Congresso Nacional
Fernando Gabeira: O direito ao delírio
Nos últimos anos de vida política em Brasília, disse a amigos que queria incluir uma nova bandeira entre as lutas cotidianas: o direito ao delírio. Sabiam que a palavra delírio não designava alteração da consciência, produzida por drogas. Ainda assim, não entendiam bem. Minha referência eram as alucinações que épocas, partidos, grupos e indivíduos cultivam sobre si próprios e, na maioria dos casos, são dissipadas pelo curso dos fatos.
Agora, posso voltar ao tema e avançar um pouco na explicação sucinta daquele momento. Pressinto que o próprio país caminha, depois de tantos embates, para uma fase que chamo de pós ideológica, consciente da precariedade do termo.
As duas correntes que as pesquisas indicam como as preferidas, no momento, são as que travam um debate ideológico. Minha própria ideia de que se caminha para uma fase pós ideológica também é uma dessas ilusões que precisam ser testadas na prática. O problema não é ter ilusões, mas sim buscar a maior proximidade com os fatos. Tanto o marxismo, de certa forma herdeiro do iluminismo, como os liberais conservadores partem do que pode ser um erro fundamental.
Não me interessam aqui as explosões radicais, as brigas cotidianas em si próprias. Mas sim o nobre fundamento sobre a qual estão apoiados os contendores. Ambos os lados procuram, através do diálogo e dos confrontos, um consenso sobre a melhor maneira de viver bem. Nesse sentido, perseguem uma ilusão inalcançável. Nas sociedades complexas e diversificadas, o consenso não existe, nem está no horizonte. No seu lugar, é preciso introduzir a ideia de convivência pacífica, o que alguns autores chamam também de modus vivendi.
Encontrar o modus vivendi entre tantas concepções antagônicas é muito difícil porque os conflitos prosseguem, envolvem as instituições, explodem desejos contraditórias por liberdade.
Tanto os herdeiros do iluminismo que trabalham com a hipótese de um consenso racional sobre a melhor vida, como os liberais que acreditam em preservar os valores tradicionais, tendem ao fundamentalismo, sobretudo quando entram em choque.
Assim como a existência das ilusões não quer dizer que a realidade inexista, a busca do modus vivendi não significa um relativismo amoral. É apenas uma constatação que, se aceita, pode reorientar a energia não apenas para o confronto, mas para hipóteses de acordo em temas de interesse mútuo, sobretudo os de reconstrução nacional.
Para o marxismo, talvez isso não seja um problema pois parte do princípio de ter uma saída para os problemas sociais, uma forma única de ver o mundo, uma vontade de convencer que o leva a uma ação missionária.
Para o liberalismo, tornar-se fundamentalista, no entanto, é contradizer algumas de suas principais correntes teóricas. Isso aparece, claramente, nos debates que antecedem as guerras dedicadas a implantar a democracia em países distantes, com história e costumes diferentes. Será que funcionam?
Ao longo desses anos, hesitei um pouco em lançar mão da ideia da liberdade de delirar. Não pelo fato de levar pancadas dos dois lados, pois considero isso parte do jogo. A ideia de que é possível estabelecer uma hegemonia no campo cultural foi, na verdade um dos estopins do debate. Ela é ingênua e inadequada às instituições flexíveis, baseadas na pluralidade.
Mesmo os que não conhecem Antonio Gramsci ou se importam com suas teorias percebem que a ideia de hegemonia significa a neutralização de outras correntes, um domínio amplo e detalhado do espaço cultural, uma negação do próprio conceito de cultura.
Não é possível clamar por tolerância e sonhar com a hegemonia. A tolerância é moldada precisamente na aceitação da pluralidade. Afirmar isto, vale também acusações de proteger o status quo, eternizar o capitalismo, bloquear mudanças.
Isso revela também uma outra divergência sobre a ação política. Não há na realidade salvação nem salvadores. Há apenas soluções provisórias para alguns problemas recorrentes, até mesmo a admissão de que alguns não serão resolvidos a curto prazo.
Na casa de Câmara Cascudo, li uma frase interessante na parede: o Brasil não tem problemas, mas sim soluções adiadas. Uma coisa é tentar viabilizar algumas dessas soluções adiadas. Não é isso que costuma aparecer nas eleições.
Muitos candidatos dizem que trarão consigo um projeto nacional. Isto dá a impressão de que o país é uma folha em branco e será esculpido para as próximas gerações. Não é bem assim, embora seja legítimo o delírio de moldar um país por muitas décadas. Ainda não descobri se os principais partidos que passaram pelo poder usaram a expressão com o objetivo de plasmar um novo país ou apenas para racionalizar seu desejo de ficar muitos anos no governo. Os fatos apontam para esta última hipótese.
Quanto mais se acredita no sonho de um consenso racional, mais escasseia a tolerância. O delírio de um, modus vivendi, acho eu, é mais próximo de nossa realidade diversa.
Merval Pereira: Corrupção e democracia
“O que coloca em perigo a sociedade não é a corrupção de alguns, é o relaxamento de todos”. A frase do pensador político e historiador francês do século XIX Alexis de Tocqueville, criador da definição de social-democracia na análise das democracias ocidentais modernas, nunca esteve tão em voga quanto hoje, e não apenas na América Latina, que, pela primeira vez nos últimos 22 anos, pôs o problema da corrupção como o mais importante, segundo pesquisa do Latinobarômetro divulgada ontem.
ONG sediada no Chile que faz pesquisas regularmente sobre valores e opiniões na América Latina, o Latinobarômetro, em pesquisa que já comentei aqui na coluna, já havia detectado que a confiança na democracia está em declínio na região desde 1995. Comparados com outros nacionais consultados em países da América Latina, os brasileiros são os segundos menos dispostos a apoiar a democracia.
Há pesquisas que mostram que a democracia era um valor muito mais respeitado entre as gerações mais velhas, ao passo que na dos millenials, os que chegaram à fase adulta na virada do século XX para o XXI, apenas 30% nos Estados Unidos consideram que a democracia é um valor absoluto.
O mesmo fenômeno é constatado na Europa, em números mais moderados. Um estudo mostra que, em 2016, o apoio dos brasileiros à democracia caiu 22 pontos percentuais. Não apenas o apoio saiu de 54%, em 2015, para 32%, como 55% dos brasileiros se disseram dispostos a aceitar um governo não democrático desde que os problemas sejam resolvidos.
Agora, pela primeira vez a pesquisa Latinobarômetro mostra que a corrupção é a principal preocupação do Brasil, onde cerca de 31% dos cidadãos a consideram o principal problema nacional. Envolvendo 18 países latino-americanos, a pesquisa mostra que o Brasil não está sozinho. Há dez anos, a corrupção sequer aparecia com dados significativos e, hoje, está presente e com peso em quase dez países do continente, segundo os coordenadores da pesquisa.
A conclusão é que a democracia latino-americana está em crise, e uma das principais razões é o descrédito dos sistemas políticos, dos partidos, das lideranças. O Latinobarômetro mostra que 70% dos cidadãos da região criticaram seus governos por pensarem apenas em seus interesses individuais e não no bem comum, sendo que, no Brasil, esse percentual alcançou 97%.
Não é por acaso, portanto, que a questão da corrupção, a partir do caso brasileiro, tenha se espraiado pela América Latina, já que o esquema montado pelo PT nos governos Lula e Dilma exportou para diversos países chamados “bolivarianos” o mesmo sistema de compra de apoio político com o apoio da empreiteira Odebrecht.
Esse sistema de corrupção que agora está sendo desvelado corroeu os frágeis sistemas democráticos em diversos países da região e fez com que a descrença na democracia representativa aumentasse nos últimos anos.
O surgimento do “capitalismo de Estado” fez com que a relação direta entre democracia e capitalismo já não seja mais uma variável tão absoluta quanto parecia nos anos 80 e 90 do século passado. Ela está sendo deixada de lado pela emergência de países capitalistas não democráticos, como a China, e também pela desigualdade econômica exacerbada em países como o nosso.
Um novo estudo do World Wealth and Income Database, dirigido pelo economista francês Thomas Piketty, também já citado anteriormente na coluna, mostra a “extrema e persistente desigualdade” do Brasil, o que serve para desacreditar a eficácia do capitalismo em países em desenvolvimento como o nosso.
Uma comparação do Brasil em relação a outros três países — Estados Unidos, China e África do Sul — mostra pelo menos uma diferença de 8% no que se refere à renda em mãos do 1% mais rico da população. No Brasil, a renda desse grupo corresponde a 28% do total, enquanto na China é de 14%. Crise econômica, desmoralização da classe política pela prática sistemática da corrupção e violência urbana são ingredientes que se misturam para desacreditar a democracia representativa.
É nesse ambiente negativo que o Brasil entra agora no ano eleitoral.
Cristovam Buarque: Filosofia da construção
Até recentemente, havia filosofias que empolgavam os debates políticos
Todo político sem causa é um corrupto em potencial: usa o poder para enriquecer ou para ficar no poder. Por isso, a escassez de bons filósofos é tão grave quanto o excesso de maus políticos.
Até recentemente, havia filosofias que empolgavam os debates políticos: capitalismo, socialismo, comunismo, liberalismo, desenvolvimentismo, nacionalismo, oferecendo bases filosóficas que justifiquem as causas das lutas dos políticos.
Com a globalização, robotização, comunicação instantânea, crise ecológica, pobreza persistente, desigualdade crescente, migração em massa, fracasso do socialismo e injustiças do capitalismo, essas filosofias ficaram ultrapassadas, sem bandeiras claras no horizonte filosófico e político.
Neste vazio de propostas, surgem três alternativas possíveis para orientar o comportamento político. A “filosofia do conformismo”, justificando aqueles que assistem sem reação nem alternativa à marcha da História em direção à modernidade técnica descontrolada, aceitando o progresso global provocar desemprego estrutural, separar as pessoas por “mediterrâneos invisíveis”, muros e cercas, desequilibrar a ecologia, assistindo à generalização das drogas e da violência, crianças sem futuro.
Por esta filosofia, o caminho seguido nas últimas décadas é inexorável e não caberia à política controlar o rumo social. A “filosofia da resistência” é praticada por aqueles que não aceitam a marcha do avanço tecnológico, mas não buscam propostas alternativas: limitam-se à luta para impedir o progresso técnico e fechar as fronteiras nacionais; defendem direitos adquiridos no passado, sem buscar entender quais destes direitos ficaram obsoletos, quais amarram o futuro, e que novos direitos precisam ser conquistados.
A “filosofia da construção” aceita o progresso em marcha, mas não se acomoda aos desastres sociais e ecológicos que ele provoca. Comemora o avanço técnico e a globalização, mas ao mesmo tempo busca definir regras para manter o equilíbrio ecológico, salvaguardar as diversidades, inclusive nacionais, educar as novas gerações para um futuro com emprego reduzido e proteger os que ficam desempregados, mas com tempo livre bem ocupado e com renda mínima assegurada.
Tenta propor um progresso que respeite a natureza, substitua o PIB pelo bem-estar, promova atividades culturais, seja responsável com as finanças públicas. Que estabeleça um Piso Social que assegure a todos o atendimento dos bens e serviços essenciais e também um Teto Ecológico acima do qual ninguém poderá consumir.
A formulação desta “filosofia da construção” é um desafio para aqueles que desejam fazer política com causa, sem ignorar nem naufragar nas vertiginosas transformações que ocorrem no mundo contemporâneo.
Míriam Leitão: Balanço final
Com 251 votos, Temer passou pelo segundo grande teste, como se esperava, mas o preço foi entregar partes relevantes do ajuste fiscal que prometeu fazer. O BC, ao tomar sua decisão ontem de levar os juros para 7,5%, estava diante do fato positivo da queda da inflação. Ao mesmo tempo, está havendo uma piora da situação fiscal provocada pelas concessões feitas por Temer para vencer na Câmara dos Deputados.
OBC reduziu o ritmo da queda dos juros e reduzirá de novo na próxima reunião. Está chegando ao fim o ciclo de afrouxamento monetário. Se a queda da última reunião do ano for de 0,5%, como se depreende do comunicado do Copom, o país terminará 2017 com 7% de juros, a mais baixa taxa de juros da era do real.
O que torna o terreno econômico instável é a reação do presidente Temer às suas crises políticas, porque ele tem minado o terreno que estava tornando a economia mais sólida. Foram muitas as concessões feitas: parcelamento de dívidas rurais, perdão de multas ambientais, desistência de privatizar Congonhas, sanção ao projeto do Refis que foi todo desvirtuado na Câmara, medidas de ajuste fiscal que ficaram paradas na mesa do chefe da Casa Civil. Para um país que tem R$ 159 bilhões de déficit público, essas concessões são desastrosas. O ajuste que já era insuficiente fica ainda mais fraco e incerto.
O governo Temer foi dividido irremediavelmente em duas partes no dia 17 de maio. Até lá, ele tomou algumas decisões acertadas na economia e tinha uma agenda de reformas que dava horizonte de melhora sucessiva no desequilíbrio das contas públicas. A despeito dos erros em várias áreas, os acertos trouxeram a inflação para baixo, elevaram a confiança de empresários e consumidores, derrubaram o dólar e permitiram a queda da taxa de juros em quase sete pontos percentuais.
O dia da revelação da conversa do presidente com o empresário Joesley Batista definiu a sorte do governo Temer. Ele sobreviveu à primeira denúncia, mas se enfraquecendo. E agora voltou a superar o obstáculo, mas ficou ainda mais fraco. Está sem condições de tocar a agenda de reformas. Pode, na melhor das hipóteses, tocar uma agenda de microrreformas que busquem um aumento da eficiência da economia brasileira.
Apesar de cada vez mais fraco, o governo conseguiu com facilidade vencer o obstáculo de ontem. Depois das concessões, das muitas reuniões com os deputados, e a seletiva liberação de emendas, o governo antes das nove da noite já tinha votos suficientes para impedir os 342 votos a favor do prosseguimento da ação contra o presidente.
Mesmo sobrevivendo às duas denúncias, este é um governo que permanecerá instável, impopular e sujeito a revelações inesperadas que o coloquem em cheque. Sua agenda que era de reformas para “pôr o país nos trilhos”, como dizia sua propaganda original, passou a ser atender a pleitos que representam flagrante retrocesso, como a portaria do trabalho escravo. Ele não tem condições de manter essa portaria. A sua suspensão pela ministra Rosa Weber, a declaração da procuradora-geral, Raquel Dodge, de que ela “ofende" a Constituição, toda a reação de repúdio de diversos setores da opinião pública obrigarão o governo a recuar. A declaração do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, de que ela não será revogada, foi feita apenas para manter a convicção da bancada ruralista de que seu pedido seria atingido.
Economia e política não estão em compartimentos estanques, ainda que a economia tenha tentado se afastar da política, melhorando a confiança e o nível de atividade. O Banco Central tomou a decisão de reduzir os juros mesmo na atual situação econômica porque a inflação está muito baixa. Nos últimos 12 meses, está abaixo do piso da meta, que é 3%. Mas eles tiveram também que olhar para a área fiscal e constatar que aumentou muito a incerteza sobre a capacidade do governo de entregar o resultado prometido, que é um déficit. A confusão das contas públicas aumentou nos últimos meses. Essa tendência se acentuou nos últimos dias. Desta forma, o presidente Temer, para se manter, está desfazendo o ajuste fiscal que prometeu. Ele cedeu tanto nos últimos dias que os anúncios de medidas de ajuste que fará agora não vão compensar as perdas.
- O Globo
Merval Pereira: Sem surpresas
O inesperado bem que tentou fazer uma surpresa, mas, no final, o presidente Michel Temer confirmou sua força na maioria parlamentar ao livrar-se da segunda denúncia da era Janot e parece agora pronto para terminar seu governo enfrentando apenas questões políticas, sem se preocupar no momento com as questões jurídicas, que cobrarão seu custo mais adiante se Temer não conseguir um acordo que lhe garanta o foro privilegiado a partir de 2019.
O inesperado ontem não foi a tentativa da oposição de não dar o quorum, pois, embora bem-sucedidos nos primeiros momentos, os oposicionistas sabiam que não tinham força para manter a obstrução até o final. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, ajudou Temer claramente ao não dar por encerradas as sessões depois de várias tentativas de obter o quorum.
Poderia ter adiado a votação para hoje, ou mesmo para a semana que vem, se estivesse realmente empenhado em criar problemas para Temer. Mas manteve a sessão até que o quorum de 342 deputados fosse alcançado, mesmo depois que o verdadeiro inesperado marcou sua presença.
Quando correu a notícia de que o presidente Temer estava internado no centro cirúrgico do Hospital do Exército, parecia que acabava ali sua chance de derrotar a denúncia no plenário da Câmara ontem.
Mais uma vez, Rodrigo Maia manteve o sangue-frio e não tomou uma medida precipitada, demonstrando sua boa vontade com o presidente enfermo. Mesmo ainda com o presidente no hospital, a base aliada acabou dando o quorum mínimo necessário para abrir a votação, o que decretava a permanência de Temer à frente do governo.
Foi um espetáculo triste em todos os sentidos. A oposição, num trabalho de obstrução inerente à sua condição de minoria, jogou para deixar o presidente sangrando o mais possível, já que não tem número para derrotá-lo, o que significaria paralisar o país, causando danos à economia.
A mesma economia que serviu de pretexto para a maioria dos que votaram a favor da permanência do presidente. Além de um direito legítimo da minoria, a obstrução justificava-se também pelas negociatas que estavam acontecendo nos bastidores políticos.
Mas nada retirava da atitude oposicionista o prejuízo à economia do país, no mesmo dia em que o Banco Central reduzia mais uma vez a taxa de juros, numa demonstração de que a recuperação está a caminho.
Mas também os apoiadores de Temer deram seguidas demonstrações do baixo nível de nossa política, ora falando abobrinhas no microfone sobre o cultivo da tilápia ou as qualidades do vinho nacional, ora dando show de grosserias como aquele deputado que, horas antes, viralizara no plenário em um vídeo pornô em plena atividade sexual.
Os votos eram exemplares de hipocrisia política, com deputados do PT ou do PCdoB criticando o governo Temer por fragilizar nossas estatais e supostamente entregar nossas riquezas ao estrangeiro, como se não fossem os responsáveis pelo descalabro acontecido na Petrobras e em outras estatais.
Ou deputados governistas atacando as gestões petistas anteriores pela corrupção desavergonhada, como se não estivessem ali para discutir graves acusações justamente de corrupção do governo que apoiam.
Enfim, mais uma vez o plenário da Câmara mostrou-se ao povo brasileiro de maneira clara, para reforçar a percepção de que raros são aqueles representantes eleitos que respeitam seus mandatos e estão ali pensando nos interesses do país.
O PSDB, que já foi o representante de uma oposição programática, acabou sendo o principal responsável pela salvação de Temer com o relatório de Bonifácio de Andrada, justamente identificado por oposicionistas e governistas como tucano que é. Os elogios que recebeu dos governistas não podiam ser compartilhados com boa parte da bancada de seu partido, que votou contra Temer, e muito menos com a maioria de seus eleitores. E os ataques oposicionistas contra seu relatório eram ataques contra o partido que representava, queira ou não a direção do PSDB.
- O Globo
Luiz Carlos Azedo: O susto de Temer
Uma “obstrução urológica”, eis o diagnóstico oficial do mal-estar que o presidente Michel Temer sofreu ontem e o levou ao Hospital do Exército, no qual foi submetido a exames e passou por uma “sondagem vesical de alívio por vídeo”, segundo nota oficial do Palácio do Planalto. A notícia vazou quando os deputados começavam a apreciação da segunda denúncia do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot contra Temer, na qual também estão arrolados os ministros da Casa Civil, Eliseu Padilha, e da secretaria-geral da Presidência, Moreira Franco.
Temer chegou andando ao hospital, mas uma ambulância do Exército fez todo o percurso da Praça dos Três Poderes ao Setor Militar Urbano. Seu mal-estar interrompeu uma agenda movimentada, que havia sido iniciada bem cedo, toda focada na votação que haveria na Câmara. Recebeu os deputados Caio Nárcio (PSDB-MG), Aluisio Mendes (Pode-MA), Ademir Camilo (Pode-MG) e Jozi Araújo (Pode-AP), Sinval Malheiros (Pode-SP) e Maurício Quintella (PR-AL); o governador de Tocantins, Marcelo Miranda (PMDB); além de Moreira e Padilha.
Quando o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen, chegou ao gabinete, Temer já estava sentindo muitas dores, o que levou o militar responsável pela segurança pessoal do presidente da República a acionar o dispositivo médico e de segurança. Entre os políticos, o diagnóstico era unânime: Temer havia sentido o ritmo de trabalho, que incluiu muitos almoços e jantares, e somatizou a pressão política. O presidente da República sempre teve votos para barrar a denúncia, mas foi chantageado pela própria base e obrigado a fazer muitas concessões. O deputado mineiro Fábio Ramalho (PMDB), que oferecera um jantar para o presidente na terça, comentava que Temer, não era de dispensar um leitãozinho à pururuca, mas se recusara a comer na confraternização.
No final da tarde, o Palácio do Planalto minimizava a situação, anunciando que o presidente da República deixaria o hospital caminhando por volta das 18h. Não foi o que aconteceu. Também informava que o médico do presidente, Roberto Kalil Filho, estava em contato com a equipe do Hospital do Exército para avaliar se haveria necessidade de Temer ser transferido para São Paulo. Informada da situação, Marcela Temer foi para o hospital no meio da tarde para acompanhar o marido.
Uma obstrução urinária pode ser uma coisa simples ou algo muito grave, dependendo da causa. A obstrução urinária aguda começa com um desconforto na bexiga, com dores abdominais. A sondagem vesical e esvaziamento da bexiga proporcionam alívio imediato, mas não resolve a causa do problema. A causa mais comum entre os homens com mais de 60 anos é a hiperplasia prostática benigna (HPB), o aumento da próstata, que estreita o canal da uretra. É um mal do envelhecimento que pode ser tratado com medicamento ou cirurgia. O problema é facilmente detectado nos exames de PSA e de toque.
Cálculos
Cálculos renais também pode provocar obstrução urinária. A urolitíase (pedra no rim) desenvolve-se quando o sal e as substâncias minerais contidas na urina formam cristais, que se aderem uns aos outros e crescem em tamanho. Normalmente, são removidos do corpo pelo fluxo natural da urina, mas, em certas situações, aderem ao tecido renal ou se localizam em áreas de onde não conseguem ser removidos. Esses cristais podem crescer variando desde o tamanho de um grão de arroz até o tamanho de um caroço de azeitona. A maior parte dos cálculos inicia a sua formação dentro do rim, mas alguns podem deslocar-se para outras partes do sistema urinário, como o ureter ou a bexiga, e lá crescem. Existem cinco tipos predominantes: oxalato de cálcio, fosfato de cálcio, ácido úrico, cistina, estruvita (infectado) e cálculos de tipos mistos.
Carne vermelha, crustáceos e pouco líquido favorecem a formação dos cálculos, que podem ser tratados com dieta e muito líquido. Noventa por cento dos cálculos saem do rim e passam ao ureter dentro de três a seis semanas. Os cálculos que não passam através do ureter podem ser removidos através de cateteres especiais ou através da desintegração com ultrassom. Em ambos os casos, o médico coloca um aparelho na bexiga (cistoscópio) ou no ureter (uretroscópio) para facilitar a remoção. Se a sonda não funcionar, a opção é a cirurgia ou um novo tipo de tratamento, chamado litotripsia extracorpórea, no qual os cálculos são “despedaçados” por ondas de choques, que dispensam anestia e hospitalização.
Mas a causa pode ser mais grave. Uma estenose uretral, por exemplo, pode ser provocada por traumas ou lesões uretrais, uretrites e, principalmente, câncer. Temer tem 77 anos, está sob forte pressão, em plena seca de Brasília, com uma agenda carregadíssima. Os próximos dias dirão o que realmente houve.
- Correio Braziliense
Míriam Leitão: O acerto não abona
Nesta quarta-feira, o presidente Michel Temer estará diante do melhor e do pior do seu governo. Na política, responderá à segunda denúncia de crime em três meses e usando as armas que usou da primeira vez: políticas e recursos públicos. Na economia, o Banco Central deve levar a 7,5% a taxa de juros que estava em 14,25% no começo do seu governo. O acerto na economia não abona o erro no resto.
Como na primeira denúncia, o presidente tem usado o seu poder de comando do país para socorrer-se dos apuros em que entrou. No fim de semana, um dos seus decretos perdoou 60% das multas ambientais das empresas. E o que não foi perdoado poderá ser usado pelos empresários em investimentos para recuperação ambiental. O temor é que eles acabem usando os recursos que terão que pagar em projetos do seu interesse ou que eles tenham mesmo que fazer para respeitar as leis ambientais. De novo, o governo estará premiando quem desrespeitou a lei.
Em artigo intitulado “Riqueza Ambiental”, publicado na “Folha de S.Paulo”, o presidente distorce o que acabou de acontecer e afirma que assinou “a maior e mais inovadora iniciativa ambiental do governo”. Desconto do valor de multas e dívidas de empresas sempre foi concedido. Entra governo e sai governo. A atual administração reduziu e parcelou dívidas previdenciárias do setor rural. Não há nada de inovador em dar um desconto de 60% em multa ambiental. Usar os restantes 40% em projetos ambientais também não é novo. “Tal volume de recursos, que não dependerá do Tesouro Nacional, é uma verdadeira revolução no setor”, escreveu Temer, em outro argumento sem sentido. Ora, se as multas fossem pagas, os recursos, 100% deles, iriam para o setor público, ou seja, para o Tesouro. Temer tenta dourar a pílula de mais uma concessão feita pelo seu governo.
O momento mais estranho do artigo, contudo, é quando ele afirma que seu governo tem uma lista extensa de realizações na área ambiental. “Ampliamos áreas de reservas e parques nacionais...” O governo reduziu a área da Floresta Nacional de Jamanxin. No mesmo decreto, ele ampliou uma área de proteção ambiental com menor poder de proteção, mas o que se perdeu na Flona perdido ficou.
O pior do toma-lá-dá-cá que o governo conduz para manter o presidente no cargo foi o decreto que muda o conceito de trabalho escravo. O presidente tem dito que o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, negocia modificações no texto com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge.
Se a procuradora-geral está nessa negociação com o ministro do Trabalho acabará sendo usada mais uma vez. A primeira foi quando ela aceitou encontrar-se com o presidente fora do expediente. Isso virou argumento da defesa de Temer, para dizer que nada houve de errado quando ele recebeu o empresário Joesley Batista fora de hora e agenda. Seria “hábito” da sua gestão. Se ela aceitar agora fazer consertos numa portaria sem conserto, acabará virando coautora de algo que deveria ser simplesmente revogado.
Usando de forma desabrida as mais variadas moedas de troca o presidente caminha para ter mais uma vitória na sua faina para permanecer no poder. Na quarta-feira, ele terá os votos necessários para ficar na cadeira. Seu governo, no entanto, permanecerá sendo um mandato instável, impopular, e sujeito a novas surpresas como as que o levaram às duas denúncias da PGR.
Na mesma quarta-feira, o Copom fará o nono corte na taxa de juros. Ela começou a cair em outubro do ano passado, quando estava em 14,25% e deve ir para 7,5%. Para se ter uma ideia de como mudou para melhor: há uma ano a previsão do mercado financeiro era de que se chegaria ao fim de 2017 com 11% de Selic. Nos últimos 12 meses, o custo de carregamento da dívida brasileira caiu dois pontos percentuais segundo os dados divulgados ontem pelo Tesouro Nacional, de 12,5% para 10,5%, isso é uma redução de R$ 80 bilhões, segundo a coluna publicada pelo jornalista Ribamar Oliveira do “Valor”, citando estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI). Esse custo vai continuar caindo, porque é gradual o repasse das novas taxas ao estoque da dívida. Os juros em queda mostram os acertos da política econômica. Esses acertos, no entanto, não são um salvo-conduto para o presidente tomar as decisões que tem tomado na condução do país.
O Globo
Merval Pereira: 2018 começa quarta
Com a mais que provável vitória da maioria governista na votação de amanhã na Câmara, livrando o presidente Temer da segunda denúncia remanescente da era Janot, começa a tomar corpo a disputa sucessória, com uma novidade fundamental: dificilmente se repetirá a polarização entre PT e PSDB que marcou as últimas seis eleições presidenciais. Temer ainda sonha um sonho improvável: presidir uma recuperação econômica de tal porte que lhe dê condições de ser um eleitor de peso na sua sucessão.
Os dois partidos que dominaram a cena política desde 1994 chegam a mais uma eleição presidencial feridos de morte, buscando alternativas às principais lideranças, dentro ou fora de suas legendas.
O ex-presidente Lula, se conseguir disputar a eleição em 2018, chegará provavelmente sub judice, depois de condenado em segunda instância, pelo TRF-4, e em primeira instância pelo menos mais uma vez. Pode criar um impasse jurídico-político de amplas consequências, pois pela legislação um candidato pode ser impugnado mesmo depois de eleito e diplomado. Mas seria improvável a impugnação de qualquer candidato nessa situação, ainda mais sendo Lula.
O PSDB, sem seu candidato natural, o senador Aécio Neves, derrotado em 2014 por diferença mínima, quase certamente escolherá saída tradicional, que seria o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.
O prefeito João Doria seria uma novidade fora dos quadros ortodoxos do partido, mas parece estar perdendo fôlego ao tentar queimar etapas nessa maratona, que tem características diferentes das demais disputas presidenciais, mas exige resistência que o veterano Alckmin está mostrando ter.
A deterioração da política tradicional faz com que surjam nomes fora dos partidos políticos, como o apresentador de TV Luciano Huck e ex-ministros do Supremo como Ayres Britto e Joaquim Barbosa. A legislação brasileira, porém, que não permite candidaturas independentes ou a criação de siglas novas a meses da eleição, como aconteceu com Emanuel Macron na França, ajuda a manter limitações na apresentação dos candidatos.
O jurista Modesto Carvalhosa mantém esperanças de que o STF aprove as candidaturas independentes, caso em que pretende se apresentar como alternativa aos eleitores. Não é por acaso que ele planeja um encontro com Huck, para realçar a necessidade de surgimento de candidaturas fora dos quadros tradicionais da política.
O detalhamento da mais recente pesquisa de opinião do Datafolha ajuda a desmascarar a tese de que o ex-presidente Lula seria imbatível junto ao eleitorado mais pobre. Embora continue na frente nas pesquisas, o eleitor tem posições heterodoxas quando escolhe candidatos sem que Lula apareça na lista. Desde as mais radicais, como escolher Bolsonaro para substituir Lula (6%) ou Lula para substituir Bolsonaro (13%), até as mais lógicas, como Marina Silva ou Ciro Gomes, escolhas que parecem ter mais força de proximidade ideológica, mas que também podem significar mera identificação com ex-ministros dos governos Lula.
Mas, quando se vê que Luciano Huck aparece como opção de 40% a 60% dos eleitores de Lula, fica claro que a questão ideológica tem muito pouco a ver com a escolha. Aqui, a identificação é com medidas assistencialistas de Lula e Huck, sejam elas bolsas governamentais de vários tipos ou presentes dados em programas de televisão.
Assim como o populismo de direita, com Collor, derrotou Lula e Brizola em 1989, e hoje o ex-presidente e o atual senador são farinha do mesmo saco, na eleição de 2018, a mesma tendência política tem candidatos fortes para disputar com Lula ou Ciro Gomes, seja Doria ou Alckmin, Huck ou Bolsonaro.
O governador de São Paulo, com características de ação política de gestos moderados e conservadores, tende a repetir erros já cometidos pelo PSDB em eleições passadas, assumindo posições mais à esquerda, como se isso fosse preciso para derrotar Lula ou seu preposto, que pode ser o ex-prefeito Fernando Haddad ou o líder do MTST Boulos.
O perfil conciliador de Alckmin pode ser atropelado por uma campanha radicalizada, que facilitaria a tarefa de Bolsonaro ou Doria. Uma radicalização de Alckmin soaria tão falsa como o ridículo colete antiprivatizações que usou em 2006 e levou-o, junto com outros erros, a ter menos votos no segundo turno do que no primeiro.
A radicalização política provavelmente dará o tom da campanha e poderá ser ultrapassada pelo populismo. Mas, se o eleitorado se cansar dessa radicalização que transformou a política numa guerra incessante, pode ser que a leveza política de Alckmin ou Marina Silva sirva de contraponto aos radicais de esquerda e direita.
Fernando Gabeira: O fim de um sistema político
Questão colocada para mim no Twitter: o que responderia sobre o Brasil de hoje, se alguém me perguntasse: “O que é isso, companheiro?” Responderia que isso que estamos vendo é o fim de um sistema político partidário. A própria palavra companheiro, diante da derrocada moral da esquerda, já não tem mais da conotação de afeto recíproco, mas de cumplicidade com um projeto desastroso. C om a decisão do Supremo de entregar para o Congresso a decisão final sobre medidas cautelares, que favorecem as investigações, criou-se, para o sistema agonizante, uma blindagem dentro da blindagem, um upgrade do foro privilegiado. Nada mais distante de que as esperanças despertadas nos últimos anos de que a lei vale para todos. O STF favoreceu a indiferença, de um lado, de outro, a crescente aspiração por um regime autoritário.
Não só diante do fracasso da esquerda, como do próprio curso da do mundo, pressinto que uma perspectiva liberal em economia deve prevalecer nos próximos anos. No caso brasileiro, ela aparece junto com uma visão conservadora, numa combinação talvez parecida com as ideias do Partido Republicano nos EUA.
Não há dúvida de que o embate nos últimos anos não se travaram apenas em torno das questões econômicas mas também no plano cultural. Exposições, performances, versões de Machado de Assis para os mais pobres, ocupação ideológica de universidades — tudo isso fermentou também um sentimento defensivo, aspectos defensivos, como os de 64, quando se marchava por Deus, Família e Propriedade.
Mas é uma ilusão supor que o avanço do liberalismo venha precisamente fortalecer o credo religioso e os laços de família, apesar de garantir o direito de propriedade. Digo isso porque, ao contrário do que se pode pensar, a batalha cultural não se dá apenas no contexto da polarização esquerda e direita. Muitos dos temas que inquietam as famílias decorrem precisamente do avanço do capitalismo.
O escritor inglês John Gray fez uma avaliação interessante sobre essa hipótese. Segundo ele, na medida em que a economia cresce, os desejos são satisfeitos; a economia não se move apenas para produzir coisas mas também para combater o tédio. É um tipo de economia que não depende apenas da demanda dos consumidores mas cria necessidades. Ela não teme apenas a saturação do mercado de objetos mas também a saturação das experiências.
Como nas sociedades tradicionais, afirma Gray, a virtude não pode passar sem o consolo do vício. No século XXI, sexo e drogas são produzidos por designers. Um gigantesco setor produtivo se volta para aliviar o peso de uma vida de lazer, diz Gray, e cita J. Ballard:
“Restou apenas uma coisa que pode excitar as pessoas. Crime e comportamento transgressor — e com isso quero dizer todas as atividades que não são necessariamente ilegais mas que nos provocam e satisfazem a necessidade de emoções fortes, estimulam e fazem saltar as sinapses amortecidas pelo lazer e a inação.”
Esse papo meu parece estar pra lá de Marrakesh. O que isso tem a ver com o Brasil de hoje, com mais de 13 milhões de desempregados? Considero esse nível de desemprego um dado provisório, assim como é provisório esse sistema político partidário agonizante. Logo logo, estaremos discutindo os caminhos do futuro. E, no momento, vejo no horizonte apenas alternativas que não respondem à complexidade dos novos tempos. Sou uma espécie de observador nem nem. Só que, diferente dos jovens que nem trabalham nem estudam, não consigo ver saída numa esquerda sepultada no século passado nem na visão liberal que, ao mesmo tempo, queira impor valores abalados com um mundo em transformação.
Não sei se posso responder completamente à pergunta, quando falamos de Brasil de hoje. Creio que é um país em movimento, apenas não posso precisar ainda sua trajetória. Sei apenas que os acontecimentos desta semana, a blindagem de Aécio e nova blindagem de Temer, são muito perigosas. Elas nos remetem a uma tarefa preliminar. Convencer os indiferentes a não abandonarem o barco e, aos adeptos de uma intervenção militar, de que as eleições de 2018 são a grande oportunidade de mudança.
Só então, num contexto de 2018, poderíamos passar à segunda etapa. Em vez apenas de atenuar os choques entre posições extremas, aí teríamos pela frente a produção de um conjunto de ideias do tipo ganha-ganha, dessas que realmente podem unificar um país em reconstrução. Por exemplo: há gente a favor do aborto, gente contra. Por que não se juntam numa campanha de informação contra gravidez indesejada? Ela pode reduzir o problema, sem prejuízo do debate.
Se conseguirmos êxito em alguns temas, poderíamos achar um acordo na educação. Foram anos de bombardeio ideológico. Ele não apenas irrita as famílias mas também escandaliza os especialistas pela sua ineficácia. Num país em que a educação suba ao topo da agenda, teremos de suprimir ilusões de formar revolucionários ou santos de qualquer outra igreja.
O que é isso, como será isso? Para mim, é o enigma de cada dia. Obrigado pela pergunta.
José Aníbal: Para que servem as elites?
No seminário que o Instituto Teotônio Vilela e a Fundação Astrojildo Pereira promoveram no mês passado, o jornalista britânico Adrian Wooldridge encerrou sua palestra sugerindo uma volta ao debate filosófico do qual pensadores ingleses como Thomas Hobbes e John Stuart Mill foram pioneiros: para que serve o Estado, qual o limite de seu poder e como ele pode funcionar melhor em nosso modelo de democracia ocidental?
São perguntas cuja pertinência atravessou quatro séculos e que se mantêm tão relevantes hoje quanto na transição dos regimes absolutistas para as repúblicas ou monarquias parlamentaristas.
São questões que preocupam as nações mais desenvolvidas do mundo no século 21 e que também demandam atenção no Brasil, às voltas com a recuperação de sua economia e com um longo período de instabilidade política e, por vezes, até institucional.
Nesse sentido, cabe acrescentar ao argumento de Wooldridge, colunista da revista The Economist e coautor do instigante livro A Quarta Revolução, qual o papel e o dever das elites política, econômica, intelectual e cultural dos países na disseminação de princípios democráticos, no respeito às instituições republicanas e na defesa do pleno exercício da cidadania.
A história mostrou que o melhor caminho para uma nação próspera, com justiça social, respeito ao direito de ir e vir com segurança e acesso igualitário a serviços de educação e saúde básicos não são as revoluções que, invariavelmente, culminaram em execráveis regimes totalitários.
Tampouco vingou o modelo de laissez-faire em que se pregava a dispensa da ação do Estado, mas foi ao Estado que muitos correram quando foram à falência quando atingidos por crises profundas.
Parece clara, ainda que seja tarefa complexa, a urgência de se rediscutir um melhor equilíbrio do papel do Estado na promoção do bem-estar social e da oferta mais equitativa de oportunidades, assim como no estímulo à eficiência, ao aumento da produtividade e de um mercado competitivo e globalizado.
Num país ainda marcado pelas desigualdades como o Brasil, esse debate torna-se ainda mais fundamental, não só para a construção de perspectivas mais promissoras do ponto de vista econômico e social, mas para a própria sustentação do regime democrático.
Digo isso diante de pesquisas recentes que mostram alta desconfiança dos brasileiros em relação ao funcionamento da democracia e eventual apoio significativo a um governo militar ou não democrático.
Reverter esse quadro é dever dos que ocupam posições de relevo nos três poderes, nas grandes empresas e instituições financeiras, nos veículos de comunicação e nas redes sociais, nos grandes centros de formulação e produção de conhecimento científico, intelectual e cultural.
São esses os formadores da elite no sentido mais seminal da palavra: não como referência a privilegiados, mas como definição de eleitos, de escolhidos em um grupo social por serem os mais valorosos e bem qualificados.
Quando tais ocupantes esquecem esse significado e atuam movidos por interesses próprios, escusos ou alheios ao bem coletivo, fazem mais do que uma mera distorção do conceito original da palavra: condenam o país e a sociedade à desordem e à falta de perspectivas.
A defesa da democracia, do debate público racional, e a superação da demagogia e do populismo não é desafio exclusivo da elite brasileira nem está livre de percalços, como reconheceu ninguém menos do que Barack Obama em sua passagem pelo país. Estão aí Donald Trump e Brexit como exemplos mais eloquentes, e de certa forma a recente crise catalã na Espanha.
Há em comum nesses casos a incapacidade de fazer vencedora a visão economicamente racional, politicamente equilibrada e socialmente sensível às demandas do cidadão comum. Diante de crises e insatisfações, o apelo ao discurso fácil e às promessas que não podem ser cumpridas ou que, se cumpridas, terão graves consequências, é o combustível para a radicalização e para o surgimento de efêmeras bonanças a antecipar longas tempestades.
Assim, é preciso semear confiança nos que querem garantir o sustento de suas famílias e seguem em busca de oportunidades e emprego. Compreender e oferecer soluções reais para o medo da violência que assola a população de grandes, médias e até pequenas cidades.
Defender uma profunda reforma do Estado para que não faltem verbas para saúde, educação, cultura, infraestrutura, nem sejam desperdiçados recursos com privilégios, favores, aposentadorias especiais ou precoces.
Essa é, definitivamente, uma tarefa das elites que deveriam fazer jus à palavra.
Míriam Leitão: País dos privilégios
O Brasil cria mais privilégios a cada semana. Na quarta-feira, o STF demonstrou que, se for o senador Aécio Neves que estiver em questão, pode-se ter uma interpretação ambígua até sobre os poderes do Supremo. Na sexta-feira, o Planalto pediu ao STF para revogar a prisão após a condenação em segunda instância, um dos raros avanços nos últimos anos sobre o velho problema do país.
O tratamento desigual é o centro dos erros brasileiros, mas isso é reafirmado constantemente. Pobres e anônimos vão presos após qualquer condenação, ou passam anos detidos sem sequer culpa formada. Ricos e famosos só iam para a prisão após a longa tramitação do processo. O caso Pimenta Neves é o exemplo. Um dos muitos. Assassino confesso, em crime premeditado, ficou anos fora da prisão — mesmo após dupla condenação — pela força das estratégias recursais dos seus advogados. No ano passado, o STF decidiu que, após ser condenado por um órgão colegiado, portanto em segunda instância, o réu começa a cumprir a pena. Isso, hoje, ameaça diretamente muitos integrantes da elite política brasileira processados pela Lava-Jato. Alguns ministros do STF ficaram inconformados com a decisão e iniciaram o bombardeio para que o entendimento fosse revisto. Agora, a Advocacia-Geral da União enviou ao STF manifestação a favor da revisão.
No Brasil, se o criminoso fez ensino superior tem direito à cela especial. Se for político, pode cometer crime comum porque é protegido por imunidade parlamentar. Se for militar, cumpre pena e fica ao abrigo da Justiça Militar, aquela mesma que ameaçou e condenou civis durante a ditadura, mas que protege os seus na democracia. O almirante Othon Luiz Pinheiro, ex-presidente da Eletronuclear, condenado a 43 anos por corrupção, exigiu ficar preso em estabelecimento militar e conseguiu. Agora, já está solto na onda recente que houve de liberação de condenados nos vários processos contra a corrupção que o país tem assistido.
O que houve no STF na quarta-feira mostrou até que ponto pode chegar o contorcionismo jurídico no país para se confirmar a ideia da “A revolução dos bichos”, de George Orwell, de que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros. Parlamentares já foram afastados de seus mandatos por decisão do STF, como Delcídio Amaral e Eduardo Cunha, como deve ser. Nessa semana, um Supremo dividido decidiu de maneira diferente. Se a medida cautelar, mesmo que não seja a prisão, afetar o mandato, o Congresso tem que ser ouvido antes. A última palavra cabe ao Congresso e não ao Supremo Tribunal Federal.
A ideia de que “o mandato é o que está sendo protegido e não o parlamentar" é balela. O voto é para que o político represente o seu estado ou sua região, e não para que cometa crimes. A imunidade foi pensada para proteger a atividade parlamentar. Por isso tudo, o que se relaciona ao exercício dessa representação está protegida. E assim foi escrito na Constituição, porque, em períodos autoritários, os parlamentares eram cassados por suas palavras, ideias, e atividades de representação. Quando se escreveu na Constituição o princípio da imunidade parlamentar, não se pensava, evidentemente, em crime comum.
A questão da quarta-feira não era sobre o senador Aécio Neves oficialmente, mas de fato era. Com ele em mente, e o voto da presidente do Supremo, o STF errou. Minas Gerais votou para que o senador representasse os interesses do estado, e defendesse as ideias que apresentou na campanha. Ele não foi eleito para pedir dinheiro a um investigado em cinco operações anticorrupção. Dinheiro que seria entregue em espécie a um enviado especial, desses que “a gente mata antes". Não foram esses os poderes que Minas delegou ao senador quando o elegeu. A tese de que “o mandato é do povo, e o povo, soberano” só pode ser defendida se vier com a pergunta: qual poder foi delegado pelo povo ao seu representante? Certamente não foi o de cometer crimes.
Esse tem sido nosso vício desde o início. O país dos fidalgos, do “sabe com quem está falando", não aceita o “erga omnes". A revolução que está sendo feita no processo de combate à corrupção é a de que a lei é universal. Mas o velho país dos privilégios resiste.
Cristovam Buarque: O labirinto de nossos erros
O jornalista Roberto D’Ávila me perguntou como chegamos à situação em que nos encontramos e na qual parecemos aprisionados. A sensação é de que fomos cometendo erros, como se dobrássemos esquinas caminhando por um labirinto, sem saber o caminho de volta, ainda menos de ida: para fora das amarras que nos impedem de progredir civilizada e sustentavelmente. O labirinto se inicia com a escravidão e o latifúndio, mas não temos desculpas para os erros dos caminhos tomados nas últimas décadas, que foram contaminando o Estado, a economia e a sociedade por erros na política.
Dobramos uma esquina do labirinto ao conquistarmos a democracia e fazermos uma Constituição para apagar o passado autoritário, mas sem usá-la para construir o futuro da nação. Garantimos direitos sem determinar deveres, sem definir sentimento de coesão nacional. Ficamos presos ao imediato de cada grupo sem instrumentos nem vontade para formular e construir o rumo para todos no longo prazo.
Nos aprofundamos no labirinto por causa do endividamento público e privado, sem responsabilidade, de acordo com nossos recursos; derrubamos florestas, secamos rios; transformamos nossas cidades em “monstrópoles” divididas por “mediterrâneos invisíveis”. Protegemos com subsídios empresas ineficientes, sem buscar aumentar produtividade, competência, inovação.
Elegemos governos progressistas, mas eles não fizeram as reformas necessárias; dobramos uma esquina do labirinto usando o Estado para financiar campanhas eleitorais com propinas e dando emprego a afilhados dos políticos e a filiados dos partidos, sem respeito à competência dos nomeados. Depois do impeachment, no lugar de recuperar a credibilidade na política, pedida por milhões nas ruas, embrenhamo-nos no labirinto, com o vice-presidente aparecendo sob suspeita de conivência com a corrupção.
O mergulho no labirinto foi aprofundado por parlamentares que aprovam leis sem o necessário rigor, olhando o imediato e seus próprios interesses eleitorais; cortamos verba para setores prioritários e liberamos recursos públicos para financiar campanhas eleitorais. Os tribunais, que trazem a esperança do enfrentamento da corrupção, agravam o caminho labiríntico ao se viciarem em privilégios e ao criarem instabilidade jurídica.
A injustiça social, a impunidade legal, o incentivo obsessivo ao consumo, a falta de bons exemplos vindos dos quadros dirigentes profundaram a marcha adentro no labirinto. Para sair dele, seria fundamental dispor de interpretações atualizadas sobre a crise da modernidade e o futuro do Brasil, mas nossas universidades parecem aceitar passivamente o contínuo caminhar no labirinto, sem inovação ou ineditismo e até sem respeito ao mérito.
O labirinto é o resultado de sucessivas escolhas erradas ao longo da história, mas a principal foi o descuido com a educação de nossas crianças, do nascimento até a vida adulta.