co2

Brasil e os pecados da carne na COP 27

Ricardo Abramovay*, Outras Palavras

A presença do presidente Lula na COP27 recoloca o Brasil na condição de protagonista decisivo do desenvolvimento sustentável. Uma das mais ambiciosas propostas dos movimentos socioambientais que apoiam o novo governo é que o país lidere a formação de um bloco internacional formado por Brasil, Indonésia e Congo (BICs) com o propósito de zerar o desmatamento nas florestas tropicais. O mundo está pronto para investir no uso sustentável deste gigantesco patrimônio, cuja destruição poria a perder todo o esforço global na luta contra as mudanças climáticas.

Para que se tenha ideia da magnitude do problema, só a Panamazônia armazena uma quantidade de carbono correspondente a algo entre 10 e 15 anos das emissões globais. E é claro que a proteção e o uso sustentável das florestas tropicais exigem não só repressão severa aos criminosos que as desmatam, mas também políticas sociais que contribuam para elevar os padrões de vida das populações que vivem em seus territórios. Duas das maiores potências ambientais do planeta (Brasil e, agora, Colômbia, com Gustavo Petro) estão seriamente comprometidas com a proteção e a regeneração florestais.

Mas há um segundo desafio para o Brasil na COP27, de certa forma, mais difícil até que o do desmatamento: é a redução nas emissões de metano, cujo principal vetor global (e mais ainda entre nós) é a pecuária bovina. O metano permanece por menos tempo que o CO2 na atmosfera, mas tem impacto destrutivo muito maior. Se as emissões de CO2 fossem subitamente interrompidas, a temperatura global média não deixaria imediatamente de aumentar. Diminuir o metano é a maneira mais eficiente e imediata de evitar que se alcancem pontos de não retorno (tipping points) nas mudanças climáticas. Na COP26, de Glasgow, 125 países (inclusive o Brasil) comprometeram-se com metas de redução imediata nas emissões deste poderoso gás de efeito estufa.

O combate ao desmatamento não envolve qualquer tipo de mudança estrutural na organização da vida econômica do país. Mas reduzir as emissões de metano exige um conjunto de transformações nos modelos produtivos, nas bases técnicas da produção, nos comportamentos dos consumidores e, portanto, nos próprios mercados.

Mais que isso, a evidência de que a oferta de carnes tem sido até aqui o elemento determinante do fato de que entre 25% e 35% das emissões globais vêm da agropecuária, amplia a contestação global a este setor e faz emergir alternativas tecnológicas a seus padrões atuais de expansão. Se fosse um país, o rebanho global de ruminantes ocuparia o segundo lugar em emissões de gases de efeito estufa, à frente dos Estados Unidos e só atrás da China. E o Brasil, como mostra estudo recente do Observatório do Clima, é o quinto maior emissor mundial de metano, com 5,5% das emissões globais. 72% das emissões brasileiras de metano derivam de seu rebanho bovino.

Mesmo que o sucesso do governo Lula em reprimir seriamente o desmatamento desfaça o atual vínculo entre destruição florestal e pecuária, o trunfo de termos o maior rebanho bovino do mundo e a condição de maior exportador global de carnes converte-se em ameaça. Imaginar que esta ameaça possa ser contornada com a afirmação de que o mundo vai precisar da carne brasileira é ilusório. O Guia Alimentar Chinês anuncia redução de 50% no consumo de carnes até 2030. Estudo recente da Boston Consulting Group prevê que Europa e Estados Unidos atinjam o pico do consumo de carnes em 2025. Matéria recente do blog do FMI preconiza uma taxa metano, que estaria na faixa de US$ 70 por tonelada emitida.

Mais importantes, porém, do que estas mudanças nos padrões de consumo alimentar são as transformações tecnológicas pelas quais passa a oferta de proteínas no mundo. Paul Gilding e Pablo Salas acabam de publicar importante trabalho pelo Institute for Sustainability Leadership da Universidade de Cambridge mostrando que os próprios mercados estão reagindo às ameaças representadas pelas formas convencionais de pecuária com alternativas tecnológica que vêm ganhando força entre os investidores globais. Seu estudo sustenta que o sistema agroalimentar global está passando por uma transição que pode ser comparada à que vem dominando os investimentos de descarbonização na área de energia e de mobilidade. Na vanguarda desta transição estão quatro formas de proteínas artificiais: as que se baseiam em plantas (já no mercado), as de cultura celular, as que se apoiam na fermentação de precisão e as que vêm de insetos.

O recém-publicado livro de George Monbiot (Regenesis. How to feed the world without destroyng the planet. Penguin) vai mais longe: pecuária regenerativa é uma contradição nos termos. Usar o solo para a criação de gado é, na sua opinião, retirar superfícies que poderiam ser utilizadas para o crescimento florestal e, portanto, para a captação de gases de efeito estufa. Em vez de continuar aumentando os rebanhos, as sociedades contemporâneas devem, na visão de Monbiot, investir nas proteínas alternativas, que estão emergindo com força.

Em resumo, não é só o desmatamento, mas a própria atividade pecuária que está e estará cada vez mais no epicentro das discussões climáticas contemporâneas.

O Brasil possui hoje iniciativas importantes (embora muito minoritárias) de criações bovinas respeitosas da dignidade animal, com manejo de pasto que captam carbono e regeneram a biodiversidade. Os conhecimentos da Embrapa neste domínio também são importantes. As ameaças que pesam sobre um setor tão estratégico da vida econômica brasileira têm que ser enfrentadas com pesquisas capazes de encontrar caminhos pelos quais a carne chegue aos brasileiros e aos mercados exportadores com a garantia de que seus métodos produtivos captam carbono e regeneram a biodiversidade. É muito mais do que apenas interromper a ocupação de áreas recentemente desmatadas. É uma convocação para que o maior exportador mundial de carnes promova inovações norteadas pelas urgências do clima, da regeneração da biodiversidade e da alimentação saudável.

*Texto publicado originalmente no site Outras Palavras