cloroquina
José Roberto Mendonça de Barros: A novela do Orçamento
A questão do Orçamento é só mais um passo no sistema de enfraquecimento do Executivo
A frase é antiga, mas apropriada a esta situação: quando pensamos que já vimos de tudo, algo ainda mais inusitado ocorre. Digo isso a propósito do que se transformou a LOA para 2021.
Jamais havia acontecido uma demora de tal magnitude na aprovação da mais importante lei econômica de qualquer país. Como se sabe, no final do ano passado as lideranças políticas decidiram não votar o Orçamento para não criar problemas nas manobras que antecederam a eleição das mesas da Câmara e do Senado, que só ocorreriam em fevereiro deste ano. Foi o que aconteceu e os trabalhos legislativos a respeito só avançaram a partir de março.
Embora apenas isso já fosse complicado, as discussões, muito tensas, acabaram por produzir e aprovar uma peça orçamentária absolutamente equivocada, possivelmente contendo ilegalidades, e impossível de ser executada. Em resumo, as despesas obrigatórias foram grosseiramente subestimadas para que um volume sem precedentes de emendas parlamentares fosse incluído no Orçamento. Além disso, parâmetros conhecidos, como o valor do salário mínimo vigente, não foram levados em consideração, e ainda há outras impropriedades.
Aprovada a lei, criou-se outra dificuldade: a área econômica passou a argumentar que a sanção sem vetos do Orçamento poderia levar a um crime de responsabilidade, enquanto que as lideranças parlamentares, especialmente as da Câmara, argumentavam que tudo que estava consignado na lei foi discutido e aprovado pelos representantes do Executivo, não abrindo mão da sua aprovação sem vetos.
Daí o impasse criado, pois o governo rachou entre ministros favoráveis aos gastos e a área econômica e, de outro lado, a área parlamentar que, enquanto este artigo está sendo escrito, insiste na aprovação da lei tal como está.
Temos aqui, portanto, quatro grandes problemas de uma única vez:
– Abriu-se um grave problema político, pois o Executivo, muito fragilizado, não consegue decidir se veta parcialmente a LOA ou se a sanciona e, em seguida, envia um projeto de lei para fazer os consertos necessários, como pedem as lideranças legislativas. Enfrentar o Legislativo pode custar caro.
– Por outro lado, sancionar o Orçamento e corrigi-lo com um projeto de lei pode resultar em ajustar os gastos obrigatórios ao real e, ao mesmo tempo, acabar por expandir largamente os gastos totais e os déficits, o que a área econômica não deseja.
– Existe um problema orçamentário concreto, pois, na ausência de uma grande correção nos excessos praticados no Legislativo, o governo poderá ter enormes dificuldades e se inviabilizar no dia a dia por escassez absoluta de recursos em muitas áreas (apenas a título de exemplo, os recursos para o crédito da agricultura familiar, o Pronaf, foram zerados e os recursos para o Plano de Safra foram cortados pela metade).
– Finalmente, existe um grande problema fiscal, ou seja, mesmo que legalizados os excessos de gastos, via créditos extraordinários, ou alguma variante do chamado Orçamento de Guerra, esses terão efeitos deletérios sobre o crescimento da dívida e as expectativas dos agentes econômicos. E boa parte dessas despesas se destina a projetos paroquiais, sem maior relevância social ou econômica.
O que mais chama a atenção é o gigantesco grau de incompetência dos dois Poderes que gerou o monstrengo do Orçamento. O populismo desenfreado, a absoluta falta de coordenação no Executivo e o enfraquecimento crescente do ministro da Economia, Paulo Guedes, se somaram à falta de competência dos líderes do Legislativo. Dizer, como dizem estes, que tudo foi combinado com o Executivo não resolve a questão, pois não transforma um absurdo numa coisa razoável. Tem-se a impressão de que nenhuma das partes acaba por avaliar o volume de problemas que está sendo criado.
A questão do Orçamento e suas consequências políticas representam apenas um passo a mais no sistemático enfraquecimento do Executivo. A incapacidade de lidar com a pandemia está contaminando e derrubando as perspectivas de crescimento, que se espraiam para o ano que vem. Todos os analistas têm reduzido as projeções de crescimento para este ano e para 2022.
O governo está esfarelando e fazendo água por todos os lados.
ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS
Afonso Benites: CPI da Covid mira falta de vacinas e promoção de cloroquina para buscar a digital de Bolsonaro
“Não será uma CPI abstrata, mas uma investigação que estará dentro da casa de cada brasileiro, pois todos conhecem alguém que morreu”, diz futuro presidente do colegiado, senador Omar Aziz. Ex-ministros devem ser convocados
“O dia que eu passei e você quer que eu sorria?” A reação nesta semana do presidente Jair Bolsonaro a uma simpatizante que pedia uma foto sintetiza um dos piores momentos de seu Governo. O mau humor do mandatário se deve ao cerco que se fecha em seu entorno e revela um presidente desalentado, em vias de ter a sua digital encontrada nas principais falhas de gerenciamento no país da maior crise sanitária da humanidade. A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid deve começar seus trabalhos entre 22 e 29 de abril, e parlamentares trabalham para sejam convocados ex-ministros, funcionários técnicos da Saúde, e que se avaliem investigações já iniciadas no Tribunal de Contas da União (TCU) e no Ministério Público Federal (MPF). O objetivo é já avaliar a compra de vacinas e a promoção por parte do Governo federal de remédios sem eficácia para o tratamento da covid-19, como a cloroquina. Até este sábado, 371.678 pessoas já perderam a vida para o vírus no Brasil, e os contágios continuam em ascensão. Apesar disso, e mesmo sob a ameaça de ser responsabilizado pela tragédia, o presidente promoveu mais uma vez aglomerações neste final de semana, ao visitar Goianópolis (Goiás) no sábado, onde sem máscara cumprimentou pessoas e segurou um bebê.
Ainda que Bolsonaro tenha tentado dividir a responsabilidade da crise com governadores e prefeitos, conseguindo incluir os repasses feitos a Estados e municípios no escopo de investigação da CPI, os trabalhos da comissão instaurada no Senado para apurar as ações e a omissão do Governo durante a pandemia devem jogar holofotes a sua conduta neste um ano de calamidade. Mais do que fustigar e trazer à tona as falhas de Bolsonaro, os parlamentares —a maioria de oposição— arrastarão a imagem de um líder inepto até 2022, quando Bolsonaro pretende concorrer a uma nova eleição presidencial. As últimas pesquisas de popularidade e de intenções de votos não têm sido nada favoráveis ao presidente. Levantamento do PoderData publicada no último dia 14 mostra que ele perderia a disputa em segundo turno para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), apto novamente a concorrer ao pleito após decisão do Supremo que anulou suas condenações em Curitiba, e para o apresentador Luciano Huck (sem partido). E estaria empatado com outros três concorrentes: Ciro Gomes (PDT), Sergio Moro (sem partido) e João Doria (PSDB).
O futuro presidente da CPI, o senador Omar Aziz (PSD-AM), afirma que por mais que o cidadão brasileiro esteja acostumado a testemunhar esse tipo de investigação política, essa será diferente das outras dezenas que aconteceram desde a redemocratização, em 1988. “Essa não será uma CPI abstrata, na qual a pessoa olha para um político na TV e diz: ‘ah, são todos bandidos’. Essa CPI estará dentro da casa de cada brasileiro. Porque vamos tratar da morte de centenas de milhares de pessoas, não de crimes de corrupção. E todos os brasileiros conhecem alguém que morreu de coronavírus”.
Os 11 senadores titulares que compõem a CPI terão como missão delimitar onde o presidente acertou e onde errou durante a pandemia. Desde março de 2020, Bolsonaro ignorou praticamente todas as recomendações das autoridades de saúde do mundo: desestimulou o distanciamento social e o uso de máscaras de proteção facial, promoveu aglomerações como a deste sábado, incentivou o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento de covid-19, como cloroquina e ivermectina e negligenciou a compra de vacinas. Os parlamentares também investigarão se o Governo federal ignorou os alertas feitos no início do ano diante de um colapso sanitário de Manaus, quando dezenas de pessoas morreram porque as unidades de saúde onde elas estavam internadas não tinham cilindros de oxigênio.Quem persegue o Bolsonaro é o próprio Bolsonaro.
“O presidente acha que o estamos perseguindo e diz que ele não tem nada a esconder. Mas, quando ele se irrita com a abertura da CPI, é claro que ele veste a carapuça. Ou seja, quem persegue o Bolsonaro é o próprio Bolsonaro. Ele age contra si mesmo, sempre”, disse o senador Otto Alencar (PSD-BA), que presidirá a primeira sessão da comissão por ser o parlamentar mais velho. Nessa reunião, serão oficializados os nomes do presidente, vice e relator da CPI, papéis fundamentais para a condução da investigação, e que prometem ficar com oposicionistas.
Conforme os acordos que foram costurados ao longo da última semana, o MDB, que tem a maior bancada do Senado, ficará com a relatoria, responsável por produzir o relatório final sobre a investigação. O escolhido para esta função é Renan Calheiros (MDB-AL). O PSD, com a segunda maior bancada, ficaria com a presidência, com Aziz. E o vice-presidente será Randolfe Rodrigues (REDE-AP), que foi o autor do requerimento da comissão. Nos próximos dias, o Governo tentará alterar essa configuração. Aliados do presidente entenderam que a composição da cúpula da CPI ficou bastante desfavorável a ele e tentam convencer o PSD a indicar o bolsonarista Marcos Rogério (DEM-RR) para o cargo de relator. Mas dificilmente conseguirão. Cabe apenas ao presidente da CPI designar quem ocupará esta função. “Estamos fechados em um grupo de sete senadores. Temos a maioria e respeitamos a correlação de forças. Se os outros quiserem se somar a nós, serão bem-vindos. Mas não pretendo mudar nada”, disse Aziz.
Se a palavra dada por Aziz aos outros senadores não prevalecer e Bolsonaro conseguir fazê-lo mudar de opinião, marcará o rompimento de um acordo que poderá resultar em revides no plenário do Congresso Nacional, onde ainda devem tramitar temas de interesse do Governo, como o Orçamento Geral da União de 2021, que cortou boa parte das despesas dos ministérios e transferiu os recursos para emendas parlamentares e encurralou o Planalto, que tenta salvá-lo.
Hoje o presidente tem apenas quatro membros em sua tropa de choque na CPI. Além de Marcos Rogério, estariam na linha de defesa de Bolsonaro os senadores Ciro Nogueira (PP-AL), Jorginho Melo (PL-SC) e Eduardo Girão (Podemos-CE). Como estratégia para obter mais apoio na CPI, Bolsonaro estuda entregar cargos de primeiro e segundo escalões na máquina federal aos outros membros considerados independentes da comissão. Os principais alvos seriam Omar Aziz e Eduardo Braga (MDB-AM). Otto Alencar, Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Renan Calheiros, os outros nesse campo, pendem mais para a oposição do que para o Governo. A CPI é complementada pelos opositores Randolfe e Humberto Costa (PT-CE).
Primeiros passos
Na CPI, os senadores deverão iniciar os trabalhos ouvindo especialistas da área de saúde para definir o que deveria ter sido feito como planejamento no combate à covid-19. “Queremos ouvir os melhores epidemiologistas, microbiologistas, sanitaristas. Eles terão de dar as primeiras respostas para a sabermos o porquê chegamos até aqui”, disse Randolfe.
Também deverão ser ouvidos servidores e ex-servidores do Ministério da Saúde. Na lista de requerimentos a serem apresentados estarão ainda os três ex-ministros da pasta, o general Eduardo Pazuello, o oncologista Nelson Teich e ortopedista e ex-deputado federal Luiz Henrique Mandetta, além de parte de seus antigos auxiliares. Não está descartada a convocação do atual ministro, Marcelo Queiroga, para falar qual era o cenário encontrado por ele quando assumiu o ministério em março e o que tem sido feito desde então. Outros dois ex-ministros intimamente ligados ao bolsonarismo também deverão ser convocados, segundo a Folha de S.Paulo: Ernesto Araújo (Relações Exteriores), para explicar as tratativas com outros países sobre a compra de vacinas, e Fernando Azevedo (Defesa), para falar sobre o aumento da produção de cloroquina pelo Exército.
“Os fatos irão se sobrepor. Agora, não dá para esperar que a gente passe a mão na cabeça de ninguém, mas também não espere que vamos crucificar A ou B, como se isso bastasse para acabar com a pandemia. Ela não será uma caça às bruxas”, diz Aziz. O senador afirma ainda que caso se encontrem irregularidades, punições serão sugeridas para os órgãos de controle e que os senadores pretendem também criar um protocolo para impedir que os próximos presidentes ajam da maneira que bem entenderem na condução de crises sanitárias. “Se nós definirmos em lei uma série de passos a se seguir, não vai adiantar presidente nenhum ser negacionista, porque a legislação mandará que ele siga um roteiro. Se escapar dele, pode ser punido”.
Blindagem moral
Como uma tentativa de blindar o general Pazuello, o seu fiel aliado que seguiu todas as suas recomendações, Bolsonaro deverá lotá-lo no cargo secretário de Modernização do Estado, na Secretaria-Geral da Presidência da República. Na prática, será uma proteção moral, já que o cargo não tem nenhuma prerrogativa de foro especial. Pazuello esteve ao lado de Bolsonaro neste sábado, durante a visita a Goianópolis.
Paralelamente, enquanto ouvem as testemunhas, os parlamentares deverão requisitar informações aos órgãos que já estão investigando os deslizes do Governo. Há apurações no Tribunal de Contas da União sobre os gastos da Gestão Bolsonaro com cloroquina e sobre os repasses feitos a Estados e Municípios. Também existe uma investigação na Polícia Federal contra Pazuello e uma outra no Ministério Público Federal contra o mesmo general sobre a crise manauara. A interlocutores, Renan afirmou que essas apurações serão uma espécie de roteiro inicial de seus trabalhos.
Mais do que ver seu governo enfraquecido no ano eleitoral, o maior temor de Bolsonaro é o de ser destituído do cargo. Ele sabe que conforme a quantidade de provas levantadas pela CPI mais um pedido de impeachment pode ser apresentado contra ele. Por essa razão, voltou a dizer em uma de suas declarações públicas que nada o tirará do poder antes do fim do mandato. “Só Deus me tira da cadeira presidencial. E me tira, obviamente, tirando a minha vida. Fora isso, o que estamos vendo no Brasil não vai se concretizar. Não vai mesmo! Não vai mesmo!”, esbravejou na sua transmissão ao vivo da última quinta-feira.
Eliane Brum: A covid-19 está sob o controle de Bolsonaro
A população brasileira se tornou —e grande parte se submeteu— a ser cobaia de um experimento de perversão inédito na história
Afirmar que a covid-19 está fora de controle no Brasil por incompetência de Jair Bolsonaro é um erro. É o mesmo erro de chamar o Governo de Bolsonaro de “desgoverno”. Bolsonaro governa e a disseminação da covid-19 está, em grande parte, sob o seu controle. Se o que vive o Brasil é caos, é um caos planejado. É necessário compreender a diferença para ter alguma chance de enfrentar a política de morte de Bolsonaro. Se existe alguma experiência semelhante na história, eu a desconheço. No Brasil, certamente nunca aconteceu antes. Estamos subjugados a um experimento, como cobaias humanas. A premissa da pesquisa desenvolvida no laboratório de perversão de Bolsonaro é: o que acontece quando, durante uma pandemia, uma população é deixada exposta ao vírus e a maior autoridade do país dá informações falsas, se recusa a adotar as normas sanitárias e também a tomar as medidas que poderiam reduzir a contaminação.
O resultado, em perdas de vidas humanas, conhecemos: o Brasil ultrapassará os 260.000 mortos até o final dessa semana e aumenta velozmente suas chances de se tornar em breve o país com o maior número de vítimas fatais da história da pandemia de covid-19 no século 21. Enquanto vários países do mundo terão sua população inteiramente vacinada nos próximos meses e começam a vislumbrar a possibilidade de superar a covid-19, o Brasil enfrenta uma escalada.
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Em 2020, Estados Unidos e Reino Unido se alinhavam ao lado do Brasil entre os piores desempenhos relacionados à covid-19. Hoje, com o democrata Joe Biden na presidência, os Estados Unidos dão sinais de que vão deixar essa posição em breve e o Reino Unido do direitista Boris Johnson dá exemplo na campanha de vacinação, com o número de mortes baixando dia a dia.
O Brasil se isola no horror da covid-19, como contraexemplo e pária global. Dados da Organização Mundial da Saúde mostram que, enquanto a média de mortes no mundo recua em torno de 6%, no Brasil cresce 11%. Essa consequência é mais visível. Afinal, nesse crime há corpos, nesse momento em número suficiente para povoar somente com cadáveres uma cidade de porte médio. E crescendo à média atual de quase 1.300 mortos por dia.
Outro efeito é menos óbvio: o que descobrimos sobre nós, como sociedade, quando submetidos a essa violência, e o que cada um descobre sobre si quando as escolhas sanitárias, em vez de determinadas pela autoridade de saúde pública, dependem da sua própria decisão. Essa segunda parte do experimento tem se demonstrado bastante perturbadora e poderá minar os laços sociais ao longo de anos e até décadas, como aconteceu com países submetidos à perversão de Estado no passado.
Seguir alegando incompetência do governo Bolsonaro na condução da covid-19 ou é sintoma ou é má fé. Sintoma porque, para uma parte da população, pode ser demasiado assustador aceitar a realidade de que o presidente escolheu disseminar o vírus. A mente encontra um caminho de negação para que a pessoa não colapse. É um processo semelhante ao sequestrado que encontra pontos de empatia com o sequestrador para ser capaz de sobreviver ao horror de estar totalmente a mercê da vontade absoluta de um perverso.
Já má fé é compreender o que está acontecendo e, mesmo assim, seguir negando porque convém aos seus interesses, sejam eles quais forem. A pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Conectas Direitos Humanos provou que o governo federal executou um plano de disseminação do vírus. A análise de 3.049 normas federais mostrou que Bolsonaro e seus ministros tinham —e ainda têm— o objetivo de infectar o maior número de pessoas, o mais rapidamente possível, para a retomada total das atividades econômicas.
As provas estão lá, em documentos assinados pelo presidente e por alguns de seus ministros. O estudo comprova o que qualquer pessoa com capacidade cognitiva média pode verificar no seu cotidiano, a partir dos atos e das falas do presidente. A ação deliberada de disseminação do vírus não é apenas uma percepção, é também um fato. O que faltava era a documentação do fato, já que não basta perceber, é preciso demonstrar e documentar. E hoje está documentado e essa documentação tem se tornado base para novos pedidos de impeachment e comunicações no Tribunal Penal Internacional.
Em carta pública, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde reivindicou nessa semana a determinação de um toque de recolher para todo o território brasileiro e o fechamento de bares e praias, entre outras medidas. Os secretários afirmaram que o país vive o pior momento da pandemia e exigiram “condução nacional unificada e coerente”. Também pediram a suspensão das aulas presenciais e de eventos, incluindo atividades religiosas. “A ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais”, declararam. “Entendemos que o conjunto de medidas propostas somente poderá ser executado pelos governadores e prefeitos se for estabelecido no Brasil um ‘Pacto Nacional pela Vida’ que reúna todos os poderes, a sociedade civil, representantes da indústria e do comércio, das grandes instituições religiosas e acadêmicas do País, mediante explícita autorização e determinação legislativa do Congresso Nacional”. Bolsonaro, porém, obviamente não quer. E, como a imprensa noticiou, seus subordinados, muitos deles generais de quatro estrelas, avisaram que não fará.
Bolsonaro se recusa. Porque há condução do governo e seus atos estão focados na disseminação do vírus. Esse é o equívoco de quem acredita que é necessário convencer Bolsonaro a liderar um pacto nacional pela vida. Ele já executa um pacto nacional, mas pela morte, e não estou usando uma metáfora. Ele já fez várias declarações públicas e explícitas para que o povo deixe de ser “maricas”, afinal “mortes acontecem”, “todos nós morreremos um dia” e “toca o barco”. Por isso, mesmo no pior momento da pandemia, o presidente segue fiel e dedicado à sua política, estimulando aglomerações e comércio aberto, além de atacar o uso de máscaras.
Em Porto Alegre, um de seus apoiadores, o prefeito Sebastião Melo (MDB), ecoa o chefe: “Contribua com sua família, sua cidade, sua vida, para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre”. Percebam que estamos diante de uma completa inversão: ao longo da história, autoridades públicas das mais variadas geografias e línguas pediram sacrifícios econômicos para salvar vidas. O bolsonarismo inverteu essa lógica: exige o sacrifício da vida —dos outros, bem entendido— para salvar a economia. E assim o Brasil de Bolsonaro e do sacrifício da vida supostamente em nome da economia exibiu em 2020 o pior PIB dos últimos 24 anos. Enquanto países que fizeram lockdown já começam sua recuperação também econômica, o Brasil descarrilha.
Diante da abundância de provas sobre a política de disseminação do vírus, é preciso olhar com atenção para aqueles que seguem apoiando Bolsonaro, em público ou nos bastidores. As razões para a má fé são várias, a depender do indivíduo e do grupo. Uma parte dessa entidade que chamam “mercado” ainda aposta que Bolsonaro seja capaz de continuar fazendo as “reformas” neoliberais que deseja que sejam feitas. Uma parte do que chamam de “agronegócio” também aposta na destruição da Amazônia para aumentar o estoque do mercado de terras para especulação e ampliar a fronteira agropecuária. O mesmo vale para a mineração.
Se é fato que uma parcela já recuou por conta do impacto cada vez maior do desmatamento na recusa de produtos brasileiros na Europa, parte espera que Bolsonaro consiga avançar com mais algumas maldades antes de retirar seu apoio, seja ele à luz do dia ou nas sombras. Só então se escandalizará ao subitamente descobrir a intenção de Bolsonaro de enfraquecer a legislação ambiental e abrir as terras indígenas para exploração predatória. Em algum momento, essas cândidas criaturas do mercado vão retirar seu apoio enojadas, em entrevistas ponderadas e pontuadas por jargões econômicos na imprensa liberal. Afinal, como poderiam esses inocentes imaginar que Bolsonaro não era um estadista, justo Bolsonaro, um homem tão elegante e contido? Para alguns, finalmente, ainda há algo a ganhar com Bolsonaro e Paulo Guedes e, para isso, não importa quantos morram, desde que os enterros não sejam na sua família ou no seu seleto clube de amigos.
O mesmo vale para algumas lideranças do pentecostalismo e do neopentecostalismo evangélico, que também ainda acreditam ter bastante a ganhar, mesmo que parte da sua base de fiéis morra de covid-19. O desespero crescente lhes trará outros clientes para compensar sua má fé. Como é claríssimo, os pastores de mercado apostam em manter seu poder agora e nas próximas eleições. Com o sistema hospitalar dando sinais de colapso, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), considerou cultos religiosos “atividades essenciais”. Para agradar aos pastores, que andavam publicamente reclamando de sua atuação, as aglomerações para o benefício da igreja-empresa estão permitidas.
O fervor pela ciência demonstrado por Doria, em nome do qual consolidou-se como o principal opositor de Bolsonaro no primeiro ano de pandemia, foi substituído pelo novo mote anunciado por ele na segunda-feira: “esperança, fé e oração”. Diante da pressão dos vendilhões dos templos e sua ameaça de retirar apoio na disputa presidencial, rifa-se mais uma vez a vida. E segue aquilo que consideram prioritário: a eleição presidencial de 2022. Afinal, há de sobrar um número suficiente de eleitores vivos até lá.
E o que dizer dos políticos, o Centrão puxando o cortejo de corruptos de bolso e de alma, mas longe de estar sozinho? Todas as violações de Bolsonaro não são suficientes para fazer andar a fila de mais de 70 pedidos de impeachment e sempre aumentando. Afinal, o que vale é garantir a impunidade dos próprios parlamentares, essa sim considerada emergencial por aqueles escolhidos para representar os interesses de uma população que hoje morre de covid-19.
Ainda que os fatos sejam conhecidos, é necessário enfileirá-los para compreender que essa é a realidade: há um presidente executando uma política de morte. Não é histrionismo, não é força de expressão, não é hipérbole. É a realidade e muito mais brasileiros morrerão por causa das ações de Bolsonaro.
Nos deixaremos matar?
Em 2021, a conjuntura do Brasil para enfrentar a política de morte de Bolsonaro é muito pior do que em 2020. E isso já se reflete no número de vítimas. Diante disso, nos deixaremos matar? Porque é basicamente essa a questão. Nesta quarta-feira, atingimos o maior número de mortos em um dia desde o início da pandemia: 1.910 pessoas, 1.910 pais, mãe, filhas, filhos, irmãos, irmãs, avôs, avós perdidos, 1.910 famílias despedaçadas. E isso num país com sistema público de saúde, centros de pesquisa respeitáveis e invejável capacidade de vacinação em massa.
O Congresso, que no primeiro ano da pandemia foi importante para estabelecer o auxílio emergencial de 600 reais e para derrubar os vetos mais monstruosos de Bolsonaro, como o de negar água potável aos indígenas, com Arthur Lira (PP) não fará nada para impedir nem as maldades nem o próprio Bolsonaro. Pelo contrário. O judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, conseguiu barrar vários horrores desde o início da crise sanitária, mas nem de longe é suficiente para impedir a monstruosidade do que o Brasil enfrenta. Sem contar que há grande disputa ideológica dentro do judiciário.
O tal do mercado eventualmente em algum momento retirará seu apoio, caso Bolsonaro faça os setores mais poderosos do empresariado perder mais dinheiro do que ganhar, o que já está acontecendo em várias áreas. Mas não dá para contar com as elites econômicas que, se algum dia tiveram alguns expoentes genuinamente preocupados com o país, hoje claramente se lixam para a população. As elites intelectuais têm mostrado que estão pouco dispostas a fazer mais do que protestar em sua bolha como faz qualquer um nas redes sociais. É claro que há exceções em todas as áreas, mas a profunda crise do Brasil mostra que as elites brasileiras são ainda piores do que se supunha.
As periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro gritam: “é nós por nós”. E é. A questão, quando o “nós” é ampliado, é quem são o nós?
A complexidade do “nós” é que Bolsonaro foi eleito pela maioria dos que foram às urnas. Bolsonaro disse exatamente o que faria. E quem votou nele sabia exatamente quem ele era. E mesmo assim ele venceu, o que fala muito desse “nós”. Apesar de executar uma política de morte e converter o Brasil num pária do mundo, as pesquisas mostram que Bolsonaro ainda tem uma aprovação significativa. Caso a eleição fosse hoje, teria chance real de ser reeleito. Isso também fala do “nós”.
Talvez quem tenha melhor expressado o drama do “nós” seja o governador da Bahia, Rui Costa (PT). Ao ser entrevistado ao vivo pela TV Globo, ele chorou. Porque é difícil de entender o “nós”. E, diante do “nós”, a impotência aumenta. “É duro você receber mensagens com as pessoas perguntando: ‘E meu negócio? E a minha loja?’ O que é mais importante: 48 horas de uma loja funcionando ou vidas humanas?”, desabafou Costa. “Não gostaria de estar tomando decisões como esta. Gostaria que todas as pessoas estivessem usando máscaras. Mesmo aquelas que se consideram super-homens, se consideram jovens. Se não é por ele, pelo menos pela mãe, pelo pai, pela avó, pelo parente, pelo vizinho. Essas pessoas, sozinhas, decretaram o fim da pandemia.”
“Essas pessoas”, as quais o governador se refere, é o “nós”. É o “nós” que lotou as praias, é o “nós” que fez Carnaval, é o “nós” que faz festas, obrigando policiais a arriscarem sua vida para impedir que continuem, é o “nós” que resolveu reunir a família no Natal e os amigos no Réveillon, porque afinal de contas “ninguém aguenta mais”. É o “nós” que lota as igrejas porque sua fé, que precisa daquelas quatro paredes para existir, é mais importante do que a vida do seu irmão. É o “nós” que se acha mais esperto porque segue enchendo a cara nos bares com os parças. É o “nós” que anda sem máscara por todos os lugares. E é também o “nós” que já anunciou que tomar vacina é para otário.
O “nós” é um nó
Nessa altura, alguém pode dizer que esse nós não é “nós”, mas “eles”, o outro lado. Ouso dizer que, se a realidade fosse tão simples como “nós” e “eles”, Bolsonaro já teria sido submetido ao impeachment e já estaria sendo investigado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. O “nós” é um nó. E vamos precisar desatá-lo para enfrentar a política de morte de Bolsonaro.
A parte mais perversa da execução do projeto de Bolsonaro é justamente revelar o bolsonarismo mesmo de quem odeia Bolsonaro. Essa é a parte mais demoníaca do experimento do qual somos todos cobaias. Sim, a orientação do presidente é matar e morrer: não use máscaras, aglomere-se, abra seu negócio, vá trabalhar, mande as crianças para a escola, use medicamentos sem eficácia, se tomar vacina pode virar jacaré. Diante do conjunto de orientações para disseminar o vírus, o que resta é cada um tomar decisões individuais que, poderia se esperar, contemplassem em primeiro lugar o bem-estar do outro, mais desprotegido, e o bem-estar coletivo, o do conjunto da comunidade.
Quando na segunda-feira o governador Rui Costa chorou, ao vivo, na TV, diante de milhões de telespectadores, é por sua incompreensão e impotência diante de gente que o ataca por ter que fechar seu negócio por 48 horas para que vidas possam ser salvas. Dois dias. Dois. No Reino Unido as lojas, as academias, os salões de beleza, os cinemas, os bares e restaurantes etc estão fechados desde novembro e não é permitido ver outra pessoa que não more na mesma casa nem mesmo no parque. Os britânicos, como grande parte dos europeus, passaram o Natal, o Réveillon e os feriados sob essas normas. Uso o exemplo do Reino Unido porque Boris Johnson, o primeiro-ministro, não é um “esquerdopata”, mas um dos expoentes da safra de populistas de direita do mundo. E mesmo assim. Os britânicos podem reclamar, mas dentro de suas casas, porque essas são as regras e quem determina as regras numa pandemia são as autoridades sanitárias. Ponto final.
Bolsonaro também determina as regras sanitárias na pandemia. Mas, como já foi amplamente demonstrado, escolheu a disseminação do vírus. E então, para salvar a própria vida e não colocar a do outro em risco, cada um precisa estabelecer suas próprias regras sanitárias. É nessa volta do parafuso que o “nós” se complica. O “nós” então precisa responder a perguntas bem difíceis. Nós todos precisamos. O que o cotidiano está mostrando é que, eventualmente e às vezes até com frequência, “nós” também somos “eles”.
Lidamos muito mal com limites. Não há problema nenhum em ter limites quando não se perde nada ou quando se perde pouco. Mas, quando precisa perder algo que realmente custa, aí complica.Não apenas custo financeiro, mas o custo de um projeto, o custo de um plano, o custo de um sonho, o custo de aguentar a angústia entre quatro paredes, o custo da solidão, o custo de não passar na frente da fila mesmo que as regras permitam mas a ética não. Enfim, se cada um olhar para dentro com honestidade, e não precisa contar para ninguém, sabe muito bem o que realmente lhe custa e prefere não deixar de fazer.
A justificativa do “nós” para quebrar regras da Organização Mundial da Saúde é sempre legítima porque supostamente é em nome de um bem maior. Nosso cérebro encontra as mais elevadas justificativas para recusar limites que nos obrigam a perder muito. E, quando confrontados, achamos que é o outro que não entende a conjuntura ou que está numa posição mais protegida para tomar decisões. O “nós”, quando pode, raramente se pergunta se deve. O “nós” sempre tem melhores justificativas do que o “eles” para fazer o que quer e o que acha importante. E que muitas vezes é mesmo muito importante. Mas, atenção, estamos numa pandemia que já matou quase 260 mil pessoas no Brasil e mais de 2,5 milhões no mundo. O aumento da contaminação significa não apenas mortes, mas novas mutações do vírus que podem ser imunes às vacinas existentes e comprometer as medidas globais de enfrentamento do vírus colocando toda a humanidade em risco.
Quando se toma uma decisão numa pandemia nunca é apenas sobre a nossa própria vida. Só quem quer disseminar a morte, como Bolsonaro, diz que cada um tem o direito de fazer o que quer porque se trata apenas de si. Quando o presidente declara que não tomará vacina porque essa decisão supostamente só diria respeito a ele, Bolsonaro faz esse anúncio exatamente porque tem certeza do contrário. Ele sabe que essa declaração vai muito além da sua própria vida. Qualquer decisão numa pandemia vai impactar muito além da vida de qualquer um. Se é um presidente, autoridade pública máxima, torna-se uma orientação à população.
É muito difícil lutar contra o governo federal, que tem a máquina do Estado na mão e a capacidade de amplificar suas orientações a toda a população. É imensamente mais difícil lutar contra um presidente da República em meio a uma crise sanitária. Em vez de seguirmos normas federais que protegem a todos os brasileiros e especialmente os mais vulneráveis, normas determinadas pelo Estado, fomos submetidos a ter que tomar nossas próprias decisões sanitárias e, ao mesmo tempo, sermos atropelados pelas dos outros.
Há quem não esteja nem aí, claro que há. Mas há muitos que querem tomar as melhores decisões e realmente acreditam que tomam, mas não são sanitaristas, não foram formados para ser, não têm obrigação de ser. É também a esse experimento que Bolsonaro submeteu os brasileiros. Essa experiência está deixando marcas em cada um e está corroendo ainda mais relações que já estavam difíceis. Está corroendo uma sociedade já bastante dividida, cujos laços estão cada vez mais esgarçados.
Ao deslocar a responsabilidade para o indivíduo, Bolsonaro está perversamente nos tornando cúmplices de seu projeto de morte. Quando ele invoca o direito individual de não usar máscara e de não tomar vacina, ele está maliciosamente dizendo também o seguinte: se é cada um que decide e faz o que quer e você está reclamando de mim, por que você não decide se proteger e proteger os outros? Simples assim, ele poderia dizer. Ou “talquei?” É diabólico, porque ele faz isso parecer trivial, como se fosse possível numa pandemia que as decisões sanitárias dependam da escolha individual.
E se decidirmos lutar contra quem nos mata?
A história nos conta que, na ditadura civil-militar (1964-1985), apenas uma minoria se insurgiu contra o regime de exceção. A maioria dos brasileiros preferiu fingir não ouvir os gritos dos torturados, centenas deles até a morte, ou dos mais de 8.000 indígenas assassinados junto com a floresta amazônica. Ainda assim, tudo indica que foi uma reação mais forte e expressiva do que essa que testemunhamos e protagonizamos como sociedade agora, diante de um projeto de extermínio.
O processo da retomada da democracia, com todas as suas falhas, a maior delas a impunidade dos assassinos de Estado, foi capaz de criar a avançada Constituição de 1988. É a chamada “constituição cidadã”, que ainda sustenta o que resta de democracia hoje, apesar de todos os ataques do bolsonarismo. O que essa sociedade fraca, corrompida, individualista e pouco disposta a se olhar no espelho será capaz de criar se não for capaz de se insurgir contra mortes que seriam evitáveis?
Se dermos por perdido, se nos dermos por perdidos, se dermos por impossível, se nos dermos por vencidos, aí já está dado. Completaremos o caminho rumo ao matadouro. Obedientes à política de morte de Bolsonaro, porque gritar nas redes e no whatsapp não é desobedecer a absolutamente nada. É pouco mais do que dissipar energia se autoiludindo que é ação. Para sermos nós, independentemente de quantos nós exista dentro desses nós, precisamos nos unir num objetivo comum: interromper a política de morte de Bolsonaro.
Em 2020, escrevi nesse mesmo espaço: como um povo acostumado a morrer (ou acostumado a normalizar a morte dos outros) será capaz de barrar seu próprio genocídio? Essa pergunta é hoje, quase 260 mil mortos depois, muito mais crucial do que antes. Nossa única chance é fazer o que não sabemos, ser melhores do que somos, e obrigar o Congresso a cumprir a Constituição e fazer o impeachment. E, lá fora, pressionar os organismos internacionais a responsabilizar Bolsonaro por seus crimes.
A cada dia cada um precisa se somar a todos os outros para esse projeto comum. E, talvez, ainda possamos nos descobrir capazes de nos tornarmos “nós”, o que significa ser capaz de fazer comunidade. A primeira pergunta da manhã deve ser: o que faremos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando? E a última pergunta deve ser: o que fizemos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando?
O que mais falta acontecer, ver e provar para compreender que estamos submetidos a um projeto de extermínio? Primeiro vimos pessoas morrerem em agonia por falta de oxigênio nos hospitais. Depois assistimos às cenas de pessoas intubadas que, por escassez de sedativos, tiveram que ser amarradas em macas para não arrancarem tudo por dor e desespero. O que mais falta? Qual é o próximo horror? De qual imagem necessitamos para entender o que Bolsonaro está fazendo? Precisamos compreender por que estamos nos deixando matar, subvertendo o instinto primal de defender a vida, que mesmo o organismo mais primário possui. Mas precisamos entender enquanto agimos, porque não há tempo. A alternativa é seguir assistindo Bolsonaro executar sua política de morte até não podermos mais assistir porque também estaremos mortos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
O Estado de S. Paulo: Grupo da OMS publica 'forte recomendação' contra uso de hidroxicloroquina na prevenção à covid-19
Painel de especialistas divulga posição nesta segunda como parte de nova diretriz que analisa eficácia de medicamentos. Estudos não mostraram efeitos sobre morte ou internações e apontam riscos de efeitos adversos
Marco Antônio Carvalho, O Estado de S.Paulo
Um painel de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou nesta segunda-feira, 1º, uma recomendação contrária ao uso da hidroxicloroquina como método de prevenção para a covid-19. Eles dizem que os estudos não mostraram efeitos significativos sobre mortes ou internações e apontaram riscos de efeitos adversos provocados pela substância. O presidente Jair Bolsonaro defendeu o uso do remédio ao longo da pandemia, embora várias pesquisas tenham mostrado que ele não tem eficácia contra o vírus.
A nova recomendação é de autoria do Grupo de Desenvolvimento de Diretrizes (GDG, na sigla em inglês) da OMS. Os especialistas dizem que a “forte recomendação” é baseada em evidências de alta certeza obtidas em seis estudos randomizados e controlados com 6 mil participantes.
“A evidência de alta certeza mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo em mortes e admissões em hospitais, enquanto evidência de certeza moderada mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo sobre infecções confirmadas em laboratório e provavelmente aumenta o risco de efeitos adversos”, declarou a OMS em nota à imprensa.
O grupo, diz a organização, considera que a droga não tem mais prioridade para pesquisa e que os recursos devem ser usados para avaliar outras drogas mais promissoras na prevenção contra o vírus. “Essa diretriz se aplica a todos que não têm covid-19, independentemente da exposição a uma pessoa com a infecção”, reforçou.
A recomendação desta segunda é a primeira versão de uma diretriz voltada a medicamentos capazes de prevenir a doença. O objetivo da OMS é promover orientação confiável sobre a gestão da covid e ajudar médicos a tomarem melhores decisões para seus pacientes. A diretriz poderá ser atualizada diante de evidências. Novas recomendações serão acrescentadas no momento em que estudos de relevância se tornarem disponíveis.
A cloroquina e a hidroxicloroquina integram orientação oficial emitida pelo Ministério da Saúde no ano passado, com recomendação voltada a casos leves, moderados e graves. Neste ano, um aplicativo da pasta chegou a sugerir os remédios até a bebês, e foi retirado do ar. O Estadão mostrou que as prefeituras que receberam a doação do ministério agora querem devolver os medicamentos sem eficácia.
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Míriam Leitão: Aos que não brincaram o carnaval
Hoje é terça de carnaval e não haverá blocos com aquela alegria resistente querendo esticar o que já estaria acabando. Não houve desfile no sambódromo, as baterias não tomaram os corações ao passar com seu ritmo e cadência, nem as baianas rodaram sua dança envolvente. As costureiras não bordaram o brilho da avenida. Os foliões que saíram não encontraram respaldo. Não é engraçado vestir-se de alguma paródia, se a morte à espreita na esquina não é uma fantasia.
Houve aglomeração e escutei no domingo a interminável festa de um vizinho, mas mais interessante é o silêncio de quem não foi para a rua, mesmo sendo apaixonado pela folia. Por isso dedico essa coluna aos que não brincaram o carnaval de 2021. É admirável a festa do avesso, da ausência, dos que demonstram respeito ao outro. Cada folião que não saiu, que dispensou a fantasia, que se enfeitou para si mesmo, estava celebrando a vida.
O Rio é do folguedo momesco. Eu admiro essa alegria como parte essencial da natureza do país apesar de me sentir estrangeira às vezes. No Rio, o carnaval de rua renasceu há vários anos em blocos de nomes tradicionais, divertidos e poéticos. Os trios elétricos da Bahia. Os ranchos de Belém. O Largo da Batata, em São Paulo. Metódico, São Paulo tem se esmerado para que o seu sambódromo brilhe mais do que a Sapucaí. Vai vai que consegue. No Recife, o frevo com suas muitas pernas trançantes e suas sombrinhas coloridas avisou ao galo que não cante de madrugada. Em Brasília, o pacotão ficou embrulhado. Em Salvador, o Pelô fez silêncio. Manaus. Manaus é o centro da nossa dor.
Ninguém melhor que Maria Bethânia refletiu o momento ao pedir “vacina, respeito, verdade e misericórdia”, na live em que mostrou a força inteira da sua voz de rainha. Ela reclamou da saudade do público distante, mas esteve tão próxima. Fez o que sempre soube fazer no canto, na poesia, na mensagem direta. Bethânia é opinião. Miguel em queda lembrava o passado que não corrigimos. Cálice parecia ter sido composta na véspera. As raízes do Brasil estavam todas no canto da filha de Dona Canô.
O folião desgarrado que volta pra casa, lúcido e triste, como diria Manuel Bandeira, com sua fantasia um pouco estragada pelos excessos, sempre me pareceu a melhor poesia do carnaval. A alegria se esbaldou, o canto aquietou, os pés já não pulam, o grupo se desfez e essa volta lenta, ainda marcado da festa, é a imagem que sempre prendeu meus olhos quando andei pela cidade, nos carnavais. Hoje, se houver algum folião voltando com restos de festa, não será uma imagem poética. Eu veria, se eu o visse, a pessoa que decidiu que o risco coletivo não é importante.
Eu nasci numa cidade que tem hoje 92 mil habitantes. Com quantas caratingas se conta a dor de hoje do Brasil? Que métrica mediria o que temos vivido? As mortes somadas não informam tudo sobre o sofrimento desse tempo. Houve também as esperas longas e angustiadas por um parente, um amigo, uma pessoa amada, houve a aflição de contar os dias, isolado num quarto, temendo que o ar fugisse dos pulmões e, ainda, a espera ansiosa pelo resultado dos testes. Houve a solidão e a saudade.
Na história dos carnavais haverá a cicatriz de 2021. Esse lapso, intermédio, ausência, parêntesis será o que de melhor teremos a contar nos anos vindouros. A folia recolhida foi o maior presente dado ao outro. Ó abre alas que vamos passar sem o carnaval. Momo foi levado a uma república. Destronou-se. Reinará no futuro, em outros carnavais.
O pior é a festa dos incautos, insensatos e insensíveis, dos que desprezam o risco, não por coragem, mas pela covardia de expor outros ao perigo, dos que por estupidez duvidam da ciência, fruta madura da inteligência humana.
Há muito sobre o que escrever no Brasil, numa coluna de jornal. Temas nunca me faltaram, nos quase 30 anos que aqui pontuo. Hoje a melhor notícia é a festa que não houve, a fantasia não vestida, os foliões que não foram vistos por aí. Aos que se recolheram, mesmo tendo alma carnavalesca, todo o meu respeito nessa terça magra do carnaval de 2021.
Bethânia mistura palavra falada e cantada. Declama e canta. Estilo dela. Opinião. Buscou Cecília Meireles para avisar que “a primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la”.
Carlos Andreazza: Inação calculada
Como cantado longamente aqui, o auxílio emergencial voltará; a dúvida sendo sob que grau de oportunismo populista. Agora parece uma obviedade, mas não foram poucos os especialistas cujos calls — em janeiro de 2021 —bancavam a improbabilidade da volta; talvez decorrendo daí, da fé nas palestras de Paulo Guedes, o estado, segundo Bolsonaro, “irritadinho” do mercado.
Muita gente bacana ficou de mau humor na semana passada — o governo de repente afobado, preocupado com os pobres, o presidente falando em fome —, porque acreditou na fantasia de que a economia virara o ano crescendo em V, e a segunda onda da peste seria mero repique. Estaria tudo sob controle — mesmo que ainda não haja orçamento para 2021. (Mas temos o direito a seis armas!) Tudo sob controle, livres de Maia, com as reformas chegando — e, claro, com o Banco Central independente, esta prioridade. Né?
Aí está, porém, o IBGE a nos situar; as vendas no varejo tombando 6,1% em dezembro. A imposição do mundo real. A premência do auxílio emergencial; o agente que induzia o consumo, sem o qual a miséria de um país miserável se expandirá — a miséria de um país miserável cujo governante boicota a vacinação em massa, a única forma de gerar empregos novamente. Voltará. Virou pra ontem.
O governo — até ontem — tinha pressa nenhuma. E agora, de súbito, o ai-jesus; porque também a popularidade de Bolsonaro geme. Guedes, aliás, precisa esclarecer se temos crescimento em V ou se é imperiosa a volta da assistência. Os dois discursos não casam.
Estava dado que o auxílio seria a principal agenda do Parlamento, uma vez escolhidos os novos presidentes de Senado e Câmara. Ato contínuo, procuraram o Planalto para impor a retomada. Virem-se. Há urgência — uma demanda social que não poderia ser condicionada por rigores fiscais. Esse foi o recado inicial; mensagem que vem do Congresso profundo. A da imposição de uma agenda que afrontaria o teto de gastos, ultimato em consequência do que ora vemos a correria do Ministério da Economia. Um barata-voa que muitos chamam de negociações com o Parlamento. Tomara. Eu desconfio.
Fala-se, desde o fim da semana passada, em acordo. Já haveria um entre Guedes e os presidentes das Casas legislativas para que o restabelecimento do auxílio contemplasse, imediatamente, ajustes fiscais compensatórios. Será preciso, contudo, combinar com as lideranças no Congresso. Recomendo prudência. A maré ali é outra, postas as condições para o atropelo. Isso seria o normal.
Tudo indica que o instrumento para a reconstituição a jato será algo como o orçamento de guerra, uma guarida excepcional já testada, que autorizaria, à margem do teto, a liberação de crédito extraordinário. Como em 2020, a âncora fiscal seria preservada de gastos que, no entanto, integrariam a fatura do déficit primário. Pronto. Desde que eleitos os novos comandos legislativos, ficara evidente que a preocupação do Congresso com a balança fiscal ia até somente a foto em que se acordaria um compromisso verbal para que, apenas em meados do ano, fosse votada uma emenda constitucional com medidas duras de verdade. Isso seria o normal. A promessa de austeridade projetada no amanhã.
O governo diz que não; que haveria mesmo um pacto de responsabilidade para já, e que se trabalha conjuntamente pela concepção do modelo. O modelo: embutir o novo orçamento de guerra na PEC do Pacto Emergencial, o que equivaleria a usar a pressão pela assistência para empurrar um projeto contra o qual há resistência no Parlamento. Essa é a estratégia. Prosperará? Se sim, afinal capaz de formar consensos, o Ministério da Economia daria uma demonstração de competência até hoje inédita. Haja empenho de fé.
Sugiro ceticismo. Maiores são — sob a vara do afogo — os riscos de triunfar uma resposta fácil. Sempre se soube que o auxílio emergencial acabaria com 2020; e que, não preenchido, o vácuo resultaria no agravamento da pobreza. O V de Guedes sendo amassado pela realidade, a que nos esfrega a forma bruta do K na lata; a perna que desce, a da saúde econômica dos ferrados.
O governo teve muitos meses para formular alternativas que abrissem espaço fiscal capaz de conciliar auxílio e teto. Houve mesmo tempo para que se estudasse, em nome da previsibilidade, uma modalidade de flexibilização da âncora fiscal ante uma situação excepcional. Mas se preferiu mentir sobre a saúde da economia. Preferiu-se a inação calculada, que alivia Bolsonaro dos prejuízos de fazer escolhas ao mesmo tempo que lhe dá a colheita das glórias.
Não é a primeira vez que o Planalto age assim. Ou seja: não age. Espera o Parlamento exigir. Forma-se o impasse. O governo, bancando o equilibrado, então solta o balão de ensaio: associar o mecanismo que viabilizaria a política pública urgente a uma PEC impopular parada no Congresso. E, dessa forma, empurra ao Legislativo o ônus de qualquer solução que não fiscalmente ponderada. Uma armadilha. Como diria Guedes, a granada no bolso do inimigo. Ganha-ganha para Bolsonaro; porque o auxílio, que nunca deveria ter cessado, voltará — um crédito extraordinário para o mito brincar de salvador.
Vera Magalhães: Com vacina acabando, Bolsonaro troca cloroquina por spray nasal israelense
Depois de passar quase um ano fazendo propaganda de cloroquina e hidroxicloroquina, inclusive ordenando ao Ministério da Saúde adotar um protocolo para que esses medicamentos fossem prescritos em casos leves de covid-19, determinar sua fabricação pelo Exército brasileiro e importar doses não utilizadas dos Estados Unidos, Jair Bolsonaro parece ter um novo xodó no enfrentamento da pandemia.
Enquanto começam a acabar as poucas doses de vacinas enviadas pelo governo federal a Estados e municípios, Bolsonaro postou neste domingo em sua conta no Twitter que conversou com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, para que o Brasil participe da fase 3 de testes do spray nasal EXO-CD24, que, escreveu "vem obtendo grande sucesso no tratamento da covid-19 em casos graves".
De novo, o presidente vende um remédio "milagroso" antes de ciência atestar isso. Nesta segunda-feira, ele voltou ao assunto (o que mostra que estamos a caminho de uma nova obsessão; as emas do Alvorada que se cuidem), dizendo que ele tem eficácia "próxima de 100%" e que, em breve, será enviado pedido de aprovação da Anvisa para uso emergencial.
As pesquisas com sprays nasais, não só em Israel, mas em várias partes do mundo, de fato são uma das vertentes abertas pela ciência na tentativa de combater a covid-19. A epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, publicou um fio no Twitter em que esclarece que o que existe publicado a respeito do EXO-CD24 é um registro de ensaio clínico de fase 1, com resultados promissores.
Segundo os fabricantes, explica ela, dos 30 pacientes com casos graves que usaram o spray nasal, 29 teriam se recuperado. É a isso que Bolsonaro se refere empolgadamente como "eficácia de praticamente 100%": um estudo preliminar com 30 pacientes.
Mais: mesmo para ter o uso emergencial aprovado pela Anvisa o medicamento precisa apresentar estudos de fases 2 e 3. O Brasil pode fazer parte de protocolos de estudos clínicos, como sugere o presidente, mas o uso do medicamento em escala capaz de aplacar os efeitos da pandemia, ainda que a eficácia seja comprovada, levará meses.
O que a nova obsessão do presidente mostra é sua busca desenfreada por uma narrativa que o tire do atoleiro de popularidade em que está enfiado por ter minimizado a pandemia, atuado contra o isolamento social, boicotado a compra de vacinas e mesmo a confiança da população em sua necessidade, segurança e eficiência.
A progressão de uma ainda ínfima campanha de vacinação mostra duas coisas concomitantemente: a adesão esperançosa e entusiasmada da população à vacina, algo em que o Brasil sempre foi vanguardista e exemplo para o mundo em logística, e a completa incompetência do governo para fazer andar o Plano Nacional de Imunização.
A "vacina chinesa do Doria", como o presidente de forma irresponsável insistiu em chamar a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, é o imunizante em maior quantidade no Brasil, mas mesmo assim, somada às doses da vacina da AstraZeneca/Oxford, com a qual a Fiocruz tem parceria, o que existe disponível não nos permitirá acabar a imunização da maioria da população neste ano.
Com a média móvel de casos no mesmo patamar de julho e picos de médias diárias que beiram os 1.500 óbitos por dia, e com a difusão da nova cepa de Manaus em outros Estados, inclusive de forma autóctone, a insistência de Bolsonaro em remédios "milagrosos" e a incapacidade de seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em fazer chegar vacina a todo o País mostram que nem tão cedo o Brasil vai superar o pior momento da pandemia.
Folha de S. Paulo: Documentos mostram que Saúde usou Fiocruz para produzir 4 milhões de comprimidos de cloroquina
Medicamento sem eficácia para Covid foi fabricado com recursos emergenciais; Fiocruz diz que é para malária e não comenta uso do dinheiro
Vinicius Sassine, Folha de S. Paulo
O Ministério da Saúde usou a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) para a produção de 4 milhões de comprimidos de cloroquina, com o emprego de recursos públicos emergenciais voltados a ações contra a Covid-19 e com destinação prevista do medicamento a pacientes com coronavírus.
Documentos da pasta obtidos pela Folha, com datas de 29 de junho e 6 de outubro, mostram a produção de cloroquina e também de fosfato de oseltamivir (o Tamiflu) pela Fiocruz, com destinação a pacientes com Covid-19. Os dois medicamentos não têm eficácia contra a Covid-19, segundo estudos.
O dinheiro que financiou a produção partiu da MP (Medida Provisória) nº 940, editada em 2 de abril pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o enfrentamento de emergência do novo coronavírus, como consta nos dois documentos enviados pelo Ministério da Saúde ao MPF (Ministério Público Federal) em Brasília. A MP abriu um crédito extraordinário, em favor do ministério, no valor de R$ 9,44 bilhões.
Para a Fiocruz, que é vinculada à pasta, foram destinados R$ 457,3 milhões para "enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus".
Na exposição de motivos sobre a MP, não houve detalhamento de como o dinheiro seria gasto. O texto da Presidência da República enviado ao Congresso fala em "produção de medicamentos".
Os documentos enviados ao MPF apontam gastos de R$ 70,4 milhões, oriundos da MP, com a produção de cloroquina e Tamiflu pela Fiocruz.
Os ofícios associam a produção dos dois medicamentos aos recursos destravados para a pandemia. As drogas se destinam a pacientes com Covid-19, segundo os mesmos ofícios, elaborados por uma coordenação da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde.
No Brasil, a Fiocruz é a responsável pela importação e produção da vacina desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford. A Fiocruz também desenvolve pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina nacional.
Segundo a instituição, a produção de cloroquina e de Tamiflu não impactou as ações voltadas a pesquisas, testes e desenvolvimento de imunizantes, por se tratarem de unidades distintas no órgão.
Na sexta-feira (5), a fundação afirmou à Folha que Farmanguinhos, o instituto responsável pela fabricação de medicamentos, produziu cloroquina para atender ao programa nacional de prevenção e controle da malária.
"Farmanguinhos produz cloroquina somente para o que está previsto em sua bula. A bula descreve que a cloroquina é indicada para profilaxia e tratamento de ataque agudo de malária e no tratamento de amebíase hepática, artrite, lúpus, sarcaidose e doenças de fotossensibilidade", disse.
Nesta quarta-feira (10), após questionamentos da reportagem sobre os novos documentos, a Fiocruz reafirmou o que disse na nota anterior. "Farmanguinhos não produziu em 2020 ou está produzindo o referido medicamento para outras indicações."
Segundo a instituição, o Ministério da Saúde informou que poderia fazer uma solicitação, mas isso não teria se concretizado.
Farmanguinhos entregou 16,8 milhões de doses de Tamiflu para "tratamento e profilaxia de gripe em adultos e crianças com mais de um ano" e outro lote será entregue em 2021, cita a nota.
Nem a Fiocruz nem o Ministério da Saúde comentaram o uso dos recursos da MP voltada a ações contra o coronavírus para a produção dos dois medicamentos.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que a aquisição da cloroquina não foi concretizada, que a produção deve ser explicada pela Fiocruz e que o Tamiflu não é para Covid-19, mas para influenza. "Ao atuar no tratamento da influenza, ele favorece a redução da sobrecarga ao sistema de saúde em função do aumento de doenças respiratórias."
Em 29 de junho, Farmanguinhos já produzia 2,5 milhões de cápsulas de fosfato de oseltamivir 30 mg, 2,35 milhões de 45 mg e 11 milhões de 75 mg, o que totaliza 15,85 milhões de doses. "Esses quantitativos em produção serão custeados por meio de recursos destinados à Fiocruz, pela medida provisória nº 940", cita o primeiro documento do Ministério da Saúde.
O investimento previsto era de R$ 70,4 milhões. "Dada a capacidade produtiva do laboratório público e a necessidade deste ministério, esses medicamentos serão fornecidos ao longo dos próximos cinco meses."
A mesma lógica valia para a cloroquina: "Também com esses recursos alocados à Fiocruz, por meio da Medida Provisória nº 940, está em processo de produção por Farmanguinhos/Fiocruz o montante de 4.000.000 de comprimidos de disfosfato de cloroquina 150 mg. Esse montante tem previsão de entrega nos meses de julho e agosto".
Um novo documento, elaborado em 6 de outubro pela mesma área do Ministério da Saude, confirmou as informações de junho. Dessa vez, a pasta informou que "foi realizada a aquisição" do Tamiflu, em julho, junto a Farmanguinhos, com o uso de recursos destravados pela MP nº 940.
"O Ministério da Saúde tem distribuído o fosfato de oseltamivir para o enfrentamento à pandemia e tem recomendado o uso concomitante com outros medicamentos por até cinco dias até exclusão de influenza, em pacientes pediátricos com diagnóstico de Covid-19", afirma.
O protocolo de uso do medicamento o recomenda para gripe e síndrome respiratória aguda grave.
O documento também dá o panorama sobre a cloroquina produzida na Fiocruz: "Com os recursos alocados à Fiocruz, por meio da MP nº 940, para a aquisição de medicamentos, encontra-se em processo de aquisição junto a Farmanguinhos o montante de 4.000.000 de comprimidos de difosfato de cloroquina 150 mg".
O medicamento "está sendo distribuído de acordo com as orientações do Ministério da Saúde para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19", afirma.
A cloroquina da Fiocruz se soma a outras ofensivas do Ministério da Saúde. O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército produziu 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina, a um custo de R$ 1,16 milhão, a partir de pedidos feitos pelos Ministérios da Saúde e da Defesa. Já os EUA, ainda no governo de Donald Trump, doaram 2 milhões de comprimidos ao Brasil.
No sábado (6), a Folha mostrou que o governo Bolsonaro mobilizou pelo menos cinco ministérios, uma estatal, dois conselhos da área econômica, Exército e Aeronáutica para distribuir o medicamento.
Com base na reportagem, o PDT ingressou no STF (Supremo Tribunal Federal) com uma notícia-crime contra o presidente nesta terça-feira (9).
Dados do Ministério da Saúde mostram a distribuição de 5.416.510 comprimidos de cloroquina; 481.500 de hidroxicloroquina; e 22.380.510 de Tamiflu. O total gasto, segundo o Localiza SUS, foi de R$ 89 milhões.
O ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, passou a ser investigado nas esferas cível e penal pela distribuição de cloroquina.
Há procedimentos contra o ministro no MPF na primeira instância e na PGR (Procuradoria-Geral da República). Uma auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) apontou ilegalidade no uso de dinheiro do SUS com essa finalidade.
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Governo Bolsonaro, diante do avanço de investigações sobre o gasto de dinheiro público com medicamentos sem eficácia, começa a ensaiar um recuo na defesa da cloroquina
Hélio Schwartsman: O general Pazuello e a minha vó
No Brasil, a autoridade sanitária repete as crenças (erradas) de minha avó
Custou-me acreditar no que li. Pessoas estão morrendo asfixiadas em Manaus por falta de oxigênio nos hospitais, e o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, atribuiu o colapso do sistema de saúde manauara ao aumento da umidade e ao fato de médicos locais não prescreverem "tratamento precoce".
O general dificilmente poderia estar mais errado. Ecoando as recomendações de minha avó, ele acha que o problema é as pessoas saírem na chuva e não tomarem cloroquina. No mundo real, é o clima seco, e não o úmido, que favorece as infecções respiratórias, e, apesar de a cloroquina já ter sido esquadrinhada por cientistas, nenhum estudo de qualidade demonstrou que ela tenha efeito importante contra a Covid-19.
A explicação científica mais geral para o caos em Manaus está na curva exponencial. Epidemias se caracterizam justamente por concentrar muitos casos num intervalo curto de tempo. Sem medidas de contenção, um vírus pode entrar em propagação exponencial e saturar rapidamente até os mais robustos sistemas de saúde.
O problema de Manaus, que não é diferente do de várias outras cidades, é que, apesar dos alertas dos especialistas, as pessoas relaxaram nas medidas de segurança. Cansaram das privações sociais, aposentaram máscaras, viajaram e celebraram a chegada do novo ano em populosas confraternizações. Em Manaus, ainda se aglomeraram para protestar contra as regras de distanciamento que o governo queria impor.
Redes de saúde pequenas como a do Amazonas e de Rondônia são as primeiras a colapsar, mas não há motivo para que grandes centros não enfrentem dificuldades parecidas, especialmente se estivermos lidando com mutações que geraram cepas virais mais infecciosas, como parece plausível.
Atentas a essa terrível possibilidade, autoridades sanitárias europeias estão endurecendo as restrições. No Brasil, a autoridade sanitária repete as crenças (erradas) de minha avó.
O Globo: Falta de oxigênio vista em Manaus pode se alastrar pelo país, dizem especialistas
Há risco de escassez do produto se repetir na Região Norte e em outras localidades com limitações na infraestrutura de transporte. Doações crescem, mas insumo pode levar dias para chegar por barco ou avião
Bruno Rosa e Ivan Martínez-Vargas. O Globo
RIO E SÃO PAULO — A falta de oxigênio nos hospitais em Manaus com a escalada de casos de coronavírus é um alerta para o restante do país, na avaliação de especialistas. Para eles, há risco de novas falhas no abastecimento, em especial na Região Norte. O drama registrado na capital do Amazonas reflete a combinação da falta de uma ação planejada com a indústria — que agora se desdobra para elevar rapidamente a produção — e uma complexa estrutura de escoamento, que pode levar dias para entregar um produto que precisa ser reposto em caráter imediato. Industriais da região afirmam que as doações se avolumam, mas o oxigênio não chega a tempo.
Entrevista: Manaus é um alerta do que pode acontecer com o resto do Brasil, diz infectologista da Fiocruz
Na primeira onda de Covid-19, no ano passado, o consumo de oxigênio era de 30 mil metros cúbicos em Manaus, patamar muito acima do registrado antes da pandemia. Agora, segundo a White Martins, empresa que tem a maior fatia do mercado, a demanda já chegou a 70 mil metros cúbicos diários, quase três vezes a capacidade de produção da empresa na cidade.
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A White Martins produz 25 mil metros cúbicos diários e está ampliando esse patamar para 28 mil metros cúbicos, além de deslocar oxigênio de outras sete fábricas do país. A empresa recebeu autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para reduzir temporariamente o percentual de pureza do oxigênio de 99% para 95%, o que facilitaria o aumento da produção.
Transporte e tanques
Há uma multiplicação de gargalos para fazer chegar o oxigênio de outros estados. Ele pode ser transportado nas formas líquida ou gasosa, por barco ou avião. O transporte, a pouca oferta de tanques de armazenamento para o produto na forma líquida e o impacto da crise econômica, que reduziu a produção em cerca de 30% no ano passado, segundo a consultoria R S Santos, são alguns dos entraves.
O oxigênio pode ser usado tanto para a indústria quanto na medicina. Segundo o consultor Ronaldo S Santos, diante da redução no ano passado, não haveria um problema de capacidade para elevar a produção de oxigênio para os hospitais. Mas pondera que a falta de planejamento público explica o quadro atual:
— Deveria ter sido pedido um plano de ação das empresas para fornecimento ao longo do ano passado.
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Para o professor de Gestão de Cadeia de Suprimentos do Insper Vinícius Picanço, o que está acontecendo em Manaus, com a nova cepa, pode se repetir em outras localidades com limitações na infraestrutura de transportes, em parte do Nordeste e no interior, o que evidencia a importância do planejamento.
— Não dá para dizer que era imprevisível a escassez. Por mais que a demanda tenha um comportamento exponencial, existem modelos matemáticos para isso. A questão envolve logística e previsão de estoque — disse. — Houve teve tempo na pandemia de posicionar os estoques adequadamente, de armazenar insumos em regiões estratégicas.
Segundo Jorge Nascimento, presidente da Eletros, associação de produtos eletroeletrônicos, desde a semana passada, as grandes indústrias do estado doaram seus estoques de oxigênio para ser convertido em oxigênio medicinal, usado na rede pública de saúde, mas não foi suficiente. Ao menos 20 grandes fabricantes com operações na Zona Franca de Manaus, se dispuseram a ajudar, segundo ele.
Mas, para isso, é preciso que os cilindros voltem para a usina de oxigênio. O produto usado na área hospitalar requer percentual maior de pureza. A partir daí, foi necessário buscar fora do estado.
Segundo Nascimento, o grupo de Convergência Empresarial da Amazônia, que reúne empresários do estado, tem reunido doações:
— Demora para chegar. Uma encomenda que saiu de uma fábrica de aço do Maranhão vai demorar no mínimo cinco dias para chegar porque tem de fazer parte do trajeto de barco. A Força Aérea Brasileira (FAB) tem operado voos a partir de Guarulhos, mas há limitação de quantidade do produto para transporte por via aérea porque é carga perigosa, nem toda aeronave está adaptada — afirmou.
Santos destaca outros problemas que vão além da demora no transporte, a falta de tanques para transportar o produto no estado líquido:
— Não temos grande produção, as empresas importam da Índia e da China. E a maior parte dos hospitais recebe esse oxigênio líquido em tanques, já que os cilindros têm volume menor. Muitas empresas têm realocado os tanques da indústria, mas não é rápido.
Para os especialistas, pode haver falha na oferta de oxigênio em outras partes do país a depender do aumento de casos, mas o tempo de reação seria menor do que em Manaus.
Segundo Jorge Mathuiy, diretor comercial da MAT, maior produtora de cilindros do Brasil, a maior preocupação é com outros estados da Região Norte, onde não há produção local de oxigênio. Ele já se prepara para demanda maior:
— Estamos aumentando a produção de 22 mil cilindros por mês para 25 mil com um novo turno. Estamos preparados para o aumento da demanda.
A White Martins tenta importar oxigênio da Venezuela. Em nota, explica que colocou à disposição o envio de 32 tanques criogênicos que estão em São Paulo aguardando para serem transportados para Manaus. Além disso, seguem rumo ao estado 23 carretas criogênicas (caminhões com megatanques na forma líquida).
A Fiam, federação das indústrias do estado, diz que o cenário é de caos e que o governo do estado fala em licitar 11 minifábricas de oxigênio para hospitais, segundo Antônio Silva, presidente da entidade. Grandes empresas do setor financeiro, consumo e aéreo estão doando equipamentos e cilindros, a maior dificuldade, porém, é fazer a ajuda chegar.
Agência Lupa: Em live no pior dia de Manaus, Bolsonaro mente sobre Covid no Brasil
Presidente e ministro da Saúde insistiram no tratamento precoce com hidroxicloroquina e questionaram uso de máscara; veja checagem da Lupa
Na quinta-feira (14), enquanto Manaus vivia crise com a falta de oxigênio nos hospitais, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) realizou uma transmissão ao vivo junto com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Na live, os dois repetiram informações falsas sobre a doença, como a existência de um “tratamento precoce” contra a Covid-19.
Bolsonaro também chegou a dizer que há três vacinas em análise pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas foi corrigido pelo ministro. A agência vai se pronunciar no domingo (17) sobre dois imunizantes, produzidos pela Fiocruz e pelo Butantan.
A Lupa analisou algumas das declarações de Bolsonaro e do ministro, que foram procurados para comentar as checagens, mas não responderam até a publicação.
“Qual outro país do mundo disponibilizou o auxílio emergencial? Alguém lembra aí Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela, México, Angola, Itália?”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO Pelo menos cinco —Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Itália— dos sete países citados pelo presidente Jair Bolsonaro disponibilizaram um auxílio emergencial para sua população durante a pandemia similares ao brasileiro.
A Argentina criou o “Ingreso familiar de emergencia” em março de 2020, com valor de 10 mil pesos, pouco mais de R$ 600. No Paraguai, o programa Pytyvõ — ajudar, em guarani — ofereceu G. 548.210 (R$ 419). A Venezuela criou, em março, o #QuedateEnCasa, mas o governo não informa o valor mensal que cada beneficiário recebe.[ x ]
Na Itália, o “Bonus Covid” foi disponibilizado temporariamente de março a maio. Nos dois primeiros meses, era de € 600 (cerca de R$ 3.800) e no terceiro e último mês, passou para € 1.000 (cerca de R$ 6.000). No final de 2020, jornais brasileiros repercutiram um escândalo de corrupção envolvendo o bônus: cinco deputados receberam indevidamente o auxílio.
O Uruguai criou, em abril, o Fundo Coronavírus, a partir do corte de salários de servidores públicos. Segundo o governo, o fundo usou cerca de US$ 625 milhões em 2020 em medidas de combate ao coronavírus. Desse montante, US$ 120 milhões foram para abonos de famílias e cestas básicas.
“O PSOL entrou com uma ação na Justiça de Porto Alegre para que o município não entregue o kit de tratamento precoce para os portadores de Covid-19”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
VERDADEIRO No dia 12 de janeiro, a bancada de vereadores do PSOL de Porto Alegre ingressou com uma ação, endereçada à Vara da Fazenda Pública, pedindo que a prefeitura da cidade “se abstenha de distribuir, utilizar e/ou adquirir medicamentos de eficácia não comprovada, especialmente a ivermectina e a hidroxicloroquina, para utilização na rede pública de saúde do Município de Porto Alegre”.
Em 4 de janeiro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), flexibilizou as medidas restritivas de combate à pandemia e determinou a disponibilização de “tratamento precoce” contra a Covid-19 à população. O termo é usado por negacionistas científicos para se referir a medicamentos como hidroxicloroquina ou ivermectina, que não têm eficácia no tratamento contra o novo coronavírus.
Na manhã de quinta-feira (14), em encontro com apoiadores, o presidente citou a mesma ação, mas se confundiu, afirmando que o PSOL havia entrado na Justiça proibindo todos os prefeitos do país de distribuírem medicamentos sem eficácia científica contra a Covid-19.
“O uso da máscara, o afastamento social, as medidas de isolamento (...), isso tudo nós temos muita dificuldade de encontrar o que deu certo e o que deu errado.”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO Pesquisa publicada em junho na revista The Lancet indicou que o uso de máscaras reduz o risco de infecção por Covid-19 em 85%. Pesquisadores canadenses revisaram 172 estudos observacionais sobre medidas protetivas realizados a partir das características do novo coronavírus e de outras doenças respiratórias, como a síndrome respiratória no Oriente Médio (Mers).
O estudo mostrou que as proteções hospitalares têm um grau maior de efetividade (96%), enquanto as máscaras caseiras eram consideradas 67% efetivas. Dessas, as que mais protegiam eram as que tinham duas ou mais camadas e quando corretamente ajustadas ao rosto.
Outras duas pesquisas, ambas publicadas na revista Nature, também confirmaram que medidas de isolamento social são eficazes em reduzir a disseminação do vírus. A primeira, publicada em junho por pesquisadores do Imperial College London, no Reino Unido, concluiu que essas “intervenções não farmacêuticas” evitaram 3,1 milhões de mortes em 11 países europeus na primeira onda da pandemia.
Outra, realizada por pesquisadores da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, concluiu que a implantação de medidas restritivas de locomoção reduziram a velocidade de contágio do vírus em seis países analisados.
“O tratamento precoce é preconizado pelos conselhos federais [...], se mostrou eficaz em todas as cidades e estados do Brasil”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO De acordo com instituições internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NHI, na sigla em inglês), não há, até o momento, medicamentos que comprovadamente reduzem o risco de infecção pela Covid-19.
No Brasil, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento precoce com qualquer tipo de medicamento. “Os estudos clínicos randomizados com grupos de controle existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais”, diz a SBI, em comunicado no Twitter na quinta-feira (14).
Em parecer publicado em abril do ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) diz que não há evidências sólidas de efeito de medicamentos como a cloroquina ou hidroxicloroquina no combate à Covid-19. No entanto, “diante da excepcionalidade da situação”, o CFM diz ser possível a prescrição do medicamento em pacientes infectados com o vírus. A decisão, entretanto, deve ser conjunta, entre médico e paciente. O profissional fica obrigado a relatar ao doente “que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga” para o tratamento da Covid-19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso.
Diversos estudos publicados já comprovaram que não há eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. O Recovery Trial, coordenado pela Universidade de Oxford, suspendeu testes em junho com o remédio ao notar que ele não mostrou benefício no tratamento da doença. Em julho, foi a vez do Solidarity Trial, coordenado pela OMS, encerrar testes com a hidroxicloroquina. Um estudo brasileiro, publicado em novembro no periódico New England Journal of Medicine, também comprovou que a hidroxicloroquina é ineficaz no tratamento de casos leves e moderados da Covid-19.
Em setembro de 2020, a Escola de Medicina Perelman, da Universidade da Pensilvânia (EUA), testou o efeito profilático da hidroxicloroquina para aqueles que ainda não foram expostos à Covid-19. Os resultados mostraram que a ingestão diária da droga não reduziu o risco de infecção. A pesquisa foi publicada na Jama Internal Medicine e analisou 125 profissionais de saúde que atuam na linha de frente de combate ao novo coronavírus. Em agosto, um outro estudo clínico, publicado no The New England Journal of Medicine, mostrou que essa medicação, fornecida por quatro dias, não foi capaz de reduzir a taxa de infecção por Covid-19 nos 14 dias subsequentes ao seu uso, quando comparada com placebo.
“[O número de] Jovens entre 5 e 19 anos (...) sem comorbidade, que perderam a vida ano passado: 36. (...) É uma prova de que os jovens poderiam estar estudando [presencialmente]”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
INSUSTENTÁVEL O Ministério da Saúde não tornou públicas as informações de mortes por Covid-19 com o recorte de faixa etária e existência de comorbidades. Levantamento feito pelo G1 apontou que das 141 vítimas com até 19 anos que morreram de Covid-19 até o dia 26 de maio do ano passado, pelo menos 18 não tinham comorbidades. De acordo com dados do Poder 360, até 27 de junho de 2020, 380 pessoas com menos de 19 anos já haviam morrido no Brasil em função da doença ― no entanto, não há informações sobre comorbidades.
Mesmo que os números apresentados por Bolsonaro estivessem corretos, o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta é que os jovens, ainda que não desenvolvam a doença, podem transmiti-la para pessoas mais velhas e mais vulneráveis. O diretor da OMS para o Pacífico Ocidental, Takeshi Kasai, explicou que, justamente por serem muitas vezes assintomáticos ou apresentarem sintomas leves, os jovens acabam transmitindo a doença.
No entanto, a própria OMS afirmou em setembro que a volta às aulas deve ser prioridade no processo de reabertura das economias. O argumento é que escolas fechadas por muito tempo significa crianças mais expostas à violência física e emocional, vulneráveis ao trabalho infantil e a abusos, além de dificultar quebrar o ciclo da pobreza. A OMS divulgou um guia com recomendações para a volta às aulas.
“Tenho uns 40 processos de impeachment. Alguma acusação de corrupção? De improbidade? De abuso de autoridade? Não, não tem”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO Informações obtidas pela Lupa via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Secretaria Geral da Mesa Diretora da Câmara mostram que até esta sexta-feira, 15 de janeiro, havia 55 pedidos de impeachment em tramitação contra o presidente. Vários desses pedidos referem ao Inquérito 4831, sobre suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Neste inquérito, o presidente é investigado por tentativa de influenciar investigações feitas pela instituição.
Um dos pedidos de impeachment, por exemplo, foi apresentado pelo deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ) e outros congressistas em 29 de abril de 2020. O texto fala em “tentativa de interferência ilegal na Polícia Federal, obstrução de justiça, advocacia administrativa, coação no curso do processo”.
Outro pedido, apresentado pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) em 21 de maio, acusa Bolsonaro de utilizar “poderes inerentes ao cargo com o propósito reconhecido de concretizar a espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de integrantes de sua família ante investigações policiais”, em referência ao Inquérito 4831.
O inquérito foi aberto no STF para apurar as acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro de que o presidente da República tentou interferir na autonomia da PF para proteger familiares e aliados. Em novembro, o ministro Alexandre de Moraes prorrogou o inquérito por 60 dias, logo depois de o presidente ter informado que não iria depor no caso. Agora, o Supremo vai decidir se Bolsonaro pode depor por escrito ou se precisa comparecer pessoalmente para ser ouvido pelos investigadores. A decisão está marcada para 24 de fevereiro.
“Se fosse um remédio que não fizesse mal comprovadamente, não tivesse efeito colateral, nem assim, eu (...) ia obrigar a tomar aquele medicamento, quem dirá algo emergencial que não foi devidamente comprovado”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
CONTRADITÓRIO Durante a pandemia da Covid-19, Bolsonaro recomendou diversas vezes o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina como formas de tratamento contra o novo coronavírus. Contudo, essas drogas não têm eficácia comprovada para essa infecção e é comprovado que o paciente pode sofrer efeitos colaterais com o seu uso. Como explicado acima, há diversos estudos que mostram que esse remédio é ineficaz no tratamento contra o novo coronavírus.
Em nota, a Sociedade Brasileira de Arritmia Cardíacas (Sobrac) informou que a hidroxicloroquina pode ocasionar alterações cardíacas e pode ter tanto um efeito antiarrítmico quanto provocar o surgimento de arritmias graves. A bula do medicamento recomenda cautela para o seu uso em pacientes com disfunções hepáticas (do fígado) ou renais (dos rins), ou que estejam tomando medicamentos capazes de afetar esses órgãos. Além disso, o uso é contraindicado para grávidas e crianças menores de seis anos.
“Tem dado certo. A hidroxicloroquina, a azitromicina, ivermectina, a Anitta, zinco, vitamina D têm dado certo [no tratamento da Covid-19]
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO É falso que os medicamentos citados por Bolsonaro tenham efeito comprovado no tratamento da Covid-19. A Lupa já mostrou que o uso da cloroquina em pacientes internados com a doença não trouxe benefícios, como a redução na letalidade ou no tempo de internação. Além disso, efeitos colaterais como a arritmia cardíaca vêm sendo observados em muitas pesquisas, levando a Associação Médica Americana a emitir um comunicado pedindo que o uso da cloroquina fosse limitado a estudos clínicos e dentro de hospitais, sob rigoroso controle.
A azitromicina é um antibiótico que pode ser usado contra infecções bacterianas secundárias em casos de Covid-19, mas não atua diretamente contra o vírus causador da doença.
Também não existe comprovação científica que sustente a recomendação de ivermectina, uma medicação usada contra piolhos, como prevenção ou tratamento da Covid-19. A epidemiologista e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ana Luiza Curi Hallal, explica que existe uma diferença entre o uso de medicamentos como a cloroquina e a ivermectina pré-exposição, ou seja, quando se toma para evitar contágio, e o uso como tratamento precoce, ou seja, por pessoas que tiveram contato com alguém que testou positivo para a doença e busca uma terapia para evitar que a infecção evolua para um quadro mais grave.
“Em ambos os casos, estudos mostraram que não existem vantagens em usar cloroquina ou ivermetcina. O conhecimento evoluiu ao longo dos últimos meses e as dúvidas que tínhamos lá em abril e maio não são as mesmas. Na época, os estudos estavam começando e hoje evidenciam que esses medicamentos não previnem a Covid-19 e nem fazem com que a doença evolua menos”, afirma.
Como explicado pela Lupa, a ivermectina passou a ser disseminada como possível tratamento da doença depois que um estudo, publicado na Antiviral Research, indicou que a droga foi capaz de inibir a replicação do Sars-CoV-2 in vitro. Apesar disso, a OMS excluiu a ivermectina do projeto Estudo Solidariedade, uma iniciativa co-patrocinada para encontrar um tratamento efetivo para COVID-19, porque “estudos sobre ivermectina tinham um alto risco de viés, muito pouca certeza de evidências, e as evidências existentes eram insuficientes para se chegar a uma conclusão sobre benefícios e danos.”
Anitta é o nome comercial da nitazoxanida. Não há nenhum estudo publicado em revista científica que comprove a eficácia da ivermectina ou nitazoxanida contra Covid-19, assim como não há comprovação sobre o zinco ou a vitamina D.
Chico Marés , Ítalo Rômany , Marcela Duarte , Natália Leal e Nathália Afonso
Bruno Boghossian: Governo teve pressa com cloroquina, mas nega ao país empenho na vacinação
Entre a 'angústia' e a 'esperança para corações aflitos', há um governo incompetente
Em março, Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro da Defesa e ordenou que o Exército ampliasse imediatamente sua produção de cloroquina. A equipe técnica do governo dizia que o remédio não funcionava contra a Covid-19, mas a ordem foi cumprida em tempo recorde: em três semanas, os militares fabricaram 2 milhões de comprimidos.
A obediência inspirou Bolsonaro. Meses depois, ele escolheu um general para comandar o Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello seguiu as vontades do chefe e moveu as engrenagens da máquina pública para distribuir um medicamento ineficaz. Com a cloroquina, o presidente teve uma pressa que foi negada ao país no planejamento da vacinação.
O governo assinou no início de junho a adesão do Brasil a um consórcio internacional para a fabricação de imunizantes contra o coronavírus. No mesmo mês, a equipe econômica perguntou ao Ministério da Saúde se havia previsão de importar material para vacinação. A pasta levou quase seis meses para publicar um edital para a compra de seringas.
Bolsonaro foi mais ágil na campanha do curandeirismo. Ainda em abril, o presidente conversou com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi e pediu matéria-prima para a fabricação de cloroquina. Um carregamento chegou ao Brasil em menos de uma semana. No mês seguinte, os Estados Unidos enviaram mais 2 milhões de doses do medicamento.
O estoque de comprimidos está garantido, mas o país corre risco de ficar sem seringas e agulhas para a vacinação contra a Covid-19. O pregão aberto pelo governo para comprar 331 milhões de kits fracassou e só deve atingir 2,4% da demanda.
Quando o TCU pediu explicações ao Exército sobre a fabricação de cloroquina a preços acima do normal, os militares disseram que o objetivo era "produzir esperança para corações aflitos". Sobre as cobranças públicas por um plano de vacinação, o ministro da Saúde fez pouco caso: "Para quê essa ansiedade, essa angústia?". Entre a angústia e a esperança, há um governo incompetente.