compositor
Revista online | São Ismael Silva
Ivan Alves Filho, historiador e documentarista*, especial para a revista Política Democrática online (50ª edição: dezembro/2022)
Um homem magro, da pele da cor da erva-mate, dono de um sorriso largo. Essa é a primeira imagem que me vem à memória quando penso nele. Vestia-se com elegância discreta, da maneira mais simples possível. Tinha o curioso hábito - pelo menos para o verão carioca - de fechar até o último botão da camisa social, quase sempre branca ou amarela, muitíssimo bem passada. Eu me recordo que do bolso esquerdo de sua calça pendia uma corrente de ouro, que dava sustentação a um belo relógio, redondo como uma moeda antiga. O camarada tinha mais anéis do que dedos nas mãos. Vez por outra ele se apoiava em uma bengala, devido à dor que sentia nas plantas dos pés, dor essa provocada por cravos inflamados. Não fora pela elegância discreta, passaria perfeitamente por Carlitos. E estava sempre com um violão debaixo do braço, como se este materializasse uma extensão de seu próprio corpo. E talvez fosse mesmo.
Quando ele não comparecia à nossa casa, meu pai e eu o visitávamos em seu château modesto. E põe modesto nisso: o nosso amigo morava em um pequeno quarto, com paredes pintadas de verde, no bairro do Estácio. Acredito que na própria Mem de Sá, já não lembro bem. Só não me esqueci da escada comprida de madeira que tínhamos de subir – ou, melhor dizendo, escalar - para chegar ao santuário dele.
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Sua vida nem sempre fora um mar de rosas. Parece até que já fizeram muamba para o rapaz. Filho de cozinheiro, ele trabalhou alguns anos como pedreiro. Por causa de tantas desavenças, cumpriu alguns anos de cadeia. Quem disse que malandro não tinha palavra? Ele era aquele que na escola de samba tocava cuíca, surdo e tamborim. Compositor inspiradíssimo, ele nos legou Adeus, em parceria com ninguém menos do que Noel Rosa! Com Nilton Bastos, ele compôs o icônico Se você jurar - ou a mulher não é mesmo um jogo difícil de acertar? Mas o homem como um bobo...
Era um sujeito bondoso. Dava a impressão de ser um homem feliz, apesar dos problemas que enfrentou. Gozava da amizade de muita gente bamba, como Prudente de Morais, neto, jornalista e participante da Semana de Arte Moderna de 22. Prudentino, como todos o chamavam, era o Pedro Dantas da célebre Semana, amigo de Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. Não era para qualquer um. Aliás, Prudente de Morais era amigo ainda de outra grande figura da vida boêmia do Rio de Janeiro, ninguém menos do que Madame Satã. Prudente de Morais uniu sempre o nacional e o popular. Foi o único torcedor do Madureira que eu conheci na vida. Politicamente conservador, desabou no choro quando lhe anunciaram, em plena redação da sucursal carioca do Estadão, o assassinato de um querido amigo, o comunista histórico Carlos Marighella.
Tenho saudades dos sambas que o velho amigo bondoso de meu pai cantava lá em casa, enquanto aguardava a feijoada que minha mãe preparava pacientemente na cozinha. Quanta sabedoria havia neles! Isso acontecia normalmente em um sábado. Ele cantava com voz fanhosa, ligeiramente empostada. Sua alegria de viver se espalhava pelos quatro cantos da nossa casa, contagiando até as crianças, ou seja, minha irmã, Abua, e eu: "Aurora vem raiando anunciando o nosso amor..."
Veja, a seguir, galeria:
Não era por acaso que, para muitos, ele era São Ismael Silva, uma espécie singularíssima de santo profano, criador da Deixa Falar, a primeira escola de samba do carnaval brasileiro. Sim, Ismael Silva valia por uma instituição inteira - uma instituição bem brasileira.
Ismael Silva: Saudades e adeus – palavra que faz chorar.
Sobre o autor
*Ivan Alves Filho é historiador e, como documentarista, dirigiu, entre outros filmes, A casa de Astrojildo (sobre o intelectual revolucionário Astrojildo Pereira), A democracia como meio e fim (sobre o dirigente comunista Armênio Guedes), Morrer se preciso for (sobre o antropólogo Mércio Gomes), O Partido do samba (sobre Sérgio Cabral), A necessidade da Arte (sobre Leandro Konder), O construtor de sonhos (sobre Oscar Niemeyer), A luta poética (sobre Ferreira Gullar), Nada além da liberdade (sobre Antônio Ribeiro Granja) e Zuleika Alambert - Uma mulher na História e Jaime Miranda - Uma Voz do Povo.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2022 (50ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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'Esta direita é atrasada demais', diz José Carlos Capinan
Pelos seus 80 anos, escritor recebeu homenagem on-line da FAP e lembrou trajetória iniciada em Centro de Cultura Popular da UNE
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
Sem sair de casa, na Bahia, há mais de um ano, em razão da pandemia da Covid-19, o poeta, escritor e compositor baiano José Carlos Capinan, de 80 anos, classificou o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) como “um desastre”, que, segundo ele, provoca “atraso muito grande” para o país e risco de “levar todos ao abismo”.
Confira o vídeo!
Na quarta-feira (7/4), Capinan lembrou sua história de uso das palavras para mover a cultura, a poesia, a música e a literatura brasileiras, durante homenagem on-line da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania, pelos 80 anos do compositor, completados em fevereiro. O poeta lamentou a falta de um política nacional de enfrentamento à pandemia, sem citar nominalmente Jair Bolsonaro.
A homenagem ao escritor ocorreu poucas horas depois de o presidente descartar lockdown nacional contra a Covid, na mesma data em que o país registrou 3.829 mortes por complicações da doença e um dia após bater o recorde de 4.195 óbitos em apenas 24 horas.
Músicas contra obscurantismo
O presidente do Cidadania, Roberto Freire, ressaltou a importância de seu contemporâneo como poeta e compositor. “Você escreveu, na nossa juventude, muito daquilo que a gente pensou e protestou, com músicas importantes que nos ajudaram a lutar contra a ditadura e regimes como este, obscurantista, sempre apontando muito bem para o futuro”, acentuou.
Na homenagem com transmissão ao vivo pelo site e redes sociais da FAP, o diretor-geral da entidade, sociólogo Caetano Araújo, cumprimentou Capinan, chamando-o de “extraordinário militante da cultura e da política”.
Defensor da democracia e justiça social, Capinan já escreveu músicas para cantores nacionalmente conhecidos, como Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Jards Macalé, Paulinho da Viola, Geraldo Azevedo, João Bosco e Roberto Mendes.
Sem citar Bolsonaro, o compositor não escondeu sua decepção com o governo brasileiro. “Não acredito que a gente possa viver, de forma definitiva, qualquer desastre como este que a gente está vivendo. Na verdade, nunca pensei, nunca acreditei em um retrocesso tão grande. O Brasil já viveu coisas muito mais à frente disso que está aí. É um atraso muito grande”, disse.
Confira o podcast!
Abismo
O poeta disse que, normalmente, a esquerda é acusada de ter visões e comportamentos muito ultrapassados, mas, segundo ele, “esta direita é atrasada demais”. “É uma direita que não tem como sobreviver, realmente levará todos ao abismo. A dificuldade que enfrentamentos é o inesperado: esta doença, coisa terrível”, afirmou.
Por outro lado, o poeta agradeceu aos cientistas por lutarem na árdua guerra contra a Covid, que já matou mais de 341 mil pessoas no país. “Ao mesmo tempo, temos a ciência respondendo a tudo isso”, disse. “Felizmente, temos uma ciência fantástica respondendo a essa loucura”, reforçou.
Apesar da hecatombe da pandemia, Capinan mantém vivo o seu otimismo. “Creio que essas coisas que a gente atravessa na história, esse túnel, têm uma saída, vão ter uma saída”, salientou ele.
Em sua avaliação, o modelo econômico que sustenta desigualdade e exclusão tem se mostrado cada vez mais insustentável. “Não sei se interessa ao capitalismo essa forma horrorosa que hoje atravessamos. Temos um capitalismo já desenvolvido, melhor pensado e executado, e essas trevas, provavelmente, não serão definitivas em momento algum”, ponderou.
Militante do PCB
A homenagem também serviu para compositor reencontrar, mesmo que virtualmente, amigos dos anos 1960, quando frequentou o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Ele também foi militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), que evoluiu para o Partido Popular Socialista (PPS) e ganhou nova identidade com o Cidadania.
“Foi exatamente o Centro Popular de Cultura que me deu instrumentos para meu trabalho”, contou o poeta. “Foi no CPC o primeiro encontro com o pessoal do Partidão. Apesar de Salvador ser politizada pelos estudantes, havia uma histórica família comunista, dos Santanas, do qual Tom Zé era originário. Aristeu Nogueira me catequizou para o partido”, disse.
Em 1964, no primeiro ano da ditadura militar, fugiu de Salvador para a casa do pai, no interior de São Paulo. Tinha 12 irmãos. “Era uma coisa muito interessante porque meu pai sentava na cabeceira da mesa e, uma vez, ele, sempre sensível, disse: ‘os comunistas querem mudar o mundo, mas, na hora em que o bicho pega, correm para casa’”, lembrou.
O compositor nasceu, em 1941, em arraial de Três Rios (BA), mas foi registrado na vizinha cidade litorânea da Esplanada. Ainda muito cedo, mudou-se para o litoral Sul da Bahia.
Inspiração nas feiras
“Na minha casa não havia biblioteca. Meu tio era telegrafista e me criou. Em Salvador, moramos defronte à Feira de Água de Meninos, que, posteriormente, em 1964, foi incendiada”, afirmou. “Acredito que não foi acidente porque era desejo, na época, de se retirar a feira do local”, disse.
Foi justamente a movimentação da cultura popular nas feiras que fez Capinan desenvolver o gosto pelas letras. “Minha relação com a poesia nasce da observação de poetas populares nas feiras e vendedores de mesinhas no Pelourinho, em Salvador”, contou ele.
As palavras cantadas pelos Camelôs na correria para vender seus produtos, lembrados por Capinan como “animadores incríveis do cotidiano”, revelaram a riqueza e a inspiração da sabedoria popular nas feiras.
“Lá aprendi as primeiras lições de poesia. Eu também era muito leitor de livro de cordel. Tinha coleção fantástica desses livros e me alimentava muito das histórias e fantasias. Era muito estimulado pela criatividade dos cordéis”, relatou.
Ao concluir a retrospectiva de seus 80 anos de vida, o compositor definiu sua trajetória como “perseverança incrível” e compartilhou com todos o desejo por um país menos injusto, menos desigual e menos excludente.
“A gente vê coisas maravilhosas no Brasil”, ressaltou, para apontar os maiores desafios. “Vencermos o racismo, o preconceito, o obscurantismo. Esses retrocessos todos vamos ter que superar, e espero estar vivo para celebrar com vocês ou com a mesa farta baiana o fim de tudo isso. Não sei o que teremos para escolher, mas escolheremos melhor do que está e do que estamos vivendo”.
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