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O Globo: Partidos se articulam para barrar indicação de Bia Kicis à CCJ da Câmara

Aliados de Lira acreditam que deputada terá dificuldade de ser eleita pelos futuros integrantes da comissão

Natália Portinari, Bruno Góes e Paulo Cappelli, O Globo

BRASÍLIA — Em meio à reação negativa em torno da escolha da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para assumir a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, partidos se articulam para derrubar a indicação ou derrotar a parlamentar no voto.

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Seu nome foi definido para o cargo em um acordo no PSL, a quem cabe a indicação, mas já há resistência entre parlamentares até no próprio partido. Segundo a deputada, Arthur Lira (PP-AL), o novo presidente da Câmara, ajudou a costurar a combinação que levou à indicação de seu nome.

Aliados de Lira, porém, acreditam que Bia Kicis terá dificuldade de ser eleita pelos futuros integrantes da CCJ. Avaliam, em conversas reservadas, que ela cometeu um equívoco ao anunciar que seria presidente um mês antes da instalação da comissão e que, pelo histórico polêmico, sofrerá resistência.

Presente em atos considerados antidemocráticos nos quais os manifestantes atacavam o Congresso, e ela mesma uma crítica daquilo que aliados de Bolsonaro chamavam de “velha política”, a parlamentar não tem boa relação com líderes partidários. A previsão do entorno de Lira é de que ela seja derrotada por uma candidatura avulsa caso insista.

O PSL tem a prerrogativa de indicar o comandante da CCJ por ter 53 deputados, tendo sido a maior bancada do maior bloco na eleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da Câmara em 2019. As comissões seguem a proporcionalidade da primeira eleição da legislatura.

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Em geral, pela praxe parlamentar, o designado é eleito sem disputas em votações. Mas essa tradição pode ser rompida, alertam parlamentares, caso o PSL mantenha o nome de Kicis. Ela é investigada em dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF): o das fake news e o dos atos antidemocráticos.

Nesse último, Bia Kicis teve seus sigilos bancário e fiscal quebrados por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Ela negou à PF ter feito manifestações de apoio ao fechamento do STF e disse que sugeriu aos grupos bolsonaristas que não aderissem a essa pauta. A PGR apontou que ela gastou R$ 6,4 mil de sua cota parlamentar para contratar uma empresa para promover nas redes sociais apoio a manifestações antidemocráticas.

Possíveis adversários

O deputado João Bacelar (Podemos-BA) lançou sua candidatura à presidência da CCJ. “Precisamos de equilíbrio, aqui nesta Casa. Chega de disputas acirradas, conflitos e pressões do governo”, disse, em nota.

Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Câmara e aliado de Arthur Lira, frisa que Bia precisará fazer um “trabalho de diálogo”:

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) é a de maior destaque, tanto da Câmara quanto do Senado, porque a grande maioria das propostas precisa ser apreciada pelo colegiado. É considerado um controle preventivo da constitucionalidade e do ordenamento jurídico.

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Dentro do próprio PSL, há dirigentes e deputados que estimulam o lançamento de outra candidatura para enfrentar Bia Kicis. O mais cotado para a tarefa é Marcelo Freitas (PSL-MG), visto com um parlamentar com bom diálogo com a ala de Luciano Bivar (PSL-PE), presidente do partido, e com o núcleo bolsonarista.

Ao GLOBO, Bivar disse que a bancada é quem deve escolher o nome e evitou responder se apoia Kicis:

— O partido hoje tem novo líder, Vitor Hugo. Então o partido tem o direito a indicar o presidente da CCJ. Mas é preciso ser eleito na comissão.

O acordo costurado por Lira no PSL envolve ceder a Bivar a primeira secretaria na Mesa Diretora. Os bolsonaristas, que pertencem à outra ala do partido, ficariam com a CCJ e poderiam indicar o líder, Vitor Hugo.


O Estado de S. Paulo: 'Não quero o STF interferindo nas minhas funções', diz Bia Kicis

Deputada critica o que considera interferência da Corte no Parlamento e defende fim da CPI das Fake News

Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Indicada para comandar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a principal da Câmara, a ex-procuradora da República e deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) pretende colocar em votação um projeto para acabar com o que ela chama de "ativismo judicial". Ela é alvo de um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) sob suspeita de organizar atos antidemocráticos no ano passado. "Não quero o STF interferindo nas minhas funções de parlamentar", afirmou Kicis em entrevista ao Estadão/Broadcast.

A parlamentar contou já ter conversado com o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), um dos líderes da bancada evangélica na Câmara, autor de um projeto que inclui na lista dos crimes de responsabilidade a "usurpação de competência do Congresso Nacional" por parte de ministros do Supremo. A proposta está parada na CCJ desde 2016.

Uma das principais apoiadoras do atual governo, a deputada tem a bênção do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para ser a primeira mulher da história a comandar a CCJ. O colegiado deve ser retomado após o carnaval, depois de ficar um ano parado devido à pandemia do novo coronavírus. Embora formalmente haja eleição para o comando da comissão, o nome do presidente é definido previamente por acordo.

Na entrevista, ela afirma ainda que suas prioridades à frente da CCJ devem ser a reforma administrativa, enviada pelo governo à Câmara no ano passado, as pautas de costumes, como o ensino doméstico (homeschooling), e projetos que barrem a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19.

O governo passou uma lista de projetos prioritários para o Congresso votar e incluiu medidas da pauta de costume. A sra. vai dar prioridade a essa agenda?

Claro, porque as pautas de costume ficaram completamente obstruídas nos últimos dois anos. É preciso avançar nisso também, buscando equilíbrio. Falei com o deputado Sóstenes (Cavalcante, do DEM, um dos principais líderes evangélicos da Câmara) sobre uma pauta para combater a usurpação de poder do Legislativo, para podermos usar medidas de freio e contrapeso e não permitir ativismo judicial, avançando nas nossas pautas.

A sra. participou, divulgou e convocou pessoas para participar de protestos onde havia pessoas carregando cartazes e pedindo o fechamento do STF, a volta da ditadura...

Mas eu nunca carreguei esses cartazes. Vamos ser muito honestas aqui. Tem uma manifestação com 10 mil pessoas de verde e amarelo, bandeira do Brasil, cantando o Hino, apoiando o presidente. Ai, você tem um grupinho de uma ou duas pessoas ali com um cartaz. Qual é a responsabilidade que temos sobre isso?

A sra. é contra o fechamento do STF?

Óbvio que sou contra, sou uma jurista. Quero um Supremo que funcione cumprindo seu papel constitucional. Eu sou contra o ativismo judicial do STF. Agora, como parlamentar, não quero o STF interferindo nas minhas funções de parlamentar. É muito diferente. E outra, relatório da PF já disse que não tem nenhum elemento para indiciar a mim ou qualquer outra pessoa no inquérito. Eu não sou investigada em nenhum crime.

E na investigação da CPI da Fake News?

Essa CPI da Fake News teria de acabar, ela é uma vergonha e foi uma armação.

Por quê?

Primeiro que não existe conceito de fake news. Segundo que pegaram pessoas que expressam sua opinião nas redes para dizer que é fake news. Os fatos que disseram que eu teria espalhado fake news, eu ganhei na Justiça por provar que o que eu falei era verdade. Um atestado de óbito de um borracheiro que dizia que ele morreu de covid-19.

A sra. é uma das principais aliadas do governo na Câmara e associada ao bolsonarismo mais radical. Acha possível fazer acordos com a oposição para que projetos importantes para o País avancem na CCJ?

Me sinto perfeitamente apta, tanto com capacidade jurídica para isso, como com capacidade política. Existe muita narrativa que não se sustenta, na realidade, quem conhece meu trabalho, sabe que eu sou uma pessoa de diálogo, de negociar.

A sra. vai sentar à mesa com o PT para conversar?

Fiz isso por um ano e meio como vice-líder do governo no Congresso, conversei com todos da oposição e tivemos um excelente relacionamento.  

A Câmara discute medidas que podem dificultar a punição a políticos corruptos, como uma revisão da Lei de Improbidade, afrouxar a lei de lavagem e restringir o compartilhamento de dados por órgãos de investigação. Pelo seu histórico de ativismo anticorrupção, a sra. vai combater essa agenda?

Estava assistindo um debate sobre a Lei de Improbidade com vários advogados dizendo que existe um projeto no Congresso que é muito bom, que vai avançar muito. Então, pretendo ver esse projeto. Mas a primeira coisa que preciso fazer é tomar pé do acervo que está na CCJ. 

São mais de mil projetos parados.

Mas tem muito projeto irrelevante que eu não pretendo pautar como, por exemplo, dar nome de rua. Acho que não é isso que temos de fazer agora, não é o que o País precisa, precisamos focar nas reformas. Administrativa é prioridade absoluta e também pautas de costume, temos ai homeschooling.

Reforma administrativa vai ser o primeiro projeto que a senhora vai pautar?

Chegando na CCJ, sim, vai ser o primeiro. Mas preciso ver em que pé  está. Ainda não tem relator nem nada. Mas será prioridade assim que chegar lá.

Existe possibilidade de algum projeto para barrar a obrigatoriedade da vacina?

Eu sou autora de um projeto, mas não existe só o meu. Sou favorável para que tenha vacina para todo mundo. Meu pai já tomou vacina. Ele tem 90 anos e tomou a primeira dose da Coronavac, está esperando a segunda.

Como as bandeiras de Bolsonaro devem avançar agora nesse novo Congresso?

Falei com Lira sobre isso e ele disse que a intenção é pautar junto com os líderes. Ele me disse: "nosso Congresso é conservador". Então, pautas conservadoras andarão. (O ex-presidente da Câmara, Rodrigo) Maia (DEM-RJ) sentava em cima, ele não dava chance de ir para o voto.

O que sra. fará se chegar um processo de impeachment na CCJ?

Isso seria absolutamente enterrado, porque é preciso ter crime do presidente Bolsonaro. Mas acredito que não chega até a CCJ, antes é necessário que processo seja admitido pela presidência da Casa e ele (Lira) não deve admitir. Não há indícios que sustentem um pedido.

Existe a chance de a senhora não ser a presidente da CCJ?

Só se houver uma quebra de acordo, o que vai ser muito ruim para o Congresso. Isso iria desmoralizar uma gestão que chegou com o compromisso de acordo.

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Na primeira metade de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu emplacar suas pautas de costumes. A expectativa dele era que, a partir deste ano, com as duas casas comandadas por seus aliados, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a situação mudasse. Mas não é o que parece que ocorrerá. Nesta quarta-feira, na abertura do ano legislativo, Lira e Pacheco se comprometeram a pautar temas ligados ao crescimento da economia, mas não com a agenda ultraconservadora do presidente.

Em uma relação enviada aos parlamentares pela Secretaria de Governo, Bolsonaro citou que gostaria que nos próximos anos fossem debatidos temas como a permissão para mineração em terras indígenas, alterações no estatuto do índio, a ampliação do porte de armas para a população em geral, a licença para militares matarem quando estiverem em operações de garantia de lei e ordem (as GLOs), além da permissão para o ensino escolar domiciliar, o homeschooling.

Mais cedo, contudo, os presidentes de Câmara e Senado assinaram um documento no qual se comprometem a se empenhar em pautar medidas para o combate à pandemia de covid-19, a reforma tributária e às propostas de emendas constitucionais dos fundos infraconstitucionais e a emergencial. Essas duas últimas tratam da destinação de recursos da União para Estados e Municípios.

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Apesar de um aparente descompasso inicial, o presidente Bolsonaro disse estar confiante na relação com os dois parlamentares. “O clima [é o] melhor possível. Imperará harmonia entre nós”, declarou após um encontro com Lira e Pacheco na manhã de quarta-feira. O Governo ainda pediu dedicação do Parlamento na análise da reforma administrativa e da privatização da Eletrobrás. Algo que, inicialmente, não estava necessariamente no radar de prioridades do Congresso.

Na relação enviada pelo Executivo também constam propostas feitas para agradar os ruralistas, como os projetos de lei que pretendem alterar a regularização fundiária, o licenciamento ambiental e a concessão de áreas florestais.

No ato de abertura do ano legislativo, o presidente foi vaiado por deputados do PSOL, que fazem oposição ao seu Governo. Eles o chamaram de “genocida” e “fascista”. Em tom de deboche, o mandatário disse que em seus 28 anos de parlamentar sempre respeitou as autoridades que frequentaram o plenário da Câmara. E retrucou: “Nos vemos em 22”. Era uma alusão à eleição presidencial prevista para ocorrer em outubro do ano que vem na qual ele deve ser candidato à reeleição.

Reforma à vista

A relação inicial entre o Executivo e o Legislativo servirá de teste para Bolsonaro começar a pagar a fatura com o Centrão, responsável pela eleição de Lira para a presidência da Câmara. Auxiliares do presidente relataram que, ao invés de entregar os prometidos quatro ministérios já neste mês, o presidente pretende fazer uma reforma ministerial a conta-gotas. Seria uma estratégia para não deixar tão evidente o toma-lá-dá-cá que foi a eleição no Parlamento. Duas pastas da Cidadania e do Desenvolvimento Regional seriam entregues nas próximas semanas ao Centrão e ao grupo de Davi Alcolumbre (DEM-AP), que apadrinhou a candidatura de Pacheco. O presidente ainda estuda como iria acomodar os atuais ministros, Onyx Lorenzoni e Rogério Marinho, respectivamente. Lorenzoni deve ir para a Secretaria-Geral da Presidência. O destino de Marinho é incerto.

Numa segunda etapa, o presidente poderia recriar o Ministério da Previdência e o do Esporte, para alocar indicados do Centrão. Ainda há a possibilidade de dar as pastas ou da Saúde ou da Educação para os neoaliados. Outra troca deve ocorrer no Itamaraty. Mas essa seria uma indicação pessoal de Bolsonaro e um aceno ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já que o atual ministro, Ernesto Araújo, foi um dos que mais empenhou na relação com Donald Trump.

As mudanças ocorreriam conforme os neobolsonaristas passassem a fazer a sua parte, ou seja, a aprovar os projetos de interesse do Planalto. Ainda não está claro para o Governo qual é o tamanho real de sua bancada. Na Câmara, 302 dos 513 deputados votaram no candidato de Bolsonaro, Lira. Mas sabe-se que houve traições entre parlamentares que os partidos oficialmente apoiavam Baleia Rossi (MDB-SP). No Senado, entre os 57 votos de Pacheco (entre 81 possíveis) houve apoios do PT, da Rede e do PDT, que são declaradamente opositores e tentam emplacar uma CPI da Saúde, para investigar a atuação do Governo na pandemia de coronavírus.

A ocupação de espaços internos da Câmara e do Senado também demonstrarão qual é o real tamanho do empenho dos bolsonaristas. O primeiro teste de fogo será a disputa pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Esse é o principal colegiado da Casa, por onde passam todos os projetos de lei. Em tese, o cargo seria de direito do PSL, que indicou a deputada Bia Kicis (PSL-DF). Em seu primeiro mandato, ela é defensora de um golpe militar, é aliada de primeira hora do presidente e foi apontada como uma das principais disseminadoras de desinformação da Câmara. Há uma tentativa de demovê-la da ideia de assumir o cargo. Apesar da indicação do partido, a escolha de presidentes de comissões depende da votação dos membros de cada colegiado. A derrota de Kicis seria a derrota de Bolsonaro.


Alon Feuerwerker: O que muda e o que fica igual

Finalmente elegeram-se por completo as mesas diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Comandam ambas aliados do presidente da República. Se não aliados históricos, ao menos personagens que chegaram lá também pela força do governo.

O que muda em relação à situação anterior? Pela primeira vez em seis anos, haverá uma sincronia maior entre o Executivo e o Legislativo. E o risco de impeachment caiu verticalmente. Essa eventualidade depende agora de um desarranjo político ainda fora do radar.

Ou de surgir o assim sempre chamado (e por alguns esperado) fato novo. Que na política brasileira nunca é conveniente descartar. Mas ainda não está no horizonte. Uma possível fonte é o Judiciário, ainda que a Operação Lava Jato esteja no ocaso.

Ou seja, tudo indica que a pauta legislativa vai andar. Os juízes não vão mais travar o jogo. Mas o desafio maior continua do mesmo tamanho. O governo precisará reunir os votos. Foi competente para fazer isso na eleição das mesas. Vai ter a mesma competência para aprovar suas propostas?

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Carlos Melo: Ampla lista de prioridade é não ter prioridade

Vencer eleição não é difícil, sobretudo, com recursos às mancheias. Difícil é satisfazer expectativas: cumprir promessas espalhadas ao ar como confetes, honrar acordos, conciliando interesses; definir prioridades e demonstrar como realizá-las. Passadas as disputas na Câmara e no Senado, os vencedores devem mostrar que estão prontos e sabem o que fazer. Liderança é um estado de prontidão.

Agrega-se a eles nessa obrigação também o Executivo, pois, no limite, foi o presidente da República proclamado como grande vitorioso do processo. Para Jair Bolsonaro será, aliás, um desafio interessante: a partir de agora, não poderá dizer que é impedido pelo Congresso, não poderá atribuir a desafetos a origem de suas dificuldades: ao vencedor, não cabe desculpas.

Nesse sentido, era natural que os principais dirigentes políticos do país viessem a público expressar seus propósitos. No processo eleitoral, Arthur Lira, por exemplo, não conseguiu elaborar nada que extrapolasse o corporativismo, o interesse e as questiúnculas de seus pares do baixo clero. Logo, cumpria mostrar ao que vieram. Foi o que tentaram simbolizar ao trocarem quase protocolarmente cartas de intenção.

Primeiro, Pacheco e Lira enfatizaram o enfrentamento à pandemia na aquisição de vacinas — atribuição do Executivo, diga-se –, apontaram a necessidade do retorno ao Auxílio Emergencial; comprometeram-se com o teto de gastos, mencionaram as “reformas”. Não disseram como.

Depois, foi presidente: numa lista de 35 propostas, Bolsonaro desenrolou um pergaminho de questões ao gosto de uma base eleitoral conservadora e extremista. Para o mercado, houve espaço até para mencionar a retomada do investimento e a questão fiscal.

Mas, é forçoso reconhecer que o rol de questões é perigosamente amplo e genérico. Parece produtivo, mas prima pela falta de objetividade. Em ambiente de escassez, o governar é definir prioridades. No mais, apresentar um plano para realizá-las. Isso, sim, expressaria liderança e sinalizaria caminhos para superação da crise ampla, geral e irrestrita em que o país se encontra.

É certo que em política não há o rigor de uma ordem burocrática, nem movimentos exatos; nada é simples, há conflitos e movimentos de opinião pública podem ajudar ou inviabilizar pautas importantes. É da natureza da atividade que intercorrências possam se interpor aos desejos. Mas, o timing é fundamental: iniciar o processo com clareza, seria importantíssimo. Por definição, ter mais de uma prioridade, é não ter prioridade alguma.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Adriana Fernandes: PEC emergencial, antes vista como salvadora, já morreu no Congresso

Por ora, a coisa mais responsável a fazer é aprovar o auxílio emergencial

Por interesse político-eleitoral, criou-se a falsa ideia de que seria possível prorrogar o auxílio emergencial com responsabilidade fiscal e dentro do teto de gastos. 

Essa possibilidade nunca existiu de verdade e a realidade virá à tona nas discussões de Orçamento de 2021 que começam de fato na próxima semana.

Com o fim das eleições, a história já é outra. O primeiro passo foi dado: o anúncio da decisão de conceder o auxílio no manifesto assinado pelos novos presidentes Rodrigo Pacheco (Senado) e Arthur Lira (Câmara) e entregue ao presidente Jair Bolsonaro. O documento chegou carimbando no Palácio do Planalto.

Com o auxílio chegando pelas mãos do Congresso, ninguém poderá dizer que o presidente quis ser populista. De quebra, Bolsonaro ganha depois os bônus pela concessão do benefício da população. A mesma estratégia já foi usada outras vezes com sucesso.

A urgência da pandemia não permite esperar a discussão difícil de corte de gastos que demora tempo. Também há a pressão para a acomodação de novas demandas políticas, acertadas durante a campanha eleitoral. Sem falar na necessidade mais do que evidente de ampliação de gastos para a área de saúde com a segunda onda da pandemia (ninguém está falando disso agora, mas esse tema vai aparecer) e os pedidos de recursos que surgem para a produção de novas vacinas no Brasil.

Nesse momento de retomada das discussões da lista de prioridades de projetos no Congresso, o ponto mais importante que precisa ser levado em consideração é que a PEC emergencial, que muitos depositam esperança quase salvadora ou fingem fazê-lo, perdeu o seu tempo. Ficou no passado.

A função da PEC emergencial de garantir abertura fiscal para acomodar espaço no Orçamento deste ano, de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões, para um programa social praticamente não existe mais.

Em primeiro lugar, porque a essa altura qualquer medida de desindexação (que implicava congelamento da correção de benefícios como aposentadorias) de despesas do Orçamento para 2021 já não servem mais. O salário mínimo já está dado.

Em segundo lugar, porque os efeitos, por exemplo, da aprovação de gatilhos como corte de jornada e de salários dos servidores, na melhor hipótese, precisam ser regulamentados. Um processo que pode demorar meses e cuja economia diminui à medida que o tempo passa. O mesmo vale para as mudanças nas regras do abono salarial, que se aprovadas a contragosto do discurso do presidente, só terão efeitos em 2022.

Por último, ganhos com corte de despesas de pessoal já estão na conta do Orçamento depois que a lei de socorro aos Estados e municípios foi aprovada com congelamento de salários dos servidores públicos até o final deste ano.

A emergência da PEC emergencial, portanto, perdeu sua função imediata: solucionar um problema de curto prazo. Mesmo que a proposta inclua corte de renúncias e isenções fiscais (algo ainda difícil de acontecer em 2021).

Olha a dificuldade que tem sido para o presidente Bolsonaro reduzir o PIS/Cofins do diesel e minimizar o risco de greve! Para reduzir o tributo, a solução dada foi a compensação com medidas que aumentam a arrecadação com corte de benefícios fiscais. O presidente não aceitou até agora.

A compensação é uma exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal que deixa sempre Bolsonaro desgostoso com Guedes a ponto de ter acenado, no sábado, com a possibilidade dessa regra ser alterada na discussão da reforma tributária. Se levada a cabo, a sua retirada será o maior golpe feito até agora contra a LRF em seus quase 21 anos.

Se quiser avançar de verdade na agenda econômica, o governo e seus aliados políticos precisam mudar o disco arranhado da repetição em coro sobre a necessidade da PEC emergencial. É melhor não perder tempo com isso. Vide o fracasso do primeiro relatório da PEC emergencial do senador Márcio Bittar.

Guedes, mesmo que não fale publicamente, já percebeu isso e tenta recolocar uma PEC maior e mais reforçada em torno do Plano Mais Brasil, pensado em 2019 e que depois foi dividido em três PECs para atender aos interesses políticos de dar mais protagonismo ao Senado de Davi Alcolumbre depois da aprovação da reforma da Previdência

Mas essa é uma PEC muito difícil e impopular para aprovar, com efeitos para o futuro, além de 2022. O custo político de tentar agora será alto. Muitos acham melhor apostar as fichas numa reforma administrativa mais forte. A reforma tributária, por enquanto, é um sonho de uma noite de verão. O risco de não ter ajuste é grande. Ela deve ficar para o próximo mandato.

Tudo isso com o Centrão com fama de “gastador” no comando total e a pauta de costume mais viva do que nunca concorrendo com a agenda econômica. Por ora, a coisa mais responsável a fazer é correr para aprovar o auxílio. Depois, escolher os alvos certos do que apostar. Entregar uma carta de intenções de projetos prioritários ao Congresso não basta.


Roberto Macedo: Ao escolher o presidente, Câmara ignorou seus representados

Os congressistas deveriam explicar aos eleitores o seu voto e a razão

A Carta Magna de 1988 diz no seu artigo 1.º, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A julgar por isso, a recente eleição de Arthur Lira (PP-AL) para presidente da Câmara seria inconstitucional, tamanha a distância que a maioria dos seus deputados manteve do povo.

O que se viu foi um processo de vassalagem a um candidato que não teria vencido se não fosse o apoio recebido do presidente Jair Bolsonaro, até mesmo sob forma que anteriormente abominava, o toma lá de verbas e cargos, e o dá cá de votos, vistos como o melhor para lhe evitar incômodos, como um processo de impeachment e comissões parlamentares de inquérito. E também para facilitar medidas para aumentar sua popularidade e suas chances de reeleição em 2022. O anterior presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, não se curvava diante de Bolsonaro, já Lira deve responder com gratidão.

Quanto a isso, merece destaque a reportagem Por eleição, Planalto libera R$3 bi a parlamentares, publicada por este jornal no último dia 29. Lamentavelmente, negociações de liberação de recursos para parlamentares em troca de apoio político no Congresso é prática antiga e comum em Brasília, mas o que chamou a atenção agora foi a dimensão do valor e a coincidência com o período pré-eleitoral nas duas Casas do Congresso.

Quanto a essas negociações, o jornalista Carlos Brickmann fez esta comparação: “Para evitar o constrangimento de levar uma proposta indecente a um parlamentar decente”, o que procurasse o governo ou fosse chamado para negociar deveria portar um código de barras para mostrar o valor de seu interesse, e acelerar as negociações.

Nos Estados Unidos, propostas legislativas feitas por congressistas em favor de seus redutos eleitorais são chamadas de earmarks, como aquelas plaquinhas colocadas em orelhas de bovinos. Lá são combatidas por uma instituição chamada CAGW (Cidadãos contra o Desperdício Governamental), como não cabíveis num orçamento federal que deve ser voltado para o bem comum, e não para interesses específicos e locais. Aqui caberia iniciativa similar, pois tais emendas parlamentares e outras verbas que recebem violam outro dispositivo constitucional, o de que todos são iguais perante a lei, pois no processo eleitoral os candidatos já incumbentes são beneficiados por essas dotações relativamente aos candidatos sem mandato. Assim, elas constituem indiretamente um financiamento público de campanhas, que distorce a competição entre candidatos.

Voltando à representação dos eleitores, a brasileira é extremamente frágil. Vivi em países com voto distrital, em que o eleito passa a representar um distrito, e não apenas aqueles que o elegeram, e tem o hábito de prestar contas aos moradores distritais ao longo de seu mandato, sem o que poria em risco a renovação dele. Houvesse isso aqui, os congressistas deveriam estar agora explicando em quem votaram na segunda-feira passada e a razão. Muitos enfrentariam problemas, pois a avaliação de Bolsonaro vem caindo e está perto de 30% a proporção dos que veem sua gestão como ótima ou boa. Aliás, a representatividade dos parlamentares eleitos no Brasil é tão baixa que é como se eles fossem parlamentares cometas, pois só aparecem diante do eleitor a cada quatro anos, em busca de votos.

No Senado, o resultado pareceu-me diferente do da Câmara e não tão ruim. Foi eleito o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) por maior margem relativa de votos, tendo como adversária apenas uma concorrente simbólica, Simone Tebet (MDB-MS), que disputou individualmente. Seu próprio partido deixou de apoiá-la. Bem articulado, Pacheco teve apoio até do PT.

Li na Agência Brasil reportagem sobre seu discurso de posse e destaco estes trechos: “Defendeu a independência da Casa, o combate à corrupção, a geração de empregos, o combate à pandemia, a estabilidade econômica e a preservação do meio ambiente. (...) (O Senado deve) atuar com vistas no trinômio saúde pública, desenvolvimento social e crescimento econômico, com o objetivo de preservar vidas humanas, socorrer os mais vulneráveis, gerar emprego e renda. (...) também citou as reformas, sobretudo a tributária. (...) votações de reformas que dividem opiniões (...) deverão ser enfrentadas com urgência, mas sem atropelo”. Em tese, tudo muito bonito.

Pacheco chegou ao Congresso em 2014, como deputado federal, e no seu primeiro mandato alcançou a presidência da importante Comissão de Constituição e Justiça, o que demonstra poder de articulação, ratificado pela eleição recente. Seu currículo não levanta tanto as sobrancelhas como o de Arthur Lira, mas tem sido criticado por conflito de interesses entre suas ações políticas e negócios da família.

O que quero mesmo é um Brasil melhor, mas tenho minhas dúvidas quanto à eficácia, nessa direção, dos novos presidentes da Câmara e do Senado, principalmente do primeiro. Certo mesmo é que vou acompanhar de perto o trabalho deles.

*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP.


Ribamar Oliveira: Para cumprir teto, risco é subestimar despesa

Redução do “empoçamento” é uma das ideias em estudo para abrir espaço para outros gastos

O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator-geral da proposta orçamentária deste ano, tem uma missão ingrata. Ele terá que descobrir uma maneira de fechar o Orçamento sem paralisar investimentos ou afetar serviços públicos. A avaliação dos especialistas é que as despesas não cabem dentro do teto de gastos sem que cortes adicionais sejam realizados. O relator não pode, no entanto, dar ouvidos a propostas que resultariam, em última análise, em subestimar despesas.

Um caminho nessa direção já foi trilhado em 2019, quando o Congresso Nacional aprovou o Orçamento de 2020. O então relator-geral da proposta orçamentária, deputado Domingos Neto (PSD-CE), reduziu as despesas com pessoal em R$ 6 bilhões, na suposição de que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186/2019 teria “aprovação célere”, pois ela era “considerada fundamental por expressiva parcela dos membros do Congresso”.

A PEC 186/2019 prevê, entre outras coisas, a redução da jornada de trabalho em até 25% com diminuição proporcional da remuneração nos exercícios financeiros em que a União descumprir a chamada “regra de ouro”, que proíbe o aumento da dívida pública acima da elevação da despesa de capital (investimentos e amortização da dívida). A PEC veta também o aumento do valor de benefícios de caráter indenizatório para servidores, assim como proíbe a progressão e a promoção funcional em carreira.

O relator Domingos Neto estimou quanto essas medidas impactariam as despesas e, com base no cálculo, reduziu o gasto com pessoal. Desta forma, ele abriu espaço no teto de gastos para acomodar emendas parlamentares. O problema é que a PEC 186/2019 não foi aprovada, a despesa com pessoal não foi reduzida, mas as emendas parlamentares, que são impositivas, ficaram no Orçamento para serem executadas. Esta foi uma clara maneira de furar o teto, sem qualquer reação do mercado.

O relator Bittar não pode, portanto, acolher a tese que foi abraçada pelo relator que o antecedeu, segundo a qual, se existe uma proposta legislativa em análise pelo Congresso, que prevê a aprovação de medidas reduzindo a despesa da União, a economia que seria obtida já pode ser incorporada ao Orçamento. Esta seria uma maneira tosca de burlar e desmoralizar o teto de gastos.

Se a tese prevalecer, bastará que, todo ano, o governo encaminhe um pacote de medidas de redução de despesas ao Congresso, estime a economia que terá com elas e incorpore ao Orçamento, no pressuposto de que serão aprovadas. Mesmo sabendo de antemão da impossibilidade de aprová-las. A farsa seria tão grande que, provavelmente, ninguém terá coragem de adotá-la.

Mas existe uma abordagem mais sofisticada. Desde 2017, quando o teto de gastos passou a ser a principal âncora fiscal do país, o governo registra o que o ex-secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida chamou de “empoçamento” de recursos. O fenômeno resulta, basicamente, da excessiva rigidez orçamentária brasileira, marcada por vinculações de recursos a despesas específicas, por mínimos legais e constitucionais, despesas de execução obrigatória e emendas parlamentares impositivas.

O Tesouro Nacional libera recursos para os ministérios e órgãos público, que, no entanto, não conseguem, por razões diversas, gastar o dinheiro. Por causa da rigidez excessiva, o Tesouro não pode alocar estes recursos para outras finalidades. O dinheiro acaba “empoçado”, ou seja, fica parado no caixa do ministério ou do órgão e termina sendo incorporado ao resultado primário da União.

No ano passado, R$ 21,7 bilhões ficaram “empoçados”. Em 2019, o “empoçamento” atingiu R$ 17,4 bilhões, enquanto que no ano anterior ele ficou em R$ 7,7 bilhões. Uma ideia que está sendo analisada é como reduzir o “empoçamento” para abrir espaço para outras despesas, principalmente investimentos.

Obviamente, a resposta mais razoável para a pergunta é reduzir as vinculações de receitas, ou seja, diminuir a rigidez orçamentária, o que é um dos “3 Ds” do ministro da Economia, Paulo Guedes. Os outros dois, são desindexação e desobrigação do gasto. Mas, dificilmente esta alternativa será adotada, pois ela envolve o abertura de sérios conflitos dentro da nova base política do governo. O risco, portanto, é que seja adotada uma fórmula fantasiosa apenas para disfarçar o furo do teto de gastos.

Há, no entanto, outra questão que está sendo considerada. No ano passado, a despesa total da União, ou seja, o que foi efetivamente pago, ficou R$ 52,2 bilhões abaixo do limite permitido pelo teto de gastos. O “empoçamento” explica apenas metade da folga. Outra razão para ela é que várias despesas obrigatórias foram estimadas acima do que foi efetivamente realizado, como os gastos com benefícios previdenciários, abono salarial, seguro-desemprego, pessoal e subsídios.

Para fechar o Orçamento deste ano, uma estratégia em análise é tentar fazer estimativas mais próximas da realidade. “Não dá para projetar uma despesa muito maior do que ela vai ser”, ponderou uma importante fonte do governo. O problema, no entanto, é cair no oposto, ou seja, subestimar despesas para cumprir o teto.


Maria Cristina Fernandes: O vício do Congresso

Com o sequestro do Orçamento por emendas parlamentares de valor crescente de que vale um presidente da República?

O presidente Jair Bolsonaro ganhou, mas não levou. A eleição na Câmara dos Deputados bifurca o futuro do país entre dois rumos, um ruim e o outro, péssimo. Um deriva de um presidente que comete estelionato eleitoral na aliança com o Centrão de olho na contestação do resultado de 2022. Pode fazê-lo agitando o voto impresso e atiçando a reação de praças e sargentos que cultiva nas tropas fardadas ou do bolsonarismo raiz que armou até os dentes.

As instituições que sobrarem podem impedi-lo? Sim, mas sequestrarão o país. Ou melhor, aumentarão um resgate inflacionado ao longo dos últimos vinte e poucos anos. No Congresso o processo foi inebriante. Basta ver, por exemplo, o que aconteceu com as emendas parlamentares. No início deram barato, mas viraram a dependência de uma droga crescentemente abastecida pelos impeachments, ameaçados e concretizados.

A prisão do chefe do tráfico de emendas levou à ascensão de outras lideranças, algumas que nasceram na boca, outras que a frequentam pelas beiradas e ainda aquelas que a toleram pelo poder. Com maior ou menor dependência, hoje não sobrevivem sem a droga.

O vício, por óbvio, é paulatino. Em meio aos arranjos parlamentares que se sucederam ao impeachment do primeiro eleito da Nova República e à posse de um vice desconfortável no cargo, sete parlamentares foram pegos com a botija. Os anões do Orçamento vagaram insepultos no governo Itamar Franco e permaneceram influentes até outro dia. O esquema, porém, se institucionalizou.

Os parlamentares passaram a ter uma cota no Orçamento em 1995, primeiro ano de Fernando Henrique Cardoso. As emendas não eram impositivas e o presidente navegava no arrocho com uma coalizão transatlântica.

Na era Luiz Inácio Lula da Silva a insatisfação só começou com o fim da esbórnia nas estatais. Ainda por cima, o financiamento privado de campanha havia sido proibido. Os fundos eleitoral e partidário foram turbinados, mas isso não bastava.

Incomodados com o gargalo mais estreito nas estatais no governo Dilma Rousseff, o Congresso aprovou a imposição de emendas individuais no início de um mandato que já se prenunciava interrompido. Naquele ano (2015) as emendas somaram R$ 9,7 bilhões.

A imposição deu barato, mas logo os parlamentares estavam em busca de novas alegrias. Em 2016 sintetizaram as emendas de bancada. No mesmo ano a boca colocou no Palácio do Planalto um velho conselheiro. Com ele, ascendeu na Câmara o representante de uma das lideranças que tolerava a droga pelo poder. No ano seguinte, quando as conversas de Michel Temer no subsolo do Alvorada vieram à tona, as emendas individuais e de bancada somaram R$ 15,2 bilhões.

Foi quando a família brasileira, horrorizada, resolveu dar um basta nesta inebriante orgia com a eleição para a Presidência da República de um representante das beiradas do tráfico. Não faltaram avisos de que se tratava de um macomunado com os esquemas policiais que dão proteção ao crime. Sucederam-se evidências escancaradas de que o escolhido era um engodo. Com isso, surgiu, em 2019, uma oportunidade de também tornar as emendas de bancada impositivas. Gerida no atacado, a boca foi tomada pelo varejistas experientes que esta semana, finalmente, acabariam por assumir o poder.

Ninguém sabia que uma pandemia estava por vir, mas os sinais de que o varejo da boca tomaria o poder ficaram evidentes no fim de 2020 com duas outras modalidades. Foram inseridas as emendas das comissões temáticas do Orçamento e aquela que ficou conhecida como “emenda do relator” e designava plenos poderes àquele que reelabora a peça orçamentária na Comissão Mista. Este ano se tornaria um dos coordenadores da campanha do novo presidente da Câmara.

Tratava-se de um alucinógeno nunca visto na Casa. A pedida inicial foi de R$ 30 bilhões. Depois de tonitruantes negociações, ficou pela metade. Ainda assim, somadas as emendas de comissão, individuais e de bancada chegava-se quase àquele patamar: R$ 29 bilhões.

Garantidas mesmo, com execução assegurada pela Constituição e desobediência sujeita a crime de responsabilidade do presidente da República, só havia as emendas individuais e de bancada que, no Orçamento planejado para 2020, somavam R$ 15,4 bilhões. Acrescidos aí os fundos eleitoral e partidário chegava-se a R$ 18,4 bilhões. A boca, definitivamente, havia se tornado um lugar mais aprazível do que o Palácio do Planalto onde, espremendo-se todas as rubricas de investimento (excluídas as estatais) chegava-se a R$ 19,5 bilhões. O valor, ao contrário daquele das emendas, está sujeito a contigenciamento.

É o melhor dos mundos. Os parlamentares governam num regime presidencialista com execução orçamentária garantida sem responderem pelos seus gastos.

Àquela altura, a Covid-19 já estava incubada. Com a aprovação do Orçamento extra de combate à pandemia, a boca entrou no isolamento das sessões remotas, mas na vida real, foi à guerra. Moveu-se por droga de efeito multiplicador que não deixa marcas no seu usuário, a emenda "extra orçamentária".

A verba de um mesmo ministério é prometida para três parlamentares diferentes. A promessa não é registrada oficialmente mas chega à ponta, ou seja, a Estados e municípios. Prefeitos, que se viram acossados por parlamentares a reivindicar transferências federais, foram obrigados a dividir compras de testes e medicamentos entre dois ou três fornecedores indicados por parlamentares.

A boca se refastelou. Um dos integrantes, acocorado para uma revista, mostrou que a droga não tem limite para degradar o corpo humano. Uma distribuidora do Piauí quinze dias atrás foi flagrada numa operação policial fornecendo medicamentos e notas frias ao gosto do freguês. Deputado e senador com avião é o novo normal.

As emendas que, nos anos 1990, faziam a alegria de parlamentares com R$ 1 milhão, agora somam nove dígitos. E o pior é que a festa acontece no meio do mandato. Parlamentares que usam o apurado para atender ao eleitor serão cobrados em 2022 a manter o mesmo patamar de entregas sob o risco de não se reelegerem.

O capitão alimenta a boca porque aposta que o Brasil é o baile funk no qual ele, um dia, vai poder chegar com sua tropa e instituições nada farão porque estão funcionando. No melhor das hipóteses, será derrotado numa eleição. E o vencedor, vai poder fazer o quê?


Ricardo Noblat: A lista do faz de conta que o governo quer aprovar

Nenhuma menção a programas sociais

Era previsível. Um governo que se instalou sem dispor de um projeto para o país e que assim continua dois anos depois, não tem prioridades, e, por isso, nada pode propor ao Congresso que surpreenda. Foi o que mais uma vez ficou demonstrado.

Jair Bolsonaro entregou aos novos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados o que espera deles, eleitos com seu aval – uma lista com 35 medidas a serem votadas em breve ou quando der. São medidas demais para o conturbado tempo que lhe resta.

2020 foi o ano da pandemia, onde o vírus atrapalhou o funcionamento normal do Congresso. 2021 será o ano da vacinação que, na melhor das hipóteses, entrará pelo próximo ano. 2020 é o ano que não acabou, e 2021 o que acabou cancelado.

Os políticos já estão em 2022 quando terão de renovar seus mandatos ou disputar outros. Nada farão que possa lhes custar votos. Reforma tributária? É complicado demais. Administrativa? Bolsonaro não parece disposto a cortar privilégios.

Privatização de empresas estatais? A Eletrobras poderá ir à leilão como falsa prova de que esse é um governo liberal. Mas não se conte nessa área com um processo robusto de vendas de empresas. Bolsonaro compartilha o nacionalismo equivocado dos militares.

O que de fato interessa a ele é que o Congresso chancele o que mantenha coesa sua base tradicional de sustentação. Assim – quem sabe? – ela engula sem reclamar tanto sua aliança recente com o Centrão, algo que ele disse que jamais faria.

Em um país com cerca de 1 milhão de cidadãos armados, Bolsonaro quer mais facilidades para armar o maior número possível. Milícias e organizações criminosas agradecem. Quer o endurecimento de penas para crimes considerados hediondos.

Quer também o ensino em casa para crianças e adolescentes, longe da influência de professores esquerdistas e sob a desculpa de que só os pais sabem o que deve ser ensinado aos seus filhos. E quer ainda que a mineração em terras indígenas seja liberada.

Ficou de fora do pacote de medidas qualquer menção ao restabelecimento do auxílio emergencial pago aos brasileiros mais pobres atingidos pela pandemia, e o eventual reforço do programa Bolsa Família que, se depender de Bolsonaro, mudará de nome.

Nada causou espanto na cena montada para que Bolsonaro prestigiasse a reabertura dos trabalhos do Congresso – nem as vaias, nem os gritos de “mito”, nem as imprecações de “fascista” e “genocida”. Sequer mais uma mentira pregada por ele.

Bolsonaro disse que concedeu até aqui mais títulos de terra do que os distribuídos nos últimos 14 anos. Foi para fustigar o PT que governou o país por quase 13 anos. Em 2019, ele concedeu apenas seis títulos. A média anterior foi de três mil títulos por ano.


Gabriela Prioli: Quem ganhar vai perder

Bolsonaro vai sorrir amarelo para o centrão?

Quando seu candidato ganhou a eleição à presidência da Câmara, Bolsonaro perdeu um ponto de sustentação da sua narrativa. E ele sabe disso, por isso a reação de afastamento: "eu apenas fiquei na torcida".

Jair existe na reação porque a sua presidência —ou a sua existência— não tem plano de ação. A estratégia é colocar a culpa nos outros. Foi assim até agora e tem funcionado.

O problema é que Arthur Lira não me parece ter qualidade essencial para que alguém seja considerado aliado do plano egocêntrico do capitão: a disposição para servir de muleta para o presidente. Alguém imagina Lira num vídeo como o de Regina Duarte na sua saída da Secretaria de Cultura? O sorriso amarelo de uma existência que se coloca a serviço do mito? Eu não. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Isso significa que Lira não poderá fazer concessões aos arroubos e discursos simbólicos de Jair? É claro que não. Fará, desde que a realidade se oriente em direção àquilo que é interesse do centrão. O sorriso amarelo pode se tornar o de Jair.

A pandemia produzirá os seus efeitos agravados pela péssima gestão de um presidente negacionista que boicota até a vacina. Um possível sucesso na pauta dos costumes segura Bolsonaro até a página dois. Se a economia afunda, não há conservadorismo que segure a insatisfação. Quando a hora do descontentamento chegar, o centrão, se lhe parecer conveniente, pode dizer: a culpa não é nossa, é do presidente, que não nos deixou fazer nada. Para isso, claro, precisam apresentar uma nova liderança.

O desafio dos que se contrapõem à agenda de Bolsonaro é compreender o resultado das eleições de 2018 e dos primeiros anos de governo com menos espanto e mais estratégia. Construir um denominador comum. A eleição na Câmara mostrou quantos votos se fazem com a frente ampla que a gente não construiu: um segundo lugar com menos da metade dos votos. Vitória no primeiro turno.

Que fique o recado para pensarmos 2022.


Bruno Boghossian: Ministros do STF veem 'dois anos difíceis' com aliança Bolsonaro-Centrão

Com aliados no Congresso, integrantes do tribunal acreditam que presidente voltará a 'se soltar'

Os sinais emitidos depois do casamento de Jair Bolsonaro com o centrão fizeram com que ministros do Supremo erguessem a guarda. A ala que enxerga o tribunal como um contrapeso necessário aos planos mais audaciosos do presidente prevê “dois anos difíceis”, nas palavras de um deles.

O comportamento de Bolsonaro nos próximos meses vai mostrar de que maneira o governo pretende aproveitar a rede de proteção que foi estendida a seu favor no Congresso. Com a saída de um opositor que lhe impôs alguns freios no comando da Câmara, a expectativa é que o presidente volte “a se soltar”.

No ano passado, Bolsonaro se viu ameaçado por investigações que cercavam seu grupo político e abandonou o espírito conflituoso com o Legislativo e o Judiciário. Agora, um grupo de ministros do STF prevê novos episódios de tensão com o Palácio do Planalto. A diferença é que, em algumas brigas, o centrão deverá ficar ao lado do presidente.

Os choques com o Supremo podem voltar a ocorrer não só nos acenos autoritários e decretos ilegais de Bolsonaro, mas também nas pautas aprovadas em parceria entre o Planalto e o Congresso. Além da agenda das armas e de retrocessos no meio ambiente, integrantes do STF preveem disputas no tribunal em torno de mudanças na Lei da Ficha Limpa e na Lei da Improbidade.

Essa ala do Supremo acredita que Arthur Lira (PP) vá pavimentar boa parte das propostas de Bolsonaro entre os deputados. Já Rodrigo Pacheco (DEM) é visto como um potencial aliado para barrar alguns desses planos, embora o senador também tenha interesses políticos em jogo.

Para alguns desses magistrados, a única barreira de contenção possível teria sido um atropelo à Constituição para autorizar a reeleição de Rodrigo Maia (DEM) na Câmara e Davi Alcolumbre (DEM) no Senado. Vencidos no julgamento, eles dizem que a decisão do tribunal foi um erro que abriu caminho para a permanência de Bolsonaro no poder a partir da próxima eleição.