Congresso Nacional
Revista online | Governabilidade do governo Lula no Congresso
Antônio Augusto de Queiroz*, mestre em Políticas Públicas e Governo, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição)
A governabilidade, entendida como a existência de condições políticas para implementar um programa de governo, é um fenômeno multifacetado, que depende de vários fatores. Dentre esses fatores, o apoio no Poder Legislativo – lócus onde se forma a vontade normativa do Estado e foro legítimo e apropriado para a solução das demandas da sociedade – é crucial para qualquer governo.
Historicamente, são duas as formas de construção da base de apoio aos governantes: a) uma no processo eleitoral, por meio das alianças ou coligações eleitorais, e b) a outra após a eleição, mediante a coalizão. No Brasil, raramente os governantes elegem uma base de apoio suficiente para garantir a governabilidade, havendo a necessidade de formação de coalizão para assegurar votos suficientes para aprovar sua agenda legislativa ou seu programa de governo.
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Entretanto, a forma mais eficaz de identificar a correlação de forças no parlamento é classificando os partidos em três categorias: apoio consistente, apoio condicionado, ou independentes, e oposição. De acordo com essa classificação: o apoio consistente reúne 139 deputados, sendo 81 da Frente Brasil (PT-68, PCdoB-7 e PV-6), 17 do PDT, 14 do PSB, 7 do Avante, 4 do Solidariedade, 2 do Pros e 14 da Federação PSol-Rede (PSol-13 e Rede-1); o apoio condicionado ou independentes, 223 deputados (Parcela do PP e até do PL pode migrar para esse grupo), sendo 59 do União, 42 do PSD, 42 do MDB, 42 do Republicanos, 18 da Federação (PSDB-14 e Cidadania-4) 12 do PODE, 4 do PSC, e 4 do Patriota; e oposição 151 (PSDB – 14 deputados – pode migrar para esse grupo), sendo 99 do PL, 49 do PP e 3 do Novo.
No Senado, por sua vez, estão 16 senadores no apoio consistente, sendo PT (8), PSB (4), PDT (3) e Rede (1); 35 no apoio condicionado/independente, sendo PSD (16), MDB (10), e União (9); e 30 na oposição, sendo PL (12), PP (6), Republicanos (4), Podemos (4), PSDB (3), e Novo (1).
Um parâmetro para medir a base do atual governo é o resultado da eleição das mesas diretoras das Casas do Congresso. Na Câmara, a melhor referência é a votação dada à deputada Maria do Rosário (PT/RS) para o cargo de segundo secretário da mesa, e no Senado, a votação dada a Rodrigo Pacheco (PSD/MG).
A deputada Maria do Rosário, que integrava uma chapa com os três grupos (situação, independentes e oposição), expressa e representa o PT e o governo Lula. Ela recebeu 371 votos a favor e 134 votos em branco. Os votos a favor sinalizam o potencial de apoio ao governo na Casa e os votos brancos, a oposição radical ao governo ou o bolsonarismo.
Já a votação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que teve 49 votos, fica aquém do potencial da base de apoio do governo no Senado. Pelo menos dez dos 32 votos dados a Rogério Marinho (PL/RN) não foram de oposição ao governo, mas de rejeição à postura de Pacheco, contrário à investigação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
A coligação Brasil da Esperança, formada pelas federações PT/PV/PCdoB, PSol/Rede e pelos partidos PSB, PROS, Solidariedade, Avante e Agir elegeu apenas 120 deputados federais e 12 senadores, mas com a coalizão a base poderá chegar até 346 deputados e 56 senadores, como decorrência: a) do modo como o governo se relaciona com o Congresso, b) do conteúdo das políticas públicas, e c) da vocação governista da atual oposição.
Nesse cenário, o desafio do presidente Lula na relação com o Congresso – classificado como liberal, do ponto de vista econômico; fiscalista, do ponto de vista de gestão; conservador, em relação aos valores; e à direita, do ponto de vista político – será assegurar governabilidade e puxar o pêndulo da atual legislatura para o centro. Para tanto, é preciso ter calibragem nas propostas e compromisso com a defesa da democracia, da justiça e da inclusão social.
Saiba mais sobre o autor
*Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV, sócio-diretor da Consillium Soluções Institucionais e Governamentais.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro de 2023 (52ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da revista.
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PEC da Transição será protocolada até terça (29) no Senado, diz relator do Orçamento
Cristiane Sampaio*, Brasil de Fato
O relator-geral do Orçamento de 2023, senador Marcelo Castro (MDB-PI), afirmou, nesta quinta-feira (24), que o texto da “PEC da Transição” será protocolado no Congresso Nacional até a próxima terça-feira (29). A medida traz a previsão de gastos não projetados na proposta de orçamento enviada pela gestão Bolsonaro ao Legislativo para o ano que vem.
“Os dois grandes desafios que temos para que o país continue funcionando são a aprovação da PEC do Bolsa Família e o orçamento do próximo ano. Para que possamos focar na elaboração do orçamento, precisamos que a PEC seja aprovada no Senado e na Câmara até 10 de dezembro. Portanto, até a próxima terça irei protocolar o texto da PEC para darmos celeridade à aprovação da matéria nas duas Casas e garantirmos a continuidade do pagamento dos R$ 600 reais do Bolsa Família e mais R$ 150 reais por criança de até 6 anos de idade”, disse, em nota.
A proposta tem terreno fértil na Câmara dos Deputados, mas ainda é alvo de divergências no Senado, casa por onde deve iniciar a tramitação do texto. “Estamos fazendo as conversas no Congresso Nacional, no Senado. Eu aposto muito na solução política, como disse o presidente [Lula], que o Congresso Nacional tem responsabilidade para com o povo brasileiro. Obviamente que, se isso não for possível, vamos buscar outras saídas”, disse nesta quinta a coordenadora de articulação política da transição de governo e presidenta do PT, Gleisi Hoffmann.
Questionada sobre as dificuldades em torno do texto, Gleisi também negou a afirmação dada mais cedo pelo senador Jaques Wagner (PT-BA) de que estaria faltando a indicação do futuro ministro da Fazenda para a equipe de Lula conseguir destravar as negociações no Senado.
“Não vejo isso. eu acho que a articulação política se dá no Congresso, independe de quem é ministro. Eu acho que a gente tem que respeitar o tempo do presidente Lula de avaliar quem ele quer nos ministérios, até porque isso é uma responsabilidade muito grande. Se você colocar um ministro, não pode tirar logo em seguida, então, acho que tem que ser avaliado.”
A presidenta também creditou o embaraço da pauta ao modo como as costuras vêm sendo feitas e sugeriu que falta habilidade no processo conduzido pelos correligionários. “Está faltando articulação política no Senado, por isso que eu acho que nós travamos na PEC. [Foi] a forma como foi iniciado o processo, sem falar ou sem formatar uma base mais forte de governo. Não é falta de ministro”.
*Texto publicado no site Brasil de Fato
Nas entrelinhas: Transição não será um passeio pelo Eixo Monumental
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
Engana-se quem pensa que este período de transição para o novo governo será fácil para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. No plano político, a sinalização está sendo boa: Lula estabeleceu as relações cordiais com os demais Poderes e opera a montagem de um governo de ampla coalizão democrática. Também mostrou que não pretende deixar no sereno os eleitores de mais baixa renda que o elegeram, ao anunciar que os recursos do Bolsa Família vão extrapolar o teto de gastos.
Entretanto, o dólar disparou depois da divulgação da inflação no Brasil e nos Estados Unidos. Ontem, o câmbio já passou dos R$ 5,30. O preço do fechamento do dia foi de R$ 5,396, alta de 4,14% no dia. Por volta das 15h30, o dólar estava a R$ 5,341, alta de 3,09%. Logo na abertura do mercado, a moeda americana chegou a subir quase 3%. Na quarta-feira, o dólar já havia fechado o dia em alta, de 0,74%, fechando a R$ 5,18. Desde o início do mês, a alta é de 2,96%. É óbvio que existe muita especulação no mercado, com divulgação de fake news que mexem com a Bovespa, em razão da insegurança dos investidores.
Lula já disse que não tem pressa para indicar o novo ministro da Fazenda, mas é aí que está o xis da questão no mercado financeiro. A rigor, ninguém sabe quais serão as medidas de impacto dos 100 primeiros dias de governo, exceto aquelas que estão sendo negociadas no Congresso, que sinalizam uma certa continuidade da farra fiscal que marcou a gestão do ministro Paulo Guedes durante a campanha eleitoral. Esse problema somente se resolverá quando for anunciado o nome do novo ministro da Economia ou da Fazenda, se houver desmembramento.
Havia uma expectativa positiva de que o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin viesse a ocupar esse cargo, mas isso nunca foi cogitado de verdade por Lula. O próprio Alckmin já havia dito isso, o que fora interpretado como dissimulação, porém, ontem, Lula jogou uma pá de cal nessa possibilidade, ao afirmar que o ex-governador paulista não ocupará nenhum ministério. Esse também não foi o problema maior para o mercado financeiro, o que gerou instabilidade foi a própria fala de Lula e o fato de o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega ter sido confirmado como um dos integrantes do governo de transição.
Coalizão
Até agora, a principal ancoragem da transição de governo no mercado financeiro era a presença dos economistas Pérsio Arida, André Lara Resende e Guilherme Mello na equipe econômica da transição. A confirmação de Guido Mantega, ministro da Fazenda dos governos Lula e Dilma Rousseff, sinaliza noutra direção. Mantega tem uma velha relação com Lula, que começou quando dava aulas de economia para o então líder metalúrgico no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo.
Arida, Resende e Mello têm evitado declarações à imprensa; imagina-se que a mesma coisa acontecerá com Guido Mantega. Enquanto não se define o nome do futuro ministro, porém, as especulações no mercado financeiro vão continuar, até porque existe um ambiente internacional que também favorece isso. A guerra da Ucrânia se prolonga, o inverno se aproxima na Europa e há sinais de que poderemos ter um ambiente de recessão na economia mundial. Esse cenário acaba alimentando as teses de políticas anticíclicas, como as adotadas por Lula após crise de 2008, que se prolongaram no governo Dilma, levando-a ao impeachment.
A transição vai bem no plano político. Lula está prestigiando todos os políticos que o apoiaram desde o primeiro turno e ampliou a equipe de transição para incorporar os partidos e lideranças que o fizeram no segundo turno, principalmente Simone Tebet. O risco que corre, porém, é o novo ministério ficar com cara de governo velho, no qual antigos caciques políticos e a atual cúpula petista pontificariam. Com a PEC da Transição, do ponto de vista de sua base eleitoral, e o bom relacionamento com os líderes do Centrão, principalmente o presidente da Câmara, Arthur Lira, Lula garante a estabilidade do governo na sua largada para o novo mandato. Mas isso não basta para satisfazer os setores da classe média e da elite econômica do país que fazem restrições ao presidente eleito.
De qualquer forma, o novo governo será o que Lula conseguir articular em termos de forças democráticas. O primeiro turno das eleições mostrou que o projeto original era viabilizar nas urnas, de forma inequívoca, um governo de esquerda, ainda que sua coalizão eleitoral se autointitulasse “frente ampla”. A correlação de forças políticas e eleitorais, porém, obrigou Lula a ampliar suas alianças em direção ao centro político; a vitória por estreita margem, a realizar uma articulação ampla das forças democráticas para dar sustentação ao seu governo. Essa articulação não passa apenas pelos acordos no Congresso, passa também, e sobretudo, pela formação do governo e sua composição.
Câmara divulga programação da campanha de 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher
Câmara Legislativa*
Desde 2013, o Congresso Nacional, por meio da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, Procuradoria Especial da Mulher do Senado Federal e Liderança da Bancada Feminina do Senado Federal, participa da Campanha Mundial “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher”, que conta, ainda, com parceria da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara e outras instituições. Internacionalmente, a campanha começa em 25 de novembro (Dia Internacional da Não-Violência contra as Mulheres) e termina em 10 de dezembro, data em que foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. No Brasil, a campanha tem início em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, considerando a dupla vulnerabilidade da mulher negra e, por isso, aqui é chamada de "21 Dias de Ativismo pelo fim da Violência Contra as Mulheres", e também é chamada de “16+5 Dias”.
Realizada em cerca de 150 países anualmente, a campanha tem por objetivo conscientizar a população sobre os diferentes tipos de agressão contra mulheres e propor medidas de prevenção e combate à violência, além de ampliar os espaços de debate com a sociedade. A mobilização é empreendida por diversos atores da sociedade civil e do poder público e contempla as seguintes datas principais:
- 20 de novembro – Dia da Consciência Negra (início da campanha no Brasil);
- 25 de novembro – Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres;
- 29 de novembro – Dia Internacional dos Defensores dos Direitos da Mulher;
- 1º de dezembro – Dia Mundial de Combate à AIDS;
- 03 de dezembro – Dia Internacional das Pessoas com Deficiência;
- 06 de dezembro – Dia dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres (campanha do Laço Branco);
- 10 de dezembro – Dia Internacional dos Direitos Humanos e encerramento oficial da campanha.
Tradicionalmente, além dos eventos, as parlamentares levam aos Colégios de Líderes uma lista de proposições prioritárias para votação em Plenário, e que têm por objetivo ampliar os direitos das mulheres como mecanismo de combate à violência contra a mulher no País. As propostas apresentadas versam não só sobre projetos e iniciativas na área de segurança pública, mas também proposições de âmbito social, de saúde, político e econômico, como as que ampliam a presença feminina na política e as que propiciam maior autonomia financeira para as mulheres — ferramentas essenciais para a quebra dos ciclos de violência doméstica.
Programação - Para este ano, as ações terão início em 21 de novembro, às 15 horas, com sessão solene da Câmara dos Deputados em homenagem ao Dia Nacional da Consciência Negra, a partir de requerimento proposto pelas deputadas Sâmia Bonfim (PSOL-SP), Vivi Reis (PSOL-PA) e o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG). No mesmo dia (21/11), às 18 horas, será realizada a abertura solene conjunta da campanha, no Salão Nobre, com acendimento das luzes do Congresso Nacional às 19 horas.
Para quarta-feira (23/11), às 18 horas, está programado o lançamento do “Pacto Nacional pelos Direitos das Mulheres”, uma realização da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados que irá congregar diversas organizações governamentais e não governamentais numa ação conjunta em defesa de políticas públicas de garantira de direitos às mulheres.
Na sexta-feira (25/11), das 9 às 12 horas, será realizado seminário sobre o tema “Brasil e Israel: inovações e iniciativas pela eliminação de violências contra as mulheres", com realização da Procuradoria Especial da Mulher e Liderança da Bancada Feminina do Senado Federal, Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados e Embaixada de Israel no Brasil.
Na terça-feira (29/11), das 10 às 17 horas, outro seminário abordará o “Empreendedorismo Feminino: a autonomia financeira das mulheres como instrumento de empoderamento e combate à violência”, com realização da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados.
No dia 6 de dezembro, será a vez da campanha Laço Branco, ato relacionado ao “Dia dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, com distribuição de botóns e cartazes para os parlamentares, no Plenário Ulysses Guimarães, durante a sessão deliberativa. No dia seguinte, 7 de dezembro, das 9 às 17 horas, será realizado seminário para avaliar as "Eleições 2022: análise de indicadores sob a perspectiva da participação feminina e da nova lei de violência política contra as mulheres", com realização do Observatório Nacional da Mulher na Política (ONMP) da Secretaria da Mulher da Câmara. Já o III Encontro Nacional de Procuradorias da Mulher será no dia 8 de dezembro, das 9 às 12 horas, com promoção da Procuradoria da Mulher da Câmara.
Fechando a programação dos 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra mulheres, estão previstas, ainda, duas audiências públicas, com data, horário e local a confirmar: uma sobre "Violência Institucional", com realização conjunta da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMulher) e Secretaria da Mulher da Câmara; e outra sobre "Visibilidade da Mulher com Deficiência", em alusão ao Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, celebrado em 3 de dezembro, esta com realização da CMulher, Secretaria da Mulher e Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) da Câmara.
A programação completa está sujeita a eventuais alterações de data, horário e local e pode ser conferida na página da Secretaria da Mulher: https://bit.ly/3DW23hF
Ascom - Secretaria da Mulher
Texto publicado originalmente no portal da Câmara Legislativa.
Relator do orçamento e Alckmin propõem "PEC da Transição" para garantir verbas da gestão Lula
Cristiane Sampaio*, Brasil de Fato
O Congresso Nacional poderá analisar e votar até o final do ano uma proposta de emenda constitucional que já vem sendo apelidada de "PEC da Transição". O objetivo é que esse texto dê conta de verbas adicionais que precisarão ser previstas no Orçamento de 2023 para financiar programas e ações do primeiro ano da gestão Lula (PT).
O anúncio sobre a proposição da medida veio após uma reunião ocorrida entre o relator do Orçamento de 2023, senador Marcelo Castro (MDB-PI), o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), e uma comitiva de senadores e deputados ligados ao PT. O grupo se reuniu nesta quinta-feira (3), no Senado, no que foi a primeira agenda oficial da equipe de transição.
O Congresso Nacional discute atualmente a Proposta de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para o ano que vem. Enviado pelo governo Bolsonaro, o texto prevê um salário mínimo de R$ 1.302 a partir de janeiro, taxa básica de juros de 12,5% e inflação de 4,6% em 2023.
Os números, no entanto, só serão fechados quando o Legislativo aprovar finalmente o texto da PLOA, o que deve ocorrer em 16 de dezembro, segundo divulgado pelo presidente da Comissão Mista de Orçamento (CMO), deputado Celso Sabino (União-PA). Enquanto isso não ocorre, a equipe destacada por Lula para liderar a transição se movimenta junto a parlamentares para costurar saídas que evitem um rombo no primeiro ano de gestão.
A ideia da PEC foi proposta pelo grupo como forma de solucionar o impasse relacionado à discrepância entre o orçamento previsto pela gestão Bolsonaro para o ano que vem e as promessas de campanha do presidente recém-eleito. A equipe ficou de detalhar os números na próxima semana, mas a situação preocupa o grupo desde já.
"É, seguramente, o orçamento mais restritivo, o que traz mais furo da nossa história, [em] que nós temos ano a ano diminuído os investimentos. Um órgão importante como o DNIT [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes] este ano só tem R$ 6,7 bilhões. Isso é insuficiente até para a manutenção da nossa malha. Nós já tivemos, em governos passados, uma média de investimentos no DNIT em torno de R$ 15 bilhões", comparou Marcelo Castro.
Ele ressaltou que o DNIT já chegou a ter orçamento anual de R$ 20 bilhões. "Apesar de estarmos com quase dez anos depois e com inflação durante todo esse período, estamos diminuindo em valores nominais", lamentou o senador.
Combo
A equipe de Lula tem, no centro da mesa de negociação, a preocupação de garantir o custeio de programas como o Bolsa Família, além de várias outras medidas de caráter social prometidas pelo petista ao longo da campanha. Castro destacou que há um conjunto de desafios pela frente em meio às tratativas sobre o Orçamento de 2023.
"Não tem recurso pro Bolsa Família, pro [programa] Farmácia Popular, pra saúde indígena, pra merenda escolar, então, são muitas as deficiências do orçamento, mas nós temos que trabalhar dentro da realidade. O orçamento em cima do qual estamos trabalhando foi apresentado legitimamente pelo atual governo e, legitimamente, o governo eleito está fazendo gestões para emendá-lo pra que ele possa se adequar à maneira de governar do novo governante eleito legitimamente pelo povo brasileiro", afirmou.
Segundo Castro, a ideia é que a proposta de aprovação da "PEC da Transição" seja apresentada agora às outras lideranças políticas que têm relação com o tema. O grupo pró-Lula entende que é preciso abrir exceções fora dos limites do Teto de Gastos para despesas consideradas "inadiáveis".
"É como o Bolsa Família no valor de R$ 600, que é um compromisso público assumido pelo presidente Lula. E seria inconcebível que 21,6 milhões de famílias recebessem a partir de janeiro apenas R$ 400", disse Castro.
Agenda
O roteiro das tratativas viverá novos capítulos a partir de segunda-feira (7), quando a equipe de transição se reúne diretamente com Lula. Depois, na terça (8), o grupo tem um novo encontro com o senador Marcelo Castro. Também ocorrerão agendas com os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), bem como com o presidente da CMO, deputado Celso Sabino.
De acordo com Alckmin, uma das preocupações do novo governo é evitar que haja paralisação de serviços no país. "Isso não está adequado no orçamento enviado para o Congresso Nacional, então, há necessidade de se ter uma suplementação pra garantir os serviços, as obras e, ao mesmo tempo, por exemplo, o Bolsa Família de R$ 600 reais".
Ainda segundo a equipe, o objetivo é que a PEC tramite em regime de urgência, já que precisaria ser aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados e pelo Senado até dezembro para valer em 2023. "Tudo tem que ser muito rápido porque tem ainda uma série de procedimentos, então, a rapidez e a agilidade são muito importantes", reforçou Alckmin.
O senador recém-eleito Wellington Dias (PT-PI) disse que uma equipe técnica vai se debruçar sobre o texto da PEC até a próxima semana. "Eu diria que o grande desafio é o tempo. Nós teremos que já na terça-feira ter as condições da redação dessa emenda constitucional, ter a definição dos valores e também a posição do presidente Lula a partir da apresentação a ser feita."
Estrutura
A equipe de transição terá 50 nomes e ainda será formalmente constituída junto ao Diário Oficial da União (DOU) a partir de segunda-feira (7), mesma data em que os trabalhos mais operacionais do grupo terão início no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília (DF), local que já sediou outros gabinetes de transição de governo.
Texto publicado originalmente em Brasil de Fato.
Rubens Bueno defende aprovação ainda neste ano da correção na tabela do IR
Cidadania23*
O deputado federal Rubens Bueno (Cidadania-PR) defendeu nesta quinta-feira (3) a necessidade de votação pelo Congresso Nacional, ainda em 2022, das propostas que aumentam a faixa de isenção e estabelecem a correção da tabela do imposto de renda. O assunto foi bandeira de diversos candidatos durante a campanha presidencial, inclusive do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Nesta semana, já houve sinalização do presidente da Câmara, Arthur Lira, sobre a possibilidade de se votar o tema.
“A última correção foi feita em 2015 e a defasagem da tabela de 1996 até hoje já chega a 147,37%. É dever dos parlamentares e compromisso do presidente eleito aprovar uma proposta que reduza o peso desse imposto sobre os contribuintes. E isso precisa ser feito ainda neste ano para que passe a valer já em 2023”, cobrou Rubens Bueno, que é autor de um projeto (PL 59/2011) apresentado há mais de dez anos que estabelece a correção da tabela. Várias propostas sobre o tema tramitam em conjunto.
Na campanha eleitoral, os candidatos a presidente prometeram isenção do imposto para trabalhadores com salários entre 5 e 6 mil. “A lógica de qualquer tributação justa de renda deveria seguir o princípio básico de que quem ganha mais paga mais. Simples. Mas no Brasil, há décadas, os governos só vêm aumentando sua sanha arrecadatória e jogando o peso dos impostos nas costas da grande maioria da população que recebe muito pouco. Esperemos que a situação mude agora”, afirmou o parlamentar.
Para se ter uma ideia do que a falta de correção da tabela representa, uma pessoa que recebe hoje R$ 5 mil está pagando de IR retido na fonte 2.000% a mais do que deveria em função da defasagem. Esse alerta consta de estudo feito pelo Sindifisco Nacional, que representa os auditores fiscais da Receita Federal.
“A situação chegou a tal ponto que, se não houver correção, no próximo ano um trabalhador que ganha um salário e mínimo e meio vai passar a ter imposto de renda retido na fonte. Quando o Plano Real entrou em vigor, em 1994, estavam isentos os trabalhadores que ganhavam menos de 8 salários mínimos. São dados que mostram como essa atual política sobre o imposto de renda é perversa”, ressaltou Rubens Bueno.
Texto publicado originalmente no portal Cidadania23.
Chomsky: PT tem que lembrar que apoio de artista e reunião em universidade não ganham eleição
Mariana Sanchez*, BBC News Brasil
Pela janela, Noam Chomsky, de 93 anos, assiste à motociata pró-Bolsonaro rasgar a rua, preenchendo o ambiente com bandeiras verde e amarelas e o ronco alto dos motores das motocicletas.
Ativista político que se autodenomina um socialista libertário, Chomsky diz seguir "com grande interesse" aquela que tem sido descrita como a eleição mais tensa no país desde a redemocratização. Suas reflexões, ele ressalta, não são as de um especialista. "Não me leve muito a sério", diz, antes de emendar observações afiadas sobre a política brasileira.
Chomsky nota que, se as motociatas de Bolsonaro têm ocupado espaços públicos ao redor do Brasil, o mesmo não tem acontecido com a campanha do petista Luiz Inácio Lula da Silva, que tenta voltar à presidência e impedir que o atual presidente conquiste mais quatro anos no Palácio do Planalto. Para o pensador, a esquerda deixou de ocupar as ruas de modo organizado.
"No Brasil, minha impressão é que o PT simplesmente falhou nos últimos 20 anos em se organizar como movimento de base. Então, só para ilustrar, a gente conversa com as pessoas e as pessoas não sabem que se beneficiaram dos programas que o Lula criou, não sabem que ele foi o responsável por seus filhos poderem entrar na faculdade, por terem conseguido abrir um pequeno negócio. É Deus, é sorte, ou algo assim. Não o PT", aponta Chomsky.
Segundo ele, assim como o partido Democrata nos Estados Unidos, o PT se afastou do trabalhador, do mais pobre. Ao abraçar agendas neoliberais, perdeu a conexão histórica com seu eleitorado. E isso abriu espaço para que movimentos de direita radical capturassem essa audiência.
"(O PT vai fazer) uma grande reunião do partido para tentar responder ao que aconteceu (no primeiro turno), uma reunião na universidade, onde estarão artistas e escritores. Enquanto isso, as pessoas comuns (seguem) dizendo (sobre o PT): 'nos livramos dos bandidos'", avalia Chomsky, que conversou com a BBC News Brasil, por vídeo chamada, na tarde de segunda-feira (03/10), menos de 24 horas após a definição de segundo turno entre Lula, que conquistou 48,43% dos votos válidos, e Bolsonaro, com 43,20% dos votos.
Segundo Chomsky, um defensor incondicional da liberdade de expressão, a falta de capilaridade de base do PT e da esquerda brasileira explica a eficácia que têm algumas fake news na campanha, como a de que Lula planeja fechar templos religiosos.
"Se você tivesse um partido político ou qualquer organização geral defendendo os trabalhadores e os pobres, eles poderiam reagir a isso (fake news) na base, via organização local. Os Democratas não têm. E acho que não existe nada parecido no Brasil. O PT simplesmente não está se organizando na base, no chão de fábrica", afirma Chomsky.
O filósofo, aposentado pelo Massachussets Institute of Technology (MIT) e atualmente professor da Universidade do Arizona, afirma que pautas como o aborto e o armamento civil são estratégias diversionistas para que a população mais pobre não perceba que as políticas econômicas dos governos são desfavoráveis a seus interesses. E afirma que o "pior crime de Bolsonaro é destruir a Amazônia", algo que pode colocar em risco a sobrevivência da humanidade como um todo.
Chomsky vê muitos paralelos entre a política nos EUA e no Brasil: desde o erro das pesquisas eleitorais ao medir as performances dos candidatos populistas de direita ao risco de uma repetição da invasão do Capitólio à brasileira.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Noam Chomsky à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil- Como o senhor avalia o quadro político do Brasil hoje, à luz dos resultados do primeiro turno, que mostraram Lula a 1,5 ponto percentual de ganhar no primeiro turno mas com Bolsonaro apenas 5 pontos percentuais atrás dele, mostrando um vigor que as pesquisas não detectaram e que surpreendeu muita gente?
Noam Chomsky - Em primeiro lugar, isso é apenas uma parte do quadro político. Tem outra parte que eu acho ainda mais reveladora, que é que os candidatos de direita, os candidatos de Bolsonaro, realmente varreram a maior parte do Brasil muito além do que se esperava para o Congresso e entre os governadores.
E foi bastante surpreendente ver o que aconteceu com as pesquisas, dá pra supor que é bastante semelhante ao que está acontecendo nos Estados Unidos (onde as pesquisas demonstraram erro fora do esperado em antever a votação trumpista). Eles foram exatos em Lula, quase precisos. Mas subestimaram muito Bolsonaro e também seus candidatos.
Isso é exatamente o que acontece com Trump. As pesquisas subestimam o apoio popular a ele e aos que ele apoia. E suspeito que o motivo seja o mesmo. A parte da população que está inclinada a votar em Trump ou Bolsonaro provavelmente é tão anti-elite que não confia nos pesquisadores, acha que eles fazem parte dessa conspiração de esquerda que está tentando destruir a família, a igreja. Eles simplesmente não respondem. Eu não ficaria surpreso se o mesmo estivesse acontecendo aqui.
Houve uma tonelada de publicidade negativa nos anúncios da campanha de Bolsonaro em relação ao Lula. "Livre-se do ladrão". "Livre-se da corrupção". "Eles estão apenas roubando você". E a impressão que dá ao falar com as pessoas nas ruas é que isso teve um grande efeito. Que o grupo de Bolsonaro seja corrupto até o pescoço não é o que as pessoas têm ouvido ou captado no WhatsApp. Então, o papo das pessoas conversando na rua é 'vamos nos livrar dos corruptos, dos ladrões'. Novamente um fenômeno bastante semelhante tem acontecido nos Estados Unidos.
BBC News Brasil - Mas por que a esquerda não consegue reagir a isso?
Chomsky - O Partido Democrata, que você poderia supor ser a oposição (a Trump e aos republicanos nos EUA), na verdade praticamente se juntou à onda neoliberal no início dos anos 1980. Eles abandonaram a classe trabalhadora e os pobres apenas para seguir a guerra de classes de (Ronald) Reagan. Muito parecido com o Partido Trabalhista na Inglaterra, onde a piada era que Tony Blair havia se tornado uma versão light de (Margareth) Thatcher.
O resultado final é que esse público não é de ninguém. Não há nenhum partido político que esteja de fato defendendo os direitos e interesses dos trabalhadores, dos pobres. Eles (os trabalhadores e os pobres) são facilmente desviados para outras preocupações quando alguém como Trump, nos EUA, aparece no palco segurando em uma mão dizendo uma faixa que diz "eu te amo" enquanto que com a outra mão, ele te apunhala pelas costas. Eles apenas olham para o "eu te amo", não para o programa de governo.
No Brasil, minha impressão do que aconteceu é que o PT simplesmente falhou por 20 anos em se organizar na base. Então, só para ilustrar, a gente conversa com as pessoas e as pessoas não sabem que se beneficiaram dos programas que o Lula criou, não sabem que ele foi o responsável por seus filhos poderem entrar na faculdade, por você ter conseguido abrir um pequeno negócio. É Deus, é sorte, ou algo assim. Não o PT. Vimos isso em discussões pré-eleitorais de ativistas do partido, falávamos sobre como eles tiveram um grande apoio de artistas e de alguns movimentos sociais, mas não são essas pessoas que vão votar e vencer a eleição. Na verdade, (minha esposa) acabou de me dizer que haverá uma grande reunião do partido para tentar responder ao que aconteceu (no primeiro turno), uma reunião na universidade, onde estarão artistas e escritores. Enquanto isso, as pessoas comuns (seguem) dizendo que nos livramos dos bandidos. Essa é uma observação superficial, mas essa é a impressão que tenho há muitos anos.
BBC News Brasil - A direita radical tem ganhado terreno entre grupos que antes eram considerados esquerdistas, como trabalhadores sindicalizados, os mais pobres. Esse é inclusive um objetivo declarado deles, como disse recentemente Steve Bannon à BBC News Brasil. Por que isso está acontecendo?
Chomsky - Devo dizer que, embora acompanhe de perto os assuntos brasileiros, não estou intimamente envolvido neles, então posso dar apenas julgamentos superficiais. Mas me parece muito com o que aconteceu nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Então, vamos dar uma olhada nos Estados Unidos: o chamado neoliberalismo não tem praticamente nada a ver com mercados ou qualquer coisa assim, é apenas uma guerra de classes massiva e selvagem, muito concentrada e bem planejada, o capitalismo selvagem em seu extremo.
Na década de 1970, o mundo dos negócios viu uma oportunidade de reverter as odiadas medidas do New Deal, as medidas social-democratas, que eram significativas. Eles foram fortemente apoiados por alguém como (o presidente americano republicano Dwight) Eisenhower, mas a comunidade empresarial nunca gostou e, no início dos anos 1970, houve uma crise econômica e uma oportunidade para os empresários de basicamente ir na jugular dessas medidas e lançar uma grande guerra de classes. Reagan embarcou. Margareth Thatcher, na Inglaterra, fez o mesmo. Tanto eles quanto seus conselheiros pelo menos entenderam que era apenas uma guerra de classes. A primeira coisa que fizeram foi ir atrás de destruir os sindicatos. Esse é o único mecanismo de defesa que os trabalhadores têm, isto está bem compreendido ao longo de mais de um século. Você tem que destruir os sindicatos se quiser levar a cabo uma guerra de classes. Divida a população e faça com que ela se desvie, se afaste das questões econômicas. Não queremos que olhem para isso porque estamos apunhalando-na pelas costas. Em vez de olhar para a economia, olhe para o aborto ou para armas ou qualquer coisa.
Isso começou com (o republicano) Richard Nixon com o que foi chamado de Estratégia do Sul (um discurso político que explorava eventuais episódios de violência em protesto antirracismo e advogava pela insegurança da população branca nas cidades), quando ele percebeu que podia conquistar os democratas do Sul que se opunham aos direitos civis (dos negros), apresentando-se como o partido racista.
Claro, Nixon não dizia: 'sou racista'. O que fazia era dar indicações, os chamados apitos de cachorro, que são códigos para fazer as pessoas entenderem que você está do lado da supremacia branca. E no momento em que chega a Reagan, não eram nem apitos de cachorro, era um racista aberto.
Ao mesmo tempo, os republicanos foram percebendo que se fingissem ser contrários ao aborto - apenas fingissem - poderiam ganhar o enorme voto evangélico. Se a gente voltar para a década de 1960, os líderes do Partido Republicano eram pró-escolha da mulher. Reagan, George H. W. Bush faziam parte basicamente dos apoiadores de Roe versus Wade (a decisão da Suprema Corte que liberou o aborto em todos os EUA até ser derrubada pela Corte este ano). Reagan, como governador da Califórnia, passou uma das leis mais abrangentes para garantir o acesso ao aborto (em 1967). Os estrategistas do Partido Republicano de meados dos anos 1970 que perceberam que, se fingissem ser anti-aborto, poderiam obter o enorme voto evangélico e o voto católico do norte. E num estalar de dedos, todos eles se tornaram apaixonadamente anti-aborto.
Isso está acontecendo agora no Brasil, o grande voto evangélico vai para Bolsonaro também. Novamente, (a estratégia de investir nas) questões culturais. Você olha para as eleições de 2018 no Brasil, nas quais suspeito que Steve Bannon esteve muito envolvido, e as mensagens que vinham no WhatsApp, que é o que a maioria das pessoas olham, é que o PT ia destruir as igrejas, ia transformar seus filhos em homossexuais e assim por diante. Esse é o problema. Desta vez, eles são todos ladrões corruptos que atacam a igreja, e por aí vai. Se você tivesse um partido político ou qualquer organização geral defendendo os trabalhadores e os pobres, eles poderiam reagir a isso (fake news) na base, via organização local. Os Democratas não têm. E acho que não existe nada parecido no Brasil. O PT simplesmente não está se organizando na base, no chão de fábrica. O que eles estão fazendo é como quando os democratas nos Estados Unidos se reúnem para ir a uma das festas chiques de (Barack) Obama, onde podem ouvir Beyoncé cantando e discutir. Se os republicanos querem apelar à classe trabalhadora, o que eles fazem é mandar que George W. Bush vá a um bar e peça uma cerveja e finja ser um "Zé" da classe trabalhadora comum. O que os democratas fazem: John Kerry vai praticar windsurf. Isso realmente não vai agradar aos trabalhadores. O PT e os Democratas se tornaram partidos de pessoas abastadas, que vão às universidades discutir o que fazer. E aí já está perdido.
De outro lado, os republicanos estão já bastante esgotados com os seus principais apoiadores, os setores corporativos, que não gostam deles. Assim como a classe empresarial no Brasil não gosta da vulgaridade e crueldade de Bolsonaro. Mas ainda assim, os dois grupos acham melhor isso do que ter outro petista ou democrata no poder.
BBC News Brasil - O senhor está traçando muitos paralelos entre os EUA e o Brasil. Há quem acredite que o país pode viver uma situação como o 6 de janeiro de 2021, quando trumpistas invadiram o Capitólio pra contestar os resultados eleitorais. O senhor vê esse risco no Brasil?
Chomsky - O tumulto das motociatas do Bolsonaro dão uma ideia do que poderia ser. E olha que era apenas um desfile pelas ruas da cidade. Acho que os próximos serão meses muito difíceis. Bolsonaro fez declarações alegando possíveis fraudes tão extremas que a comunidade diplomática internacional se opôs fortemente. Então eu acho que eles vão se abster desse tipo de movimento. Mas é perfeitamente possível que eles possam replicar o 6 de janeiro. Lembre-se, o 6 de janeiro chegou muito perto de um golpe e só não o foi porque meia dúzia de pessoas decidiram diferente. Teria sido um golpe se (o vice de Trump) Mike Pence e (o então líder da maioria no Senado) Mitch McConnell estivessem dispostos a ver o sistema democrático formal derrubado. Foi muito perto.
Se aconteceu nos EUA, há um risco muito grande de que aconteça no Brasil. O país está obviamente muito dividido e Bolsonaro está despejando armas na mão de pessoas que se organizariam facilmente para dar um golpe. Não é preciso muita imaginação para pensar que os mesmos que participam da motociara também poderiam pegar em armas se for o caso. Como Trump, Bolsonaro disse muito explicitamente que ele não vai ser derrotado, quem sabe o que ele quer dizer?
BBC News Brasil - Se Lula vencer, o que ele deveria fazer em seu terceiro mandato?
Chomsky - Bom, a essa altura está meio tarde, mas eles precisam começar a se organizar entre a população em geral. Não basta ter artistas do seu lado, ou ter acadêmicos, é preciso sair às ruas e se organizar para realmente ter forças populares reais ali.
Não é que faltem pessoas (nesse campo da esquerda). Houve grandes manifestações populares (contra Bolsonaro), mas meio espontâneas. Eu não acho que eles tinham uma organização unificada ou um conteúdo político direto, exceto o "fora Bolsonaro" ou algo assim. Isto não é suficiente.
BBC News Brasil - Como o governo Bolsonaro se compara ao de Trump?
Chomsky - Uma das semelhanças é voltar a atenção do público para outro lugar. Essa técnica de apontar pro outro lado e gritar 'olha lá o ladrão', pra se livrar de questionamento sobre o aumento da fome e da pobreza, sobre as mortes da pandemia.
Mas o pior crime de Bolsonaro, não só para os brasileiros, mas para o mundo inteiro, é destruir a Amazônia. Mais alguns anos com o atual avanço da extração ilegal da madeira, do agronegócio e da mineração e chegaremos em pontos de inflexão irreversíveis, no qual a floresta se converte em savana. Sabe-se que isso acontecerá mais cedo ou mais tarde, mas essa possibilidade se aproximou muito por causa desses ataques destrutivos. É um desastre para o Brasil, uma catástrofe para o mundo inteiro. Em vez de tratar disso, vamos fazer campanha em outra coisa: 'olha aí, os ladrões do PT, tentando enganá-lo', 'eles vão destruir a família', 'vão atacar a igreja cristã'. Enquanto isso, nos aproximamos mais e mais do ponto em que não vamos mais sobreviver.
*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil
Revista online | "Não vai ter golpe", diz economista Edmar Bacha
Entrevista concedida a André Eduardo, Arlindo Fernandes de Oliveira, Benito Salomão e Benjamin Sicsú, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
Sócio fundador e membro do conselho diretor do Instituto de Estudos em Política Econômica/Casa das Garças, o economista Edmar Bacha diz que os políticos aprenderam a lição de que “o controle da inflação é eleitoralmente importante”. Ele, que participou da equipe econômica do governo que instituiu o Plano Real, afirma que “o Brasil tem um governo inchado” e “orçamento apropriado por interesses específicos”.
Em entrevista exclusiva à revista Política Democrática online de agosto (46ª edição), Bacha ressalta a sustentabilidade e o desenvolvimento do país com equilíbrio ambiental. “Temos que pensar em uma alternativa, e a alternativa é a floresta”, afirma ele, que é ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Autor do livro No País dos Contrastes: Memórias da Infância ao Plano Real, em que revisita a trajetória acadêmica e profissional que o levou ao mais bem-sucedido projeto de estabilização econômica do Brasil, o economista critica o governo Bolsonaro. “Com as suas ameaças institucionais, faz com que o câmbio se deteriore e provoca uma inflação adicional àquela que o resto do mundo experimenta em face das mesmas circunstâncias”, analisa.
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Bacha diz ter assinado a carta em defesa da democracia organizada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), que ultrapassou um milhão de assinaturas. “Estamos todos dispostos a não somente assinar o manifesto, mas a ir para a rua em defesa das instituições, da democracia e, principalmente, dos órgãos superiores de Justiça, como o Tribunal Superior Eleitoral”, destaca. A seguir, confira os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática (RPD): O país tem hoje déficit fiscal calculado pela Instituição Fiscal Independente (IFI) de, aproximadamente, R$ 200 bilhões e sofre deterioração cada vez maior no ambiente institucional que deve tratar dessa questão. No campo da política há, também, deterioração do tratamento dessa matéria no Congresso. O senhor acredita que teremos ambiente institucional para colocar este país nos trilhos?
Edmar Bacha (EB): Acredito que sim. Obviamente, sem boas instituições, não se vai a lugar nenhum, mas também acredito, inclusive, por experiência própria, na questão da liderança. Veja a importância que teve a liderança do Fernando Henrique Cardoso para a execução do Plano Real. Com toda a sapiência que os economistas pudessem ter, se não fosse a liderança do Fernando Henrique, não haveria plano Real. Todos nós da equipe estávamos muito relutantes naquelas condições políticas e governamentais tão precárias daquele período, logo após o impeachment de Fernando Collor. Itamar [Franco] entrou. Em sete meses, ele já tinha tido três ministros da Fazenda. O apoio no Congresso era dúbio, e fazer um plano daquela envergadura, com condições institucionais tão ruins, somente funcionou porque havia Fernando Henrique, com aquela capacidade enorme de dialogar, o enorme respeito que ele tinha no Congresso, junto ao presidente da República também, e a liderança que ele exercia sobre a equipe. Depende muito da qualidade da liderança que vamos eleger este ano.
Veja, abaixo, fotos do entrevistado:
RPD: O senhor está otimista ou pessimista quanto à possibilidade de conseguirmos enfrentar definitivamente essa eterna questão fiscal no nosso país?
EB: Estou totalmente integrado na campanha da Simone [Tebet]. Se Simone for eleita, não tenho nenhuma dúvida, dada a qualidade dela e a qualidade da equipe que ela vai levar, que conseguiremos lidar com a situação, inclusive, porque há quadros políticos também de muito boa qualidade, que sabem lidar com o Congresso. Então, depende. Com os dois que estão na liderança das pesquisas, não sei, não.
RPD: O senhor acha, então, que esse rombo de R$ 200 bilhões é difícil de combater?
EB: Não tenho nenhuma dúvida. Se o atual presidente se reeleger, estamos mal. Mas com o Lula, também, não me animo muito, não, dado o que a Dilma fez em termos de descontrole fiscal.
RPD: Como o senhor acha possível conciliar a responsabilidade fiscal com a necessidade de responsabilidade social? Furamos ou não o teto? Como atingir a melhoria da distribuição de renda, hoje o pior problema do Brasil?
EB: Ao lado da questão social, que nos persegue desde a colônia, temos a questão de um governo inchado, que absorve mais de um terço da renda nacional e não entrega serviços. Não entrega serviços por quê? O orçamento está apropriado por interesses específicos. Por exemplo, vê lá os 4,5% do PIB que vão para incentivos fiscais. Rico não paga imposto de renda. A classe média alta está toda pejotizada. Então, temos, realmente, um problema muito sério. Já gastamos demais, gastamos mal demais, e tem essa questão de como fazer caber benefício social para valer no orçamento. A resposta óbvia é: vamos substituir o gasto que está malfeito por um gasto que seja bem feito. Há quem fale: "mas isso está muito difícil, politicamente impossível fazer isso, fazer aquilo. Imagina, se você vai mexer com esse ou aquele, não vai conseguir”. Teria que aumentar imposto, mas o imposto em geral já está muito elevado. Então, como é que faz? Fura o teto? O problema não é tanto furar o teto, mas voltar com o problema da dívida, para, lá na frente, ter inflação. E aí não resolveu nada. Tenta resolver o problema do pobre agora, furando o teto, e deixa de resolver porque aumenta a inflação lá na frente. A solução é ter uma movimentação política forte. Precisamos mobilizar a população para entender o quanto que o orçamento está apropriado por interesses específicos que não são do interesse da população em geral e como é possível – alterando as prioridades no gasto do governo e melhorando a qualidade da receita, seja com uma reforma simplificadora dos impostos indiretos, seja com uma reforma com progressividade do imposto de renda – resolver essa situação de maneira estruturalmente melhor, em vez de ficar discutindo se fura teto ou não fura teto, que é uma maneira errada de colocar o problema. Temos que entender o que é a substância da questão. O teto é apenas um instrumento para tentar forçar uma solução positiva. Se não está funcionando, vamos pensar se há algo melhor que funcione, mas tendo que levar em conta essa questão: o Brasil, além de ter um governo inchado, grande, também tem uma dívida interna enorme para um país de nossa renda. A última coisa que a gente quer é virar Argentina. Então, está difícil, precisa de muita liderança, muita qualidade política, além de qualidade na análise econômica.
RPD: Hoje, com a crise climática e a falta de energia no mundo, especialmente na Europa, a gente vê as vantagens competitivas do Brasil, um país riquíssimo em água, em qualidade de solo, ainda com uma vegetação bastante grande, e que começa, cada vez mais, a fazer contas mostrando que, se simplesmente reflorestar a área degradada e usar isso para produzir hidrogênio verde, o país será um dos principais exportadores do mundo. Essa mudança é possível no Brasil nos próximos anos, dando prioridade para a economia verde, com a qual, além de renda de exportação e de abastecimento de produtos competitivos no mercado interno, haveria também possibilidade de geração de empregos mais qualificados. Gostaria que o senhor comentasse esse tema.
EB: Integralmente de acordo. Nós estamos falando da Amazônia, não? Porque não é só a questão das vantagens do reflorestamento em si, é também a questão dos créditos de carbono que isso pode gerar para o país. Temos o compromisso de zerar a emissão em 2050 para o grosso das atividades econômicas no mundo. Isso só vai ser possível não diretamente, mas por meio da compra de créditos. E quem pode oferecer esses créditos? Somos nós, preservando e reflorestando a Amazônia. Então, tem esse ganho adicional, e podemos pensar que é algo muito importante, em uma estratégia alternativa de desenvolvimento da Amazônia, que não envolva a maluquice de tentar substituir regionalmente importações de bens industrializados. A gente fez uma Zona Franca, que, em vez de exportar, serve para substituir importação. São Paulo manda as peças, eles montam a bicicleta [na Zona Franca] e mandam de volta para São Paulo. Isso é uma coisa louca. E com o custo que isso implica para o país em termos de subsídios fiscais, temos que pensar em uma alternativa, e a alternativa é a floresta. É nessa direção que temos que trabalhar.
RPD: O Brasil, aproximadamente de cinco em cinco anos, apresenta surtos inflacionários que colocam o Banco Central em uma sinuca de bico. Tivemos isso, recentemente, no governo Dilma, na transição do governo Fernando Henrique para o governo Lula e agora, de novo, vemos a inflação batendo na porta. Quais são as reformas necessárias que o Brasil precisa enfrentar para resolver de vez esse problema da inflação, visto que fizemos a reforma monetária no Plano Real, fizemos um conjunto de reformas de saneamento do sistema financeiro nos anos 90 e, mais recentemente, de forma até atrasada em relação ao mundo, demos a autonomia de que o Banco Central necessitava para poder perseguir a meta de inflação, e não conseguimos resolver o problema da inflação? O que falta?
EB: É uma pergunta difícil. Nós nunca mais voltaremos ao regime que tínhamos antes do Plano Real. E por que não? Porque os políticos aprenderam a lição. É uma lição que eles aprenderam, na verdade, não com o Real, mas com o Cruzado, porque, na ditadura, política de contenção da inflação era política de arrocho salarial. Então, a política de controle da inflação, na ditadura, tinha um mau nome, porque queriam apertar o torniquete monetário, segurar a variação de salários, e isso contribuía tanto para desemprego quanto para piora da distribuição de renda. Com certeza, políticas anti-inflacionárias eram impopulares. Agora, no Plano Cruzado, com aquela maluquice que foi o Plano Cruzado, os políticos aprenderam: "Cara, quando a gente para a inflação, a gente se reelege". Eles viram que tinha um jeito de parar a inflação que não era impopular; ao contrário, era muito popular. E aí, no Plano Real, quando a gente fez a coisa certa, de novo os políticos comprovaram: "Cara, a gente para a inflação, a gente se elege, se reelege até quatro anos depois que parou a inflação". Então, essa percepção de que o controle da inflação é eleitoralmente importante é uma lição que os políticos aprenderam. Tanto é assim que, quando a Dilma deixou chegar nos 10%, tiraram ela do poder. Agora, com a inflação de novo acima de 10%, olha o que o incumbente atual está sofrendo nas pesquisas eleitorais. E fazendo essas maluquices, a PEC “kamikaze”, para reduzir temporariamente a inflação agora, para aumentar no ano que vem. Imagina, em 1964, não havia Banco Central, era o Banco do Brasil, e lembro que, quando criaram o Banco Central, o Roberto Campos queria que fosse independente, um daqueles generais-presidente falou, quando contaram para ele: "Mas tem um Banco Central independente, general!". Ele disse: "Presidente aqui sou eu". E demitiu o Dênio Nogueira, que foi o primeiro presidente do Banco Central do Brasil. A gente melhorou muito desde então. Imagina se o PT apoiaria a independência do Banco Central em outros tempos. Há um respeito que é dado por essa consciência de que, se você mexer, se você brincar muito e deixar a inflação subir, você está fora do governo. Por isso, acho, pelo menos esse problema da hiperinflação, nós não vamos mais ter. Agora, tem o problema de que seguimos com uma alta inflação. No Brasil, hoje, estamos com 12% de inflação, os Estados Unidos estão com 9%. O que são os 3% adicionais? O nome é Bolsonaro, são as maluquices dele que, com as suas ameaças institucionais, faz com que o câmbio se deteriore e provoca uma inflação adicional àquela que o resto do mundo experimenta em face das mesmas circunstâncias. Mas o Banco Central brasileiro não está fora da curva do jeito que o banco americano está, eles vão ter que subir muito os juros lá. O desemprego lá está em 3,5%, a pressão inflacionária continua muito forte, e eles vão ter que subir mais os juros. Nós, aqui, não. O Banco Central já pode parar onde está. Se não fossem as maluquices do Bolsonaro, a gente já teria resolvido o problema, com uma trajetória de convergência muito mais forte do que aquela que podemos projetar hoje. Enfim, há também problemas técnicos e essas questões que você menciona são relevantes na discussão econômica.
RPD: Os bancos centrais, de forma geral, não só no Brasil, nos últimos 30 anos, como em boa parte dos países, passaram a buscar metas de inflação, a atuar como 'suavizadores' do ciclo econômico, a fazer política monetária, em grande medida, olhando para preço dos ativos nos mercados financeiros e de capital. São também os gestores da dívida pública dos governos, das dívidas soberanas e têm, talvez, poucos instrumentos. Os bancos centrais não estão assumindo responsabilidades demais com instrumentos de menos? O que o senhor pensa a respeito disso?
EB: Essa questão de ter instrumentos de menos, eu não sei, porque, em última análise, o pessoal que está no Banco Central não foi eleito. Estão lá para fazer um trabalho técnico. Quantos instrumentos você quer colocar na mão de quem não foi eleito? Acho que precisa ter cuidado. Nós, aqui no Brasil, temos o Conselho Monetário Nacional, o popular Cemenê, que é uma coisa boa. Podemos até discutir seu formato, suas funções, mas os ministros que o compõem respondem diretamente ao presidente da República e não têm um mandato fixo como o presidente do Banco Central. Então, são representantes políticos que estão ali respondendo à condução política. A fixação das metas, por exemplo, é muito bom que seja o Cemenê que faça e não o Banco Central. O Banco Central tem que reportar ao Cemenê quando não cumpre as metas. Esse arranjo está legal. No Brasil, o Banco Central é responsável pelas reservas internacionais também. Está funcionando, mas teve uma época que se queria vender reserva, e aí a questão é saber quem é o responsável pela reserva. Porque as reservas são do Tesouro, mas quem determina a política relacionada a elas é o Banco Central. São questões importantes, há muito tempo discutidas. Nos Estados Unidos, essa questão está de novo em debate, o pessoal achando que o Banco Central lá está sendo muito subserviente ao Executivo, com toda a independência formal que tem. Essa questão vai ficar conosco, não vai embora, e temos que ir aperfeiçoando, pouco a pouco, tateando para ver as melhores soluções, consistentes com a estabilidade de preços e a retomada do crescimento. Agora, é verdade, se o Banco Central estiver preocupado com a economia verde, com distribuição de renda, nós vamos entrar por um caminho complicado. O Banco Central, desde a presidência de Ilan Goldfajn, também está fazendo um trabalho maravilhoso, que é de regulação financeira progressista. O Pix é uma invenção extraordinária e de grande potencial para trazer a população para o sistema bancário e desfrutar dele, parar de pagar taxas sobre serviços que não têm custo, porque o Banco Central fez a centralização contra os interesses dos bancos. O Banco Central está nessa questão da liberdade bancária, de você ser o possuidor do seu próprio nível de crédito, que você possa carregar seu crédito de um banco para outro. Nós sabemos que temos aqui um sistema bancário oligopolizado. O Banco Central está dando muita corda para as fintechs para reduzir o poder oligopolístico dos bancos. Tudo isso, esse papel de regulação bancária progressista, é algo que se agrega às funções do Banco Central, mas é algo que precisava e precisa ser agregado.
RPD: Como é que o Brasil pode e que tipos de políticas seriam mais efetivas para sair dessa situação de produtividade estagnada, impedindo nossa saída da armadilha da renda média?
EB: Essa é uma questão central do país hoje. Diria o seguinte, para simplificar: produtividade depende de quatro coisas. A primeira é tecnologia. Você tem que ter acesso à tecnologia mais moderna que existe no mundo, porque você tem que trabalhar na fronteira de produção e com os insumos mais modernos que essa tecnologia oferece. A segunda é economia de escala. Você só consegue baratear produtos e aumentar a produtividade se tiver escala de produção. O terceiro ponto é especialização. Se você é um supermercado, tudo bem, mas, se for um supermercado produzindo porção de pecinhas, uma porção de coisinhas diferentes, não. Você tem que se especializar, isso é Adam Smith e David Ricardo. E o quarto ponto é a concorrência. Isso o Schumpeter já nos dizia. O grande propulsor do crescimento é a inovação, e inovação é concorrência, é você estar permanentemente desafiado em relação aos seus concorrentes, efetivos ou potenciais, para sempre estar aprimorando seu desempenho. Como é que você consegue essas quatro coisas? Com abertura. Tem que participar do comércio internacional. Você não pode ficar como a nossa indústria, olhando para o próprio umbigo e desfrutando de uma situação oligopolística de exploração do mercado interno, que é um mercado relativamente grande, mas, hoje em dia, qual é o PIB brasileiro? 2% do PIB mundial. Ou seja, 98% do mercado mundial está do lado de fora. Então, essa questão é fundamental. O que falei antes, dos interesses que se refletem no orçamento, aqui são os interesses que se refletem na política econômica em geral, que é esse fechamento ao comércio exterior. Porque os interesses dessas entidades que se beneficiam da proteção desbeneficiam o país, impedem o crescimento da produtividade e são muito fortes.
RPD: Uma questão difícil de se encarar, realmente, porque essa situação envolve o que vemos desde o fim da ditadura, que continua presente, os interesses particularistas e corporativos, não?
EB: Sim, mas penso no Plano Real, sabe? Por que deu certo apesar dos interesses a enfrentar? Porque havia boas ideias e muita experiência. Vou marcar aqui o livro do Mario Henrique Simonsen, com o título Inflação: gradualismo X tratamento de choque. Foi um marco para a mudança do pensamento econômico a respeito de como lidar com a inflação no país. Foi o primeiro. Depois, nos reuníamos lá na PUC, desde 1980, pensando sobre o problema. Então, tinha muito pensamento próprio, fundamentado, sobre a questão. Isso estava lá. A outra questão era experiência, porque, quando fizemos o Plano Cruzado, tínhamos experiência nenhuma, éramos um bando de recém-saídos da ditadura, achando que tínhamos que nos livrar do arrocho salarial, que congelamento estava tudo bem, enfim, que não precisava equilibrar o orçamento, que política monetária podia ser passiva. A gente não tinha essa experiência, e foi dura aquela experiência, aqueles oito anos, desde o Plano Cruzado, até que conseguimos fazer as coisas certas, passando por aquela maluquice que foi o Plano Collor.
RPD: Diante das ameaças às eleições, o senhor acredita que as reações da sociedade, que se revelam em manifestos da Faculdade de Direito da USP, da Fiesp e de entidades da sociedade civil, de que o senhor tem participado, seriam bastantes para dar um freio de arrumação nessas ameaças e conduzir o processo até outubro para que as eleições sejam realizadas de forma regular?
EB: O preço da liberdade é a eterna vigilância e, realmente, acho que a liberdade agora está sob ameaça. Nesse sentido, não basta apenas a vigilância. Eu assinei o manifesto, foi uma coisa maravilhosa, e ultrapassou um milhão de assinaturas. Estamos todos dispostos a não somente assinar o manifesto, mas a ir para a rua em defesa das instituições, da democracia e, principalmente, dos órgãos superiores de Justiça, como o Tribunal Superior Eleitoral. É isso que precisamos fazer. É uma coisa importante, que a sociedade civil se manifeste dessa forma que vem se manifestando, o que muito me alegra, mas também sabendo que, quando você olha a situação agora, não se compara com 1964, sabe? Em 1964, os Estados Unidos apoiavam o golpe, na verdade, estavam por trás do golpe, e agora já declararam que não apoiam golpe. Não vai ter golpe principalmente porque a população vai ficar contra. Então, isso vai fazer essa gente pensar duas vezes.
Sobre o entrevistado
Edmar Bacha é sócio fundador e membro do conselho diretor do Instituto de Estudos em Política Econômica/Casa das Garças. Membro das Academias Brasileiras de Ciências e de Letras. Em 1993/94, foi membro da equipe econômica do governo, responsável pelo Plano Real. Foi também presidente do BNDES, do IBGE e da Anbid (atual Anbima). Entre 1996 e 2010, foi consultor sênior do Banco Itaú BBA. Foi professor de economia na PUC-Rio e em outras universidades brasileiras e americanas. Tem diversos livros e artigos publicados sobre economia brasileira e latino-americana e sobre a economia internacional. É bacharel em economia pela UFMG e Ph.D. em economia pela Universidade de Yale, EUA.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto de 2022 (46ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
Equipe de entrevista
André Eduardo é consultor legislativo do Senado Federal, na área de economia. Mestre em economia pela Universidade de Brasília (UnB).
Arlindo Fernandes de Oliveira é consultor legislativo do Senado Federal e especialista em direito constitucional e eleitoral.
Benito Salomão é economista chefe Gladius Research e doutor em economia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Benjamin Sicsú é presidente do Conselho de Administração da Fundação Amazônia Sustentável e vice-presidente de novos negócios da Samsung para a América Latina, por 17 anos.
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Ricardo José de Azevedo Marinho*, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)
O que pensam os oficiais do Exército Brasileiro1 é um livro que aparece no percurso da pandemia do coronavírus e tem o propósito de discernir o principal marco da percepção dos oficiais do Exército Brasileiro (EB) em face da instituição em que atuam e da nossa democracia.
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Fruto de uma pesquisa, patrocinada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no âmbito de convênio celebrado entre o Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e o Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias (CEP-FDC), da Diretoria de Educação Técnica Militar (DETMil) do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx), na linha do Edital do Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Defesa Nacional (Pró-Defesa) de 2008, tratou-se de um survey em âmbito nacional, que envolveu questionário a 20.435 oficiais da ativa, o que possibilitou a construção de um banco de dados contendo os retornos de 2.423 respondentes.
Este livro oferece instigante interpretação sobre o EB, colocando seu foco nos oficiais. Trata-se de um retrato deles, obtido a partir do uso de potente zoom. O alcance destas lentes não deixa de lado sequer as forças que impelem o EB a tentar redefinir, tanto seu formato, como suas funções, sobretudo, após a Constituição de 1988. Assim, ainda que se possa sustentar que se trata de um "retardatário", quando comparado com outras instituições, também o EB se vê convidado a adaptar-se a um novo contexto democrático.
Duas ordens de questões são analisadas: de um lado, a questão institucional propriamente dita e, de outro, a característica das demandas que chegam até eles. E o resultado encontrado foi: um oficialato compassivo na avaliação do sistema de educação continuada que caracteriza sua formação; o deslocamento da ideia de vocação para a carreira militar em favor da ideia de sua estabilidade; a ênfase na capacitação profissional, com sua exigência correlata por melhor formação; e a demanda por acesso a vantagens conferidas a outras carreiras de Estado, dimensões que apontam para a ideia de profissão.
Veja, a seguir, galeria de fotos:
O novo formato institucional assumido pelo EB é, como sustentam as autoras e o autor, menos o efeito de uma política desejada por estes do que uma consequência de um complexo processo de transição para a democracia.
Além do texto coletivo que dá corpo ao livro, ele conta ainda com um prefácio do professor Francisco Fonseca – Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP) –, uma apresentação do nosso imortal da Academia Brasileira de Letras José Murilo de Carvalho e posfácio do Eduardo Raposo, onde fazem a ponte da publicação com o contexto em que a vê surgir, aludindo que o 38º presidente do Brasil tenta usar os militares para forçar a barra na disputa política.
Isso não retira a importância do EB na balança política de 2022, ainda que seus oficiais não estejam majoritariamente dispostos a apoiar políticas momentâneas que alterem o curso de suas preferências, como revela a pesquisa em tela.
Importa reter que, quando entendeu que a pandemia não cabia na securitização e nas metáforas dos conflitos armados, o Ministério da Defesa (MD) oportunizou, para os profissionais civis e militares da área de saúde, treinamento para mitigar o coronavírus no Brasil. A capacitação dos profissionais vem sendo realizada em unidades de saúde militares, a exemplo do Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, e da Escola de Saúde do Exército (EsSEx), o estabelecimento de ensino militar responsável pela seleção e formação do Quadro do Serviço de Saúde do EB, no Rio de Janeiro.
Por tudo isso, O que pensam os oficiais do Exército Brasileiro realiza a tarefa de mostrar quem são eles, e o faz com maestria, traçando o perfil demográfico e social desses oficiais, sua trajetória profissional e suas atitudes em face de questões atinentes ao seu exercício profissional, ao sistema político e à sociedade. O livro é mais do que um simples retrato, sem consequências. É um retrato que, ao conferir estatura a esse grupo profissional, fornece elementos para a discussão tanto de questões relativas à própria corporação como dos desafios de uma democracia em busca de equalizar sua jornada.
1 Raposo, Eduardo, Carvalho, Maria Alice Rezende de e Schaffel, Sarita. O que pensam os oficiais do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio. São Paulo: Hucitec Editora, 2022. 152 p.
Sobre o autor
*Ricardo José de Azevedo Marinho é professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Nas entrelinhas: PEC da eleição é um retrocesso civilizatório
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
Para o historiador Niall Ferguson, autor de Civilização, Ocidente versus Oriente (Editora Crítica), a chave do sucesso do modelo anglo-americano de sociedade está sintetizada num discurso de Winston Churchill, de 1938, no qual ele disse que a diferença entre Ocidente e Oriente estava baseada na opinião dos civis. “Significa que a violência, o governo de guerreiros e líderes despóticos, as situações de campo de concentração e guerra, de baderna e tirania, dão lugar a parlamentos, onde são criadas as leis, e a cortes de Justiça independente, onde essas leis são mantidas por longos períodos.”
“Isso é Civilização — e em seu solo crescem continuamente a liberdade, o conforto e a cultura”, complementou, para arrematar: “Quando a civilização reina em um país, uma vida mais ampla e menos penosa é concedida às massas. As tradições do passado são valorizadas e a herança deixada a nós por homens sábios e valentes se torna um estado rico a ser desfrutado e usado por todos. O princípio central da Civilização é a subordinação da classe dominante aos costumes do povo e à sua vontade, tal como expresso na Constituição (…)”.
São considerações de ordem conservadora e inspiradas no esplendor do Império Britânico, de parte de um político aristocrático que já assistira ao colapso do colonialismo, a partir da I Guerra Mundial, e estava diante do ameaçador domínio continental da Alemanha nazista. Ferguson cita o primeiro-ministro britânico que confrontou Hitler no capítulo de seu livro que trata da questão da propriedade. O historiador busca uma explicação para o fato de que a visão de Churchill não criou as mesmas raízes ao sul do Rio Grande, ou seja, na América Ibérica, uma história que começa com dois navios: um em 1532, com 200 guerreiros que desembarcaram ao norte do Equador para conquistar o Império Inca; e outro, 138 anos depois, numa ilha da Carolina do Sul, desembarcando servos por contratos em busca de um mundo melhor a partir do próprio trabalho.
Hoje, a civilização anglo-americana, hegemônica no Ocidente, está sendo reafirmada na Guerra da Ucrânia, na qual os Estados Unidos e a Inglaterra, aliados ao primeiro ministro Volodymir Zelensky, por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mesmo estando fora da União Europeia, dão as cartas no Velho Continente. Desbancam a Alemanha e a França, encurralam a Rússia contra os Urais e constroem novos obstáculos à Nova Rota da Seda da China. No seu livro, otimista, para Ferguson, o Brasil seria o país da América Latina que mais estaria reduzindo sua distância em relação aos padrões anglo-americanos. Será?
Enquanto o Chile acaba de concluir uma nova Constituição, que vai substituir aquela que o país herdou do ditador Augusto Pinochet, mas ainda precisa ser referenciada por um plebiscito, o Congresso brasileiro escala uma bagunça institucional. Uma emenda à Constituição já aprovada pelo Senado, o nosso templo da conciliação, com um único voto contrário, do senador José Serra (PSDB-SP), agora engorda os seus jabutis na Câmara, que serão embarcados na legislação tributária, no pacto federativo, na política de preços da Petrobras, e implodirão o equilíbrio fiscal, a estabilidade da moeda e a paridade de armas da legislação eleitoral.
PEC da eleição
O relator na Câmara da Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que concede uma série de benefícios sociais em ano eleitoral, deputado Danilo Fortes (União-CE), manterá o texto aprovado no Senado, com o propósito de agilizar sua aprovação. A três meses das eleições, a PEC tem por objetivo garantir a recondução do presidente Jair Bolsonaro, com medidas de caráter populista, que não poderiam ser aprovadas a menos de 100 dias das eleições. Para isso, porém, deve recorrer à legislação do estado de emergência, a pretextos da guerra da Ucrânia, a nova desculpa para os fracassos governamentais.
Sim, talvez a eleição presidencial esteja sendo decidida nesta semana, com as seguintes medidas: ampliação do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 mensais, com inclusão de mais 1,6 milhão de novas famílias no programa (R$ 26 bilhões); a criação de um voucher de R$ 1 mil para caminhoneiros (R$ 5,4 bilhões); ampliação do vale-gás de R$ 53 para R$ 112,60 (R$ 1,05 bilhão); compensação aos estados para transporte público de idosos (R$ 2,5 bilhões); benefícios para taxistas (R$ 2 bilhões); repasse de R$ 500 milhões ao programa Alimenta Brasil, para compra de alimentos produzidos por agricultores familiares e distribuição a famílias em insegurança alimentar; e repasse de até R$ 3,8 bilhões, por meio de créditos tributários, para a manutenção da competitividade dos produtores do etanol sobre a gasolina.
Há um estranho e perverso pacto entre Bolsonaro, o Centrão e a oposição. O Congresso contrapõe aos arroubos autoritários do presidente da República um regime de partidocracia, institucionalmente macabro, que obstrui a renovação política. No curto prazo, será grande estelionato eleitoral: as medidas vigorarão até 31 de dezembro. Depois, quem for o eleito, decidirá como pôr a economia de volta aos trilhos da responsabilidade fiscal e do crescimento sustentável.
Para o Palácio do Planalto e seus aliados governistas, a reeleição de Bolsonaro depende do sucesso dessas medidas. Favorito nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aposta no seu fracasso, mas as apoia. Teme repetir o erro do Plano Real, contra o qual se opôs no governo Itamar Franco, em 1994, enquanto Fernando Henrique Cardoso pavimentava seu acesso ao Palácio do Planalto com a nova moeda. No longo prazo, o retrocesso da nossa ordem econômica será uma tragédia anunciada. A estabilidade institucional das economias é uma das chaves do desenvolvimento e do processo civilizatório no mundo globalizado.
Nas entrelinhas: Lembrai-vos de 1964! Não custa nada
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
O título da coluna é um trocadilho com o título do livro de Ferdinando Carvalho sobre a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicado pela Biblioteca do Exército, em 1981. Antes, o general havia escrito duas obras sobre o mesmo tema, porém ficcionais: Os Sete Matizes do Rosa e Os Sete Matizes do Vermelho, ambos em 1977.
Àquela altura, a luta armada contra o regime militar havia sido dizimada, com seus lideres mortos, presos ou no exílio. O PCB estava quase completamente desbaratado e os remanescentes de seu Comitê Central, entre os quais Luiz Carlos Prestes e Giocondo Dias, viviam no exílio. Embora defendesse a via eleitoral como forma de luta principal pela redemocratização, um terço dos seus dirigentes fora assassinado e apenas meia dúzia permanecera no país, na mais profunda clandestinidade.
Entretanto, o que estava em curso era a abertura política, alargada e acelerada pelas sucessivas derrotas eleitorais do regime, cujo projeto de institucionalização como “democracia relativa” já havia fracassado. Batido nas eleições de 1974 e 1978, seria derrotado novamente em 1982, depois da anistia política que trouxera de volta os exilados e às ruas os prisioneiros políticos.
O general João Batista Figueiredo, cada vez mais enfraquecido na Presidência, era desafiado pelos porões do regime, em atentados terroristas cujo desfecho foi a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento e feriu um capitão do Exército ao seu lado. O artefato seria detonado no local onde se realizava um grande show artístico comemorativo do 1º de Maio, com milhares de estudantes e sindicalistas.
Ferdinando de Carvalho fez a cabeça de muitos militares hoje reformados e alguns jovens cadetes e oficiais que voltariam ao poder com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL) — entre eles o ex-ajudante de ordens do general Silvio Frota, o hoje general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência.
A matéria prima dos livros é o Inquérito Policial Militar (IPM) nº 7.098 (1964-1966), responsável por apurar as atividades do PCB no território nacional, que coordenou. Muito do que os militares e a direita ideológica brasileira, hoje, falam sobre a esquerda no Brasil são uma reprodução de suas teses, lançadas no começo dos anos 1980 como uma tentativa desesperada de impedir a redemocratização do país.
Memória
Domingo, recebi uma ligação do ex-deputado Marcelo Cerqueira, um dos líderes da campanha pela anistia, preocupado com a conjuntura política: “Estou me sentindo em 1963”. Diretor da UNE à época, Marcelo viveu intensamente o processo político que antecedeu o golpe militar de 1964. Emoldurada pela guerra fria, a vitória de João Goulart no plebiscito para restabelecer o presidencialismo derivou para a radicalização, cujo desfecho foi a destituição do presidente da República.
O comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, no qual Jango anunciou a decretação das reformas de base — que o Congresso havia rejeitado —, serviu apenas para acirrar ainda mais a crise, que desaguaria na sua destituição, em 31 de março daquele ano, com três navios da Marinha norte-americana ao largo do Espírito Santo, prontos para intervir.
Marcelo e o então presidente da UNE, José Serra, hoje senador do PSDB por São Paulo, estavam entre aqueles que tentaram jogar água fria na fogueira, como San Thiago Dantas. Os líderes estudantis chegaram a procurar o marechal Castelo Branco, que até então dizia defender a legalidade, nos esforços de apaziguamento. Mas a rota de colisão entre os militares e Jango já era irreversível. E a maioria da opinião pública acreditava que o país caminhava para o comunismo, o que não era verdade.
O problema era outro. O principal líder do PTB, o partido de Jango, o ex-governador gaúcho e deputado federal Leonel Brizola, queria ser candidato a presidente nas eleições convocadas para 1965, mas era inelegível por ser cunhado do presidente da República. Os candidatos favoritos eram o ex-presidente Juscelino Kubitschek (PSD) e o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN). JK era o candidato da conciliação, Lacerda o do confronto.
O líder comunista Luiz Carlos Prestes articulava a reeleição de Jango, em aliança com o PTB, o que provocou a ruptura da aliança com o PSD, que levara Juscelino ao poder em 1955.
Jango era um estancieiro gaúcho, de viés populista, formado no trabalhismo de Alberto Pasqualini e San Thiago Dantas. Não tinha nada de comunista. Se decidisse apoiar JK, mantendo a aliança de 1955, muito provavelmente não teria ocorrido o golpe militar. Considerado imbatível, Juscelino era visto como um retrocesso pela esquerda, o que foi um grave equívoco. O retrocesso era o golpe militar.
Com sinal trocado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas para a Presidência, também é visto como um retrocesso por amplos setores da sociedade. Bolsonaro tenta se aproveitar da situação para se manter no poder, mesmo que perca a reeleição, com uma narrativa que nos remete ao ambiente pré-golpe militar de 1964, na percepção daqueles que viveram aqueles momentos. Entretanto, os tempos são outros.
Merval Pereira: Bolsonaro, refém do Congresso
Com as emendas impositivas, inclusive as de relator, o Congresso faz uma espécie de autogestão
Merval Pereira / O Globo
O presidente Bolsonaro chegou a uma encruzilhada na sua relação com a base parlamentar, em especial com os partidos do Centrão, mas também com o PSD de Gilberto Kassab, que trabalha para montar um partido tão forte que seja impossível ignorá-lo na composição de um futuro governo, que, ele garante, não será de Bolsonaro.
Um exemplo recente do desentendimento com o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, ainda está na retórica, mas pode ser pólvora no relacionamento. Lira foi a um seminário em Lisboa organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), idealizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, e aderiu à tese do semipresidencialismo, que Gilmar defende há muito tempo.
Nesse tipo de governo, o presidente da República, eleito pelo voto direto, compartilha o governo com o primeiro-ministro, eleito pelo Congresso. Disse Lira numa palestra: “A previsão de uma dupla responsabilidade do governo, ou de uma responsabilidade compartilhada do governo, que responderia tanto ao presidente da República quanto ao Parlamento, pode ser a engrenagem institucional que tanto nos faz falta nos momentos de crises políticas mais agudas”.
Na primeira afirmativa, não houve a definição de um marco temporal para a eventual adoção do novo sistema de governo, e Bolsonaro sentiu cheiro de queimado. Lira, mais adiante, contemporizou, explicando que, se aprovado, o semipresidencialismo só poderia entrar em vigor na eleição presidencial de 2026. Nem precisava, pois já passou o prazo de um ano antes da eleição para mudar regras eleitorais.
Mas Bolsonaro não engoliu e até hoje reclama. Disse a seus seguidores ontem: “É uma coisa tão idiota que não dá nem para discutir”. Mas estava tão irritado com a ideia, mesmo para seu sucessor, que a comparou a “jogar fora das quatro linhas” e ameaçou combater os defensores da ideia, “o mesmo grupo de interesseiros de sempre”, na mesma medida, isto é, fora da Constituição.
O episódio, mesmo sem consequências concretas, demonstra que o presidente é refém do Centrão, em especial do presidente da Câmara, Arthur Lira, que faz o que quer. As críticas que Bolsonaro recebe são de outras vias — a sociedade protesta, a imprensa denuncia —, mas os políticos estão todos alinhados. Com o Centrão majoritário, Bolsonaro não tem lugar de fala, tem de aceitar o que o grupo quer e recebe favores quando os interesses coincidem.
O Congresso está muito independente do governo, não no sentido de defender teses e de se posicionar autonomamente em relação aos grandes temas nacionais, mas no de ter decisões próprias em vários assuntos. A situação piorou com a atuação mais destacada do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, potencial candidato a presidente do PSD de Kassab.
Agora, Bolsonaro nomeou um ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Raimundo Carreiro, para a embaixada em Portugal, abrindo no tribunal uma vaga para a indicação do Senado. Bolsonaro quer um aliado a mais no TCU e pretende nomear seu líder do governo, Fernando Bezerra. Mas o presidente do Senado tem outro candidato, o senador mineiro do PSD Antonio Anastasia. A senadora Kátia Abreu, do PP, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, também está na disputa, mas Bolsonaro não quer nenhum dos dois.
O presidente, no entanto, não controla esse processo, assim como não consegue obrigar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) a sabatinar André Mendonça, seu indicado para o STF. Pacheco, que pressionava o presidente da CCJ, senador Davi Alcolumbre, a marcar a sabatina, agora tem uma razão também para boicotar Bolsonaro, que realmente está refém de deputados e senadores.
Sempre o governo controlou o Congresso por meio dessas verbas secretas e otras cositas más. Mas, com as emendas impositivas, inclusive as de relator, o Congresso faz uma espécie de autogestão. Mesmo que ele esteja bem posicionado nas pesquisas eleitorais, a expectativa de poder de Bolsonaro vem caindo na visão dos políticos. Por isso, a dificuldade para conseguir a décima legenda é grande. Ele faz exigências como se fosse o Bolsonaro de 2018, mas o de 2022, no momento, não está bem na foto.
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Na coluna de domingo, sobre a diversidade na Academia Brasileira de Letras, não citei um registro histórico importante: entre 2016 e 2017, a ABL teve seu segundo presidente negro, o professor e escritor Domício Proença Filho.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/refem-do-congresso.html