código penal
Rolf Kuntz: Ameaça é crime, no Código Penal. Ameaça de golpe também é?
Trump fracassou, no golpe, mas convém tomar cuidado com seus imitadores
Vitória de Bolsonaro: o Brasil superou a marca de 200 mil mortes pela covid, resultado favorecido por seu negacionismo, por seu desleixo em relação à máscara, por sua presença em aglomerações e pela recusa a coordenar o combate à pandemia. Exemplos indignos de um governante foram acompanhados de manifestações de desprezo à vida alheia, sintetizadas em duas palavras famosas: e daí?
Foi uma grande semana para o chefe do desgoverno brasileiro. Seu guia intelectual, moral e político, Donald Trump, atiçou um assalto ao Congresso, tentou impedir a certificação da vitória de Joe Biden e estimulou Mike Pence, vice-presidente da República e presidente do Senado, a inverter o resultado da eleição. Pence recusou-se a cumprir a calhordice. Nos Estados Unidos a tentativa de golpe fracassou, mas sobrou a inspiração. Lá pode ter falhado, mas falhará no Brasil?
Algo “pior” poderá ocorrer por aqui, avisou Bolsonaro, se ainda houver voto eletrônico em 2022, isto é, se a sua vontade for descumprida. “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que o dos Estados Unidos”, disse ele àquele auditório disposto a aplaudir qualquer barbaridade pronunciada por seu líder.
Mais que um aviso, foi uma evidente ameaça. Assim o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, interpretou – corretamente – a fala de Bolsonaro. Afinal, que rebanho golpista ousará atacar o Congresso Nacional, e talvez o Supremo Tribunal Federal, sem a liderança de um candidato a tiranete, saudoso da ditadura militar e defensor da tortura?
Pelo Código Penal, ameaça é punível com detenção, de um a seis meses, ou multa. O crime é caracterizado no artigo 147: “Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. Qual o freio aplicável a quem anuncia algo “pior” que os eventos de quarta-feira em Washington – invasão e depredação do Congresso e tentativa de mudar, num golpe, o resultado da eleição?
Não há como desconhecer ou menosprezar o risco. O autor da ameaça já compareceu a manifestações golpistas, discursou diante de quem defendia o fechamento do Legislativo e do Judiciário e tentou envolver as Forças Armadas em suas manobras autoritárias. Mais de uma vez elogiou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado judicialmente como torturador, e o descreveu como herói nacional. Há poucos dias fez piada sobre a tortura sofrida na juventude por Dilma Rousseff, futura presidente do Brasil. A reação indignada uniu ex-presidentes, políticos e cidadãos de diferentes ideologias.
Há quem tente minimizar as barbaridades bolsonarianas como se fossem palavras e gestos sem consequência, reflexos de um estilo pessoal e de “um jeito de falar”. Mas nada disso é mera questão de jeito, de informalidade excessiva ou mesmo de uma rudeza franca e inocente.
Em Bolsonaro, a indisfarçável grosseria aparece misturada com o obscurantismo, o preconceito, o culto da brutalidade e a tendência autoritária. Quando ele manifesta, como em 23 de agosto, o desejo de “encher na porrada” a boca de um repórter, depois de uma pergunta incômoda, todas essas características se manifestam. São marcas de um caráter, mas são também – e isto é o mais importante, politicamente – mais um alerta para quem deseja a preservação e o aperfeiçoamento da democracia.
A relação sempre difícil de Bolsonaro com a imprensa é mais que a expressão de uma dificuldade pessoal. É a comprovação de seu horror a um componente essencial da liberdade política. Incapaz de se relacionar democraticamente com a imprensa, ele prefere comunicar-se de forma unilateral, por meio de lives e de manifestações diante de um cercadinho de apoiadores embasbacados.
Diante desses admiradores ele exorciza a própria incompetência, inocentando-se de suas omissões e de seus erros. Se deixou de mexer na tabela do Imposto de Renda, foi porque o País está quebrado, afetado por um vírus “potencializado pela mídia que nós temos, essa mídia sem caráter”.
Além de lançar a fantástica tese de um vírus potencializado pela mídia, Bolsonaro expôs o Tesouro Nacional – e, de fato, a economia brasileira – aos efeitos de uma declaração de quebra, isto é, de insolvência. Ninguém o levou a sério, naturalmente. O Brasil continua solvente, apesar do enorme custo fiscal das ações emergenciais de 2020. Mas há sinais de susto, no mercado, diante das barbaridades e irresponsabilidades de um presidente inepto para governar, ignorante de suas funções e concentrado em objetivos pessoais, como a reeleição e a defesa de filhos suspeitos de rachadinhas e lavagem de dinheiro.
Incapaz de entender a Presidência e seus limites, Bolsonaro vive em conflito com a ordem democrática. Confunde governar com mandar, insiste em moldar as instituições segundo seus objetivos pessoais e familiares e aposta no apoio de milhões de desinformados manipuláveis por meio de redes sociais. Seria enorme erro menosprezar suas ameaças. Trump fracassou ao tentar o golpe, mas o exemplo e a tentação permanecem.
O Globo: Projeto de Moro obriga prisão após condenação em segunda instância
Sugestão deve ser incluída no Código de Processo Penal
Por Jailton de Carvalho e André de Souza, de O Globo
BRASÍLIA — Pacote de reforma penal apresentado nesta segunda-feira pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, aos governadores prevê o cumprimento de pena de prisão imediatamente após condenação em segunda instância.
Pelas regras em vigor, a Justiça pode autorizar a prisão do condenado. Pela proposta de Moro, a prisão se torna obrigatória. “Ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos", diz um dos artigos da proposta do ministro. A sugestão deve ser incluída no Código de Processo Penal.
O texto de Moro deixa, no entanto, uma brecha para o não cumprimento imediato da condenação. "O tribunal poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão constitucional ou legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa plausivelmente levar à revisão da condenação", diz outro trecho da mesma proposta.
Num outro trecho, a proposta do juiz prevê redução de pena de policiais acusados de cometer excessos numa determinada ação. O projeto não elimina a possibilidade de punição a um policial, a chamada exclusão de ilicitude, conforme defendia o presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral. Mas prevê que "o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".
Condenados por corrupção
A proposta também estabelece que os condenados por crimes de corrupção passiva, corrupção ativa e peculato devem cumprir a pena inicialmente no regime fechado. Atualmente, a definição do regime fechado depende mais do tempo de condenação, sendo aplicado em geral quando a pena é de pelo menos oito anos.
A proposta aumenta o tempo para progressão de pena no caso de alguns crimes hediondos. Hoje, um condenado precisa cumprir dois quintos da pena para ter direito, ou três quintos no caso de reincidência. Pelo projeto de Moro, o tempo passará para três quintos quando o crime resulta em morte da vítima.
Além disso, o projeto estabelece que "a progressão de regime ficará também subordinada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir".
Crimes hediondos
O projeto também proíbe, durante o cumprimento da pena em regime fechado, as saídas temporárias de condenados por crimes hediondos.
O pacote do ministro também prevê aumentar a pena de prisão de integrantes de organizações criminosas. A mesma sobrecarga deverá ser aplicada a pessoas que, mesmo com condenação anterior definitiva ou com condenação imposta por órgão colegiado, voltem cometam crimes violentos.
Pela proposta de alteração da lei 10.826/2003 "a pena é aumentada da metade se: I - forem praticados por integrante dos órgãos e empresas referidas nos arts. 6º, 7º e 8º desta Lei; ou II - o agente possuir registros criminais pretéritos, com condenação transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado", diz texto divulgado pelo ministro.
Pela sugestão do ministro, juízes poderão autorizar que agentes de segurança usem bens apreendidos em investigações criminais. Hoje policiais já costumam usar sobretudo carros apreendidos em casos relacionados a tráfico de drogas. Mas sem previsão legal explícita, essa prática tem provocado controvérsias. Em alguns casos, até resultam em desvios de conduta.
"O juiz poderá autorizar, constatado o interesse público, a utilização de bem sequestrado, apreendido ou sujeito a qualquer medida assecuratória pelos órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal para uso exclusivo em atividades de prevenção e repressão a infrações penais", diz um dos tópicos da proposta.
Acordo entre Ministério Público e acusados
O projeto também altera o Código de Processo Penal para incluir o "plea bargain", um modelo de justiça criminal comum nos Estados Unidos com possibilidade de acordo entre Ministério Público e acusados, em que estes se declaram culpados e conseguem alguns benefícios sem a necessidade de julgamento.
As penas poderão ser reduzidas até a metade e aplicadas de imediato. Também poderá haver a substituição do regime de cumprimento da pena por outro mais brando ou até mesmo por medidas alternativas, dependendo da gravidade do crime. O acordo terá que passar pelo crivo de um juiz que analisará sua legalidade e voluntariedade.
O governador de São Paulo, João Doria, indicou que ele e os demais chefes dos executivos estaduais vão atuar pela aprovação do pacote, mobilizando os parlamentares.
— A proposta do ministro é que esse projeto de lei seja apresentado no Congresso e que tenha o apoio dos governadores através de suas bancadas. Terá o apoio. As propostas como um todo estão bem formatadas, bem apresentadas, com pequenas nuances, pequenas sugestões para seu aprimoramento — disse Doria.
Envio ao Congresso
As propostas devem ser enviadas até quarta-feira ao Congresso Nacional. Uma cópia do pacote de medidas já foi entregue por Moro ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) nesta segunda-feira, antes da reunião do ministro com os governadores. Durante o encontro, Moro apresentou as linhas gerais a reforma penal a 12 governadores e representantes de mais 13 estados.
Num vídeo divulgado no domingo, Moro afirma que as medidas são necessárias para reforçar o combate ao crime organizado, à corrupção e também para conter o crescimento do número de homicídios no país. Num dos trechos da proposta, destinado a mudar parte da lei 12.850/2013, o ministro redefine o conceito de organização criminosa.
"Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, e que: I - tenham objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) ano", diz o documento.
Será tida ainda como organização criminosa associação de quatro ou mais pessoas em âmbito "transnacional" e que se " se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica, como o Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, ou outras associações como localmente denominadas."