clovis rossi

Dorrit Harazim: Clóvis Rossi, nosso olheiro

Apesar de tudo o que vivenciou, ele manteve distância da tribo de veteranos cínicos que existe em qualquer profissão

‘Repórter é fundamental. É certamente a única função pela qual vale a pena ser jornalista”, escreveu Clóvis Rossi no longínquo ano de 1990, em texto de apresentação do livro “A aventura da reportagem”, de Ricardo Kotscho e Gilberto Dimenstein. Explicou:

“Jornalista não fica rico, a não ser um punhado de iluminados. Jornalista não fica famoso, a não ser um outro (ou o mesmo) punhado, e assim mesmo no círculo que frequenta ou no qual é lido. Jornalismo, por isso, só vale a pena pela sensação de se poder ser testemunha ocular da história de seu tempo. E a história ocorre sempre na rua, nunca numa redação de jornal. Rua pode ser a rua propriamente dita, mas pode também ser um estádio de futebol, a favela da Rocinha, o palanque de um comício, o gabinete de uma autoridade, as selvas de El Salvador, os campos petrolíferos do Oriente Médio. Só não pode ser a redação de um jornal”.

Ao morrer nesta sexta-feira aos 76 anos, Rossi deixou o batente de apurar notícias nas ruas da vida. Nunca se serviu do ofício para compor um figurino. Nem o do repórter solitário, indomável e charmosamente rabugento como Seymour Hersh, a quem o mundo deve revelações seminais como My Lai e Abu Ghraib. Tampouco o do repórter que aposta no estilo intrépido, incansável, dono da notícia. Não era tímido nem falsamente modesto. Muito menos invisível (tinha 1m98), o que ajudava em coberturas de manada como cúpulas mundiais ou Copas do Mundo. Se andava curvado, era para ouvir melhor os demais bípedes.

Clóvis Rossi não precisou aprender a arte de amadurecer com o filósofo/historiador/matemático Bertrand Russell. “Torne seus interesses gradualmente mais vastos e impessoais, até que, pouco a pouco, os muros do ego retrocedam e sua vida se funda cada vez mais com o viver universal”, recomendava o Nobel de Literatura. Por índole própria, o jornalista guardou o ego no seu devido lugar e foi aguçar os demais sentidos para retratar o que apurava. Sabia ver o que olhava e escutar o que lhe diziam, não apenas reproduzir aspas. Jornalismo-gravador não era sua praia. Como já ensinara o colombiano Gabriel García Márquez, “um gravador ouve mas não escuta, repete como um papagaio digital mas não pensa, é fiel mas não tem coração”.

A definição de jornalismo com a qual Rossi melhor se identificava foi cunhada nos anos 1970 por Carl Bernstein, da dupla de repórteres que desvendou o caso Watergate e levou o presidente Richard Nixon à renúncia: “Jornalismo é a melhor versão da verdade possível de se obter”. Vale reler a frase, de tão sucinta. Bernstein partia do pressuposto de que a verdade inteira é inalcançável e que o ofício de apurar nunca se esgota.

Apesar de tudo o que vivenciou como olheiro globe-trotter, Rossi manteve distância da tribo de veteranos cínicos que existe em qualquer profissão, mas que no jornalismo é duplamente sinistra por anestesiar a curiosidade, o interesse, a surpresa. Ele não se pautava pela sociedade do espetáculo, na qual tudo o que é vivido torna-se uma representação. Conhecia História, respeitava o métier e não se deixava seduzir pela indignação rastaquera que cabe em um tuíte. Aliás, o único post que consta de seu perfil no Twitter data de 2013 , tem apenas 13 caracteres e atesta seu humor cortante: “Acho que sou gay”.

Mas que ninguém se engane. Sempre que achou necessário, Rossi soube ser tão contundente na denúncia e vibrante na defesa, quanto persistente na cobrança. Seu radar captava o universal de um fait-divers miúdo e apontava o local em coberturas mastodônticas. Ajudou o leitor brasileiro a escancarar a fronteira do conhecimento sobre os países que nos cercam — a América Latina é aqui, demonstrou. E viveu o suficiente para ver tudo acontecer e o seu contrário também.

Sobretudo, respondeu às tantas transformações, incertezas e ataques ao jornalismo com mais jornalismo. Muito bacana ter sido sua contemporânea. Menos bom saber que nosso prazo de validade está expirando.


Clóvis Rossi: Contra o ódio, é preciso conversar

Macron mostrou o caminho; será seguido aqui?

Duas iniciativas do presidente da França, Emmanuel Macron, talvez devessem ser replicadas no Brasil.

A primeira foi a convocação de um grande debate nacional: durante dois meses, desde meados de janeiro, se realizaram mais de 10 mil reuniões em todo o país. Macron participou de uma dúzia delas.

Objetivo: dar voz aos franceses, para entender a insatisfação popular. Que há insatisfação, é só ver a quantidade de gente que participa, todos os sábados, das manifestações dos "coletes amarelos".

A propósito: não vale confundir os protestos, quando pacíficos, com o vandalismo promovido pelos chamados "casseurs", que saem quebrando o que encontram pela frente. Não é civilizado.

Segunda iniciativa de Macron, levada a cabo na segunda-feira (18) e que avançou pela madrugada de terça (19): chamar ao Palácio do Eliseu 64 acadêmicos (filósofos, historiadores, sociólogos, economistas, cientistas), como se fosse o epílogo do grande debate nacional.

Por que acho que são iniciativas que deveriam ser imitadas?

Primeiro, porque o Brasil precisa conversar. O que há hoje é um monólogo dentro de cada tribo, não uma conversação entre uma tribo e outra (ou entre diferentes tribos).

Segundo, porque há no Brasil uma situação razoavelmente parecida com a que o filósofo Pascal Bruckner descreveu para Macron sobre a França. Lamentou, no Eliseu, "esta anarquia crescente, que faz da França um país em um estado de quase guerra civil latente, na qual o ódio de todos contra cada um parece triunfar".

Que há uma guerra civil mais que latente no Brasil é óbvio, embora de características diferentes. Que há ódio no ar (e nas redes sociais) é igualmente evidente.

Nessas condições, o brasileiro é hoje mais infeliz que nunca, a julgar pelo Relatório Mundial de Felicidade, divulgado há uma semana.

A média brasileira para 2018 era de 6,1, a mais baixa desde que se iniciou esse tipo de levantamento, em 2006. O país ficou no 32º lugar entre 156 países.

Para comparação: a França ficou em 24º, por mais que os franceses sejam tidos como resmungões o tempo todo, ao passo que os brasileiros são considerados risonhos.

Se a França, menos infeliz que o Brasil, se dispõe a conversar e se seu presidente chama acadêmicos para completar a conversa, não há razão lógica para que o Brasil se tranque em bolhas que não se comunicam.

Afinal, a eleição de 2018 revelou dois colossais blocos: os 57 milhões que votaram por Jair Bolsonaro e os 89 milhões que preferiram ou Fernando Haddad ou o voto branco/nulo ou nem sequer compareceram para votar.

Como parece altamente improvável que um bloco ou o outro seja subitamente tragado pela terra e, em consequência, o outro possa fazer o que bem entender, ou se decidem a conversar ou o ódio de todos contra cada um vai mesmo triunfar, como teme Bruckner no caso da França.

Lá como cá, a iniciativa tem que partir do chefe de governo. O presidente Jair Bolsonaro precisa ser convencido de que não adianta ficar conversando só com os seus.

Vale o que escreveu na sexta-feira (22) Brian Winter, editor-chefe de Americas Quarterly, após viagem ao Brasil e conversas com inúmeras pessoas que podem não ter votado por Bolsonaro, mas lhe disseram que "o país não pode aguentar outro fracasso".

Cultivar o ódio é namorar com o fracasso.


Clóvis Rossi: Chile, o que sobrou foi só o banho de sangue

Democracia, não a ditadura, deu estabilidade ao Chile

Onyx Lorenzoni, o chefe da Casa Civil de Jair Bolsonaro, festeja o fato de o ditador Augusto Pinochet ter lavado com sangue as ruas de Santiago (o que é verdade), mas ter promovido o sucesso econômico que perdura até hoje.

Sou obrigado a republicar aqui texto que saiu em dezembro para demonstrar, com estatísticas, que quem fez do Chile o que é foi a democracia, não a ditadura.

Antes, é sempre preciso deixar claro que, do meu ponto de vista, ditaduras são sempre nefastas, façam o que fizerem, tenham algum sucesso econômico ou sejam um miserável fracasso como é o caso da Venezuela.

Não vale, pois, dizer que Pinochet matou, torturou, exilou, fez desaparecer milhares de pessoas, mas arrumou a economia. Bobagem.

Aos números comparativos que importam:

1 - Crescimento econômico - De 1973, ano do golpe que entronizou Pinochet, a 1988, ano do plebiscito que vetou sua continuidade, o Chile teve um crescimento interessante, de 54,7%.

Mas, na democracia, a partir de 1990 e por um período equivalente, o crescimento foi mais do que o dobro (exatos 110%).

Consequência inevitável: a renda per capita chilena em 1990, na volta à democracia, era igual à do Brasil. Quinze anos, passou a ser 60% maior.

Logo, democracia, 1 x Pinochet, 0.

2 - Desemprego - Depois de um pico de 25% da população economicamente ativa, o desemprego na ditadura girou em torno de 18%, o triplo do que ocorria nos anos 1960.

O desemprego só voltou a patamares mais civilizados com a democracia. Terminou 2018 com 7,3%, menos da metade, portanto, dos trágicos índices do período Pinochet.

Logo, democracia, 2 x Pinochet, 0

3 - Pobreza e desigualdade - Nos anos finais da ditadura, a pobreza afetava quase a metade da população chilena. Com a democracia e o investimento público redirecionado para a área social, foi se reduzindo paulatinamente.

Em 2017, afetava 8,6% da população, um dos registros mais baixos da América Latina.

Já a desigualdade continua a ser uma chaga aberta na sociedade chilena, mas, de todo modo, se reduziu com a democracia. Quando medida pelo coeficiente de Gini (quanto mais perto de 1, maior a desigualdade), passou de 0,46 ao se instalar a ditadura, em 1973, para 0,57 quando a democracia chegou, em 1990.

Só em 2015, voltou aos níveis vigentes antes do golpe (estava então em 0,48).

Logo, democracia, 3 x Pinochet, 0.

4 - Política - Se a ditadura tivesse sido de fato o sucesso em que acreditam Lorenzoni e os Bolsonaros, Pinochet não teria perdido o plebiscito de 1988 sobre sua continuidade ou não. Tinha tudo na mão: absoluto controle dos meios de comunicação, partidos proscritos, opositores perseguidos, mortos, presos ou exilados.

Não obstante, 54,71% dos chilenos preferiram vetar o ditador. No ano seguinte, na eleição presidencial determinada pelo resultado do plebiscito, nova derrota do pinochetismo: ganhou o oposicionista Patricio Aylwin.

Mais: nas três eleições presidenciais seguintes, três novas vitórias dos oposicionistas, com Eduardo Frei (democrata cristão), Ricardo Lagos e Michelle Bachelet (socialistas).

Foi preciso esperar até 2010 para que assumisse um presidente conservador, no caso Sebastián Piñera. Com um detalhe relevante: ele votara pelo não à permanência de Pinochet no plebiscito de 1988.

Só neste quesito, portanto, dá democracia, 5 x Pinochet, 0.

5 - Por fim, reforma da Previdência chilena, a que dá água na boca dos economistas liberais de Bolsonaro. De fato, a reforma feita pela ditadura ajudou a sanear as contas públicas, mas em contrapartida, arruinou as contas privadas (dos aposentados).

O jornal paranaense Gazeta do Povo citou em dezembro estudo da Fundación Sol de 2015 que mostra que quase 91% da população recebia valores inferiores a 150 mil pesos mensais (equivalentes hoje a R$ 851) em um país em que o salário mínimo chegava então a 276 mil pesos (R$ 1.565).

É tão falho o modelo admirado pelos Bolsonaros que até um governo conservador como o de Piñera está propondo modificá-lo, por meio de projeto em tramitação no Congresso.

Posto de outra forma: a tentação da equipe de Bolsonaro é copiar um modelo que está sendo alterado por um motivo bem simples, apontado pela consultoria Eurasia, que não parece fazer parte de alguma conspiração do marxismo cultural: “Amplo consenso sobre a necessidade de incrementar as pensões baixas em meio ao descontentamento do público sugere que a reforma será aprovada” (relatório divulgado em 17 de dezembro).

O que o governo está propondo é criar o que chama de “pilar de solidariedade” para aumentar os fundos para os mais pobres e mudar o sistema de contribuições individuais gerenciadas por entidades privadas.

Os empregadores teriam que contribuir com uma nova taxa (de 4% do salário de seus funcionários), além dos 10% já pagos atualmente. O custo da reforma, calcula a Eurasia, ficará em cerca de US$ 3,5 bilhões (R$ 13,5 bilhões).

Tudo somado, o que ficou foi só o banho de sangue.

*Clóvis Rossi é repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.


Clóvis Rossi: Da esquerda, nem estátua sobra

Completa-se a demolição da Unasul; nasce Prosul

O governo equatoriano acaba de anunciar que vai retirar a estátua de Néstor Kirchner, presidente argentino entre 2003 e 2007, da frente do prédio da Unasul (União de Nações Sul-Americanas).

Aliás, Lenín Moreno, o presidente do Equador, também anunciou que o país vai se retirar do conglomerado. Aliás, Moreno também vai retomar para o Equador o prédio da Unasul, que seu antecessor, Rafael Correa, cedeu ao grupo então composto pelos 12 países sul-americanos.

Não é, pois, figura de linguagem dizer que não sobrou pedra sobre pedra da esquerda sul-americana hegemônica na primeira década do século.

A Unasul, como se sabe, foi uma invenção de Hugo Chávez, inventor também do “socialismo do século 21” e do “bolivarianismo". Não por acaso, suas três invenções estão reduzidas a cacos.

O sinal político dos países que constituíram a Unasul em 2018 mudou da esquerda para a direita, desde então. Mudou tanto que, na sexta-feira (22), haverá uma reunião no Chile em que o anfitrião, Sebastián Piñera, o colombiano Iván Duque e o brasileiro Jair Bolsonaro lançarão uma nova organização, chamada Prosul.

Era mais prático, acho eu, aproveitar as instalações atuais e os poucos funcionários remanescentes, trocar a placa de Unasul por Prosul, avisar que o estabelecimento está sob nova gerência e novo sinal ideológico e tocar a vida.

A demolição da Unasul, da qual seis países já haviam se afastado antes do anúncio do Equador, se torna mais significativa exatamente por essas iniciativas equatorianas. Nos outros países bolivarianos ou solidários com o socialismo do século 21, eleições derrubaram seus presidentes, mas, no Equador, não. Lenín Moreno foi vice de Rafael Correa e eleito com base no apoio deste.

Rompeu com ele e, no caso Unasul, sua avaliação vale como epitáfio: “A Unasul se transformou em uma plataforma política que destruiu o sonho de integração que nos venderam”.

Prosul tende a também se transformar em plataforma política, com sinal trocado, o que não leva necessariamente a reconstruir o sonho de integração, que a América do Sul acalenta faz anos e nunca realiza.

Temo que valha para Prosul a avaliação sobre integração que Bruno Binetti, pesquisador do Interamerican Dialogue, fez para a revista Americas Quarterly:

“Muitas iniciativas para promover a integração regional entre países latino-americanos e sul-americanos não foram bem sucedidas por um punhado de razões: falta de liderança por parte dos grandes países da região, a recusa dos governos de ceder soberania para entidades internacionais, diferença políticas entre os países-membros e falta de complementaridade econômica".

Binetti acha que tais condições continuam presentes no enterro da Unasul e nascimento do Prosul. Logo, “Prosul tende a se tornar outra casca vazia no museu de instituições regionais fracassadas da América Latina".


Clóvis Rossi: Brasil / EUA, se melhorar, estraga

Nunca antes na história os dois países foram tão amigos

O presidente Jair Bolsonaro embarca neste domingo (17) para Washington, para reaproximar o Brasil dos Estados Unidos.

De acordo com Bolsonaro e seu chanceler, Ernesto Araújo, o Brasil do PT havia se afastado de Washington por motivos ideológicos.

Bobagem. Pura fake news.

Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, as relações entre Brasil e EUA estiveram em ponto ótimo, provavelmente o melhor da história. Assim continuaram com Luiz Inácio Lula da Silva.

Só sofreram um abalo com Dilma Rousseff, mas por culpa dos americanos (a espionagem nos telefones da então presidente), não por qualquer tipo de ranço ideológico do governo de turno.

Não é uma análise por ouvir falar. Fui testemunha direta de um punhado de cenas explícitas de engajamento muito amistoso de parte a parte.

Relembro uma, a mais emblemática delas, por envolver o sensível tema da proliferação nuclear.

Antes de uma visita de Lula a Teerã, em 2010, o presidente Barack Obama enviou carta a seu colega brasileiro indicando os pontos que deveriam constar de qualquer conversa com os iranianos.

A Folha obteve a carta depois e pôde comprovar que o acordo com o Irã (ao qual se somou a Turquia) seguia ponto a ponto o que Obama queria.

Inclusive no item crucial, de acordo com o presidente americano: o envio de 1.200 quilos de urânio pobremente enriquecido para enriquecimento no exterior até o nível que só permitiria seu aproveitamento para finalidades pacíficas, nunca para a bomba.

Você acha, honestamente, que os EUA confiariam a um governante ao qual tivessem qualquer tipo de restrição, mais ainda ideológica, uma negociação nesse capítulo especialmente sensível?

O relacionamento entre os dois países chegou a um nível tão bom que, uma vez, o segundo homem da embaixada americana na época veio a São Paulo para uma conversa informal com dois ou três jornalistas.

Comentei com ele que, do ponto de vista do jornalismo, as relações Brasil/EUA eram “boring” porque não havia nenhum conflito, nenhum “fla-flu” que é naturalmente matéria-prima mais atraente para o jornalismo.

Ele concordou e argumentou que a função dele, como diplomata, era precisamente essa —a de normalizar o relacionamento, para frustração dos jornalistas.

É claro que todo relacionamento diplomático pode ser melhorado, mas, no nível que havia atingido, há mais margem para estragar do que para aperfeiçoar.

Até porque, no item comércio, o mais apetitoso hoje em dia na diplomacia, Donald Trump já disse, publicamente, que “o Brasil está entre os países mais duros do mundo, talvez o mais duro”.

É lógico supor que, se e quando se falar de acordos comerciais, Trump vai exigir que o Brasil amoleça.

Se Bolsonaro, ansioso por agradar seu ídolo, ceder e dependendo do que e de onde ceder, desagradará a parte de seus apoiadores no empresariado.

Outra ala do bolsonarismo, a dos militares, deve ter em relação aos Estados Unidos a mesma reserva que ouvi, em 1977, do general Hugo Abreu (1916-1979), então chefe do Gabinete Militar do governo Ernesto Geisel.

O general me disse que a pressão americana contra um acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha se devia ao medo de Washington da ascensão de “um Estados Unidos do Sul”.

A ideia de “America First” que Trump abraça não combina, pois, com o “Brazil First” que frequentava a cabeça dos militares. Frequenta ainda?


Clóvis Rossi: Vietnã ganhou a guerra e a paz

Após derrotarem os EUA, comunistas criaram ditadura capitalista

Quem ganha com os encontros de Donald Trump com o ditador norte-coreano Kim Jong-un? Ganha o Vietnã, o palco das reuniões.

Fácil de explicar: por mais cor de rosa que venham a ser os anúncios oficiais sobre a cúpula dos dois mandatários, é altamente improvável que haja algo realmente decisivo quando as duas mais altas autoridades de um dos lados não se entendem sobre o estado do programa nuclear norte-coreano —que é, afinal, o tema do encontro.

​Trump anunciou em seu meio de comunicação favorito, o Twitter, que a Coreia do Norte “não é mais uma
ameaça nuclear”.

Aí, seu secretário de Estado, Mike Pompeo, vai à CNN e contradiz o chefe, ao afirmar que a Coreia do Norte é, sim, uma ameaça nuclear.

Como os dois são os interlocutores de Kim em Hanói, como acreditar no que qualquer um deles diga?

Já sobre o Vietnã, não cabem dúvidas: esse remoto país do Sudeste Asiático ascendeu ao foco da mídia ao agasalhar os dois ex-inimigos, hoje apaixonados um pelo outro, pelo menos da boca para fora.

Ascendeu por um motivo nada trivial: foi o único país a ganhar uma guerra contra os Estados Unidos e, em seguida, ganhar também a paz, o que não é nada fácil.

Por isso mesmo, Huong Le Thu, analista-sênior do Instituto Australiano de Política Estratégica, escreve para a Nikkei Asian Review: “Há sinais de uma emergente estratégia americana de encorajar a Coreia do Norte a embarcar em reformas políticas e econômicas como aquelas abraçadas por Hanói nas últimas três décadas.

O programa de reformas —batizado em vietnamita de “Doi Moi” (renovação)— foi lançado em 1986 e transformou o país em atraente destino para investimentos externos, ao mesmo tempo em que manteve o absoluto controle do Partido Comunista sobre as instituições.

Se se quiser simplificar as coisas, dá para dizer que o Vietnã comunista, que derrotou os EUA capitalistas, transformou-se de uma ditadura comunista em uma ditadura capitalista.

A comparação com a Coreia do Norte, que continua comunista institucional e economicamente, é devastadora para Kim Jong-un: em 1988, pouco depois de lançado o “Doi Moi”, a renda per capita vietnamita era de cerca de US$ 1.500 (R$ 5.600) em paridade do poder de compra (a medida que leva em conta os preços em cada país). Era a metade do nível norte-coreano.

Dez anos depois, a renda norte-coreana, pelo mesmo critério, caiu pela metade, enquanto a do Vietnã quadruplicou e bateu, portanto, em US$ 6 mil (cerca de R$ 22,4 mil).

O crescimento do Vietnã nas duas décadas mais recentes foi, na média, de 6,3%, o que o transformou em uma das economias asiáticas de expansão mais rápida, relata a analista Le Thu.

“Espera-se que Mr. Kim olhe e aprenda”, torce a revista The Economist, ao tratar do encontro em Hanói.

A publicação, porta-voz do liberalismo, festeja que o Partido Comunista do Vietnã tenha se transformado de inimigo da América em “buddy”, termo informal que significa mais que amigo, um cupincha.

Mas, cuidado, esse modelo é tóxico para a liberdade de imprensa —componente essencial da democracia: Repórteres Sem Fronteiras coloca o Vietnã em 175º lugar entre 180 países em matéria de liberdade para a mídia. Ainda assim, é melhor que a Coreia do Norte, a 180ª.

*Clóvis Rossi é repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.


Clóvis Rossi: E se Guaidó fracassar no sábado?

A receita Mourão é correta; falta cozinhá-la

O general Hamilton Mourão, vice-presidente do Brasil, tem toda a razão ao dizer, sobre a Venezuela, que “a única solução é o regime do Maduro entender que acabou, promover novas eleições, se eleja quem tem que ser e partir daí terá de ter haver plano Marshall na Venezuela".

De acordo, general. Pena que eu não tenha conseguido contato contigo para perguntar se a tentativa de fazer entrar ajuda humanitária na Venezuela neste sábado (23) vai de fato contribuir para chegar à solução proposta.

Tomara que sim, mas temo que não. Examinemos as possibilidades mais lógicas a respeito do 23F:

1 - A ajuda não entra, pela truculenta resistência da ditadura. Analisa, desde já, o Miami Herald, geralmente bem informado sobre Venezuela, até pela vizinhança geográfica: “Tantos apoiadores como críticos da decisão de reconhecer Guaidó [Juan Guaidó, como presidente interino] estão preocupados em perder o ímpeto para eleições se o sábado chega e passa sem uma mudança no status quo".

Essa suposição sobre a perda de ímpeto é recorrente na mídia internacional, para o caso de fracassar a iniciativa de Guaidó.

A oposição terá conseguido apenas expor a um público bastante amplo e à mídia internacional, ao vivo e em cores, a brutalidade da ditadura.

Minha dúvida é saber se as caravanas convocadas por Guaidó se conterão ao chegar às fronteiras ou se se atirarão contra as tropas que as estão bloqueando. Abre-se a perspectiva de um banho de sangue cujas consequências não dá nem para imaginar.

2 - A ditadura, além da truculência tradicional, recorre a um trambique, outra de suas especialidades: deixa a ajuda entrar, mas, à medida que os caminhões vão se afastando das fronteiras e, por extensão, da vista do público e da mídia externa, se apropriam dos carregamentos.

Faz, em seguida, ela própria, a distribuição de alimentos e medicamentos, para o que até já dispõe de um mecanismo (militarizado), os CLAPs (Comitês Locais de Abastecimento e Preços). É o meio para exercer controle social sobre a população.

É capaz até de ganhar pontos porque a penúria dos venezuelanos é tão tremenda que qualquer alívio é bem recebido, venha de quem vier.

3 - Os militares permitem a entrada da ajuda. Seria o “game over” para Maduro, porque significaria ter perdido o respaldo do único setor com que conta para manter-se no poder.

Ainda assim, seria preciso ver se Maduro “entende que acabou", como gostaria o general Mourão, ou se será preciso uma negociação (com quem?) para estabelecer as regras para a transição até as eleições.

Qualquer que seja o desfecho deste sábado, gostaria que o general Mourão explicasse o que vai propor, na segunda-feira (25), quando se reunir na Colômbia o Grupo de Lima, o conglomerado dos principais países das Américas que tenta tirar a Venezuela do buraco.

Se eu fosse o general, proporia, para começar, tirar protagonismo dos Estados Unidos, hoje o país que mais atiça as chamas e, por extensão, o que mais estimula Maduro a reagir com fogo. Talvez a liderança de países e/ou instituições menos hidrófobas (Canadá, União Europeia, por exemplo) crie melhores condições para criar o percurso (correto) do general Mourão.

Intervenções americanas anteriores criaram, no mais das vezes, ditaduras cruéis —e ditaduras é tudo o que Venezuela dispensa depois da tragédia a que foi conduzida.


Clóvis Rossi: Presidente não tem 'foro íntimo'

Função pública não admite esconder-se nele

Ao alegar uma questão de “foro íntimo” para demitir o ministro Gustavo Bebianno, Jair Bolsonaro dá uma demonstração definitiva de que não tem a menor qualificação para exercer função pública.

Foro íntimo não cabe no exercício de funções públicas, quaisquer que sejam e menos ainda na mais elevada, que é a Presidência da República.

Decisões nessa esfera só podem ser tomadas em função do interesse PÚBLICO, que, por definição, é oposto ao foro ÍNTIMO. Inacreditável que tenha que escrever uma coisa tão óbvia, mas no planeta dos Bolsonaros não vigora o sentido comum.

Foro íntimo o presidente poderia invocar para, por exemplo, não convidar Bebianno para almoçar no Palácio, ou por ter mau hálito ou o cabelo desalinhado ou pelo hábito de usar sapatos em vez de chinelos, o que contraria o sentido “íntimo” de elegância do presidente.

Mas, para convidar ou demitir alguém de algum ministério, o único critério que vale é o interesse público. Para demitir, é obrigatório dizer se o defenestrado é corrupto ou incompetente ou as duas coisas ao mesmo tempo e talvez acrescentar mais algum deslize.

Para piorar as coisas, se fosse possível, Bolsonaro constrangeu seu porta-voz, Otávio do Rêgo Barros, a usar em público a indecente explicação de “foro íntimo” para a saída de Bebianno. Um general deveria saber perfeitamente que interesse público prevalece, sempre, sobre qualquer questão de foro íntimo.

O general viu-se perdido, repetindo uma e outra vez a tal muleta do “foro íntimo", sem explicar as causas do afastamento, sem se referir ao imenso laranjal abrigado no PSL, o partido do presidente.

Ao esconder-se atrás do “foro íntimo", o presidente continua devendo explicações sobre as suspeitas de trambiques em que estão envolvidos seu filho Flávio, seu ministro do Turismo e seu ex-ministro Bebianno.

Falar abobrinhas em discurso gravado ou emitir tuítes é mais uma demonstração de que não tem noção do que é o exercício de uma função pública. Pode até atingir, atrás dessas barricadas, o seu público, mas convém prestar atenção ao fato de que os 57,7 milhões que votaram nele são menos do que os 89 milhões que ou votaram no adversário ou votaram em branco ou anularam o voto ou nem sequer compareceram às urnas.

O homem público deve satisfações a todos eles, que não querem saber de seu foro íntimo mas precisam saber que interesse público foi violado para Bebianno ser demitido.


Clóvis Rossi: Um olhar sobre as bobagens de Matteo Salvini

Um dos modelos favoritos do bolsonarismo é um governo extremamente tóxico

O bolsonarismo tem adoração publicamente manifestada por Matteo Salvini, ministro do Interior da Itália e principal líder da Liga, o xenófobo grupo que nasceu como Liga Norte.

Vale a pena, pois, dar uma espiada no que está acontecendo na Itália de Salvini, para o caso de que os Bolsonaros resolvam imitar as besteiras que Salvini pratica.

A mais recente é insólita e inédita desde junho de 1940, quando o embaixador francês, André François-Poncet, teve que deixar precipitadamente a Itália, após a declaração de guerra do fascismo italiano, que então ocupava o poder, à França.

Agora, é a França que chama de volta seu embaixador em Roma, Christian Masset, devido ao que a chancelaria francesa chama de “acusações repetidas”, “declarações ofensivas”, “ataques sem fundamento” e “ingerências sem precedentes” desde o fim da guerra (a de 1939-45).

Tudo praticado pelos dois vice-presidentes do Conselho de Ministros italiano, o tal de Salvini e seu colega Luigi Di Maio, do Movimento 5 Estrelas, também populista, mas de outra cepa.

A gota d’água foi o apoio dos dirigentes italianos ao movimento dos “coletes amarelos” que estão se manifestando repetidamente na França, protestos que geralmente terminam em quebra-quebra.

Sem entrar no mérito do movimento, que ainda não está bem decodificado, pergunto: como reagiria o bolsonarismo se Nicolás Maduro mandasse um representante (ou algum de seus paramilitares) para apoiar uma invasão qualquer do MST?

É isso que faz a Liga que a turma do presidente brasileiro tem como parte de sua futura fraternidade universal. Gente disruptiva por excelência, certo?

Suspeito que Paulo Guedes, o braço liberal do bolsonarismo, não tem maior simpatia por Salvini e sua turma.

O governo italiano apresentou proposta orçamentária que aumenta o déficit público, bem o oposto das intenções de Guedes. E olhe que a dívida italiana, como proporção do PIB, é bem maior que a brasileira.

O governo de que Salvini é a face mais evidente (e mais agressiva) que a Itália não vai bem das pernas: cresceu magro 1% em 2018 e, para 2019, a previsão de crescimento é magérrima (0,2%), o mais débil em cinco anos.

É verdade que a Itália vem tendo desempenho econômico medíocre há muito tempo, mas a Liga e o 5 Estrelas foram eleitos justamente para escapar da mediocridade.

Não o conseguiram em seus sete meses de governo.

Pode ser pouco tempo, mas uma fatia dos italianos parece achar que é muito: o Istat, o IBGE italiano, informou na quinta-feira (7) que cerca de 160 mil italianos mudaram-se para o exterior no ano passado, o maior número de emigrantes desde 1981.

Ou seja, o governo supostamente da “nova política” está sendo incapaz de dar esperança à ponderável fatia de italianos, que preferem tentar encontrá-la fora do país.

Ah, se o bolsonarismo reclama do vice Hamilton Mourão, na Itália é pior: Salvini fechou o país para o desembarque de imigrantes. O presidente do Conselho de Ministros, Giuseppe Conte, escolhido pela própria Liga e pelo M5S, foi à televisão para dizer que, “se não permitem os desembarques, irei eu mesmo buscá-los em meu avião”. Mourão não chegou ainda a tanto.

Vê-se, pois, que um dos modelos favoritos do bolsonarismo é profundamente tóxico. Alguma surpresa?


Clóvis Rossi: Acabou, Nicolás, fuja enquanto dá

Nunca antes um ditador foi tão repudiado como o venezuelano

Nunca vi, em tantos e tantos anos de cobertura de manifestações de massa, uma multidão tão impressionante como a que se reuniu nesta quarta-feira (23) em Caracas para repudiar a ditadura de Nicolás Maduro.

Para quem gosta de comparações, a Folha calculou em 1 milhão de pessoas a massa concentrada no Anhangabaú para o comício das diretas, em 1984. Eu observei —e o jornal publicou— que achava um exagero e comparei com a multidão que, meses antes, acompanhara o comício de encerramento da campanha de Raúl Alfonsín à Presidência argentina. Havia mais gente.

Pois bem: em Caracas havia mais gente ainda do que nos dois grandes atos de massa citados (para não mencionar que houve manifestações igualmente importantes em várias outras cidades). Pelo menos é o que dá para deduzir das fotos feitas com drones e penduradas no site do jornal espanhol El País.

Não resta, pois, a mais remota dúvida de que a Venezuela em massa rejeita Nicolás Maduro. Não por acaso, um dos gritos mais populares da manifestação foi “não quero ‘bono’, não quero CLAP, o que quero é que se vá Nicolás".

“Bono” é o “Bonus de la Pátria", dinheiro vivo para comprar pelo menos a anestesia popular; CLAP são os Comitês Locais de Abastecimento e Preços, que distribuem cestas básicas com a mesma finalidade.

Se serviram, até agora, para evitar que a rua fervesse, como ferveu nesta quarta-feira, já não bastam. A pergunta seguinte inevitável é: Nicolás se irá?

Claro que não há uma resposta para a pergunta, por enquanto. Há, entretanto, um dado que pode vir a ser relevante no futuro imediato: a oposição ganhou claramente uma lufada de ar fresco com a escolha para comandá-la de Juan Guaidó (pronuncia-se Guaidô). O tamanho da manifestação dá força à sua proclamação como “presidente em exercício”. Força acentuada pelo reconhecimento por Donald Trump.

Pode ser a chance de iniciar de fato um processo de transição. Ainda mais se prosperar a iniciativa que cinco países europeus estão propondo à Federica Mogherini, uma espécie de chanceler do bloco: França, Itália, Portugal, Holanda e Espanha querem criar o que chamam de “grupo de contato” para facilitar o diálogo entre as autoridades da Venezuela e a oposição para superar a atual situação.

Sou muito cético em relação ao diálogo com Maduro e companhia. Se tivessem um mínimo de decência, já teriam procurado um meio de enfrentar a crise ou, mais decentemente ainda, teriam renunciado e fugido.

Mas não parece haver outra alternativa, descartada como o foi por todos os atores relevantes uma intervenção militar que seria de fato catastrófica.

Se o Brasil tivesse um chanceler credenciado, ele já estaria de volta ao Brasil, para gerenciar uma crise tão tremenda em um país vizinho, em vez de deixar a iniciativa nas mãos de europeus e americanos.

Seu papel em Davos é irrelevante, para não dizer patético. Aqui, poderia coordenar com os países vizinhos e com as embaixadas europeias uma maneira de forçar Maduro a um diálogo realmente produtivo. Se fosse eu, ofereceria um avião para que Maduro e sua turma fujam para Cuba, com o que puderem levar. É a maneira expedita de atender ao grito da rua caraquenha de que Nicolás se vá. E já iria tarde.

*Clóvis Rossi é repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.


Clóvis Rossi: 'Brexit' é exemplo de quando o populismo machuca

Não há versão da saída da UE que aumente a prosperidade britânica

A Organização Mundial da Saúde bem que poderia promover uma campanha mundial de anúncios do tipo daqueles que aparecem nos maços de cigarro, para avisar que o populismo nacionalista faz mal à saúde. Faz mal à saúde mental, econômica, financeira, política, psíquica.

Há pelo menos meia dúzia de exemplos que podem ser mencionados, mas fico no mais espetacular do momento, que é a saída do Reino Unido da União Europeia.

O triunfo do “brexit” no plebiscito de 2016 foi atiçado por uma coleção de falsidades sobre as vantagens de deixar a comunidade de países europeus. Mexeram com os instintos nacionalistas.

Sempre achei que o exercício do direito de votar teria um efeito pedagógico. Quanto mais o cidadão vota, mais consciente ele fica e, portanto, faz escolhas mais sensatas. Aí, veio o “brexit” e, em seguida, a eleição de Trump e destruíram minha ingênua convicção.

Dois dos países que praticam o esporte democrático há mais tempo conseguiram cometer absurdos impensáveis.

No caso do Reino Unido, breve repasso aos males que esse ataque populista/nacionalista está provocando: na área política, a rejeição ao plano da primeira-ministra Theresa May para deixar a UE de maneira mais ou menos suave representou “uma monumental humilhação, um chocante repúdio de tudo o que a primeira-ministra trabalhou para alcançar e um completo colapso de sua estratégia”, como escreveu no Financial Times o colunista Robert Shrimsley.

Quando a chefe de governo sofre tal colapso, é óbvio que a política fica ferida de morte. Ainda assim, May sobreviveu a um voto de desconfiança, o que só faz aumentar o desarranjo generalizado.

Pior: não há saída sem traumas. Sair sem acordo “causaria turbulência para a economia, criaria barreiras para a cooperação em segurança [com os parceiros europeus] e prejudicaria a vida cotidiana das pessoas”. Quem o diz é a própria Theresa May (no discurso em que tentou infrutiferamente convencer o Parlamento a aprovar a sua proposta de saída).

Mesmo uma ruptura nos termos combinados entre May e a UE causaria perda de 3,9% na renda nacional no longo prazo, comparada com a permanência no bloco. Ou, como resume Philip Hammond, o responsável pelo Tesouro: não há versão da saída da UE que aumente a prosperidade britânica.

Resta a versão que é cada vez mais mencionada: um segundo plebiscito. Seria uma traição à democracia, ao rejeitar um resultado decidido pela maioria do eleitorado (maioria rasa, é verdade, mas maioria)?

O ex-primeiro-ministro John Major (aquele que substituiu a icônica Margaret Thatcher) acha que não: em artigo para o Sunday Times, Major lembra, primeiro, que apenas 37% dos britânicos votaram pela saída. Os restantes ou queriam ficar ou nem apareceram para votar.

Logo, não houve uma maioria que justificasse o salto no vazio.

Para Major, seria “moralmente condenável” a saída sem acordo: “O custo para nosso bem-estar nacional seria pesado e de longa duração. Pular de um penhasco nunca é um final feliz”.

Jonathan Freeland, no Guardian, vai mais ou menos na mesma linha ao dizer que o Parlamento britânico está “dando o espetáculo de um país perdido e à deriva”. O pior é que há outros países em que o populismo nacionalista pode levar à beira do penhasco. Preciso dizer quais?


Clóvis Rossi: Silenciar sobre ditaduras é crime de guerra

Um SOS pela Nicarágua

A Folha publicou nesta sexta-feira (21) anúncio de página inteira que é um verdadeiro manifesto político-institucional. Diz: “A Folha acredita que não existe democracia sem liberdade de imprensa”.

Eu também acredito, mas vou um passo adiante: acho que não podem existir fronteiras para a democracia e para a liberdade de imprensa.

Por isso, faço desta coluna, a última do ano, um apelo: não podemos deixar sem apoio o jornalismo da Nicarágua, o que significa, em consequência, apoiar também a luta pelos direitos humanos, violentamente atacados pela ditadura do casal Daniel Ortega e Rosário Murillo.

Quanto aos direitos humanos, é indispensável ressaltar a atuação do brasileiro Paulo Abrão, secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ele não tem se omitido, desde que o governo Ortega intensificou, em abril, a escalada repressiva.

A rigor, a CIDH é o único balão de oxigênio que permite respirar aos nicaraguenses.

Agora, a escalada repressiva alcançou outro raro balão de oxigênio, o sítio e revista Confidencial. É, ao lado do tradicional jornal La Prensa, veículo essencial para o exercício de liberdade de imprensa, assim como um ou outro programa jornalístico de televisão.

É bom ter em conta que a perseguição à mídia executada impiedosamente pelo governo de Nicolás Maduro, na Venezuela, ajudou a tornar o regime não só uma execrável ditadura mas também um fracasso de dimensões colossais.

É fundamental, pois, tentar ajudar Confidencial e demais veículos para preservar um espaço de acompanhamento crítico do regime enquanto há ainda tempo para evitar um fechamento incontornável e um fracasso socioeconômico semelhante ao de Caracas.

Confesso francamente que não sei bem o que fazer, nesse sentido. Por isso, copio o apelo enviado por Carlos Chamorro, o diretor de Confidencial, contendo algumas maneiras simples e indolores de ajudá-lo:

“Assinar o canal de Youtube de Confidencial: https://goo.gl/4xcR7W”;

“Seguir Confidencial no Twitter: https://goo.gl/uMjwke

“Dar ‘like’ na fanpage de Facebook de Confidencial: https://goo.gl/VdnRnW

“Dar ‘like’ na fanpage de Esta Semana:: https://goo.gl/tnAnSs” e na de Niú (https://goo.gl/SVjA3L)”. São dois outros informativos perseguidos.

Não é nada dramático, mas é mais do que os jornalistas brasileiros fizemos para tentar ajudar, por exemplo, El Nacional da Venezuela, obrigado a encerrar a edição em papel.

É uma contribuição para que Chamorro possa cumprir a promessa que acompanha o apelo acima reproduzido:

“Não vão conseguir que nos autocensuremos e deixemos de informar, porque temos o compromisso sagrado com um povo que tem sido massacrado e encarcerado, de contar como se substitui uma ditadura sanguinária de forma pacífica e como os nicaraguenses vamos conseguir reconstruir este país em paz, com democracia e eleições livres e com justiça que castigue os crimes da ditadura”.

Que os democratas digam amém. O silêncio é crime de guerra.
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PS - Férias a partir de amanhã e até meados de janeiro, se houver janeiro em 2019. Feliz Natal e um Ano Novo realmente novo.