Comissão Nacional da Verdade

Cristovam Buarque: Narrativas falsas

Dois mil e dezessete foi o ano em que o mundo descobriu o poder e o risco das “fake news”, mas há décadas os brasileiros têm sido vítimas de narrativas falsas que corrompem nossa maneira de pensar. Uma narrativa falsa generalizada diz que o governo pode gastar o quanto quiser, com Copa do Mundo e escolas, aumentar salários dos que recebem pelo topo e daqueles que recebem salário mínimo. Para corromper a verdade da aritmética, fizemos a falsa narrativa da moeda, com a inflação dando-lhe um valor menor do que o indicado na cédula.

Quando a verdade surgiu, criamos a falsa narrativa de que a industrialização enriqueceria todos os brasileiros. Acreditou-se que bastava esperar o PIB crescer para todos terem bons empregos e altos salários e o Brasil chegar ao Primeiro Mundo. O resultado foi o crescimento da riqueza nas mãos dos poucos ricos e a persistência da pobreza na vida da multidão de pobres.

No momento em que essa narrativa mostrou sua cara perversa, no lugar de reorientar o progresso, optou-se pela falácia de que a transferência de R$ 170 em média por mês seria suficiente para tirar uma família da pobreza e levá-la para a classe média. Decretou-se o fim da pobreza, independente da verdade.

O falso discurso da ascensão dos pobres à classe média se espalhou pelo mundo, ao ponto de que o impeachment legal, embora discutível se correto politicamente, é visto no exterior sob a falsa narrativa de golpe. Todas as prescrições constitucionais foram seguidas, todas as regras democráticas se mantêm, as instituições continuam funcionando, o novo presidente tinha sido escolhido como vice duas vezes pela presidente impedida (mesmo sabendo então das suspeitas de corrupção que pesavam sobre ele).

Além disso, os novos ministros colaboravam com o governo dela e a ex-presidente mantém todas as prerrogativas constitucionais dos presidentes que concluíram seus mandatos. Ela pode ser candidata já este ano (imagine se o golpe tivesse deixado Goulart ser candidato dois anos depois de 1964?), mas a falsa narrativa de golpe se mantém no imaginário dos apoiadores dela e de seus simpatizantes no exterior.

A mesma falácia que impedia ver os problemas já anunciados desde 2011 (veja o livro de minha autoria “A economia está bem, mas não vai bem”), agora mostra os problemas herdados como sendo criados pelo novo governo que, por seu desprezo à opinião pública, sua falta de credibilidade, sua imersão na corrupção, contribui para fortalecer a falsa narrativa de que ele é o culpado do desastre, mesmo quando a economia mostra recuperação.

Da mesma forma, está prevalecendo a falsa narrativa de que a Lava Jato vai salvar o Brasil esquecendo-se que um juiz pode prender político corrupto, mas não elege político honesto; e que o fim da corrupção no comportamento de políticos não eliminará a corrupção nas prioridades da política. Depois da Lava Jato, os políticos poderão continuar a construir obras de luxo, desde que não recebam propina.

Criou-se a narrativa da Lei da Ficha Limpa de que a política acabou com a corrupção, mesmo deixando soltos e elegíveis os políticos e juízes que constroem edifícios palacianos, ainda que roubados de escolas, de saneamento, de teatros, da ciência, desde que sem desvio para bolsos privados.

É também falsa a narrativa de que a cassação do direito político de um corrupto a candidatar-se vai educar o eleitor, quando poderá até acomodá-lo. Todos que não forem condenados serão vistos como igualmente bons. Depois do “rouba, mas faz”, cairemos no “se não rouba, já é bom”, não importando suas prioridades e competência. O Brasil vai continuar igual se não nos educarmos como eleitores.

Quando se discutia a Lei da Ficha Limpa, defendi que o ficha-suja deveria poder ir à campanha, como os cigarros vão à venda, com o aviso de que “este candidato foi condenado como corrupto, é ladrão de dinheiro público; ele faz mal à saúde nacional”. A Justiça condenaria, mas caberia ao eleitor cassá-lo nas urnas. Não se tiraria a soberania do povo e, certamente, educar-se-ia melhor o eleitor.

Mas, não foi assim que a lei foi aprovada, com apoio dos que não aceitaram a sugestão, e hoje reclamam dela. A Lei da Ficha Limpa deu à Justiça o poder de condenar e cassar. Vamos ter de conviver com ela esperando educar o eleitor por outros meios, mas alertando que acreditar plenamente em narrativas falsas não educa.

 


DW: Como a Volks cooperou com a ditadura brasileira

Imprensa alemã obtém acesso exclusivo à investigação sobre o envolvimento da montadora com o regime: cooperação era maior do que se pensava e teria tido o conhecimento da chefia da companhia em Wolfsburg.

Uma força-tarefa investigativa formada pelo jornal Süddeutsche Zeitung e as emissoras estatais NDR e SWR obteve acesso exclusivo à investigação externa, ordenada pela própria Volkswagen, sobre o papel de sua filial brasileira na ditadura militar (1964-1985).

Segundo reportagens publicadas no domingo (23/07), a filial brasileira da montadora colaborou de forma mais ativa do que antes se imaginava com os militares na perseguição de opositores do regime.

Análise extensa de documentações mostrou quão participativo foi o papel da Volkswagen do Brasil e sugere que a sede em Wolfsburg tomou conhecimento disso - o mais tardar em 1979.

Os repórteres alemães analisaram documentos corporativos localizados na filial brasileira e na sede alemã, papéis classificados como secretos pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e relatórios confidenciais do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha.

"Operários eram presos na planta da fábrica e, em seguida, torturados: a colaboração da Volkswagen com a ditadura militar brasileira foi, aparentemente, mais ativa do que antes presumido", escreveu o Süddeutsche Zeitung.

Os repórteres alemães também tiveram acesso às atas de investigação do Ministério Público de São Paulo. Além disso, eles realizaram entrevistas com alguns ex-funcionários da Volkswagen do Brasil – muitos confirmaram que foram detidos na fábrica em 1972. Eles faziam parte de um grupo oposicionista e distribuíram folhetos do Partido Comunista e organizavam reuniões sindicais.

Os veículos de comunicação alemães corroboraram que a filial brasileira espionou seus trabalhadores e suas ideias políticas, e os dados acabaram em "listas negras" em mãos do Dops. As vítimas lembraram como foram torturadas durante meses, após terem se unido a grupos opositores.

"A Volks roubou dois anos da minha vida", disse Lúcio Bellentani, ex-operário da montadora e agora com 72 anos, que afirmou ter sofrido oito meses de tortura e ter passado outros 16 meses na prisão. "Indiretamente a Volkswagen foi responsável por numerosos casos de tortura e perseguição. A Volkswagen deve ter a dignidade de reconhecer sua responsabilidade por esses atos."

Espionagem e colaboração com Dops
Em 2016, a montadora alemã nomeou para uma investigação sobre seu passado o historiador Christopher Kopper, que confirmou a existência de "uma colaboração regular" entre o departamento de segurança da filial brasileira e o órgão policial do regime militar.

"O departamento de segurança atuou como um braço da polícia política dentro da fábrica da Volkswagen", antecipou Kooper, pesquisador da Universidade de Bielefeld, à imprensa alemã. Segundo ele, a montadora "permitiu as detenções" e pode ser que, ao compartilhar informações com a polícia, "contribuísse para elas". Ele sugeriu que a montadora alemã peça desculpas aos ex-funcionários afetados pela conduta.

De acordo com protocolos internos da Volkswagen, as chefias da montadora na Alemanha e em São Paulo trocaram memorandos referentes às detenções de funcionários. O conselho da multinacional tomou conhecimento da conduta em São Bernardo do Campo, cidade satélite de São Paulo, o mais tardar em 1979, quando funcionários brasileiros viajaram à Alemanha para confrontar o então presidente da companhia, Toni Schmücker.

A sede da montadora se negou a comentar o conteúdo das alegações e reiterou ter encarregado o historiador Kooper de investigar e apresentar um parecer sobre a questão. Kooper apresentará suas conclusões até o final do ano.

Galpões cedidos aos militares
Há quase dois anos foi aberta em São Paulo uma investigação sobre a Volkswagen do Brasil para determinar a responsabilidade da empresa na violação dos direitos humanos durante a ditadura de 1964 a 1985.

Conforme estabeleceu a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que examinou as violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura militar, muitas empresas privadas, nacionais e estrangeiras, deram apoio tanto financeiro como operacional ao regime militar.

No caso da Volkswagen, a comissão constatou que alguns galpões que a empresa tinha numa fábrica de São Bernardo do Campo foram cedidos aos militares, que os usaram como centros de detenção e tortura. Além disso, a comissão sustentou que encontrou provas que a multinacional alemã doou ao regime militar cerca de 200 veículos, depois usados pelos serviços de repressão.