comunicação

Luiz Carlos Azedo: Queiroga saiu? Uma vírgula!

A última do ministro da Saúde foi retirar a CoronaVac, a vacina do Butantã, do programa de reforço da imunizaçao, a chamada terceira dose

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

A notícia de que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, havia pedido demissão foi a sensação nas redes sociais, ontem, até ser desmentida pelo próprio. Em se tratando daquela pasta, cuja atuação na pandemia de covid-19 é investigada pela CPI do Senado, tudo poderia acontecer, ainda mais uma troca de ministros, porque três já passaram pelo cargo. A notícia era uma “barriga”, ou seja, uma notícia falsa no velho jargão jornalístico, geralmente publicada de forma involuntária, ou seja, algo muito diferente de uma maldosa fake news. Se bem que não é incomum um fato como esse se confirmar somente algumas semanas depois, por puro capricho de quem demite, porque a informação “vazou”.

A história toda começou por causa de uma vírgula, na coluna publicada pelo jornalista Matheus Leitão, no site da revista Veja, intitulada “Queiroga, pede para sair”. O texto faz um balanço da atuação do ministro e conclui: “Assim como todos os ministros da Saúde que já passaram pelo governo de Jair Bolsonaro, Queiroga demonstra fraqueza e apatia no cargo. Ninguém supera os erros de Eduardo Pazuello, mas talvez seja hora de Queiroga cogitar sua saída da liderança da pasta que se tornou o foco e a responsável por administrar a crise no país nos últimos meses”.

Houve leitura apressada do texto, ignorando a pontuação, ou seja, concluíram que Queiroga havia pedido demissão, transformando o vocativo no sujeito da ação: “Queiroga pede para sair”. Quem checou com alguma fonte dadivosa, provavelmente teve a confirmação antes de publicar a notícia. Tropeçar na vírgula é um dos cavacos do ofício de jornalista, daí a antológica campanha realizada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), ao completar 100 anos:

”A vírgula pode ser uma pausa… ou não:

Não, espere.
Não espere.

Ela pode sumir com seu dinheiro:
R$ 23,4.
R$ 2,34.

Pode criar heróis:
Isso só, ele resolve!
Isso, só ele resolve!

Ela pode ser a solução:
Vamos perder, nada foi resolvido!
Vamos perder nada, foi resolvido!

A vírgula muda uma opinião:
Não queremos saber!
Não, queremos saber!

A vírgula pode condenar ou salvar:
Não tenha clemência!
Não, tenha clemência!

Uma vírgula muda tudo!
ABI: 100 anos lutando para que ninguém mude uma vírgula da sua informação.”

Mais uma dose
São funções da vírgula: (1) representar uma pausa ou uma mudança na entonação; (2) separar palavras ou orações que precisam
de destaque; (3) eliminar ambiguidades e esclarecer o conteúdo da frase. Há situações em que é imprescindível empregar a vírgula, como nas orações explicativas, e outras em que ela não deve ser usada, como nas orações restritivas. Por isso, ao anunciar o nome do pre- sidente da República, Jair Bolsonaro, usa-se vírgula; para falar do ex-presidente José Sarney, porém, não, porque outros também exerceram o cargo: Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer.

A vírgula é terminantemente proibida quando separa o sujeito do verbo e seus complementos. Quando há apenas um substantivo simples no sujeito, fica mais fácil: João saiu de casa à meia-noite. A mesma lógica se aplica ao verbo e seus complementos: João pediu a Maria que fosse visitá-lo. No caso Queiroga, realmente, a vírgula faz sentido, deve- ria pedir pra sair. Não é competente como sanitarista, está no cargo porque atende aos caprichos de Bolsonaro, um negacionista, que até hoje não se vacinou contra a covid-19 ou o fez escondido, como o general Luiz Ramos, secretário-geral da Presidência.

A última do Queiroga foi retirar a CoronaVac, a vacina do Butantã, do programa de reforço da vacina, a chamada terceira dose. Foram aplicadas, até agora, 57,4 milhões de doses dessa vacina. Os que a tomaram não terão direito ao reforço? Ontem, o The New England Journal of Medicine publicou o resultado de uma pesquisa realizada no Chile sobre a eficácia da vacina chinesa, que usa o método tradicional, mas contra a qual Bolsonaro até hoje faz campanha.

Realizada de 2 de fevereiro a 1o de maio de 2021, alcançou 10,2 milhões de pessoas vacinadas acima de 16 anos, com uma média de 600 mil pessoas/dia. Entre as que foram totalmente imunizadas, a eficácia da vacina ajustada foi de 65,9% para a prevenção contra a covid-19; de 87,5% para a prevenção de hospitalização; 90,3% para a prevenção de admissão na UTI; e de 86,3% para a prevenção de morte relacionada a covid-19. “Nossos resultados sugerem que a vacina SARS-CoV-2 inativada preveniu efetivamente a covid- 19, incluindo doença grave e morte”, concluiu o relatório.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-queiroga-saiu-uma-virgula/

Cristovam Buarque: 'Educação no Brasil precisa ser prioridade'

Educacionista e professor emérito da UnB, Buarque defende que a educação deve ser o vetor do progresso nacional

João Rodrigues / Equipe FAP

A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) lançou a 57ª edição da revista Política Democrática impressa, dedicada exclusivamente à educação. Em um dos artigos, Cristovam Buarque, professor emérito da UnB e educacionista, defende a criação de um Sistema Nacional Único de Educação, investimentos na formação de professores e mais infraestrutura para as escolas públicas.

Na edição desta semana do podcast Rádio FAP, o ex-ministro da Educação, ex-senador e ex-governador do Distrito Federal fala sobre a privatização da educação brasileira e sugere políticas públicas educacionais que podem transformar o futuro do Brasil. O episódio conta com áudios da ex-deputada federal Pollyana Gama, em live da FAP, programa Roda Viva, Quebrando o Tabu, Fantástico, Folha de S.Paulo e de Mario Sergio Cortella, em entrevista disponibilizada pelo canal de Rodrigo Bin no Youtube.

Ouça o podcast:



O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.

Interação com o público
No fim do episódio, Cristovam Buarque faz um pedido especial aos ouvintes que acompanham o podcast Rádio FAP: que enviem suas opiniões sobre a entrevista. “Eu gostaria de saber o que a audiência achou dessa nossa conversa”, disse o professor emérito da UnB e educacionista.

A produção vai selecionar os melhores comentários e divulgar no início do programa da próxima semana. Para participar, basta enviar um áudio de até 30 segundos para o WhatsApp: (61) 98330-1402 (Clique no número para abrir o WhatsApp Web).

Não esqueça de dizer o seu o nome, cidade e estado. Contamos com a sua participação.

Ouça a Rádio FAP




Luiz Carlos Azedo: Onze teses negacionistas

Negacionismo utiliza preconceitos para construir teorias conspiratórias. Manipulação da informação explora a boa-fé e a ignorância

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Por definição, negacionismo é o ato de negar uma informação estabelecida em bases científicas, ou seja, amplamente estudada e comprovada. Suas características são a manipulação de informações, a utilização de falsos especialistas e as teorias conspiratórias. O negacionista assume uma postura irracional e ideológica, prefere acreditar em informações falsas e sem comprovação, despreza ciência e refuga as verdades inconvenientes. Na ciência, destacam-se o negacionismo do aquecimento global e o da esfericidade terrestre; na História, o do Holocausto. O Brasil vive uma onda negacionista, liderada pelo presidente Jair Bolsonaro e filhos.

O negacionismo utiliza os preconceitos e o senso comum para construir teorias conspiratórias. A manipulação da informação é fundamental, geralmente por falsos especialistas, que exploram a boa-fé e a ignorância. Com o advento das redes sociais, utiliza-se em larga escala das fake news, formando grandes correntes de propagação de mentiras. São teses negacionistas:

1. Gripezinha — desde o começo da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro adotou uma política negacionista em relação à gravidade da pandemia da covid-19 e defendeu a chamada “imunização de rebanho”, cuja consequência foi o descontrole sobre a propagação da doença. O número de mortos se aproxima de 600 mil.

2. Cloroquina — em vez de providenciar a imunização em massa da população, Bolsonaro defendeu o uso indiscriminado de um “coquetel” ineficaz contra a doença, formado por hidroxi- cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina, vitamina D e zinco. Uma CPI no Senado investiga a máfia que se formou no Ministério da Saúde para ganhar dinheiro sujo com a pandemia.

3. Vírus chinês — nas redes sociais, disseminou-se a tese de que o novo coronavírus, de procedência chinesa, teria sido produzido em laboratório e propagado propositalmente pela China para prejudicar a economia mundial, no contexto da guerra comercial com os Estados Unidos. A tese provocou um incidente diplomático com a China.

4. Coronavac — a eficácia da vacina produzida pelo Instituto Butantan ainda é questionada por Bolsonaro, muito embora tenha sido a principal alternativa para conter a pandemia. Nesta semana, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, ao anunciar a terceira dose das vacinas, excluiu a CoronaVac, muito embora milhões de brasileiros tenham sido imunizados pelo produto de origem chinesa.

5. Voto impresso — Bolsonaro defende o voto impresso e dissemina a tese de que a urna eletrônica não é confiável, levantando suspeitas sobre a lisura das eleições de 2022, embora nunca tenha sido comprovado um caso sequer de violação da urna eletrônica. A proposta foi rejeitada pela Câmara, por ampla maioria, além de contestada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

6. Poder moderador — o artigo 142 da Constituição de 1988 estabelece que “as Forças Armadas (…) destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Com base nesse artigo, Bolsonaro atribui aos militares o papel de Poder Moderador, que não existe na Constituição, cuja interpretação cabe ao Supremo, e não ao “comandante supremo” das Forças Armadas.

7. Amazônia — o desmatamento da Amazônia é monitorado por instituições científicas de todo o mundo, sendo um dos fatores de aquecimento global, em consequência de atividades ilegais, como grilagem de terras, queimadas, derrubada da floresta, garimpo etc. Bolsonaro defende a exploração indiscriminada da Amazônia e acusa as ONGs ambientalistas de estarem a serviço de potências estrangeiras.

8. Marxismo cultural — os artistas, os intelectuais e a cultura estão sendo perseguidos pelo governo federal, a pretexto de que seriam agentes do chamado “marxismo cultural”. O cinema, o teatro, a música, as artes plásticas e até a memória cultural, hoje, são sufocados pelos dirigentes dos órgãos culturais.

9. Racismo estrutural — a Fundação Palmares, criada para preservar e valorizar a cultura afrobrasileira e promover políticas afirmativas de combate ao racismo, nega o racismo estrutural. Tornou-se um órgão que não reconhece as comunidades de origem quilombola e combate o movimento negro, cujos líderes históricos renega, como Zumbi dos Palmares.

10. Terras indígenas — o governo promove o desmonte da política indigenista, reconhecida internacionalmente e responsável pela sobrevivência da diversidade étnica das comunidades indígenas. A tese básica é de que há muita terra para poucos índios e de que a cultura indígena não tem nenhum valor civilizatório.

11. Diversidade — o presidente da República não reconhece e menospreza a diversidade de gênero e de orientação sexual. A comunidade LGBTQIA+ (qualquer pessoa não heterossexual ou não cisgênero, ou fora das normas de gênero pela sua orien- tação sexual, identidade, expressão de gênero ou características sexuais) sente-se ameaçada.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-onze-teses-negacionistasx

Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro derrete e apela para o golpismo

A expectativa de poder que Bolsonaro mantém não se sustenta no projeto eleitoral, mas no governo como forma concentrada de poder e na narrativa do golpe de Estado

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

A pesquisa XP-Ipespe divulgada ontem mostra que Jair Bolsonaro derreteu eleitoralmente — perde para qualquer concorrente no segundo turno, se as eleições fossem hoje. Mais ainda, pode até ser derrotado pelo ex-presidente Luiz Inácio lula da Silva no primeiro turno, se mantiver a polarização com o petista e conseguir inviabilizar a chamada “terceira via”, como pretende. Segundo o cientista político Antônio Lavareda, mesmo com o recesso da CPI da Covid e o bom desempenho do Brasil nas Olimpíadas de Tóquio, que reduziram o noticiário negativo, o mau humor dos brasileiros com o presidente da República aumentou.

Não faltam motivos para isso, apesar do avanço da vacinação em massa e da redução do número de óbitos diários pela covid-19, que o povo atribui aos governadores e aos prefeitos. Com justa razão, Bolsonaro é identificado com o vírus da pandemia e não com a vacina. Fez tudo o que podia e não deveria para isso. Ontem mesmo, andou falando que as pessoas que tomaram a CoronaVac, a vacina chinesa produzida pelo Instituto Butantan, estão morrendo. Sua avaliação positiva caiu de 22 para 21%, enquanto a de governadores subiu de 36% para 46% e a dos prefeitos, de 45% para 55% — mesmo com o presidente da República culpando-os pela crise sanitária.

O estrago feito pelo ex-ministro Eduardo Pazuello e sua equipe de militares na Saúde, desnudado pela CPI do Senado, é irreversível: 57% da população acreditam no envolvimento do governo e de alguns de seus membros na corrupção. O apoio à CPI é robusto e inversamente proporcional: 57%. Na pesquisa, 67% dos entrevistados disseram que acompanham a CPI e 74% dos brasileiros perderam um parente, amigo ou colega na pandemia. O pior dos mundos para Bolsonaro é a percepção da economia, negativa para 63% da população. Em julho, eram 57%.

Ou seja, mesmo com alguns indicadores positivos, como o crescimento do PIB, e medidas recentes para ajudar a população de mais baixa renda, como o Auxílio Brasil, o programa federal que substituirá o Bolsa Família, o povo se queixa da inflação, dos juros altos e do desemprego, que formam um círculo vicioso. Nas simulações eleitorais, Bolsonaro perderia para Lula, Ciro Gomes, Sergio Moro, Luís Henrique Mandetta, João Doria e Eduardo Leite. Se aparecer mais um candidato, talvez perca para ele também. A expectativa de poder que mantém não se sustenta no seu projeto eleitoral, mas no governo como forma mais concentrada de poder e na narrativa do golpe de Estado. Esse é o xis da questão.

O ministro da Defesa, Braga Neto, compareceu ontem à Câmara para dizer que a ameaça de não realização das eleições, caso não fosse aprovado o voto impresso, nunca houve e é um assunto encerrado. É mesmo, porque a Câmara enterrou a proposta. Mas a narrativa golpista de Bolsonaro continua. É construída sobre três pilares: a disseminação da suspeita de fraude eleitoral para beneficiar a candidatura de Lula, o falso papel moderador que atribui às Forças Armadas nas relações entre os Poderes e o questionamento da autoridade do Supremo Tribunal Federal (STF) na exegese da Constituição.

Vivandeiras|
Bolsonaro escala seu confronto com os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news, e Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para provocar uma grave crise institucional e arrastar as Forças Armadas para a aventura de um golpe de Estado, antecipando-se à derrota eleitoral que vislumbra no horizonte. Exuma o velho castilhismo castrense da Revolução de 1930, percorre quartéis e campos de manobras como “comandante supremo das Forças Armadas”. Parece uma daquelas “vivandeiras alvoroçadas” que percorriam os bivaques para “bulir com os granadeiros e pro- vocar extravagâncias do poder militar”, como disse, certa vez, o marechal Castello Branco, referindo-se aos políticos golpistas.

Os políticos do Centrão, entre os quais o novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, tiram proveito da situação para avançar sobre cargos do governo e verbas do Orçamento da União, mas, até agora, não embarcaram no projeto golpista. Um golpe de Estado, quando nada, anularia todo o poder de barganha que hoje desfrutam. Além disso, não têm a mesma ojeriza dos militares a Lula, pois foram seus aliados quando o PT estava no poder — alguns até foram ministros. Atuam como a turma do deixa disso, mas não estão tendo sucesso na tentativa de protagonizar e viabilizar o projeto de reeleição de Bolsonaro.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-derrete-e-apela-para-o-golpismo

Leão sem dentes contra o fundo eleitoral

Malu Gaspar / O Globo

Já virou padrão: toda vez que é pego em contradição com o que ele mesmo defendia em 2018, Jair Bolsonaro diz que não teve escolha. Do contrário, “viriam para cima” dele. Foi o argumento que o presidente da República tirou da cartola ao explicar a seus seguidores, no cercadinho do Alvorada, o recuo sobre o fundo eleitoral de 2022, aprovado pelo Congresso há duas semanas — que pode chegar a R$ 5,7 bilhões.

Depois de reagir indignado ao valor, que classificou como “enorme”, uma “casca de banana”, uma “jabuticaba”, Bolsonaro surgiu nesta segunda-feira no cercadinho bem mais manso e circunspecto. “Vou deixar claro (sic) uma coisa: vai ser vetado o excesso do que a lei garante, tá? É de quase 4 bilhões o fundo. O extra de 2 bilhões vai ser vetado. Se eu vetar o que está na lei, eu tô incurso na lei de responsabilidade.”

Todo mundo sabe que o presidente é pródigo em espalhar desinformação, mas essa aí constaria fácil numa coletânea de melhores momentos. Primeiro porque, hoje, não há nenhuma lei dizendo que o fundo eleitoral para 2022 tem de ser de R$ 4 bilhões.

Nos últimos dias, consultei especialistas em legislação eleitoral e deputados de vários partidos. Não encontrei ninguém que soubesse apontar de que lei o presidente Bolsonaro está falando. Portanto, se não há lei, evidentemente não há excesso de R$ 2 bilhões.

Segundo os limites estabelecidos pelas fórmulas em vigor hoje, o valor obrigatório para o fundo eleitoral é de R$ 800 milhões (reembolso estatal às redes de TV pelo horário eleitoral), mais uma porcentagem do total destinado às emendas de bancada, decidida a cada ano eleitoral.

No último dia 15, os parlamentares decidiram que a fatia das emendas a ser destinada ao fundo eleitoral de 2022 deverá corresponder a 25% do orçamento de dois anos da Justiça Eleitoral. Somando o reembolso das TVs com essa cota, mais correção pela inflação, chega-se a R$ 5,7 bilhões para 2022. Em 2020, o total foi de R$ 2 bilhões.

Sejam esses critérios casca de banana, jabuticaba ou pequi roído, eles foram aprovados com a participação e o aval de todos os líderes do governo no Congresso.

Apesar do que disse no Alvorada, o que Bolsonaro tenta agora, nos bastidores, é encontrar uma maneira de vetar essa forma de cálculo, mantendo sua narrativa, e de, ainda assim, contentar os parlamentares com um fundo eleitoral de R$ 4 bilhões. É disso que se trata.

Se quisesse, o presidente poderia fazer isso de modo transparente, liderando um debate adulto com a sociedade brasileira sobre de onde deve vir o dinheiro que financia as campanhas, quanto os cidadãos estão dispostos a pagar em forma de impostos e quanto aceitam que venha de outras fontes, como empresas e pessoas físicas.

Num momento de tantos ataques à democracia, em que o próprio presidente da República dissemina desconfianças sobre a lisura do processo eleitoral, uma discussão aberta, civilizada e consequente sobre financiamento de campanha seria muito bem-vinda.

Mas é claro que Bolsonaro não está interessado em nada disso. Seu único objetivo é continuar fingindo que o país é um grande cercadinho onde ele pode disseminar suas confusões nada aleatórias, enquanto tenta garantir sua sobrevivência política.

É só por isso que, às claras, ele insiste em dizer que as urnas eletrônicas não são confiáveis, mesmo sem apresentar prova alguma — mas, por debaixo dos panos, avaliza acordos que multiplicam o orçamento dessas mesmas eleições, elevando o fundo eleitoral a valores recordes

A verdade que nem mesmo o cercadinho é capaz de esconder é que, depois de passar os primeiros meses de mandato enchendo a boca para dizer “sou eu que mandoo presidente sou eu”, Bolsonaro gasta cada vez mais tempo justificando decisões impopulares com o “se eu não fizer, vão vir para cima de mim”.

Tudo o que ele tem para brandir a seus seguidores é o mito do herói ameaçado pelos inimigos. Na segunda-feira, ele encerrou a explicação sobre o fundo eleitoral com o apelo: “Espero não apanhar do pessoal aí, como sempre, né? Porque, se começar a bater muito, vai ter de escolher no segundo turno Lula ou Ciro”.

Por enquanto, esse tipo de ameaça ainda funciona para uma parcela dos eleitores. Mas nenhum fingimento dura para sempre. Quanto mais o tempo passa, mais fica claro que o mandatário que hoje se expõe ao cercadinho é um leão sem dentes, domesticado pelos profissionais — da política, do lobby, dos negócios.

Nesse contexto, o “excesso” do fundo eleitoral é só um detalhe.


Dualidade de políticas marca comunicação do governo Bolsonaro nas redes sociais

Goebbels dizia que uma mentira repetida mil vezes vira verdade, o que parece ser uma máxima da política de comunicação de Bolsonaro nas redes sociais

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Um episódio emblemático demonstra que o governo Bolsonaro passará a ter duas políticas, que podem se antagonizar no decorrer do processo. No mesmo dia em que o novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), sentava na cadeira de ministro, a Secretaria de Comunicação da Presidência divulgou nas redes sociais uma mensagem comemorativa do Dia do Agricultor, com uma foto de um homem armado com um rifle, em vez das tradicionais imagens de agricultores exibindo as mãos calejadas, suas ferramentas de trabalho ou mesmo um trator. Diante da repercussão negativa, a nota foi substituída por uma tabela com indicadores de invasões de terra. Para bom entendedor, foi um recado subliminar de que a paz no campo seria obtida fazendo justiça pelas próprias mãos.

Sabe-se que Bolsonaro governa com um grupo de generais de sua confiança — Luiz Ramos, transferido para a Secretaria-Geral da Presidência; Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); e o general Braga Netto, ministro da Defesa — e o clã formado com os filhos Flávio (senador), Eduardo (deputado federal) e Carlos (vereador), o verdadeiro responsável pela política de comunicação do governo e operador das redes sociais de Bolsonaro. Foi dele, provavelmente, a ideia de publicar a foto. Como em outros momentos do governo, toda vez que Bolsonaro se afasta da narrativa de sua campanha eleitoral, como agora, ao empoderar o Centrão no Palácio do Planalto, logo surge alguma coisa que sinaliza para a base bolsonarista que o presidente não abandonou seus compromissos de extrema-direita.

Político profissional habilidoso, Ciro Nogueira não é ingênuo e sabe muito bem o que vai enfrentar na Casa Civil para mudar o eixo de atuação do governo. Trata-se de abandonar a radicalização e o confronto com os demais Poderes e optar por uma política de formação de maioria no Congresso e reaproximação com os eleitores que se afastaram de Bolsonaro, por causa do seu radicalismo e do mau desempenho do governo. Sua presença na Casa Civil não terá nenhum sentido se tudo continuar como antes. Bolsonaro até tentou retroceder do convite, mas não lhe foi possível, porque seria uma desfeita com Nogueira e o PP oferecer-lhe outra pasta de menor importância. Políticos profissionais não são como generais que aceitam ordem unida, tudo tem algum tipo de barganha.

O novo ministro da Casa Civil, porém, precisa fazer uma demonstração de força política. Até agora, seu maior trunfo é o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). A oportunidade para isso será a cerimônia de posse no cargo, prevista para o próximo dia 3, à qual pretende convidar os velhos caciques do PP remanescentes da antiga Arena e do PDS, como Delfim Neto e Francisco Dorneles, e seus aliados dos demais partidos do Centrão. Nos bastidores no Senado, o Palácio do Planalto tenta se reaproximar da maioria da bancada do MDB, que tem dois líderes de governo, o do Senado, Fernando Bezerra (PE), e o do Congresso, Eduardo Gomes (TO). A ideia é forçar uma reunião para desautorizar o líder, Eduardo Braga (AM), e o relator da CPI da Covid, senador Renan Calheiros (AL). Não é da tradição da legenda confrontos dessa ordem, porque o MDB é uma confederação de caciques regionais, que convivem na divergência, uns na oposição e outros na base do governo.

Verdades e mentiras
A maior demonstração de que há uma dualidade de políticas no Palácio do Planalto foi dada pelo próprio presidente Bolsonaro, que voltou a responsabilizar o Supremo Tribunal Federal (STF) pela desastrosa atuação do Ministério da Saúde, ao afirmar que uma decisão da Corte impediu que o governo combatesse a pandemia. A resposta do STF foi inédita e pelas redes sociais, o que assinala uma mudança de postura.

Seu presidente, ministro Luiz Fux, mandou divulgar um vídeo no qual parafraseou o chefe de propaganda do regime nazista de Adolf Hitler, Joseph Goebbels: “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade? Não. É falso que o Supremo tenha tirado poderes do presidente da República de atuar na pandemia. É verdadeiro que o STF decidiu que União, estados e prefeituras tinham que atuar juntos, com medidas para proteger a população. Não espalhe fake news! Compartilhe as #Verdades-doSTF”. Goebbels dizia que uma mentira repetida mil vezes vira verdade, o que parece ser uma máxima da política de comunicação de Bolsonaro nas redes sociais.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-dualidade-de-politicas/

Amigos de Israel se necessário, amigos do antissemitismo sempre que possível

A verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias

Rarael Kruchin e Sebastião Nascimento

Nos últimos dias, a sorridente recepção de Jair Bolsonaro, seu gabinete e deputados da base governista a Beatrix von Storch, representante do partido neonazista alemão AfD (Alternativa para a Alemanha), foi o “último suspiro” para aqueles que ainda achavam que Jair Bolsonaro e seus seguidores tinham qualquer apreço pelos judeus.

Mas não é de hoje que o governo Bolsonaro vem nos familiarizando com algo que se mostra cada vez mais comum nos círculos da extrema direita mundo afora: é possível defender simbolicamente Israel e, ao mesmo tempo, quando o assunto é a memória do Holocausto e as vidas e preocupações dos judeus de carne e osso, ter uma postura negacionista e próxima ao antissemitismo.

Observadores da política brasileira há muito destacam o uso sistemático de símbolos ligados ao Estado de Israel por parte do atual governo. Já durante a campanha eleitoral de 2018, a bandeira israelense tremulou em inúmeros comícios tanto do candidato à Presidência da República quanto de postulantes a cargos do Legislativo próximos a ele. E ainda tremula em manifestações pautadas pelo negacionismo da tragédia da pandemia e de ameaças renitentes ao processo democrático. O próprio Jair Bolsonaro e os chamados “bolsonaristas” têm utilizado estridentes declarações de um suposto apoio a Israel para se defenderem quando veem denunciada sua proximidade a ideias, figuras e expressões do nazifascismo europeu.

MAIS INFORMAÇÕES

Com a mesma profusão das bandeiras agitadas, avolumam-se os episódios de declarações de membros e aliados do governo que emulam, evocam ou aludem ao legado nazifascista. O Museu do Holocausto, em Curitiba, já se declarou estarrecido por não passar sequer uma semana sem que se veja obrigado a denunciar, reprovar ou repudiar um discurso antissemita, um símbolo nazista ou um ato supremacista.

Alguns desses momentos assustaram pela desfaçatez com que foram acolhidos e normalizados,

  • como o slogan da campanha presidencial de 2018 (Brasil acima de tudo), paráfrase direta do slogan nazista Deutschland über alles;
  • ou quando Ernesto Araújo em dezembro de 2018 afirmou que a cerimônia de posse de Bolsonaro representava o “triunfo da vontade” do povo, rigorosamente o mesmo slogan celebrizado no filme de propaganda nazista de 1934 Triumph des Willens, que retrata o grande comício de Nuremberg, considerada a cerimônia de entronização de Hitler como Führer da Grande Alemanha;
  • ou a homenagem do Exército em julho de 2019 ao major nazista von Westernhagen;
  • ou a difusão pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência em maio de 2020 de uma versão local do infame bordão Arbeit macht frei,que adornava os portões de entrada de Auschwitz e de tantos outros campos nazistas de extermínio;
  • ou quando, em janeiro deste ano, o vice-presidente Hamilton Mourão, após ter sido acusado de tramar para derrubar o presidente, renovou seu compromisso com Bolsonaro proclamando “minha honra está ligada à lealdade”, ligeira paráfrase do bordão hitlerista “Meine Ehre heißt Treue”, adotado como lema pela SS para se contrapor às hostes da SA acusadas de tramar contra a liderança do partido nazista.

Outros momentos, porém, assombraram o mundo, como o vídeo oficial de lançamento do Prêmio Nacional das Artes publicado em janeiro de 2020 pelo então secretário de cultura Roberto Alvim — no qual não só a estética nazista é celebrada como são solenemente reproduzidas passagens inteiras do discurso do ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels — e mais recentemente a visita a Brasília de Beatrix von Storch, representante do partido alemão de extrema direita AfD, agremiação reconhecidamente racista e xenofóbica, que abriga grande número de destacadas figuras do neonazismo alemão e que é investigada em diversos processos pelo Estado alemão por conta de sua atuação para minar a ordem democrática do país.

Na Alemanha, provocações da extrema direita com o intuito de acolher ou normalizar o legado nazista e testar os limites da ordem constitucional democrática não foram recebidas com a mesma leniência que no Brasil. Vêm-se acumulando contra a AfD, desde sua fundação em 2013 e mais intensamente desde sua entrada no Parlamento Federal em 2017, investigações, processos e condenações judiciais, além de declarações formais de repúdio e chamados para o isolamento e o boicote ao partido da parte de todo o espectro da sociedade civil organizada na Alemanha. Praticamente todas as entidades representativas da comunidade judaica declararam formalmente a AfD como agrupamento antidemocrático, racista e antissemita, dedicado a reviver a ideologia nazista. Movimentos similares e com alcance igualmente amplo foram observados da parte das comunidades católicas, evangélicas e muçulmanas, das entidades atuantes na proteção de pessoas com necessidades especiais e psiquiatricamente vulneráveis, dos grupos de defesa da comunidade LGBTQIA+, das entidades representativas das comunidades sinti e roma e engajadas no combate ao anticiganismo, todos unidos na denúncia dos esforços do partido em promover a ideologia nazista e de sua incompatibilidade com o convívio numa sociedade plural e democrática.

Na Alemanha, nenhum outro partido no Parlamento Federal ou nos parlamentos estaduais admite negociar com a bancada da AfD, nenhuma figura pública alemã que preze a democracia e o humanismo se digna a ser fotografada ou sequer a apertar a mão de seus representantes. No Brasil, porém, foi com fraternos abraços e amplos sorrisos, que Beatrix von Storch e seu marido foram recebidos na semana passada pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação Marcos Pontes (que, diante da repercussão negativa, apressou-se em remover os registros do encontro), pelos deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF) e pelo próprio presidente.

Fora da Alemanha, são raríssimos os casos de autoridades de Estado que recebem representantes da AfD. Antes da calorosa recepção em Brasília, as poucas ocasiões em que seus emissários realizaram encontros oficiais com altos escalões governamentais mundo afora haviam sido ao visitar membros do regime genocida de Bashar al-Assad em Damasco em 2018 e 2019 e em viagens à Rússia em 2020 e 2021, no auge da reação internacional à repressão e eliminação física dos opositores, para demonstrar a prontidão que têm em emprestar seu apoio de duvidoso valor a regimes contestados e isolados.

Embora a AfD mobilize fortes e inegáveis elementos neonazistas, costuma também enaltecer Israel e o sionismo. Foi justamente essa a retórica que Bia Kicis utilizou para se defender das acusações de ter se encontrado com a representante de um partido racista, xenófobo e neonazista. Contrariando as críticas, ela disse que a AfD é, no fundo, um partido amigo de Israel. Mas a verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias. Até porque, a Israel que professam apoiar não condiz com a realidade local. Ao contrário, trata-se de uma construção quase ficcional, que ignora por completo a pluralidade e os elementos progressistas e seculares do Estado de Israel contemporâneo.

Uma pesquisa realizada em 2017, às vésperas da entrada da AfD no Parlamento Federal alemão, procurava avaliar o posicionamento dos candidatos mais viáveis de todos os partidos diante da relação entre Alemanha e Israel. Em todos os tópicos que diziam respeito à política israelense, a AfD se colocava como pró-Israel. Porém, quando o assunto era a situação dos cidadãos judeus na Alemanha, a migração, a responsabilidade alemã sobre o Holocausto e o imperativo da educação das novas gerações sobre o tema — tópicos estes que contavam com posição 100% favorável dos membros de todas as outras agremiações políticas —, ao chegar à AfD, esbarrava em uma posição dividida e ambígua. Ou seja, em meio a todo o espectro político-parlamentar alemão contemporâneo, há um só partido disposto a atentar contra um tema tão sensível na Alemanha, assumindo-se “reticente” em relação ao passado nazista, que foi o partido que o governo brasileiro abraçou.

É nesse sentido que os abraços trocados com Beatrix von Storch constituem o registro mais recente e palpável de que o suposto apoio a Israel, de ambos os lados, não representa apoio algum aos judeus ou à comunidade judaica. Isolados no cenário global, Storch e seu partido, tanto quanto Bolsonaro e seus seguidores, tentam se agarrar à simbologia de Israel como quem se agarra a uma bóia de salvação num abraço de afogados.

Rafael Kruchin é mestre em sociologia pela USP, coordenador executivo do Instituto Brasil-Israel e pesquisador colaborador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) da Unicamp

Sebastião Nascimento é mestre em direito internacional pela USP, doutorando em ciências sociais pela Universität-Flensburg, na Alemanha, e pesquisador do CEMI-Unicamp


Ditaduras não começam com tanques nas ruas, mas com o estupro da linguagem

Eliane Brum / El País

O que você acha? Vai ter golpe ou não?”. Esta é a pergunta recorrente, do sul ao norte do Brasil. Diferentes grupos têm marcado reuniões privadas pela Internet para debater o assunto. Encontros virtuais com a família, a versão pandêmica do famoso almoço de domingo, desde a eleição de 2014 mais perigoso do que um vidro inteiro de pimenta malagueta, foi tomado pelo tema. Eu mesma ouço essa pergunta várias vezes por dia. Há pessoas respondendo a convites internacionais com um texto padrão: “Atualmente, a média de mortes por covid-19 no Brasil é de mais de 1000 por dia, a variante Delta está se espalhando pelo país, a vacinação é lenta e Jair Bolsonaro pode dar um golpe a qualquer momento. Assim, torna-se difícil confirmar minha presença com tanta antecedência. O mais prudente seria confirmar o mais perto possível da data....”. Quando se torna corriqueiro falar sobre a possibilidade de um golpe de Estado e planejar os dias já incluindo essa “variável” é porque o golpe já está acontecendo —ou, em grande medida, já aconteceu. O golpe já está.

Já sabemos como morrem as democracias, é assunto exaustivamente esmiuçado nos últimos anos. Mas precisamos compreender melhor como nascem os golpes. A morte de uma e o nascimento do outro são parte da mesma gestação. Os golpes não acontecem mais como no século 20, ou não acontecem apenas como no século 20. Tenho trabalhado com o conceito de crise da palavra para analisar as duas primeiras décadas do século 21 no Brasil. Me parece claro que o estupro da linguagem é parte fundamental do método. Não apenas um capítulo do manual, mas uma estratégia que o atravessa inteiro.  

Escrevo há mais de um ano que o golpe de Bolsonaro está em curso. O golpe de fundo começou antes de Bolsonaro assumir o poder no Brasil e se realiza e aprofunda a cada dia de Governo. Se o caso brasileiro é o mais explícito, a formulação atual dos golpes de Estado pode ser percebida em diferentes partes do globo, de Donald Trump, nos Estados Unidos, a Viktor Orbán, na Hungria. É importante perceber isso porque, se não o fizermos, não teremos como barrá-los.

No caso dos Estados Unidos, é verdade que, no último momento, as instituições, muito mais sólidas do que em qualquer outro país das Américas, mostraram-se capazes de impedir a tentativa de golpe de Trump. Mas também é verdade que, mesmo com Joe Biden no poder, o trumpismo cumpriu o objetivo de produzir um impacto profundo sobre a estrutura do país, impacto que segue ativo. Conseguiu, principalmente, produzir uma imagem, corrompendo a linguagem da democracia americana para sempre ao realizar o impensável, na cena da invasão do Capitólio. A porta agora está aberta.

No Brasil, o esgarçamento da linguagem é muito anterior à eleição de 2018, aquela que formalmente colocou a extrema direita no poder. É possível localizar pelo menos três momentos decisivos para o impeachment de Dilma Rousseff (PT), apontado por grande parte da esquerda como um golpe “branco” ou “não clássico”. Quando a presidenta é chamada de “vaca” e de “puta” em estádios de futebol, na Copa de 2014; quando, em 2015, um adesivo com sua imagem de pernas abertas se populariza nos tanques de combustível dos carros, de forma que a mangueira a penetre, simulando um estupro; e, finalmente, em 2016, durante a sessão que aprova a abertura do impeachment, em que Jair Bolsonaro, então deputado, dedica seu voto ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”.

Ao evocar a tortura da presidenta durante a ditadura civil-militar (1964-1985), Bolsonaro a tortura mais uma vez, cometendo o crime (artigo 187 do Código Penal) de apologia à tortura, e conecta explicitamente os dois momentos históricos, o da ditadura e o do impeachment, expondo a ruptura democrática que os une. “Puta” e “vaca” na boca da massa espumando ódio (e também de algumas jornalistas), estuprada na traseira dos carros da classe média, torturada mais uma vez pelo elogio à sua tortura feito por Bolsonaro em pleno parlamento. Depois disso, qual seria a dificuldade de arrancar Rousseff do poder? Se tudo isso já tinha sido aceito como “normal”, qual seria o empecilho para aceitar o impeachment?

É isso que chamo de estupro, corrosão ou esgarçamento da linguagem. A preparação do golpe é primeiro um investimento nas subjetividades. Pela capacidade de viralização dos discursos nas redes sociais, assim como pela velocidade na produção e reprodução de imagens na Internet, a sociedade vai “aceitando” o inaceitável. Em seguida, passa a assimilá-lo —e finalmente a normalizá-lo e até mesmo a reproduzi-lo. Aquilo que até então era considerado regra básica de civilidade, fundamental para permitir a convivência, é convertido em “politicamente correto” —e o politicamente correto passa a ser maliciosamente tratado como “censura” ou “cerceamento da liberdade”. Quando o golpe formalmente se efetiva, o inaceitável já está aceito e internalizado.

O mesmo fenômeno permitiu a Bolsonaro executar seu plano de disseminação do coronavírus, espalhando mentiras para atacar primeiro as máscaras e o isolamento físico, depois as vacinas, resultando (até agora) em mais de 550.000 mortos. Afirmando publicamente, como figura pública máxima, o inconcebível, Bolsonaro tornou corriqueiro milhares de pessoas desaparecem da vida da família e do país a cada dia. Hoje, a média atual de mil mortes por dia, depois de já ter ultrapassado 4.000, é motivo de comemoração. Pelo mesmo esgarçamento da linguagem, Bolsonaro tornou possível a volta dos militares ao poder em um país ainda traumatizado pelos torturadores nas ruas, assim como a rearticulação da direita que sustentou a ditadura militar no passado. Ao romper os limites primeiro no discurso, ele abre espaço e prepara o terreno para o ato.

É também pela corrosão da linguagem que, aperfeiçoando o roteiro de Trump, Bolsonaro se prepara para 2022, atacando o sistema eleitoral para contestar a eleição em que poderá ser derrotado. Quando a eleição chegar, a repetição do discurso de fraude já terá corrompido a realidade. Nessa operação sobre a subjetividade coletiva, a fraude acontece antes, fazendo com que o que efetivamente acontecerá na eleição, o voto, não importe. É assim que o direito constitucional de eleger o presidente do país vai sendo roubado de mais de 200 milhões de brasileiros sem nenhum tanque na rua. A narrativa da fraude se infiltra e se realiza nas mentes antes de qualquer ato, descolando-se dos fatos. O que importa é a crença na fraude. Que ela não se comprove porque não aconteceu não faz a menor diferença. “Acreditar se tornou um verbo muito mais importante do que “provar” —e essa distorção é apresentada como virtude. O principal papel de figuras como Bolsonaro e outros, e antes deles Trump, é pronunciar o impronunciável, abrindo um caminho subjetivo para a concretização do assalto ao sistema democrático.

A corrosão da linguagem culmina com a corrosão da própria verdade. Este é o ataque final ao “comum”. Já vimos outros bens comuns essenciais para a vida da nossa e de outras espécies —como ar puro e água potável, por exemplo— serem privatizados, mercantilizados e reembalados para a minoria que pode pagar por eles. A estabilidade do clima, outro bem comum, foi destruída. Os novos velhos golpistas fizeram —e seguem fazendo— o mesmo com o conceito compartilhado de verdade. Assim como acontece com os teóricos da conspiração nos Estados Unidos e em suas versões brasileiras, a autoverdade —ou o poder auto-ortorgado de escolher a verdade que mais convém ao indivíduo ou ao grupo— se torna mais “real” do que os fatos. De certo modo, é um retorno a um tipo de teocracia. No caso, a “verdade” é corrompida e controlada pelos sacerdotes deste novo tipo de seita.

Obviamente, a verdade se afirma e acaba por se impor no plano da realidade, como a emergência climática acabou de demonstrar, colocando países como a Alemanha debaixo d’água e deixando o Canadá mais quente do que o deserto do Saara. Mas, enquanto isso, charlatões como Bolsonaro e outros provocam uma destruição acelerada do comum que, em grande parte, é irreversível, comprometendo não só o futuro das novas gerações, mas também o presente.

Bolsonaro é protagonista, sim, mas é também instrumento. Conhecido como uma metralhadora giratória de asneiras violentas e violências boçais durante seus sete mandatos no parlamento, seu “dom” foi instrumentalizado. A destruição do tecido social por uma operação na linguagem aposta nas chamadas “guerras culturais”. É na desumanização dos negros, das mulheres, dos LGBTQIA+ que começa o ataque. É na chamada “pauta dos costumes” que a violência vai sendo formulada como se fosse seu oposto. Quando Bolsonaro afirma preferir um filho morto em acidente de trânsito a um filho gay, por exemplo, ele coloca a abominação na homossexualidade, encobrindo a abominação que é sua afirmação. O inaceitável é ser gay —e não defender a morte de gays. O inaceitável é o aborto de um embrião —e não a morte de uma mulher com história e afetos por complicações em procedimentos sem cuidado. E assim por diante. A cada afirmação de extrema violência, Bolsonaro foi destruindo o conceito de inviolabilidade da vida e normalizando a destruição dos corpos. A principal função de figuras como Bolsonaro é tornar tudo possível —primeiro na linguagem, em seguida no ato.

Neste momento, Bolsonaro já cumpriu sua missão maior, o que pode eventualmente torná-lo descartável. Ele claramente vai se tornando um incômodo para os grupos que agora mais uma vez se rearticulam e que, com ele, conquistaram avanços inimagináveis até então, como os próprios militares, os representantes e lobistas do agronegócio, os evangélicos de mercado e o campo da direita. Assim como Fabrício Queiroz se tornou descartável e um incômodo para a quadrilha familiar dos Bolsonaro, ele mesmo se torna perigoso para os articuladores do projeto maior, que o reconhecem como uma peça importante do jogo, mas jamais como o dono do tabuleiro. Muito vai depender da capacidade de Bolsonaro se adequar, uma capacidade que nele parece inexistente. Suspeito que é esta parte de seu próprio fenômeno que Bolsonaro não compreende. Ao miliciarizar o Governo central, acreditou que estava no comando absoluto.

As democracias morrem por muitas razões, na minha opinião a mais importante delas é o fato de serem seletivas, em diferentes graus: só funcionam para determinada parcela da sociedade, deixando outras de fora. As democracias morreriam então pela corrosão provocada pela sua própria ausência. Ou morreriam pelo tanto de arbitrariedade com que são capazes de conviver. No Brasil, o nível de exceção que a minoria dominante da sociedade é capaz de tolerar é uma enormidade. Desde que as arbitrariedades sejam contra os pretos e contra os indígenas, contra as mulheres e contra os LGBTQIA+ está tudo “dentro da normalidade”. A possibilidade de as forças de segurança do Estado derrubarem portas, invadirem casas e executarem suspeitos e não suspeitos nas periferias e favelas urbanas durante todo o período democrático é, sem dúvida, o exemplo mais evidente do caso brasileiro.

As ditaduras nascem em diferentes tempos e espaços. Assim como as parcelas da sociedade beneficiadas pela democracia convenceram-se durante décadas de que viviam numa democracia, mesmo sabendo que grande parte da população era submetida a uma rotina diária de arbitrariedades, estas mesmas parcelas têm hoje dificuldade para enxergar que a ditadura já está consolidada em várias partes do Brasil, onde pessoas precisam abandonar suas casas para não morrer e as forças de segurança e o judiciário estão a serviço dos violadores. Hoje, nas áreas “nobres” das capitais e cidades, os ataques autoritários usam o judiciário e a Polícia Federal para se realizar, como nas recentes ofensivas a colunistas da imprensa tradicional, a mais recente delas contra Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha de S. Paulo e professor da prestigiosa faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Há outras partes do Brasil em que os ataques são a fogo e bala, como na floresta amazônica, onde casas de indígenas como Maria Leusa Munduruku são queimadas e lideranças camponesas como Erasmo Alves Theofilo têm a cabeça a prêmio. Na floresta e nas periferias urbanas, corpos humanos tombam sem provocar alarde e as execuções pelas forças policiais explodem.

A percepção de golpe se alastra quando os que não costumam ser atacados passam a ser atacados, no Brasil a minoria branca e mais rica. É uma percepção legítima, porque é ela que mostra que o tecido social se rasgou em partes consideradas até então intocadas e intocáveis. A quebra destes limites sinaliza que outras forças se moveram, ameaçando o precário equilíbrio mesmo dos mais privilegiados. Em 2017, ao testemunhar a execução de um morador de rua pela polícia no bairro nobre de Pinheiros, a classe média se mobilizou para denunciar e protestar, celebrando uma missa na simbólica Catedral da Sé. Era ainda o Brasil de Michel Temer (MDB), mas a ditadura foi largamente lembrada. Ali, o “limite” estabelecido pela lei não escrita de que o Estado pode executar pessoas, mas apenas em bairros de periferia, havia sido rompido. A quebra demandava reação, pelas melhores razões e também para impedir que a violência policial rompesse outro limite e o próximo a tombar fosse alguém que habitasse não as ruas, mas os apartamentos e casas com um dos metros quadrados mais caros da cidade.

Ao se infiltrar no imaginário coletivo, o debate do “será que vai ter golpe” cumpre ainda outra função estratégica: a de interditar e ocupar o espaço do debate urgente do impeachment de Bolsonaro. Sobre isso, há um flagrante assalto à linguagem, ao normalizar o fato de Arthur Lira (Progressistas), o corrupto presidente da Câmara de Deputados, ter seu traseiro esparramado sobre mais de 120 pedidos de impeachment ou sobre o superpedido de impeachment. Pela repetição, a crítica legítima a Lira vai se esvaziando e passa a se assimilar que assim é: a mobilização da sociedade pela democracia, traduzida em pedidos de impeachment mais do que legítimos, é pervertida e usada como instrumento de chantagem do Centrão para tomar os cofres públicos. Sempre que aceitamos o abuso de poder e de função como inevitável, acostumando-nos às arbitrariedades, o golpe avança.

Hoje, com Bolsonaro, vários limites foram ultrapassados. Limites que, mesmo para um país de marcos civilizatórios tão elásticos como o Brasil, até bem pouco tempo atrás seria impensável tê-los rompido. Quando o assunto principal é se haverá golpe ou não, tema abordado com a mesma naturalidade do aumento do preço do feijão, o último jogo do Corinthians ou a mais recente série da Netflix, o que resta de democracia? O golpe já pedalou a linguagem, infiltrou-se no cotidiano e está ativo. O golpe já foi dado. A dúvida é só até onde ele será capaz de chegar.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de sete livros, entre eles Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Luiz Carlos Azedo: O general linha-dura

Braga Netto assumiu a Defesa para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições. O que consegue, porém, é desgastar as Forças Armadas

Desde que assumiu o Ministério da Defesa, o general Braga Netto tem atuado para alinhar as Forças Armadas aos objetivos políticos do presidente Jair Bolsonaro. Extrapola, porém, as atribuições do cargo, ao se pronunciar sobre temas políticos que não dizem respeito nem demandam o posicionamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Como na desequilibrada nota contra a CPI da Covid, que foi emitida em nome dos comandantes militares, sem que saio menos um deles, com certeza, tenha sido consultado. Mesmo quando nega ter pressionado o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a aprovar a proposta de voto impresso, sob risco de as eleições não serem realizadas, Braga Netto se manifesta sobre o assunto de forma inapropriada, pois é prerrogativa do Congresso decidir a questão sem se submeter a chantagens. Na prática, a nota reverbera de forma ambígua as suspeitas e ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao pleito.

Pode ser que Braga Netto esteja confundindo os papéis de antigo ministro da Casa Civil, no qual desempenhava importantes missões políticas, e de ministro da Defesa, que não deve se imiscuir nas relações entre os Poderes. Em vez de se espelhar no figurino dos ex-ministros da Defesa Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar a ocupar um cargo criado para ser exercido por civis, e de seu antecessor Fernando Azevedo e Silva, que se recusou a desempenhar esse papel, Braga Netto vestiu a fantasia dos generais linha-dura que pontificaram durante o regime militar — até o presidente Ernesto Geisel demitir o general Sílvio Frota, seu ministro do Exército.

Apesar dos desmentidos à matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, de autoria das jornalistas Vera Rosa e Andreza Matais, houve a conversa do interlocutor de Braga Netto com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não desmentiu a informação, tergiversou. Nos bastidores do Congresso, comenta-se que o portador do recado fora ninguém menos do que o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que assumirá a Casa Civil no lugar do general Luiz Ramos. Mente-se muito na política, embora a mentira acabe quase sempre desnudada. Mente-se muito mais nos jogos de guerra. Os militares chamam isso de contrainformação, cujo objetivo é impedir ou dificultar o acesso à informação verdadeira, mediante, principalmente, a divulgação de informações diversionistas. O Palácio do Planalto trabalha nessa linha, não preza a transparência nem a informação de interesse público.

Por exemplo, o YouTube acaba de retirar do ar 15 lives do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia da covid-19, por conterem informações falsas. O general Braga Netto, como chefe da Casa Civil e coordenador do governo no combate à pandemia, foi um dos construtores da narrativa negacionista e das desastradas ações do Executivo que defendiam o uso maciço da cloroquina e outros medicamentos ineficazes no combate ao coronavírus. Essa narrativa, até hoje, está presente nas redes sociais e somente fracassou porque o Brasil já registra 546 mil mortes pela doença. Mais cedo ou mais tarde, Braga Netto será chamado a depor na CPI do Senado, que investiga a atuação do Ministério da Saúde na pandemia, por sua atuação na Casa Civil.

Melar as eleições
A polêmica sobre o voto impresso é um case de contrainformação. A narrativa de Bolsonaro falseia a realidade com objetivo de melar as eleições de 2022, caso seja derrotado, como tentou o ex- presidente dos Estados Unidos Donald Trump, em quem se espelhou, ano ser derrotado pelo presidente Joe Biden. Quanto maior o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de opinião e a desaprovação do governo, mais recrudescem os ataques de Bolsonaro à urna eletrônica, em que pese nunca ter apresentado provas de fraude na apuração das eleições de 2018, que afirma, fantasiosamente, ter ganhado no primeiro turno.

Braga Netto substituiu o general Fernando Azevedo para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições republicanas. O que vem conseguindo, porém, é desgastar as Forças Armadas, como no episódio da não-punição do exministro da Saúde Eduardo Pazuello por ter participado e se manifestando no desfile de motociclistas bolsonaristas no Rio de Janeiro, mesmo estando na ativa. A politização das Forças Armadas e seu envolvimento na política em si é uma ameaça à democracia. O presidente Bolsonaro tenta cooptar militares da ativa para seu projeto autoritário ao requisitá-los para exercer funções civis no governo; de igual maneira, ao estimular pronunciamentos como o do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista.

Entretanto, não existe um ambiente favorável a um golpe de Estado no país, muito pelo contrário, cresce a campanha pelo impeachment. Por isso, a retórica do presidente da República contra a segurança da urna eletrônica e as pressões de Braga Netto para aprovação do voto impresso soam como uma espécie de déjà-vu político. Esse morde-assopra é uma tática conhecida de contrainformação, que os militares utilizam em tempos de guerra, para testar suas cadeias de comando e a capacidade de resistência do inimigo. Por essa razão, tanto o Judiciário quanto Congresso precisam exercer com firmeza suas prerrogativas constitucionais, entre as quais, decidir sobre o sistema de votação e limitar a presença de militares da ativa em cargos civis.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-general-linha-dura/

Luiz Carlos Azedo: Breve manual de geração de crises

A construção de uma blindagem para o presidente Jair Bolsonaro, contra as acusações da oposição na CPI da Covid, virou um caso antológico de “fogo amigo”

Faz parte das atividades de qualquer governo se prevenir contra as crises. Ou seja, se preparar para quando elas ocorrerem, procurando neutralizar seus efeitos negativos e construir saídas positivas. Por isso mesmo, o gerenciamento de crise tem um roteiro bastante conhecido pelos profissionais que lidam com avaliação de risco e comunicação institucional. O beabá é o seguinte: (1) avaliar ambiente interno e externo; (2) realizar um brainstorm para mapear os riscos; (3) medir o grau de probabilidade de ocorrência de risco e seu impacto; (4) definir resposta ao risco mapeado, controles e plano de ação; (5) executar o controle e o plano de ação; (6) validar e testar os mecanismos de controle interno; (7) divulgar a matriz de risco entre seus atores; (8) monitorar os riscos e reavaliar ambiente interno e externo.

Portanto, chega a ser hilário o vazamento do questionário distribuído pela Casa Civil na Esplanada dos Ministérios para se preparar para as investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, o que seria uma etapa inicial do gerenciamento de risco. Sob responsabilidade do general Luiz Ramos, ministro da Casa Civil, encarregado de coordenar as ações da equipe ministerial, o documento foi elaborado para organizar a defesa do governo Bolsonaro das acusações de negligência na pandemia, mas alguém “mui amigo” tornou público o roteiro.

Nada menos do que 23 possíveis erros graves do governo foram identificados, alguns dos quais estavam fora das cogitações da CPI até agora, que ainda discute um plano de trabalho do qual constam 18 alvos de investigação. Genocídio de populações indígenas, militarização do Ministério da Saúde, descumprimento das orientações do Tribunal de Contas da União (TCU), falta de coordenação da aplicação dos recursos federais pela União, negligência na compra de vacinas, minimização da gravidade da pandemia, ausência de incentivos às medidas restritivas, promoção do tratamento precoce sem comprovação científica, militarização da Saúde; só faltou tipificar os crimes de responsabilidade cometidos.

Assim, o que era para ser a construção de uma blindagem para o Palácio do Planalto, protegendo o presidente Jair Bolsonaro das acusações da oposição, virou um caso antológico de “fogo amigo”, antes mesmo de a CPI ser instalada. Hoje, na primeira reunião da comissão, que será presidida pelo senador Otto Alencar (PSD-BA), o mais velho de seus integrantes, pode haver certa disputa entre governo e oposição, mas está praticamente certo que o senador Omar Azis (PSD-AM) presidirá a CPI, enquanto Renan Calheiros (MDB-AL) será o relator, apesar dos contratempos criados por uma decisão judicial de primeira instância.

Flanando
O roteiro elaborado pela Casa Civil tem uma planilha que assinala com um xis a responsabilidade de cada ministério envolvido na questão. Por exemplo, quando afirma que “o governo federal fabricou e disseminou fake news sobre a pandemia por intermédio de seu gabinete do ódio”, responsabiliza a Advocacia Geral da União (AGU) e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) pelas respostas à questão. Atribui ao Ministério da Defesa, ao Ministério da Ciência e Tecnologia e à Secretaria de Governo a defesa dos generais Eduardo Pazuello, Braga Netto e demais militares, porque “não apresentaram diretrizes estratégicas para o combate à covid”.

O Palácio do Planalto também entregou na bandeja para a CPI a convocação dos ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Cidadania, João Roma, ao elencar o atraso do pagamento do auxílio emergência como uma das falhas do governo a serem investigadas. Futuro relator da CPI, Renan Calheiros até ironizou: “O governo teria economizado mais seguindo esse roteiro antes, em vez de tentar barrar a CPI”. Ex-presidente do Senado, Calheiros é o principal alvo das articulações governistas, que tentam impedir na Justiça que assuma o cargo.

À impossibilidade de evitar a escolha de Renan Calheiros, a estratégia dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro é desacreditá-lo como relator, ao mesmo tempo em que os senadores da base governista, que estão em minoria na comissão, tendam a mudar o foco das atenções para governadores e prefeitos. O problema é que o Palácio do Planalto parece seguir um manual de geração de crises. Fica difícil para os governistas, por exemplo, defender o general Pazuello quando ele é flagrado sem máscara em um shopping de Manaus, como se fosse um imprudente flâneur paisano, num périplo descontraído e mundano.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-breve-manual-de-geracao-de-crises/

Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro no vermelho

Pandemia e cenário econômico puxam avaliação do governo para baixo e assustam estrategistas do Palácio do Planalto, que também perde apoio do mercado

O presidente Jair Bolsonaro tenta se reposicionar no mercado. Quer reverter o grande desgaste que vem sofrendo com o agravamento da pandemia da covid-19 e busca se reaproximar dos grandes empresários do país, dos quais se afastou em decorrência do seu negacionismo em relação à crise sanitária. A pedalada fiscal desenhada no novo Orçamento da União, fruto de uma negociação entre o Palácio do Planalto e o Centrão, que guindou à Secretaria do Governo a ex-presidente da Comissão Mista de Orçamento deputada Flávia Arruda (PL-DF), também assustou os investidores. Para o mercado, o governo está no vermelho.

Hoje à noite, Bolsonaro participará de um jantar organizada pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria, com 20 grandes líderes empresariais, tendo por anfitrião o empresário Washington Cinel, dono da Lide Segurança e magnata da terceirização, na antiga mansão de José Ermírio de Moraes, em São Paulo, arrematada em leilão por quase R$ 40 milhões. Entre os participantes confirmados estão André Esteves (BTG), Alberto Leite (F5 Securities), AlbertoSaraiva (Habib’s), Candido Pinheiro (Hapvida), Carlos Sanchez (EMS), Claudio Lottenberg (Hospital Albert Einstein), Flavio Rocha (Guararapes), Luiz Carlos Trabuco (Bradesco), João Camargo (grupo Alpha de comunicação), João Carlos Saad (Band), José Roberto Maciel (SBT), Ricardo Faria (Granja Faria) e Tutinha Carvalho (Jovem Pan). Não haverá gravações.

As recentes pesquisas assustaram os estrategistas do Palácio do Planalto. A divulgada pela XP/Ipespe, na segunda-feira, mostrou o saldo da troca de ministros do governo: cresceu a avaliação negativa (agora, 48%) e a positiva ficou abaixo dos 30 pontos (27%) pela primeira vez desde julho do ano passado. Em janeiro, empatavam as avaliações positivas e as negativas, ambas com 37%. A desaprovação chegou a 60%, enquanto a aprovação foi de 33%. Entretanto a troca de ministros da Saúde teve pequeno efeito positivo para o governo: a avaliação positiva (ótima/boa) foi de 18% para 21%, enquanto a negativa recuou de 61% a 58%.

Auxílio e vacinas

A tentativa de reaproximação com o meio empresarial é fruto do cenário econômico, que continua puxando o governo para baixo: 65% afirmam que está no “caminho errado”, enquanto 23% dizem estar no “caminho certo”. A avaliação negativa passou de 36% para 42%. A aposta do governo é o efeito do auxílio emergencial, que pode ajudar a melhorar a imagem de Bolsonaro, uma vez que a medida é aprovada por 67% dos entrevistados e desaprovada por 29%, segundo a pesquisa. O problema de Bolsonaro é o modo de governar: 15% dos pesquisados querem que seja mantido, enquanto 27% dizem que precisa mudar alguma coisa e 53% condenam completamente o comportamento do presidente da República.

Esse cenário explica a guinada de Bolsonaro em relação às vacinas, que passou a ser o centro da atuação do governo, ainda mais porque a Fiocruz, por falta de insumos, ficou muito para trás na corrida com o Instituto Butantan, responsável pela produção de mais de 80% dos imunizantes aplicados no país. O agravamento da pandemia, principalmente em São Paulo, não permitiu que isso alavanque nacionalmente o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mas está evidente que a conta da crise sanitária caiu mesmo no colo de Bolsonaro. Essa vantagem estratégica de Doria na “guerra das vacinas” dificilmente será revertida, a não ser que o presidente consiga importá-las. Não foi à toa que ligou para o presidente russo, Vladimir Putin, ontem, para acertar a compra do imunizante russo Sputnik V, que está sendo produzido no Brasil por laboratórios privados e exportado para a América Latina.

Bolsonaro aumentou seu controle sobre os órgãos de coerção do Estado. A posse dos seis novos ministros do governo foi realizada, ontem, em cerimônia discreta, sem a presença de convidados e da imprensa. O novo ministro da Justiça, Anderson Torres, trocou toda a cúpula policial: Rolando Souza foi substituído na Direção-Geral da Polícia Federal pelo delegado Paulo Maiurino; o novo chefe da Polícia Rodoviária Federal será o inspetor Silvinei Vasques, no lugar de Eduardo Aggio.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-no-vermelho/

Luiz Carlos Azedo: Pior momento de Bolsonaro

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro, fracassou: 56% dos entrevistados o consideram incapaz de liderar

A pesquisa DataFolha de ontem confirmou o que mundo político já estava esperando: o governo Bolsonaro vive o seu pior momento, acumulando desgastes, principalmente em razão das suas atitudes negacionistas em relação à pandemia da covid-19, cujo descontrole assombra o mundo. Segundo o instituto, cresceu para 56% o número de brasileiros que consideram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) incapaz de liderar o país. Em janeiro, eram 50%. A pesquisa caiu como uma bomba no Palácio do Planalto, a jaula de cristal na qual a bolha dos partidários do presidente da República nas redes sociais tem mais influência nas decisões do que todos os demais interlocutores do governo juntos.

Segundo o levantamento, o percentual de brasileiros que consideravam Bolsonaro capaz de liderar caiu de 46% para 42% de janeiro para março, com oscilação negativa no limite da margem de erro. Em abril de 2020, ele era considerado capaz de liderar o país por 52% dos brasileiros, em detrimento de 42% que o julgavam incapaz. Entre os que hoje julgam o presidente mais incapaz estão os mais ricos, que ganham acima de 10 salários mínimos (62%), os que têm curso superior (também com 62%) e moradores da região Nordeste, dos quais 63% julgam o presidente incapaz de liderar o Brasil. A base de apoio de Bolsonaro mais resiliente é formada por moradores das regiões Sul (51%) e Norte/Centro-Oeste (49%) e evangélicos 52%.

O desempenho de Bolsonaro na pandemia é que puxa sua avaliação para baixo: 54% dos entrevistados avaliam como ruim ou péssimo. Na pesquisa anterior, realizada em janeiro, esse índice era de 48%. Segundo o levantamento, 22% consideram ótima ou boa a performance do presidente da República na condução do enfrentamento à pandemia. O índice anterior era de 26%. Esse desempenho fortalece os aliados do governo no Congresso, que pediram a cabeça do general Eduardo Pazuello, defenestrado do Ministério da Saúde, mas não conseguiram emplacar no cargo o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), presidente da Comissão de Seguridade Social da Câmara. Bolsonaro nomeou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro duramente a crise sanitária, fracassou completamente: para 42% dos entrevistados, a responsabilidade é do presidente da República. Os demais responsáveis se- riam: governadores, 20%; e prefeitos: 17%. As atitudes de Bolsonaro contra o isolamento social e o uso de máscaras, e a falta de uma campanha publicitária nacional de mobilização contra a pandemia, fruto também do negacionismo, se refletem no grau de responsabilidade atribuída à própria população: 1%. No ranking dos mais empenhados na luta contra a covid-19, governadores (38%) e prefeitos (28%) deixam Bolsonaro (16%) na rabeira.

Resiliência
Mas que ninguém se iluda, mesmo assim, Bolsonaro tem uma base de apoio muito resiliente, o que ainda lhe assegura um piso confortável de aprovação para quem pretende disputar a reeleição. Por exemplo, em relação ao impeachment, o índice oscilou dentro da margem de erro: 53% eram contrários à abertura de impeachment em janeiro, ante 50% agora; 42% eram favoráveis àquela ocasião; agora, são 46%. A mesma coisa em relação à renúncia de Bolsonaro: 51% avaliam que não deveria renunciar, contra 45% favoráveis. São números desagradáveis, mas não são irreversíveis se o governo se reposicionar em relação à pandemia.

A aposta de Bolsonaro é de que a situação pode ser revertida com a vacinação em massa da população, que está muito atrasada, porém, o governo iniciou uma corrida para comprar imunizantes, todos os que forem possíveis. O atraso nas vacinas existe porque a prioridade era outra, o tratamento precoce com cloroquina. Em outra frente, o Ministério da Cidadania prepara a medida provisória do auxílio emergencial, que Bolsonaro pretendia levar pes- soalmente ao Congresso ainda ontem, mas não ficou pronta. Sua aposta é de que o auxílio mitigará os desgastes com a pandemia, ao possibilitar um alívio à chamada população de “invisíveis”, que perdeu as fontes de renda com a pandemia.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pior-momento-de-bolsonaro/