatização da gigante do setor elétrico. As ações da empresa subiram 49% e o valor da estatal na Bolsa cresceu R$ 9 bilhões num dia.

Sucesso total!, festejaram os peemedebistas. E resolveram repetir a dose no dia seguinte, botando aeroportos, Casa da Moeda e mais cinco dezenas de ativos estatais no balaio das privatizações. Na mesma pressa, no mesmo improviso, no mesmo açodamento. Sem a perspectiva de que os processos estarão concluídos daqui a um ano e cinco meses, quando, na melhor das hipóteses, Temer descerá a rampa do Planalto.

Vai deixar, em janeiro de 2019, alguma dessas privatizações concluída com sucesso, revertendo em benefícios para o país e sua população?

Aí é que está: isso pouco importa para o grupo de peemedebistas que está hoje no governo. Seus objetivos parecem ser bem mais imediatos: passar a idéia de que vão tapar o rombo no caixa e dar assunto para a platéia se distrair. Quem sabe, discutindo essa ou aquela venda, ela se esquece de assuntos mais explosivos que devem pipocar nos próximos dias, como o conteúdo da delação do operador Lúcio Funaro e a nova denúncia do PGR Rodrigo Janot?

Depois, seja o que Deus quiser. Sobretudo se, nesse depois, os peemedebistas tiverem tido, no limite da irresponsabilidade, oportunidade de tratar de outras razões e interesses que cercam os processos de privatização no Brasil.

 

 


Revista Veja: Poderes corrompidos

O ministro da Defesa defende a Lava Jato e diz que, no modelo atual, qualquer presidente, inclusive Temer, precisa render-se ao leilão de cargos e verbas, sob pena de não governar

Por Robson Bonin, Páginas Amarelas, Revista Veja

A agenda do ministro da Defesa, o pernambucano Raul Jungmann, de 65 anos, é espinhosa. É dele a responsabilidade de comandar a intervenção das tropas federais no Rio de Janeiro, contornar a insatisfação dos militares com a penúria orçamentária e intermediar a relação do presidente Michel Temer com o seu partido, o PPS, que, apesar de ter abandonado a aliança governista, ainda pode dar votos favoráveis à reforma da Previdência. Para encarar a dureza da rotina, Jungmann despacha ao som de óperas do compositor italiano Giuseppe Verdi. Na militância política, o ministro, que é suplente de deputado federal, lamenta o estado deplorável do sistema político-eleitoral, mas acha que a Lava-Jato está fazendo um necessário trabalho de saneamento. Hoje, tal como está, o sistema é um convite à corrupção mútua, em que um poder corrompe o outro. A seguir, os principais trechos de sua entrevista a VEJA.

O PPS, seu partido, deixou a base governista por causa das denúncias de corrupção. O senhor se sente à vontade no governo do presidente Michel Temer? Se não me sentisse à vontade, sairia. Houve uma precipitação do PPS, e eu disse isso ao presidente do partido. Não me senti obrigado a deixar o governo porque estou em uma função de Estado, em um momento de crise, e tenho compromisso de lealdade com o presidente Temer e os comandantes das Forças Armadas.

Não é constrangedor dividir o ministério com investigados na Lava-Jato? Essa purgação trazida pela Lava-Jato é necessária. Do mesmo jeito que no Brasil há capitalismo de laços, vivíamos uma política de laços, e acho que isso está sendo rompido pela Lava-Jato. Melhor seria se o próprio sistema político tivesse se antecipado. Não o fez, agora está pagando o preço. Esse processo não pode nem deve parar, para o bem do Brasil.

O senhor disse que o presidente Temer tem o direito de terminar o mandato. Não era direito da sociedade ver o STF investigando as denúncias que pesam contra ele? Lembro que o Congresso decidiu que não cabe investigar o presidente agora. A investigação deverá prosseguir, se assim o Judiciário entender, depois do mandato. Mas acho que há interesse público na continuidade de um governo que se propõe a retirar o país da crise a que o populismo nos lançou. Aceitar a denúncia lançaria o país numa turbulência ainda pior.

Como político, o senhor acha razoável destinar bilhões de reais para financiar campanhas eleitorais? Não é razoável. Fomos lançados nessa situação por uma decisão equivocada do Supremo ao proibir — e não limitar, que seria o correto — as doações privadas. O Brasil não tem tradição de doação de pessoa física às campanhas. A proibição do financiamento privado nos condenou à busca de saídas equivocadas como essa. Não é aceitável nem palatável concordar com essa saída neste momento.

Como o senhor avalia as negociatas e barganhas envolvendo o Congresso? Temos um sistema ingovernável, com mais de trinta partidos. Ressalvando meia dúzia que têm projeto, a grande maioria se transformou em negócios. A lassidão e a frouxidão no controle dos partidos levam à situação em que qualquer presidente da República, para fazer maioria, precisa barganhar cargos e emendas. É uma forma sofisticada e disfarçada de corromper um poder pelo outro.

O senhor cogita concorrer ao governo do Rio de Janeiro, como dizem? Se eu fizesse um movimento desses, jogaria no lixo todo o trabalho e a operação que aí estão. E teria de pedir demissão do cargo, porque as Forças Armadas, como instituição do Estado, não se prestam a ser cabo eleitoral de quem quer que seja. Não sou moleque para fazer uma coisa dessas.

"Lula teve chances incomparáveis, com condições econômicas favoráveis aqui e lá fora, de tornar o Brasil um país moderno e não o fez. Ele ficou no populismo econômico"

Lula tem chances de vencer a próxima corrida presidencial? Se o Lula tiver condições de ser candidato, acho difícil que ganhe as eleições. Ele tem teto eleitoral, e esse teto não lhe permite chegar à Presidência. Lula teve chances incomparáveis, com condições econômicas favoráveis aqui e lá fora, de tornar o Brasil um país moderno e não o fez. Ele ficou na esfera do populismo econômico e fiscal, torrou bilhões de reais e deu guarida ao maior esquema de corrupção já investigado na história brasileira.

O senhor foi ministro da Reforma Agrária no governo FHC. Aquele desafio era maior do que o atual? Eu peguei o auge dos conflitos fundiários no Brasil. Fui nomeado doze dias depois de Eldorado dos Carajás (quando a Polícia Militar do Pará, em abril de 1996, matou dezenove trabalhadores sem-terra). Brinco que aqui é o Ministério da Defesa. Lá era o Ministério da Guerra. Naquele momento, o PT usava o MST para fazer o governo FHC sangrar. Hoje as coisas mudaram. Os governos Lula e Dilma promoveram a cooptação do MST, que passou a ser chapa-branca e entrou em declínio, tendo agora um papel secundário.

Qual o impacto da penúria financeira na caserna? Estamos operando no limite. Se não houver a liberação de recursos até o início de outubro, teremos problemas operacionais nas Forças Armadas. Isso gera preocupação e desconforto como em qualquer outra instituição que depende de orçamento. A pressão existe, mas a área econômica prometeu liberar recursos agora que a meta fiscal foi revisada. O que o Brasil ganha investindo dinheiro e tropas em ações como a missão no Haiti? Em treze anos de operação, cerca de 36 000 soldados brasileiros passaram pelo Haiti. Foi uma grande oportunidade de treinamento para as tropas. O país ganhou respeito e reconhecimento internacional pelo desempenho dos nossos soldados em prover a paz, tanto que temos solicitações de dez países para coordenar uma futura missão. Depois do Haiti, iremos para a República Centro-Africana.

Qual o resultado das varreduras que o Exército vem fazendo em presídios de vários estados? É espantoso. Na 14ª de 21 varreduras realizadas até agora, o somatório da população carcerária revistada dava 12 000 homens e já contávamos mais de 4 000 armas brancas. Ou seja, você tinha uma arma branca para cada três apenados. Isso é a maximização da tragédia e do massacre. Ainda tinha celular, armas de fogo, drogas, munição, televisores, rádio, geladeira, freezer... Identificamos presídios em que o controle interno era feito pelos próprios presos. A superpopulação carcerária e o déficit de agentes penitenciários levaram os governos de alguns estados a realizar pactos não escritos com o crime organizado.

Se o sistema carcerário não impede a entrada de novas armas nos presídios, o que fazer? É exatamente essa a nossa preocupação. Por isso, tornamos público o resultado das varreduras nos presídios e chamamos a atenção dos governos estaduais e da opinião pública. O governo liberou recursos para a construção de pelo menos um presídio em cada estado. Mas é muito difícil que os municípios aceitem recebê-los e que haja velocidade em suas obras. É uma face da tragédia do sistema carcerário.

O uso das Forças Armadas em conflitos de segurança pública é adequado? Quando um governador solicita o emprego de Forças Armadas, o presidente da República se vê diante de um dilema. Ele não pode deixar a população exposta e vulnerável ao crime. Por outro lado, a utilização das tropas, cada vez mais recorrente em decorrência da crise de segurança, vem banalizando as operações de garantia da lei e da ordem. As Forças Armadas não são treinadas e preparadas para combater o crime. Costumo dizer que o emprego delas para esse fim faz com que o bandido simplesmente tire férias. As tropas entram, o bandido sabe que não pode ficar ali e se retrai. Quando as tropas saem do território, ele volta. A presença das Forças Armadas apenas inibe, mas não tira a capacidade operacional do crime. Isso quem pode fazer são as polícias. É como se fosse uma anestesia. A dor passa no primeiro momento, mas, quando cessa o efeito da anestesia, o mal está lá, continua.

É o que acontece no Rio de Janeiro? O Rio de Janeiro é um caso necessário de intervenção federal. Pelos dados que temos, o Rio tem mais de 800 comunidades controladas pelo crime organizado e pelas milícias. Quem controla a comunidade controla votos, e quem tem votos elege aliados e representantes. Essa cooptação do poder público, esse Estado paralelo é o grande problema do Rio. O estado foi cooptado pelo crime em suas mais diversas esferas. Precisamos criar uma força-tarefa federal que consiga fazer essa desintrusão do crime dentro do estado do Rio de Janeiro. É preciso golpear o comando do crime, os arsenais e o circuito financeiro. Isso se faz com integração de órgãos e inteligência de todas as forças. O presidente determinou que as Forças Armadas ficarão no Rio de Janeiro até o último dia de governo.

"As Forças Armadas inibem, mas não tiram a capacidade operacional do crime. A dor passa no primeiro momento, mas, quando cessa o efeito da anestesia, o mal está lá"

A crise na Venezuela pode trazer instabilidade para toda a região? A Venezuela definitivamente se tornou uma ditadura. A Constituinte de Maduro encerra a ideia de que somos o subcontinente da paz, que os nossos conflitos são de baixíssima intensidade e que o Brasil é líder nesse subcontinente. É muito provável que a gente venha a ter uma repressão de Estado. Se o cenário se degradar desse jeito, teremos um problema sério, porque isso pode provocar o envolvimento de outras potências de fora do subcontinente em assuntos sobre os quais o Brasil se vê como líder. Isso vai nos deixar diante de um grande dilema.

O que preocupa mais: uma escalada militar ou a questão dos refugiados? Não creio em intervenção militar, porque o Brasil tem na Constituição o respeito à soberania das nações e a paz como instrumento essencial. Creio em um período longo de dificuldades humanitárias crescentes. As nossas preocupações mais imediatas são com os refugiados e os brasileiros que vivem na Venezuela. São 17 000 legalizados, mas esse número pode chegara 30 000 com os ilegais. Estamos nos preparando para a hipótese de termos de criar um corredor humanitário para retirar esses brasileiros do país. Isso vai demandar um esforço logístico e uma atuação grande da Defesa.

Para evitar o impeachment, aliados da presidente Dilma cogitaram decretar no Brasil o Estado de Defesa. Era viável? Naquele instante, as Forças Armadas mandaram recado à presidente Dilma que de forma alguma consideravam necessário, tampouco se comprometiam com a decretação de um Estado de Defesa. Antes de isso ocorrer, houve algo mais sério, que foi o decreto que retirava dos comandantes a competência para a promoção das tropas. Isso, sim, representava um retrocesso democrático inaceitável.


Maria Cristina Fernandes: Velório sem cachaça 

Decano do PSDB diz que vitória de Aécio matará o partido. Euclides Scalco é um tucano atípico. Não faz rodeios naquilo que é incontornável. Por telefone, de Curitiba, decreta: "Se Aécio derrotar o Tasso nessa disputa o PSDB acaba". Acompanha pelos jornais e em esparsas conversas com correligionários a crise por que passa o partido, mas a quilometragem acumulada no tucanato lhe franqueia a afirmação categórica de que se trata da mais grave crise na sua história.

Às vésperas de completar 85 anos, Scalco forma, junto com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a dupla de decanos do PSDB. Gaúcho, fez política no Paraná. Foi deputado constituinte do grupo pemedebista que se rebelou contra o rumos do governo José Sarney e assinou a Carta sob nova filiação partidária.

Coordenador das duas campanhas presidenciais de Fernando Henrique, diretor-geral de Itaipu e secretário-geral da Presidência, Scalco sempre integrou, no partido, a ala, cada vez mais escassa, dos intransigentes defensores de um PSDB vacinado contra as benesses do poder.

Não faz, por exemplo, uma única ressalva ao mea culpa que o partido levou ao ar na semana passada em horário nobre. Aprovou forma e conteúdo, inclusive a ausência de tucanos na tela. Atribui a reação interna à carapuça que alguns de seus correligionários vestiram. "Tava na hora de o partido ter alguém que desse um murro na mesa e pusesse ordem na tropa", diz, em respaldo ao senador Tasso Jereissati.

É avesso a cerimônias de panos quentes. Não hesitou em se afastar politicamente do atual governador do Paraná, filho do tucano com quem cultivou suas relações mais estreitas na política, José Richa. Padrinho de crisma e de casamento de Beto Richa, além de coordenador de suas campanhas, Scalco tomou distância de suas gestões há oito anos, quando o afilhado ainda ocupava a prefeitura da capital. Ao se afastar, declarou que não compactuava com a mistura entre negócios privados e o bem público. Nas últimas eleições, apoiou o ex-prefeito de Curitiba, Gustavo Fruet, que trocou o PSDB pelo PDT depois de desentendimentos com Richa.

Não transige nem mesmo em relação à retomada da bandeira do parlamentarismo. Descrê que a mudança no sistema de governo sirva de atalho para tirar o país da crise. Esta história não precisa de repetição. Já embute uma tragédia na origem.
Scalco relembra a pactuação com os militares que condicionarm a posse de João Goulart à instituição do parlamentarismo, depois derrotado em plebiscito, para referendar sua crítica. "Se somos parlamentaristas teríamos que ter insistido na mudança desde o princípio. Agora é inoportuna."

Vê uma clara crise de liderança com a indisposição de Fernando Henrique para assumir funções executivas no partido e faz um chamado à responsabilidade dos fundadores do PSDB que hoje se mantêm indiferentes à perspectiva de piora daquilo que parece estar no limite da deterioração. Não lhe falem do prefeito de São Paulo, João Doria, ou de sua alegada herança covista. "[Geraldo] Alckmin bancou Doria e agora ele está percorrendo o país em campanha. Essas coisas não podem acontecer. Ele [o prefeito] não tem nada de Covas".

A rapidez com a qual o PSDB decidiu entrar no governo Michel Temer abre uma fenda entre o partido de hoje e aquele que ajudou a criar. Diz que os tucanos, desta vez, tinham alternativa à participação no governo. Não equipara a responsabilidade do PSDB, decorrente do impeachment, àquela dos pré-tucanos na transição que desembocou no governo José Sarney.

Advoga que hoje o PSDB poderia ter ficado de fora com apoio pontual a agendas convergentes, como a privatização da Eletrobras. Com a adesão a Temer, produziu-se o inverso. Os tucanos estão aboletados no poder e, graças ao apego da bancada aecista a Furnas, colhem divergências em temas que deveriam estar pacificados no partido como a privatização.

Vê na sucessão de 2018 o rubicão do PSDB e teme que a disputa interna impeça a travessia. Mede a distância que separa a luta fratricida de hoje pela candidatura ao Planalto à resistência de Mário Covas em 1989. O então senador paulista queria passar pelo governo estadual antes de partir para uma eleição nacional, mas foi convencido pelos pares a encabeçar a primeira disputa presidencial do partido.

Atribui os descaminhos do PSDB, em grande parte, à falta de discussão interna, a começar de suas instâncias locais. Reconhece que o partido ainda é prisioneiro da dicotomia do Real. Como se tratasse de uma guerra contra a hiperinflação, talvez não tivesse como ser diferente, mas o fato é que o plano responsável pela projeção política do partido foi fruto da tecnocracia e não de suas bases.

A situação fiscal do país o pressiona a outra virada de mesa. O que está em jogo é a liderança, no campo liberal, desse movimento. É este o jogo em que o presidente da República se movimenta para tentar manter o PSDB como satélite de seu poder. Por que Temer, em 1988, não seguiu com os pemedebistas paulistas para o novo partido? Seus aliados costumam dizer que Franco Montoro, seu patrono, o aconselhou a ficar no PMDB para servir de ponte entre os novos tucanos e o quercismo. Scalco tem outra explicação, mais curta: "Porque não foi convidado".

Em meados dos anos 1980, quando fervilhava a vida partidária da abertura, a Fundação Pedroso Horta editava uma publicação chamada 'Revista do PMDB'. Fernando Henrique e Serra compunham o conselho editorial. No número de julho de 1987, às vésperas dos trabalhos da Constituinte, quando os pemedebistas já não escondiam o desconforto com a gestão Sarney, o partido lamentava não ter podido se preservar, a exemplo dos socialistas espanhóis, para o governo pós-transição. A instabilidade e o precário equilíbrio de forças, reconheciam os futuros tucanos, impunham desgaste ao partido.

Passaram-se 30 anos desde que a revista do PMDB fez aquelas reflexões. Tempo suficiente para os tucanos delas tirarem lições, mas quem parece tê-lo feito com mais competência foi o pemedebista outrora rejeitado. O presidente Michel Temer atraiu o PSDB, dá corda ora a um, ora a outro e se vale privatizações e TLPs para testar o credo liberal dos seus aliados e mantê-los permanentemente divididos. Vale-se ainda da lambança tucana na Lava-Jato para lhes vender proteção. Se for bem sucedido, cravará no partido de seus antigos correligionários o carimbo de satélite do PMDB. Um movimento de volta às origens que, no Paraná de Scalco, dá-se o nome de velório sem cachaça.

* Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor Econômico


José Serra: O saneamento e o futuro 

Ficar contra o Reisb é como ser contra a luz elétrica e, literalmente, contra a água encanada e o saneamento

Tenho insistido há muito tempo na ideia de que o sistema de saneamento é supertributado em nosso país, fator que corrói sua capacidade de investimentos e freia a expansão dos serviços de água e esgotos. O ponto marcante dessa distorção ocorreu no início do governo do presidente Lula, quando o PIS e a Cofins passaram a incidir sobre o valor adicionado das empresas. Antes, incidiam sobre o faturamento. No processo de mudança, a alíquota foi aumentada. Dadas as peculiaridades da função de produção do saneamento, a receita do PIS/Cofins extraída do setor aumentou quase três vezes em termos reais, equivalendo a cerca de 25% do investimento total da área!

Motivado para corrigir ou pelo menos atenuar essa distorção, apresentei em 2015 um projeto de lei criando o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento do Saneamento Básico (Reisb). Esse projeto foi aprovado no Senado e na Câmara, mas terminou desidratado por veto parcial do Executivo.

Em essência, o Reisb previa a possibilidade de que o PIS/Cofins devido pelas companhias de saneamento fosse destinado a novos investimentos das empresas. Seriam “novos” de verdade, pois se uma empresa tivesse investido 100 nos últimos cinco anos, só teria direito a crédito do PIS/Cofins devido sobre o adicional de investimentos que viesse a realizar nos anos subsequentes.

Para superar as limitações impostas pelo veto, apresentei neste ano o Projeto de Lei do Senado (PLS) 52, reidratando e aperfeiçoando a ideia. O relator do Reisb na Comissão de Assuntos Sociais, senador Waldemir Moka, deu um parecer favorável que contou com a aprovação – entusiasmada – de representantes de todas as correntes políticas.

No livro O Mapa Fantasma, Steven Johnson narra os eventos relacionados à epidemia de cólera de 1854 em Londres. Até então, a crença científica era de que o cólera fosse transmitido pelo “miasma” emanado dos rios poluídos. O médico John Snow, num trabalho epidemiológico brilhante, rastreou e mapeou todas as ocorrências individuais e conseguiu demonstrar que o cólera era provocado pela água contaminada.

A nova teoria de Snow encontrou resistências na comunidade científica, mas, com a ocorrência do Great Stink do Rio Tâmisa, que atormentou os londrinos em 1858, as autoridades decidiram pela construção de um sistema que levasse todos os dejetos até o estuário do rio.

Essa obra monumental e pioneira, que incluiu várias estações elevatórias – um feito tecnológico para a época –, livrou a população de um esgoto a céu aberto e remodelou as margens do Tâmisa, no que hoje se chamaria de revitalização urbana.

Assim, com uma tecnologia que atualmente seria considerada rudimentar, foi construída a rede de esgotos de Londres, em apenas seis anos. Aqui, mais de um século e meio depois, estamos ainda considerando a hipótese – otimista – de universalizarmos o tratamento de esgotos em 2033!

Nossa cobertura de esgotos (83%) é inferior à da Argentina (96%); do Chile (99%); do Paraguai (89%) e do Uruguai (96%). De 2005 a 2015, aquela cobertura aumentou no Brasil somente 5 pontos porcentuais, de 77,7% para os atuais 83%. O Paraguai nos ultrapassou no período: saiu de 76% para 89%, uma melhora de 13 pontos.

Além disso, nossa cobertura ainda é muito deficiente quanto ao tipo de coleta. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015, temos rede coletora para apenas 54% da população.

Em algumas regiões, a situação é pior do que a média. No Pará, por exemplo, o porcentual das famílias que recebem até 1 salário mínimo sem rede de esgotos ou com atendimento precário é de 79%, ou seja, apenas 1 em cada 5 domicílios está ligado à rede coletora.

Segundo o Ministério da Saúde, tivemos 340 mil internações por infecção gastrointestinal em 2013. A falta de cobertura provoca 330 mortes a mais por ano, decorrentes de infecções evitáveis. A insuficiência de saneamento afeta o desempenho escolar em até 30% nas áreas não atendidas.

Na verdade, os dados demonstram que a expansão da rede de esgotos é uma política essencialmente redistributiva, em termos regionais e de renda.

Aliás, um efeito comprovado e muito relevante para os mais pobres é a valorização imobiliária nos bairros e regiões beneficiados pela implantação do saneamento básico. A melhor infraestrutura cria condições para novas atividades econômicas e novos empreendimentos. Ao fim desse ciclo virtuoso, a renda média nas regiões atendidas aumenta. Estima-se que só o efeito de valorização imobiliária provocada pela universalização do saneamento equivaleria a um ganho global de R$ 178 bilhões.

E há, ainda, vantagens e benefícios insuspeitados. Por exemplo, nas áreas carentes de fornecimento de água, a necessidade de manter estoques mal acondicionados do produto provou-se um fator de proliferação do Aedes aegypti e, portanto, um vetor de propagação da dengue, da zika e da chikungunya. A simples melhora da qualidade do abastecimento teria um efeito decisivo no extermínio do Aedes.

Qualquer avaliação séria de custos e benefícios recomenda a adoção de um forte programa de investimentos, como o do Reisb. Hoje em dia, ficar contra esse programa é como ser contra a luz elétrica e, literalmente, contra a água encanada.

Há tanto desperdício na máquina pública, tantos exageros salariais, tantos subsídios inexplicáveis – estamos falando de isenções fiscais na casa dos R$ 200 bilhões –, muitos sem qualquer impacto positivo na economia, que parece descabido afirmar que um incentivo meritório e indispensável ao investimento em saneamento constitui uma grave ameaça fiscal.

De fato, essa resistência, basicamente, tem um conteúdo mais simbólico. Já que não se consegue entregar efetivamente resultados fiscais que revertam o crescimento da dívida, apela-se para essas demonstrações rituais de austeridade.

* José Serra é senador (PSDB-SP)


Merval Pereira: Pequenos avanços 

Independentemente do sistema eleitoral que venha a ser aprovado (ou não) pela Câmara, uma coisa é certa: os deputados, enfim, entenderam que a opinião pública não aguenta mais ser ludibriada. A decisão unânime (se não contarmos o gaiato que votou a favor) de retirar o percentual de 0,5% da receita líquida para definição do fundo de financiamento das eleições dá a dimensão desse entendimento e torna praticamente impossível que haja um golpe na Comissão de Orçamento para fixar nos mesmos R$ 3,6 bilhões ou mais o tamanho do Fundo.

Essa hipótese foi levantada por vários deputados, que temem que a existência do fundo sem um valor previamente fixado seja um cheque em branco para a Comissão de Orçamento. Não creio que essa teoria da conspiração tenha base na realidade, pois, para fixar o valor do fundo, será preciso enquadrá-lo no teto de gastos e adaptá-lo ao Orçamento, o que quer dizer que verbas terão que ser remanejadas.

Os parlamentares se verão diante da árdua tarefa de tirar verbas da Saúde, Educação, de investimentos públicos no já escasso Orçamento da União para prover suas necessidades nas campanhas eleitorais. Não será uma tarefa fácil enganar o cidadão dessa maneira e ainda querer ganhar seu voto em 2018.

Outro dado interessante que saiu da sessão de ontem da Câmara foi a discussão sobre o sistema eleitoral. Pelo visto, não há votos suficientes para aprovar uma emenda constitucional mudando o atual sistema proporcional nem para aprovar o distritão, muito menos o distritão misto ou o distrital misto para 2022.

Tudo parece se encaminhar para a manutenção do sistema proporcional com as alterações que foram aprovadas em outra comissão especial, a cláusula de desempenho e o fim das coligações proporcionais. A discussão vai se dar em torno das medidas paliativas que foram incluídas no texto para preservar o máximo possível as pequenas legendas, não apenas aquelas tradicionais e programáticas como o PCdoB ou o PSOL ou o PV, mas a maior parte dos partidos nanicos que vivem do fundo partidário e do tempo de propaganda oficial no rádio e televisão como se fossem empreendimentos comerciais.

A invenção das federações partidárias é uma dessas jabuticabas que ajudarão a sobrevivência dessas legendas de aluguel, mas pelo menos tem a vantagem de obrigar os partidos que fazem parte dela a atuarem em conjunto durante toda a legislatura.

Isso garante pelo menos a coerência programática dessa federação, de modo que o voto do eleitor não será usurpado por uma legenda de tendência ideológica completamente diferente da sua.

O que tem que ser barrado no plenário são as subfederações regionais, que podem ser criadas por alguns dos partidos que fazem parte da federação nacional, mas com um detalhe que distorce tudo: no plano regional, é permitido a esses partidos atuar sem ser em consonância com a orientação da federação.

Ora, nesse caso, estarão de volta no plano regional os efeitos maléficos das coligações proporcionais, com suas distorções programáticas. Esses penduricalhos foram criados, conforme, aliás, confessou candidamente a relatora do projeto, a deputada Shéridan, para que a maioria dos partidos possa passar pelas cláusulas de desempenho que serão exigidas.

O início da limitação dos partidos será com um sarrafo bastante baixo, de 1,5% dos votos nacionais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas, ou eleger pelo menos 9 deputados, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação. Para a eleição de 2022, a exigência passará a ser de 2% dos votos válidos, em pelo menos um terço das unidades da Federação, com mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas ou eleger pelo menos 11 deputados, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação. Em 2026, a exigência passa a 2,5% dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com mínimo de 1,5% dos votos válidos em cada uma delas; ou eleger em pelo menos um terço das unidades da Federação um total de 13 deputados.

Até que, em 2030, a cláusula de desempenho passará a ser de 3% dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com mínimo de 2% dos votos válidos em cada uma delas; ou eleger pelo menos 15 deputados, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação. O importante é que os partidos que não atingirem as metas não terão direito nem ao fundo partidário nem ao tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão. Funcionarão na Câmara e no Senado com restrições, não podendo participar de comissões, por exemplo.

 


Murillo de Aragão: O analógico, o digital e o abismo

Enquanto a sociedade caminha celeramente para ser digital, o mundo político continua analógico 

Enquanto o comércio e a indústria se esforçam para entender e atender o que o consumidor deseja, a política insiste em tratar o eleitor com desdém e distância, e com uma narrativa envelhecida e desassociada da realidade, destinada meramente à competição eleitoral.

Temos hoje quase 100 milhões de contas de Facebook. Quase 70% dos usuários de telefonia celular – cerca de 120 milhões de brasileiros – podem estar usando o WhatsApp. Mesmo assim, a política continua tratando o eleitor como se ele fosse analógico.

E, como resposta ao desafio dos novos tempos, propõe mudar o nome dos partidos. Por isso surge agora uma leva de agremiações com novos nomes, como Podemos, Patriotas, entre outros.

Os partidos mudam a roupa mas não o âmago da questão. Continuam mais antigos do que o telefone de manivela. E poucos se importam. A maioria ainda se vale do “deixa estar para ver como é que fica” e do “devagar se vai ao longe”. Só que o Brasil tem pressa, ainda que o mundo político não tenha. Não à toa a Reforma Política todo ano entra na pauta e não muda quase nada.

A política insiste em ser irrelevante. Descartável e quase abjeta. Não apenas por conta da cidadania deseducada e desinteressada, mas também pelo clientelismo desenfreado e afastado dos princípios. É a política tão somente vinculada a interesses particulares.

Outro dia li que em um debate das esquerdas radicais tinham colocado em um quadro os nomes dos políticos “velhos” e os dos políticos “novos”. O ex-presidente Lula e o senador Aécio Neves (PSDB-MG) tinham sido colocados no rol dos velhos. Já o ativista político Guilherme Boulos, líder do MTST, e o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) entraram na lista dos “novos”.

Grande ironia. Nessas listas temos de tudo em matéria do que é antigo e arcaico na política nacional. Lula e Aécio são políticos arcaicos e analógicos. Boulos e Freixo também. Nenhum dos quatro é digital. Acho que também nem são analógicos. Vivem no tempo do telefone a manivela e do guaraná de rolha!

A política digital está propondo um novo debate e uma forma mais pragmática de se tomar decisões, fundamentada sobretudo em princípios. Porém, não existem nomes para personificar essa política digital. A omissão de todos nos penaliza. Boulos e Freixo acreditam na utopia socialista. Lula e Aécio em utopias particularistas. Nenhum deles funciona para os novos tempos. Assim, sem políticos para os novos tempos, continuaremos a ser irrelevantes para nós mesmos. Enquanto isso, ocorrem cerca de 155 homicídios por dia no Brasil.

* Murillo de Aragão é cientista político