cleomar almeida

RPD || Reportagem Especial: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro

Medo e preconceito desestimulam mulheres a denunciar crime em busca de justiça

Cleomar Almeida

“Fiquei travada. Ele começou a passar a mão em mim e falou para eu ficar quietinha, senão eu seria demitida por justa causa”. A cena permanece na cabeça de uma mulher de 32 anos, que, conta, saiu para confraternização de trabalho e foi estuprada, em 2019, pelo patrão, de 47 anos, no banheiro feminino, onde a entrada dele era proibida. “Quando o vi lá dentro, com a calça aberta, fiquei sem chão. Ele pensou que eu estava bêbada, mas não estava e lembro tudo”, afirma.

Depois do episódio, relata, a vítima foi embora para casa imediatamente e, desesperada, contou o caso a uma de suas amigas de trabalho, que duvidou dizendo que ela estava com “alguma alteração mental”. Enquanto a mulher era estuprada no banheiro, os demais colegas de trabalho sorriam e bebiam à mesa lá fora. Ela pediu para não ter a identidade divulgada e preferiu não divulgar a dele também. Ele foi inocentado, mesmo com imagens de circuito interno provando o momento em que ele entrou no banheiro feminino atrás dela.

Enquanto a mulher era estuprada no banheiro, os demais colegas de trabalho sorriam e bebiam à mesa lá fora.

Ao ser desacreditada pela própria amiga, a vítima iniciaria uma longa via-crúcis para superar um caminho onde haveria mais preconceito e dúvidas de seu relato do que acolhimento. Na manhã do dia seguinte, ela viu o segundo obstáculo em uma delegacia de polícia em Brasília, onde teve que contar o episódio no primeiro balcão para pegar uma senha e, depois, repeti-lo com detalhes para o escrivão, sem receber qualquer acolhimento de psicóloga ou outra profissional especializada. “É uma violência multiplicada, porque a gente é obrigada a se expor e sempre é colocada em dúvida”, lamenta.

A vítima, secretária-executiva, é uma das 66.123 pessoas que registraram boletim de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável em 2019, de acordo com a 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança, lançado em outubro deste ano. Em média, no ano passado, uma pessoa foi estuprada a cada 8 minutos, no país. É um dado maior que o revelado em 2015, quando a média era de um estupro a cada 11 minutos.

Os dados foram compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, baseados em informações das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e Defesa Social dos Estados. De acordo com o levantamento, no ano passado, 85,7% das vítimas eram do sexo feminino. Em 84,1% dos casos, o criminoso era conhecido da vítima: familiares ou pessoas de confiança, como ocorreu no episódio que abre esta reportagem por se tratar de um patrão da vítima, com o qual ela tinha vínculo de trabalho havia 10 anos.

No Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as pesquisadoras relatam que o número de estupro é ainda muito maior do que o registrado. A subnotificação ganha força diante de situações em que as vítimas não procuram as autoridades por medo, sentimento de culpa e vergonha ou até mesmo por desestímulo por parte das autoridades.

Em setembro deste ano, o próprio Judiciário foi palco de um caso que desestimula vítimas.  A jovem promoter Mariana Ferrer, de 23, vítima de estupro, foi humilhada pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor do acusado, o empresário André Camargo de Aranha. “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lábia de crocodilo”, disse o advogado à vítima, em audiência por videoconferência, sob a vista grossa do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. O promotor Thiago Carriço de Oliveira sustentou a tese de estupro sem intenção. O acusado foi inocentado.

Somente após a repercussão negativa do caso na imprensa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que classificou como “grotescas” as cenas da audiência, instauraram procedimentos para investigar as condutas do juiz e do promotor por suposta omissão. A Ordem dos Advogados do Brasil em Santa Catarina (OAB-SC) também abriu investigação para avaliar a conduta de Gastão Filho. A reportagem não conseguiu contato dos três investigados.

“As chocantes imagens do vídeo mostram o que equivale a uma sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual", afirma o conselheiro do CNJ Henrique Ávila, no pedido que originou a investigação no órgão. Nenhuma das três apurações internas foi concluída ainda.

CNJ abriu procedimento para investigar condutas do advogado e do juiz no caso Mariana Ferrer após repercussão negativa na imprensa. Foto: Rômulo Serpa/CNJ

“O estupro é o único crime em que a vítima é quem sente culpa e vergonha. Pelas estimativas existentes, esse número pode ser até dez vezes maior, mas nos faltam estudos e pesquisas sobre o problema”, afirmam as pesquisadoras Samira Bueno e Isabela Sobral, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O Brasil ostenta números obscenos de violência de gênero”, alertam elas, no documento.

No caso da secretária-executiva desta reportagem, o acusado foi absolvido porque a Justiça entendeu que o exame de corpo de delito não comprovou que a conjunção carnal foi praticada pelo acusado nem identificou qualquer resquício de sêmen na roupa da vítima. No entanto, a lei define que estupro é “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Neste caso, o Ministério Público aguarda julgamento de recurso.

Em linhas gerais, a violência sexual pode ser definida como qualquer ato ou contato sexual onde a vítima é usada para a gratificação sexual de seu agressor sem seu consentimento, por meio do uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou aproveitamento de situação de vulnerabilidade, seja em ato tentado seja em ato consumado.

No Brasil, a seção do Código Penal que trata dos crimes relacionados à violência sexual é denominada “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Essa nomenclatura foi garantida pela Lei 12.015, de 2009, que substituiu a terminologia “crimes contra os costumes”. Além da mudança no nome, a lei trouxe um conjunto de importantes avanços no entendimento sobre os crimes relacionados à violência sexual no país.

O primeiro deles é a junção do crime de atentado violento ao pudor ao crime de estupro, conforme prevê o artigo 213. Esta modificação incluiu outros tipos de “ato libidinoso” ao conceito de estupro, antes restrito à conjunção carnal. Outra alteração foi a mudança na redação do artigo 213 do Código Penal, de forma que não se especificasse o gênero da pessoa passível de sofrer um estupro. Pela redação original, o crime de estupro podia ser praticado somente contra mulheres. Além disso, a lei incluiu o artigo 217-A, o estupro de vulnerável, entendido como a conjunção carnal ou ato libidinoso com qualquer pessoa menor de 14 anos.

Apesar dos avanços na lei, especialistas entendem que ainda pesa na sociedade uma perspectiva moralizante em torno das vítimas, muitas vezes culpabilizadas pela violência sofrida por causa do tipo de roupa que usavam e o fato de estarem na rua em determinado. Além disso, o machismo também tem reflexos sobre as relações conjugais, como se não fosse possível a uma mulher casada recusar uma relação sexual com seu cônjuge, como se o sexo fosse uma obrigação do matrimônio.

Na avaliação das pesquisadoras do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o combate ao crime de estupro deve ser alçado, com urgência, não só a uma prioridade governamental, mas incluído efetivamente no rol de ações reconhecidas pelas polícias como integrantes de suas missões e tarefas. “As polícias não podem continuar a achar que este é um tema privado ou que pouco podem fazer”, afirmam. Quem se sentir em risco ou for vítima pode ligar para o 180, número da Central de Atendimento à Mulher. A ligação é gratuita e sigilosa.


Ataques às vítimas são frequentes, criticam advogadas

Ataques às vítimas em julgamento de estupro têm sido cada vez mais frequentes no Brasil, segundo advogadas ouvidas pela Política Democrática Online. Muitas vezes, ressaltam, a própria investigação caminha para culpar as mulheres, fazendo a Justiça desacreditar delas, e os criminosos atribuem as acusações a alguma situação mal resolvida entre eles.

A advogada Jéssica Póvoa, que há 15 anos atua em defesa de mulheres estupradas no Paraná, diz ser comum a tentativa de desconstrução da imagem das vítimas. “Normalmente, questiona-se a roupa ou o comportamento delas, na tentativa de convencer o juiz de que elas consentiram com o ato”, afirma. “A vítima, infelizmente, se vê em uma situação em que é constrangida e obrigada a se defender, já que passa a se sentir acusada e não mais uma vítima", diz ela.

“A vítima, infelizmente, se vê em uma situação em que é constrangida e obrigada a se defender, já que passa a se sentir acusada e não mais uma vítima"
Jéssica Póvoa, Advogada

Em outros casos, segundo a advogada Aline Ribeiro, de uma organização não-governamental (ONG) em defesa de mulheres vulneráveis na Bahia, o acusado e os seus advogados exploram características pessoais da vítima que nada tem a ver com o processo criminal, numa tentativa de desviar o foco do Judiciário. “É uma excrescência jurídica porque, muitas vezes, a vítima, de fato, sai como errada ou louca”, lamenta a defensora.

Professora de Direito Penal e advogada há 22 anos, Maria do Socorro Cruz diz que, infelizmente, é comum advogados usarem a estratégia de desmerecer a vítima para endossarem tese de defesa em julgamento de crimes sexuais. "Sem qualquer escrúpulo, busca-se inverter o ônus da prova, sempre para intimidar a vítima ainda mais, fazendo-a acreditar que ela viu muita coisa ou que nada ocorreu”, critica.

“Em geral, o Brasil é muito punitivista, acusatório, um país que prende muito, mas, quando se fala de crimes contra a mulher, toda essa preocupação com a inocência do acusado aparece. Principalmente quando o que se tem como prova é a palavra da vítima”, observa o advogado Raimundo Sabino, de Goiás.


‘Estupro é normalizado em nosso país’, diz jornalista em livro recém-lançado

“Estupro é crime, mas é algo tão comum e normalizado em nosso país, que quem o sofre acha que é culpado por ele, uma vez que a sociedade em si também alimenta essa mentalidade.” A afirmação é da jornalista Ana Paula Araújo, em seu recém-lançado livro Abuso: a cultura do estupro no Brasil (320 páginas, Globo Livros). Na obra, a autora aborda o medo e a vergonha das vítimas, que muitas vezes são julgadas e culpabilizadas pela sociedade e pelo poder público, o que, frequentemente, dificulta as denúncias.

Ana Paula Araújo realizou mais de 100 entrevistas para o livro. Foto: TV Globo

Para detalhar como a cultura do estupro está enraizada no país, a jornalista – apresentadora do telejornal Bom dia, Brasil – realizou mais de cem entrevistas com vítimas, familiares, criminosos, psiquiatras e diversos especialistas no assunto. “Vi homens que acham o estupro absurdo, mas pensam que o que fizeram foi só um momento. Não se dão conta de que são estupradores”, afirmou à imprensa.

Foram quatro anos de pesquisa sobre o tema. Ela observou que, além de muitas vítimas não relatarem os casos às autoridades, as que conseguem forças para denunciar precisam lidar com um processo doloroso, que inclui desde os exames até o preconceito de médicos, policiais, parentes e amigos.

Na obra, Ana Paula mostra como os abusos sexuais são naturalizados no Brasil e de que forma as mulheres são vistas na sociedade depois que são violentadas. “As vítimas são ainda mais inibidas quando os casos ocorrem dentro da própria casa com pessoas próximas, como pais, padrastos e tios”, conta. Em muitos desses casos, os abusos sexuais são tão normalizados dentro do ambiente familiar, a ponto de a vítima se questionar sobre se o que aconteceu realmente foi um crime.

A própria jornalista perdeu a conta das vezes em que foi apalpada em locais lotados. Em um desses casos, tinha 18 anos e estava saindo da faculdade, em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro, rumo à casa da tia, na Vila da Penha, na Zona Norte, quando acordou no ônibus com a mão de um passageiro em sua coxa. E o rosto do homem quase colado ao seu. Sua reação foi xingá-lo e mandá-lo viajar em pé.

“As vítimas são ainda mais inibidas quando os casos ocorrem dentro da própria casa com pessoas próximas, como pais, padrastos e tios”
Ana Paula Araújo, Jornalista

"Contei esse episódio porque é bem trivial na vida de todas as mulheres que usam o transporte público ou por aplicativo", disse a apresentadora carioca à imprensa. Formada em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), destacou-se, em 2010, durante a cobertura da ocupação do Complexo do Alemão, quando ficou por oito horas ininterruptas no ar. Esse trabalho rendeu a ela e à equipe de jornalismo da Globo o prêmio Emmy Internacional.

Ana Paula afirma que cresceu ouvindo que deveria tomar cuidado e ficar atenta com homens. No entanto, segundo ela, a vida a ensinou que os homens é que precisam respeitar as mulheres e aprender o que é consentimento.


Nova onda de Covid-19 na Europa divide governadores no Brasil sobre volta às aulas

Reportagem especial da Política Democrática Online de novembro mostra situação em cada Estado no país

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Ao menos 16 redes públicas estaduais de ensino retomaram parte das aulas presenciais ou têm previsão de retorno às salas de aula, ainda em 2020, oito meses após o fechamento das escolas por causa da pandemia do novo coronavírus, em março deste ano. O risco de a segunda onda de Covid-19 chegar ao país aumenta o alerta para governadores.

Em outros oito estados, governadores já se posicionaram pela volta das atividades escolares presenciais somente no ano que vem. No Distrito Federal e em Minas Gerais, professores, sindicatos, governos e Ministério Público travam briga até na Justiça para o retorno das aulas nas escolas.

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O sinal verde para a volta às aulas tem como parâmetro portaria do Ministério da Educação (MEC) publicada em julho e que define diretrizes para a retomada das atividades presenciais. Entre elas, está a obrigatoriedade do uso de máscaras, distanciamento social de 1,5 metro e afastamento de profissionais que estejam em grupos de risco. No entanto, governos estaduais e municipais têm autonomia para definição do calendário pedagógico a fim de reorganizar as aulas nas escolas.

Nos estados que já reabriram as salas de aula gradativamente, as escolas devem seguir uma série de protocolos sanitários estabelecidos em portarias dos governos e continuarem oferecendo ensino a distância aos alunos que optarem por essa modalidade. Nessa lista estão Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.

Em geral, os governadores sustentam suas decisões na diminuição do número de casos de Covid-19 nos respectivos estados. As estruturas hospitalares emergenciais passaram a ser desmobilizadas. Dos leitos clínicos e de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS) abertos a partir do início da pandemia, 65% já foram fechados. Por outro lado, o Brasil é o segundo país com mais mortes – atrás dos Estados Unidos – e o terceiro com maior quantidade de contaminações registradas – atrás dos Estados Unidos e da Índia.

A segunda onda de Covid-19 na Europa é um alerta importante aos governadores que decidiram optar por cautela e autorizar retorno às aulas presenciais somente em 2021 ou após a confirmação de uma vacina para imunizar a população. Nesse grupo, estão Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Roraima. Bahia e Rondônia ainda não firmaram posição sobre o assunto.

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Desmonte de política ambiental respalda queimadas no país, mostra reportagem

Dimensão exata da destruição do Pantanal ainda é incerta diante da imensidão de incêndios, analisa revista Política Democrática Online de outubro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Os impactos das queimadas no Pantanal, a maior planície alagada do mundo, com 65% de seu território concentrados nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, são analisados em reportagem especial da revista Política Democrática Online de outubro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade.

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De acordo com a reportagem, além de deixar a vegetação em cinzas e o céu do país tomado por fumaça e fuligem, as queimadas deste ano no Pantanal são consideradas a maior da história pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Para especialistas, refletem o desmonte das políticas ambientais em menos de dois anos do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

A dimensão exata da destruição da fauna e flora ainda é incerta diante da imensidão das queimadas que aumentam a área devastada a cada dia, conforme mostra a reportagem. A Polícia Federal suspeita que fazendeiros provocaram os incêndios criminosos para transformar a área em pasto, seguindo uma linha do próprio governo federal.

O texto também lembra que, em audiência no Senado, no dia 9 deste mês, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse que o boi é o "bombeiro do Pantanal" e, segunda ela, as queimadas e o "desastre" na região poderiam ter sido menores, se houvesse mais gado no bioma. Seu discurso foi criticado por especialistas e segue na linha do que já havia sido defendido pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e por Bolsonaro.

Até o dia 3 de outubro, 2.160.000 hectares já haviam sido destruídos no Pantanal mato-grossense e outros 1.817.000 hectares em Mato Grosso do Sul. O total de área devastada entre os dois estados é de 3.977.000 hectares, o que representa 26% de todo o Pantanal. Os dados são do levantamento mais recente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) Prevfogo e do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgado no dia 6 deste mês, antes do fechamento desta edição. Toda essa área devastada equivale a quase 20 vezes o tamanho das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro juntas.

O Pantanal arde em chamas desde julho e, em menos de três meses, o Inpe identificou cerca de 16 mil focos de calor no bioma. É o maior número desde 2015, quando foram contabilizados 12.536 focos de calor. A região enfrenta a maior seca em 60 anos, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadene), e a longa estiagem faz os incêndios avançarem ainda mais. A falta de chuvas ajuda na propagação do fogo subterrâneo, o que, segundo o instituto, só poderiam ser controlados efetivamente por chuvas constantes.

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RPD || Reportagem especial: Destruição do Pantanal confirma desmonte de política ambiental no governo Bolsonaro

Discurso de ministros sobre boi bombeiro não sinaliza para qualquer medida eficaz de preservação do meio ambiente no país

Cleomar Almeida

Quase quatro milhões de hectares já foram destruídos por incêndios no Pantanal, a maior planície alagada do mundo, com 65% de seu território concentrados nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Além de deixar a vegetação em cinzas e o céu do país tomado por fumaça e fuligem, as queimadas são consideradas a maior da história pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o que, para especialistas, refletem o desmonte das políticas ambientais em menos de dois anos do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

A dimensão exata da destruição da fauna e flora ainda é incerta diante da imensidão das queimadas que aumentam a área devastada a cada dia. A Polícia Federal suspeita que fazendeiros provocaram os incêndios criminosos para transformar a área em pasto, seguindo uma linha do próprio governo federal. Em audiência no Senado, no dia 9 deste mês, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse que o boi é o “bombeiro do Pantanal” e, segunda ela, as queimadas e o “desastre” na região poderiam ter sido menores se houvesse mais gado no bioma.

Tereza Cristina: “O boi é o bombeiro do Pantanal". Foto: Walter Campanato/Agência Brasil

“O boi é o bombeiro do Pantanal, porque é ele que come aquela massa do capim, seja ele o capim nativo ou o capim plantado, que foi feita a troca. É ele que come essa massa para não deixar como este ano nós tivemos. Com a seca, a água do subsolo também baixou os níveis. Essa massa virou um material altamente combustível", afirmou Tereza Cristina. Seu discurso foi criticado por especialistas e segue na linha do que já havia sido defendido pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e por Bolsonaro.

A versão do governo não sinaliza, positivamente, para qualquer medida eficaz de preservação do meio ambiente no país. No Pantanal, animais foram carbonizados ou severamente feridos pelas chamas, que também jogaram inúmeras árvores chão abaixo e destruíram quase todo o Parque Estadual Encontro das Águas, refúgio de onças pintadas no Mato Grosso, e o famoso Ninho do Tuiuiú. Organizações não-governamentais (ONGs) e voluntários atuam para socorrer animais, enquanto brigadistas, bombeiros e integrantes da Marinha tentam combater os incêndios.

Até o dia 3 de outubro, 2.160.000 hectares já haviam sido destruídos no Pantanal mato-grossense e outros 1.817.000 hectares em Mato Grosso do Sul. O total de área devastada entre os dois estados é de 3.977.000 hectares, o que representa 26% de todo o Pantanal. Os dados são do levantamento mais recente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) Prevfogo e do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgado no dia 6 deste mês, antes do fechamento desta edição. Toda essa área devastada equivale a quase 20 vezes o tamanho das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro juntas.

O Pantanal arde em chamas desde julho e, em menos de três meses, o Inpe identificou cerca de 16 mil focos de calor no bioma. É o maior número desde 2015, quando foram contabilizados 12.536 focos de calor. A região enfrenta a maior seca em 60 anos, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadene), e a longa estiagem faz os incêndios avançarem ainda mais. A falta de chuvas ajuda na propagação do fogo subterrâneo, o que, segundo o instituto, só poderiam ser controlados efetivamente por chuvas constantes.

Incêndio de grandes proporções atinge área do Pantanal. Foto: Mayke Toscano/Secom-MT

Com a estiagem, a navegabilidade também fica ainda mais prejudicada na região, que carece de estradas. Para ter uma ideia, o nível do Rio Paraguai já atingiu o marco zero em régua de porto em Mato Grosso do Sul, onde o governo federal decretou estado de emergência, assim como em Mato Grosso. No entanto, de acordo com o Observatório do Clima, o Ministério do Meio Ambiente não gastou nem 1% da verba de preservação.

Dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram, ainda, que o Pantanal sofreu redução de 50% nos registros de chuva em relação à média histórica. De acordo com o órgão, um dos principais indicadores da forte estiagem é o Rio Paraguai, que, segundo levantamento oficial, também atingiu o nível mais baixo desde os anos 1960. Além disso, técnicos reforçam a suspeita de que a propagação dos incêndios pode ter relação com o uso do fogo para fins agropecuários, utilizando-o para limpeza ou renovação da pastagem do gado.

Os efeitos devastadores dos incêndios no Pantanal têm consequências em todo o país, que vem registrando aumento das temperaturas e baixa umidade do ar nos 26 Estados e no Distrito Federal. Em algumas regiões, como no Rio Grande do Sul, já houve chuva preta, consequência da grande quantidade de fumaça das queimadas na atmosfera.

A organização não-governamental Greenpeace, que atua em defesa do meio ambiente, lamentou a destruição do Pantanal e informou, em nota, que o argumento da ministra da Agricultura sobre boi bombeiro foi “equivocado”. Disse, ainda, que o governo promoveu um desmonte na gestão ambiental, o que, conforme acrescentou, provocou as queimadas descontroladas no bioma.

“Diante de um cenário já previsto de seca severa, com focos de calor muito superiores à média desde março de 2019, não foram tomadas medidas efetivas de combate e prevenção aos incêndios, necessárias desde o primeiro semestre. Se não tivesse ocorrido um desmonte da gestão ambiental no Brasil, a situação não teria chegado a este nível de gravidade”, afirmou o Greenpeace na nota. A Presidência da República e os Ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente não se pronunciaram.


Presidente recebeu críticas por conta do "boi-bombeiro". Foto: Alan Santos/PR

Comissão quer bioma no Conselho Nacional da Amazônia Legal

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) começou a ser pressionado para responder a um requerimento da comissão que acompanha ações contra as queimadas no Pantanal sobre a inclusão do bioma no Conselho Nacional da Amazônia Legal pelos próximos cinco anos. Assim como ele, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foram criticados por especialistas por deferem “mito do boi-bombeiro”.

Em relação ao requerimento da comissão, o colegiado quer que o governo federal assuma sua responsabilidade e garanta uma estrutura de enfrentamento a futuras queimadas no Pantanal. A medida inclui mais recursos financeiros e estrutura logística, com aparato de combate a incêndios, como helicópteros e apoio da Força Nacional e da Defesa Civil.

A ação da comissão também poderá fazer o governo repensar sua defesa sobre o “boi bombeiro” no pantanal, que, segundo ambientalistas, é um mito. Bolsonaro e seus ministros endossam uma tese do agrônomo e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Evaristo de Miranda, que é chefe da Embrapa Territorial. Em entrevista à imprensa, Miranda culpou o declínio da pecuária no Pantanal e a criação de reservas ambientais na região pelo fogo.

“Quando a pecuária declina, por razões econômicas, de competitividade, quando se retira o boi, como se retirou de grandes reservas que se criaram na região, reservas ecológicas, a RPPN [Reserva Particular do Patrimônio Natural] do Sesc Pantanal, o que acontece nesses lugares, tirando o gado e cercando? O capim cresce muito e acumula muita massa vegetal. Na hora em que pega fogo, é um fogo muito intenso”, disse ele.

Bombeiros no combate aos incêndios no Pantanal. Foto: Christiano Antonucci/Secom – MT

Pesquisadores ouvidos pela BBC Brasil afirmaram que o gado criado solto ajuda, de fato, a reduzir a quantidade de matéria prima disponível para queima, mas, segundo eles, não é a redução na pecuária que explica os incêndios deste ano. Essa falta de correlação também é apontada em dados da Pesquisa Pecuária Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre os rebanhos bovinos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul nas últimas décadas e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Além disso, o rebanho bovino no Pantanal tem aumentado nos últimos anos, ao invés de diminuir. De 1999 a 2019, segundo levantamento do projeto Mapbiomas, a cobertura de vegetação nativa no Pantanal caiu 7%, reduzindo de 13,1 milhões de hectares, para 12,2 milhões de hectares. “Já a área de pastagem exótica cresceu 64% sobre áreas naturais, passando de 1,4 milhões de hectares, para 2,3 milhões de hectares. Nesse mesmo período, o rebanho de bovinos no Pantanal aumentou 38%, de 6,9 milhões para 9,58 milhões de cabeças”, afirmou o coordenador de inteligência territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), Vinícius Silgueiro, à BBC Brasil.


Foto: Christiano Antonucci / Secom – MT

Cinzas de animais deixa fauna enlutada

Animais mortos pelos incêndios no Pantanal têm suas amostras coletadas por força-tarefa que busca levantar o impacto das labaredas na fauna. Animais menores, como pequenos mamíferos e serpentes, foram carbonizados facilmente em razão de terem deslocamento curto e lento. Também já foram encontradas cinzas de jacarés, onças e antas.

O Pantanal tem cerca de 2 mil espécies de plantas, 580 de aves, 280 de peixes, 174 de mamíferos, 131 de répteis e 57 de anfíbios. O número de invertebrados é desconhecido. O bioma também é refúgio para espécies ameaçadas de extinção que vivem em outras regiões. Considerando levantamentos anteriores, o projeto Bichos do Pantanal estima que entre 30% e 35% das espécies de flora e cerca de 20% de mamíferos foram atingidos pelos atuais incêndios.

Os animais de maior porte têm maior chance de fugir. Se não forem cercados pelas chamas ou queimados nas patas pelo fogo que arde por baixo da vegetação, conseguem ir para áreas úmidas ou próximas aos rios. No entanto, em áreas em que há pouca água, praticamente nenhuma espécie consegue escapar.

Além de ter representantes do projeto Bichos do Pantanal, a força-tarefa conta com apoio da ONG Panthera, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e do Instituto Nacional de Pesquisa do Pantanal (INPP).

Também participam dos trabalhos profissionais do Instituto Homem Pantaneiro, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), entre outras instituições. A unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) do Pantanal tem atuado na elaboração dos protocolos e na análise dos dados coletados.


Guerra ideológica aterroriza vítimas de estupros no Brasil, mostra reportagem

Dados e histórias de vítima são contados em reportagem especial da revista Política Democrática Online de setembro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“Ele me colocou no colo, passou a mão em mim e, depois, tirou a roupa e começou a me acariciar na minha cama”. A declaração é de uma menina de 11 anos de idade que foi estuprada, aos 9 anos, em casa, pelo padrasto, enquanto a mãe estava no supermercado, na região do Gama, a 35 quilômetros de Brasília. “Ele me machucou muito, mas depois pediu para ficar calada porque senão minha mãe iria me bater”, conta, em reportagem especial da revista Política Democrática Online de setembro.

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A reportagem mostra que, a cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário de Segurança Pública 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com informações de todas as unidades da Federação. Outro levantamento, baseado no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), revela que, por dia, o Brasil registra seis abortos em meninas de 10 a 14 anos estupradas.

O assunto mobilizou ainda mais população do país contra esse tipo de crime em agosto deste ano, conforme lembra a reportagem. “Religiosos conservadores e grupos de extrema direita no país perseguiram uma menina de 10 anos que teve autorização da Justiça para realizar aborto no Espírito Santo. Ela ficou grávida após ser estuprada pelo tio, por quem era violentada desde os 6 anos. O criminoso está preso’, diz o texto.

Em 2018, de acordo com o Anuário de Segurança Pública, o Brasil registrou mais de 66 mil casos de violência sexual, o que corresponde a mais de 180 estupros por dia. Entre as vítimas, 54% tinham até 13 anos. Foi a estatística mais alta desde 2009, quando houve a mudança na tipificação do crime de estupro no Código Penal brasileiro. O atentado violento ao pudor passou a ser classificado como estupro. 

A reportagem especial da revista Política Democrática Online também mostra que, em sessão remota, o Senado Federal aprovou, no dia 9 de setembro, a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, que deve conter, obrigatoriamente, características físicas, impressões digitais, perfil genético (DNA), fotos e endereço residencial da pessoa que recebeu condenação judicial. O texto seguiu para sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

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RPD || Reportagem Especial: Estupros aterrorizam vítimas e inflam guerra ideológica

A cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estuprados no país; especialistas veem aborto como questão de saúde pública

Cleomar Almeida

“Ele me colocou no colo, passou a mão em mim e, depois, tirou a roupa e começou a me acariciar na minha cama”. A declaração é de uma menina de 11 anos de idade que foi estuprada, aos 9 anos, em casa, pelo padrasto, enquanto a mãe estava no supermercado, na região do Gama, a 35 quilômetros de Brasília. “Ele me machucou muito, mas depois pediu para ficar calada porque senão minha mãe iria me bater”, conta.

Os nomes não são divulgados para preservar a identidade da criança e da família, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A menina foi obrigada a conviver com o agressor durante quatro anos, período que durou o relacionamento da mãe com o padrasto. Ele foi embora depois da separação, no ano passado. A família disse que não registrou o caso na polícia por medo de ameaças.

“Ele me levou pra cama outras cinco vezes para colocar [o órgão genital] em mim, mas também passava a mão nas minhas partes toda vez que ia na minha casa. Eu não falava nada porque tinha muito medo de ele me matar”, conta a criança. “Hoje tenho medo de ficar sozinha em qualquer lugar”, acrescenta.

A cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estuprados no país, segundo o Anuário de Segurança Pública 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com informações de todas as unidades da Federação. Outro levantamento, baseado no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), mostra que, por dia, o Brasil registra seis abortos em meninas de 10 a 14 anos, estupradas.

EM AGOSTO DESTE ANO, RELIGIOSOS CONSERVADORES E GRUPOS DE EXTREMA DIREITA NO PAÍS PERSEGUIRAM UMA MENINA DE 10 ANOS QUE TEVE AUTORIZAÇÃO DA JUSTIÇA PARA REALIZAR ABORTO, NO ESPÍRITO SANTO. ELA FICOU GRÁVIDA APÓS SER ESTUPRADA PELO TIO, POR QUEM ERA VIOLENTADA DESDE OS 6 ANOS. O CRIMINOSO ESTÁ PRESO.

Estupro e aborto ainda são tabus no país, embora se permita a interrupção da gravidez em caso de estupro, ao lado de duas outras situações: anencefalia e risco de morte para a mãe. Ao arrepio das disposições legais, grupos extremistas se aproveitam para aprofundar suas batalhas ideológicas contra vítimas, deixando-as ainda mais vulneráveis, como ocorreu com a menina do Espírito Santo, que teve o nome divulgado indevidamente.

Só no primeiro semestre deste ano, o Ministério da Saúde registrou 642 internações de vítimas de estupro. Além disso, o Brasil tem média anual de 26 mil partos de mães com idades de 10 a 14 anos. Os dados são do Sistema de Informações Hospitalares do SUS. É crime fazer sexo com menor de 14 anos no país.

“Qualquer gravidez de uma menor de 14 anos é um estupro presumido. Isso significa que essa gravidez é resultado de uma violência sexual”, afirmou a antropóloga Débora Diniz, fundadora do Instituto Anis de Bioética. “Obrigar menina, tão miudinha, a se manter grávida é um ato de tortura do Estado brasileiro”, disse.

Em geral, os dados de crimes sexuais são subnotificados, já que nem todas as vítimas registram o caso na polícia ou procuram socorro de profissionais de saúde. Muitas vezes, nem dá tempo, já que também há casos de vítimas de estupro assassinadas pelos criminosos.

"Há uma naturalização desta violência. O pessoal já nem presta mais atenção em menina de 13 ou 14 anos grávida. O pessoal está começando a prestar atenção na gravidez de 10, 11 anos de idade", afirmou a advogada Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.

Em 2018, de acordo com o Anuário de Segurança Pública, o Brasil registrou mais de 66 mil casos de violência sexual, o que corresponde a mais de 180 estupros por dia. Entre as vítimas, 54% tinham até 13 anos. Foi a estatística mais alta desde 2009, quando houve a mudança na tipificação do crime de estupro no Código Penal brasileiro. O atentado violento ao pudor passou a ser classificado como estupro.

Naquele ano, o aumento nos casos de estupro teve sua maior parcela entre vítimas do sexo feminino (82%) e acompanhava uma alta em outras modalidades de crime contra mulheres, como feminicídio e agressão doméstica.

Nos últimos dez anos, o Brasil registrou, em média, uma interrupção de gravidez por razões médicas por semana envolvendo meninas de 10 a 14 anos. Em 2020, foram ao menos 34 ocorrências nesta faixa etária e, considerando mulheres de todas as idades, o número salta para 1.022.
“Enquanto o aborto não for tratado sob a perspectiva da saúde, enquanto houver julgamentos moralistas ou ele for abordado pelo viés religioso ou individual, vamos dificultar que meninas e mulheres tenham acesso à interrupção da gestação, que é um passo importante para sair deste ciclo tão traumático da violência sexual”, disse a defensora pública Paula Sant'Anna, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.

Na avaliação da assistente social Nathália Diorgenes, que pesquisa aborto e racismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e atua na Marcha Mundial das Mulheres, o estupro está enraizado na estrutura social. “O estupro é um crime social. Um homem comete, mas toda a sociedade legitima. Quando essas coisas acontecem, você diz que o estupro nesse país é bem-vindo. Esse é o recado do fundamentalismo religioso”, lamentou.

Em meio a toda guerra ideológica, a educação sexual é o melhor caminho na prevenção da violência sexual, segundo a advogada Luisa Lins, que é integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa) e da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. “Não existe outra forma de proteção senão a educação sexual. Punir, prender e castrar não são formas de prevenção. A educação sexual é responsabilidade do Estado e de toda a sociedade para cuidar das crianças”, destacou.

No caso da vítima do Gama, citada no início desta reportagem, a família tenta agir para amenizar o trauma da criança com auxílio de professores da educação regular, que foram informados sobre o seu caso após ela apresentar muita dificuldade de interação social quando as aulas ainda eram presenciais. Um psicólogo também faz seu acompanhamento. “Meu sonho é me tornar advogada para defender quem não tem força”, conta a menina.


Propostas querem tornar crimes imprescritíveis e inafiançáveis

Mulheres se mobilizam para aprovação das Propostas de Emenda à Constituição (PECs) 64/2016, referente ao estupro, e 75/2019, que torna imprescritível e inafiançável também o feminicídio. O objetivo é tornar imprescritíveis e inafiançáveis, sujeitos à pena de reclusão, os crimes de racismo, estupro e feminicídio.

Por causa das limitações impostas pelo instituto da prescrição é possível que algumas vítimas não consigam ver punido criminalmente o agressor nem recebam a indenização por dano moral que lhes é devida. Vítimas de estupro têm até 20 anos após a prática dos crimes para denunciarem o agressor. Após esse prazo, o crime prescreve e o criminoso não pode mais ser punido. Em regra, na área cível, o prazo de prescrição é de 3 anos.

A PEC 64/2016 já foi aprovada no Senado e está em tramitação na Câmara dos Deputados desde agosto de 2017. Em sua justificativa, o texto observa que "o estupro é um crime que deixa profundas e permanentes marcas nas vítimas, sendo que a ferida psicológica dificilmente cicatriza". Além disso, de acordo com o texto, “a coragem para denunciar um estuprador, se é que um dia apareça, pode demorar anos”. Já a PEC 75/2019 segue a mesma linha da primeira e já foi aprovada pelo Senado, mas também ainda está em análise na Câmara dos Deputados.

“As vítimas continuam clamando por justiça e buscando formas de receber o devido ressarcimento pelos danos físicos e morais sofridos”, explica a advogada Luiza Nagib Eluf, que foi promotora e procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo e secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Autora de sete livros, dentre os quais A paixão no banco dos réus (Editora Saraiva), Luiza escreveu um artigo e fez um apelo ao Congresso Nacional para aprovação das duas PECs. “A realidade dos fatos, no Brasil, não deixa dúvidas de que a Constituição Federal precisa ser aperfeiçoada para que a proteção aos direitos da mulher se torne, finalmente, uma realidade”, afirmou.


País terá cadastro de pessoas condenadas

Em sessão remota, o Senado Federal aprovou, no dia 9 de setembro, a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, que deve conter, obrigatoriamente, características físicas, impressões digitais, perfil genético (DNA), fotos e endereço residencial da pessoa que recebeu condenação judicial. O texto seguiu para sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

O Projeto de Lei 5.013/2019, de autoria do deputado federal Hildo Rocha (MDB-MA), também prevê que, em caso de condenado em liberdade condicional, o banco de dados deverá conter os endereços dos últimos três anos e as profissões exercidas nesse período. Na avaliação dos parlamentares, o cadastro é um avanço importante para frear "uma estatística assustadora no Brasil".

Para viabilizar o cadastro, o texto prevê a cooperação entre União, Estados e municípios para validação, atualização dos dados e acesso ao banco de informações. Os recursos para o desenvolvimento e a manutenção do cadastro serão do Fundo Nacional de Segurança Pública. As informações do cadastro devem simplificar e agilizar a investigação dos casos de estupro, além de servirem como instrumento de prevenção.

Código Penal
O crime de estupro é definido no Código Penal como "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso". A pena é de reclusão de 6 a 10 anos.

A lei também define como crime de estupro de vulnerável "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos" ou com "alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência". A pena é de reclusão de 8 a 15 anos.

O estupro e o estupro de vulnerável são crimes hediondos (Lei 8.072, de 1990). Por isso, são inafiançáveis e não alcançados pelos benefícios de anistia, graça ou indulto.

*Cleomar Almeida é jornalista, assessor de comunicação da FAP


Brasileiros estão mais vulneráveis à depressão e ansiedade na pandemia

Reportagem especial da revista Política Democrática Online de julho conta casos de pessoas que buscaram ajuda para lidar com o período de isolamento social

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A servidora pública Eliana Ramagem (50 anos) estava prestes a parar de tomar remédio para ansiedade, mas teve de continuar por causa da pandemia do coronavírus. De repente, o empresário Alexander Loureiro (47) viu sua renda zerar. “Tomo ansiolítico, senão a cabeça dá uma pirada, estava muito acelerada. Não dormia, ficava preocupado. Chegava às 5 ou 6 horas da manhã, eu ainda estava acordado”, conta ele, em reportagem especial da revista Política Democrática Online de julho.

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As histórias de Eliana e Loureiro são contadas na reportagem especial, que também mostra que a OMS (Organização Mundial da Saúde) estima aumento de até três vezes dos casos de depressão e ansiedade em países mais atingidos pela pandemia. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todas as edições, gratuitamente, em seu site, além de fazer ampla divulgação nas redes sociais.

Já uma pesquisa da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), divulgada em maio, mostra que o número de casos de ansiedade mais que dobrou durante a pandemia no país, ao passo que os de depressão tiveram aumento de 90%.

A reportagem da revista Política Democrática Online conta que os impactos da pandemia sobre a saúde mental são ainda maiores e mais catastróficos entre as pessoas de baixa renda. Sem atendimento de saúde adequado, muitas ficaram desempregadas e não têm o básico para comer em casa. Para outra parte, a saída que resta é romper o isolamento social e se misturar a outras pessoas para ir trabalhar em ônibus lotados.

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou, no final do mês de junho, que a pandemia destruiu 7,8 milhões de postos de trabalho no Brasil até maio. Menos da metade das pessoas em idade para trabalhar está empregada, o que nunca havia sido registrado desde 2012.

Outro alerta feito pela reportagem é de que o cuidado com a saúde da mente deve ser contínuo, não só durante a pandemia. O alerta é de um estudo sobre os efeitos da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), provocada pelo corona vírus em 2002 e 2003, na Ásia, realizado pela revista especializada East Asian Arch Psychiatry. A pesquisa mostrou que, depois de quatro anos, 42% das pessoas que sobreviveram à doença haviam desenvolvido algum transtorno mental. A maioria apresentou transtorno de estresse pós-traumático e, em segundo lugar, depressão.

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RPD || Reportagem especial: 132 anos após abolição da escravatura, sociedade grita contra racismo

Casos de assassinatos de brasileiro e norte-americano negros reacendem alerta contra crime, que impõe diversos obstáculos para essa parcela da população

Cleomar Almeida

Uma semana é o intervalo entre os assassinatos do adolescente brasileiro João Pedro Mattos (14 anos), baleado no Rio de Janeiro, e o do norte-americano George Floyd (46 anos), sufocado, em Minneapolis, nos Estados Unidos. Negros assassinados por policiais, eles também não conseguiram resistir à perversidade do crime que tem dizimado essa população diariamente e que se manifesta de diversas formas: o racismo.

No Brasil e nos Estados Unidos, a violência é uma das faces desse crime, que se propaga em vários outros. Negros são os que mais morrem em ações policiais e também lideram o ranking das vítimas de coronavírus. Têm menos acesso à saúde, grau de escolaridade e oportunidade de emprego, em comparação com pessoas brancas.

No total, no Brasil, negros são 56% da população e 75% dos mortos por policiais. Nos Estados Unidos, representam 13% das pessoas e 24% das vítimas assassinadas pela polícia. Livres da escravidão, abolida há 132 anos no território nacional, pessoas negras e toda a sociedade precisam se mobilizar contra o racismo, que, na avaliação de especialistas, tem se institucionalizado cada vez mais e de forma acelerada na força estatal.

 “Há um enorme viés racial na violência policial no Brasil. Da mesma forma que educação, renda e trabalho são indicadores de desigualdades raciais, a violência também se constitui como um indicador potente, pois ela atinge de forma desigual os negros do país”, afirma a professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Lima.

A professora, que também é coordenadora do Afro, o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), diz que não são mortes provocadas. São assassinatos. É um modus operandi. “O racismo é um elemento constituinte da violência do país. As estatísticas comprovam isso”, afirma ela.

Nos Estados Unidos, negros têm 2,9 vezes mais risco de serem mortos por policiais do que brancos. No Brasil, o risco é 2,3 vezes maior para os negros. Os dados são de análises do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2018 – o mais recente com recorte racial – e do instituto americano Mapping Police Violence, de 2019.

Foto: AP Photo/Silvia Izquierdo

O número de mortos pela polícia americana tem se mantido no mesmo patamar desde 2013. Com quase 18 mil departamentos de polícia nos EUA, não há uniformidade nos números oficiais sobre abordagens policiais com uso da força no país. No Brasil, o problema se repete.

De acordo com o Atlas da Violência, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o crescimento nos registros de assassinatos no Brasil, que alcançaram patamar recorde em 2017, atinge principalmente negros, para os quais a taxa de mortes chega a 43,1 por 100 mil habitantes. Para não negros, a taxa é de 16.

“É estarrecedor notar que a terra de Zumbi dos Palmares é um dos locais mais perigosos do país para indivíduos negros, ao mesmo tempo que ostenta o título do estado mais seguro para indivíduos não negros (em termos das chances de letalidade violenta intencional)”, afirmam os pesquisadores do Ipea em um trecho da pesquisa. “Em termos de vulnerabilidade à violência, é como se negros e não negros vivessem em países completamente distintos”, completam.

Autor do livro Racismo Estrutural e professor convidado da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), Silvio Almeida destaca que a polícia brasileira é muito mais violenta. “Mas também existe um nível de violência racial que constitui o Brasil em outras esferas, que naturalizou e incorporou no cotidiano a morte de pessoas negras”, afirma. “No país, quando se mostra a morte de um negro, a luta é para provar que aquela pessoa não era um bandido, como se o fato de a pessoa ter cometido algum crime justificasse também a violência policial".

Na avaliação do sociólogo e policial militar Eduardo Santos, a corporação brasileira reproduz o preconceito e a discriminação, e ainda não teve a preocupação de repensar as práticas de abordagem, de forma eficaz. “A polícia é a força de repressão que mata quem é igual a eles", afirma, destacando que negros representam 37% do quadro de policiais no Brasil. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A informação é autodeclarada e pode haver subnotificação.

A urgência do combate ao racismo tem mobilizado ainda mais grupos organizados para reivindicação e reconhecimento de direitos na busca por uma sociedade menos injusta, menos desigual e menos excludente. Mais de 100 entidades do movimento negro de todo o país reforçam o manifesto “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”. A campanha é promovida pela Coalizão Negra por Direitos, em parceria com os coletivos Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro.

O objetivo é coletar assinaturas para promover uma frente ampla em torno de ações de combate ao racismo e a cobrança junto ao Poder Público, de direitos como educação, emprego e segurança. O movimento entende que a luta antirracista precisa ganhar centralidade nas discussões em defesa da democracia.

“Tem se falado muito em repactuar, criar um novo pacto democrático no Brasil. Mas não existe possibilidade nenhuma de pensar a democracia real no país se o racismo não for um ponto central”, afirma Eugênio Lima, fundador do Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro e um dos articuladores da iniciativa, em entrevista ao jornal El Pais.

De acordo com Lima, a frente ampla deve considerar o apoio de pessoas brancas e indígenas de diferentes setores da população. Segundo ele, a adesão é importante porque a questão racial é parte do sistema e só será vencida quando toda a sociedade passar da comoção em relação à crueldade praticada contra negros para mudanças concretas que promovam igualdade, por parte de quem está no poder — em sua maioria, brancos.

Certamente, outros negros morreram na semana que separou as mortes de João Pedro e George Floyd, cujos casos tiveram maior repercussão. O combate ao racismo deve ser uma prática diária, constante e de resistência, como sugeriu a professora e filósofa estadunidense Angela Yvonne Davis. "Numa sociedade racista, não basta não ser racista; é preciso ser antirracista", escreveu ela.


Desigualdade perversa reflete discriminação

Além de morrerem três vezes mais do que brancos por Covid-19 nos Estados Unidos e de serem mais de metade das vítimas da doença no Brasil, negros enfrentam abismos de desigualdade no acesso à educação, a oportunidades de emprego, à cultura e a cargos eletivos. No labirinto da discriminação, precisam encontrar o caminho da sobrevivência.

Reflexo da falta de acesso a serviços de saúde e alimentação que garanta boa qualidade de vida, mais da metade dos negros que se internaram no Brasil no período da pandemia morreu por contaminação de coronavírus em hospitais no país. Pesquisadores do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro analisaram 29.933 casos encerrados de Covid-19 (com óbito ou recuperação). Dos 8.963 pacientes negros internados, 54,8% morreram nos hospitais. Entre os 9.988 brancos, a taxa de letalidade foi de 37,9%.

Em relação à educação, no Brasil, a taxa de analfabetismo entre os negros de 15 anos ou mais (9,1%) é superior ao dobro da taxa de analfabetismo entre os brancos da mesma faixa de idade (3,9%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2018, 6,8% da população brasileira era considerada analfabeta. Nos Estados Unidos, a taxa de analfabetismo é menor que a do Brasil (1%), mas a desigualdade entre brancos e negros também existe.

De acordo com o IBGE, também há diferença na área financeira. Pretos e pardos tinham rendimento domiciliar por pessoa de R$ 934 em 2018, conforme pesquisa mais recente. No mesmo ano, os brancos ganhavam, em média, R$ 1.846. Nos Estados Unidos, por sua vez, negros têm renda domiciliar média de US$ 41,3 mil por ano, pouco mais do que a metade da dos brancos (US$ 70,6 mil).

O Congresso Nacional é outro campo de desigualdade entre brancos e negros no Brasil. Dos 594 deputados e senadores, apenas 17,8% são negros. No total, somente 106 declararam ser da cor preta ou parda. O cenário não muda se as duas Casas forem analisadas separadamente. Na Câmara, dos 513 deputados em exercício, 89 são pretos. Em contrapartida, 344 são brancos. Os dados são da própria Câmara Federal.

Em texto publicado no início de junho, o ex-presidente americano Barack Obama discorda das pessoas que afirmam que o recorrente viés racial no sistema de justiça criminal prova que apenas protestos e ações diretas podem levar a mudanças, e que votações e participações na política eleitoral são perda de tempo.

"Eu não poderia discordar mais. A essência de protestos é aumentar a conscientização da sociedade, colocar holofotes sobre a injustiça e fazer com que os Poderes fiquem desconfortáveis”, afirma ele, em um trecho.

O texto de Obama diz, ainda, que, ao longo da história americana, é comum que seja apenas uma reação a protestos e desobediência civil a atenção que o sistema político dá a comunidades marginalizadas. “Mas, no fim, anseios têm sido traduzidos em leis específicas e práticas institucionais. E, numa democracia, isso só acontece quando nós elegemos autoridades que respondem às nossas demandas”, destaca ele.

Importante instrumento na reparação de direitos de negros no Brasil, a Lei de Cotas deverá ser revista em 2022, no último ano do mandato de Jair Bolsonaro. Como pretende disputar a reeleição e tem um governo de extrema direita marcado por polêmicas nas áreas de direitos humanos e educação, ele deve enfrentar grandes resistências do movimento negro, que tem se fortalecido no combate à desigualdade no país.

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo Nascimento, confirmou que haverá uma revisão no sistema de cotas no último ano do governo Bolsonaro. “O sistema de cotas será revisado em 2022. Cotas devem ser sociais, não raciais. Para que esta mudança ocorra, será fundamental o apoio dos negros. Cotas para pobres, de qualquer tom de pele. Não somos incapazes. Queremos justiça, não racialismo”, diz Camargo, que nega haver racismo no Brasil.

Na avaliação da professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Lima, que coordena núcleo de pesquisa sobre raça, gênero e justiça racial, há uma percepção equivocada de como a Lei de Cotas funciona. Segundo a Lei 12.711, conforme ressalta, a cota racial também é uma cota social.

“Muitos que se opõem às cotas raciais falam que elas apresentam privilégios e que não podemos distingui-las das sociais. Não faz sentido, porque elas não estão separadas”, explica a professora.

 A lei reserva 50% das vagas primeiro para estudantes de escolas públicas, que, em seguida, são divididos pela renda, o segundo critério social. Só depois se aplica o critério racial (a proporção da população negra e indígena de cada unidade da Federação).

Em comentários nas redes sociais, Camargo diz que as cotas raciais fazem parte de “reparação história”, mas, segundo ele, “não existe culpa coletiva”, ignorando a segregação a que os negros foram submetidos desde que foi abolida a escravatura no país, em 1888. “Reparação histórica. Mas dívida não é transmitida de geração para geração e não existe culpa coletiva. Querem vingança, não solução”, tuitou.

A pesquisadora da USP explica o porquê de defender a cota social e racial.“Quando enfrentamos a desigualdade social, a situação dos negros é sempre mais difícil, mesmo entre os mais pobres. As políticas de recorte social funcionam de forma tímida para incluir a população negra. Por isso, as cotas raciais são importantes”, afirma Márcia.


Coronavírus: Ciência busca vacina para salvar população contra pandemia

Reportagem da revista Política Democrática Online mostra que ameaça é ainda maior para 50 milhões de pessoas no Brasil

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP0

A corrida pela produção de vacina contra o coronavírus faz cientistas do mundo todo aumentarem os esforços em pesquisas para salvar a vida de milhares de pessoas. É o que mostra reportagem da nova edição da revista Política Democrática Online, produzida a editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília. Mais de 100 testes de diferentes imunizações foram divulgados desde o início da pandemia. Ao menos sete estão sendo analisadas em pacientes humanos em diferentes países.

Todos os conteúdos da revista podem ser acessados de graça no site da FAP. No Brasil, onde também há testes em andamento, a ameaça é ainda maior para 50 milhões de pessoas adultas, o equivalente a um terço dessa população. Elas sofrem doenças crônicas ou passaram dos 60 anos, conforme mostra a reportagem.

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O texto diz que, apesar de todos os esforços de pesquisa envidados em muitos laboratórios pelo mundo, inclusive no Brasil, a perspectiva mais otimista de contar com alguma vacina ou tratamento eficaz contra o coronavírus deverá tardar, mas não há saída à certificação da ciência.

Pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) realizaram levantamento sobre a quantidade de pessoas no grupo de risco no Brasil, onde a ciência também tem de enfrentar obstáculos ainda maiores devido à politização do combate ao coronavírus, como no caso da exoneração do médico Luiz Henrique Mandetta do cargo de ministro da Saúde. Além disso, o presidente Jair Bolsonaro ganha cada vez mais destaque como líder que estimula parte da população a agir como ele próprio e não cumprir orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), como isolamento social e uso de máscaras.

A reportagem cita as pesquisas mais promissoras para o desenvolvimento da vacina contra o coronavírus no mundo. Os Estados Unidos desenvolveram a primeira proposta contra a Covid-19 a ser testada em humanos. Na China, uma vacina começou a ser testada um pouco depois da americana, mas foi a primeira a alcançar a fase 2 dos testes clínicos.

Pesquisadores da empresa farmacêutica chinesa CanSino recrutaram 500 voluntários neste mês. A técnica é similar à que havia sido usada no desenvolvimento de uma vacina contra o ebola. A CanSino aposta em patógeno modificado, do grupo dos adenovírus, como vetor. A reportagem lista outras vacinas que devem ser testadas em humanos também em outros países.

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RPD || Reportagem especial: Na guerra contra coronavírus, ciência pode salvar vidas

Pesquisadores do mundo todo se mobilizam em busca de imunização eficaz; pesquisador de Harvard ressalta “método científico hiperacelerado”

Cleomar Almeida

A corrida pela produção de vacina contra o coronavírus faz cientistas do mundo todo aumentarem os esforços em pesquisas para salvar a vida de milhares de pessoas. Mais de 100 testes de diferentes imunizações foram divulgados desde o início da pandemia. Ao menos sete estão sendo analisados em pacientes humanos em diferentes países. No Brasil, onde também há testes em andamento, a ameaça é ainda maior para 50 milhões de pessoas adultas, o equivalente a um terço dessa população. Elas sofrem doenças crônicas ou passaram dos 60 anos.
Apesar de todos os esforços de pesquisa envidados em muitos laboratórios pelo mundo, inclusive no Brasil, a perspectiva mais otimista de contar com alguma vacina ou tratamento eficaz contra o coronavírus deverá tardar, mas não há saída à certificação da ciência. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realizaram levantamento sobre a quantidade de pessoas no grupo de risco no Brasil, onde a ciência também tem de enfrentar obstáculos ainda maiores devido à politização do combate ao coronavírus, como no caso da exoneração do médico Luiz Henrique Mandetta do cargo de ministro da Saúde. Além disso, o presidente Jair Bolsonaro ganha cada vez mais destaque como líder que estimula parte da população a agir como ele próprio e não cumprir orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), como isolamento social e uso de máscaras.

O infectologista e pesquisador da Fiocruz Júlio Croda afirmou que o Brasil teve tempo para se preparar contra a pandemia, mas, conforme disse, a politização prejudicou o combate ao coronavírus. Assim como ele, o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, reforçou que o uso da cloroquina, defendida por Bolsonaro, não tem comprovação de eficácia no tratamento de pacientes infectados.
Diante da emergência global de saúde pública provocada pela Covid-19, cientistas estão flexibilizando protocolos mais estritos de desenvolvimento de vacinas. Normalmente, é um processo demorado e bastante trabalhoso, pois envolve várias etapas de testes em animais e avaliações sobre a toxicidade antes das três fases obrigatórias de testes clínicos em pessoas. Diretora brasileira da OMS, a médica Mariângela Simão é otimista: “Teremos uma vacina, se tudo correr bem. O desafio será distribuí-la”.

No Brasil, pesquisadores da Fiocruz de Minas Gerais estão modificando o vírus influenza, causador da gripe, para que ele carregue trechos do material genético do Sars-CoV-2 associados à proteína S – da superfície do coronavírus, o gancho molecular usado pelo Sars-CoV-2 para se conectar às células humanas. O objetivo é produzir um vírus defectivo, que invade as células inicialmente, sem se propagar para outras, depois. O desenvolvimento pré-clínico, com testes em animais, deve levar de 12 a 18 meses, seguido dos testes clínicos.
Já os pesquisadores do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) estão desenvolvendo outra vacina contra o coronavírus. A expectativa é de que, nos próximos meses, a fórmula seja testada em animais.
“Acreditamos que a estratégia que estamos empregando para participar desse esforço mundial para desenvolver uma candidata a vacina contra a Covid-19 é muito promissora e poderá induzir uma resposta imunológica melhor do que a de outras propostas que têm surgido, baseadas fundamentalmente em vacinas de mRNA”, disse o diretor do Laboratório de Imunologia do Incor e coordenador do projeto, Jorge Kalil, conforme divulgou a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

Utilizada no desenvolvimento da primeira vacina experimental contra o Sars-CoV-2, anunciada no fim de fevereiro nos Estados Unidos, a plataforma tecnológica de mRNA se baseia na inserção na vacina de moléculas sintéticas de RNA mensageiro (mRNA) ― que contêm as instruções para produção de alguma proteína reconhecível pelo sistema imunológico.
De acordo com a pesquisa, o objetivo é que o sistema imunológico reconheça essas proteínas artificiais para posteriormente identificar e combater o coronavírus real. A plataforma que será utilizada pelos pesquisadores do Incor é fundamentada no uso de partículas semelhantes a vírus (VLPs, na sigla em inglês de virus-like particles).

As VLPs são estruturas multiproteicas com características semelhantes às de um vírus e facilmente reconhecidas pelas células do sistema imune. No entanto, elas não têm material genético do vírus, o que impossibilita a replicação. Por isso, são seguras para o desenvolvimento de vacinas.

Em artigo publicado no The New York Times, o médico Marc Lipsitch, professor do Departamento de Epidemiologia, Imunologia e Doenças Infecciosas da Universidade Harvard, afirma que o ponto de equilíbrio entre todas essas incertezas ficará mais claro quando mais pesquisas sorológicas, ou exames de sangue para detectar anticorpos, forem conduzidos com grande número de pessoas. “Estudos desse tipo estão começando e devem mostrar resultados em breve. É claro que muito dependerá da sensibilidade e especificidade dos diversos testes: quão bem eles conseguem identificar anticorpos ao Sars-CoV-2 quando estão presentes e se conseguem evitar sinais espúrios de anticorpos a vírus aparentados”, escreveu.

Lipsitch também defende a realização de mais estudos. “São necessárias mais pesquisas científicas sobre quase todos os aspectos deste novo vírus, mas, nesta pandemia, assim como em pandemias anteriores, decisões que terão consequências enormes precisam ser tomadas antes de dispormos de dados definitivos”, disse, para enfatizar: “Em vista dessa urgência, o método científico – formular hipóteses informadas e testá-las com experimentos e epidemiologia cuidadosa – é hiperacelerado”.


 

Pesquisas exploram diferentes testes de vacinas
Os Estados Unidos desenvolveram a primeira vacina contra a Covid-19 a ser testada em humanos. A imunização se baseia em trechos de RNA que integram o material genético do vírus. O RNA viral da vacina contém a receita para a produção da chamada proteína S. A expectativa é que, dentro das células, o pedaço de RNA seja usado para iniciar a produção da proteína S, a qual, por sua vez, desencadeará uma reação de defesa do organismo. Quando o organismo entrar em contato com o vírus real, espera-se que já esteja com anticorpos prontos para combatê-lo.

A técnica é considerada relativamente segura, mas ainda falta comprovação de sua eficácia. Nenhuma vacina de RNA já foi liberada para uso comercial no mundo. Os testes começaram em 16 de março, na fase 1 (que mede apenas a segurança). A fase 2, que investiga a eficácia mais diretamente, pode começar em poucos meses. A pesquisa é uma parceria entre o governo americano, o Instituto de Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente, em Seattle (EUA), e a empresa de biotecnologia Moderna. A empresa farmacêutica Pfizer anunciou que também quer testar sua própria vacina de RNA contra o coronavírus em seres humanos a partir de agosto de 2020.

Na China, uma vacina começou a ser testada um pouco depois da americana, mas foi a primeira a alcançar a fase 2 dos testes clínicos. Pesquisadores da empresa farmacêutica chinesa CanSino recrutaram 500 voluntários neste mês. A técnica é similar à que havia sido usada no desenvolvimento de uma vacina contra o ebola. A CanSino aposta em patógeno modificado, do grupo dos adenovírus, como vetor.
De acordo com cientistas, o adenovírus geneticamente modificado carregará material genético com código para produção da proteína S, semelhante ao caso da vacina americana de RNA. A diferença é que os vírus conseguem repassar a informação genética da imunização, o que, em tese, pode ser mais eficiente do que o material genético solto. No entanto, pode haver mais riscos de efeitos colaterais. A expectativa é de que resultados mais exatos da abordagem sejam divulgados em um ano.

Uma abordagem muito parecida à da China está sendo usada por pesquisadores da Universidade de Oxford (Reino Unido). Os testes começaram em março e devem durar cerca de um ano.

Neste mês, a empresa de biotecnologia americana Inovio Pharmaceuticals começou a testar outra vacina na fase 1. O método tem muitas semelhanças com a vacina de RNA. A diferença é que o genoma do vírus, na parte correspondente ao código da proteína S, foi adaptado para uma molécula de DNA. Para injetar a vacina na pele ou nos músculos dos voluntários, os pesquisadores usam tecnologia que emite breve pulso elétrico, facilitando a entrada do material genético nas células por meio da abertura de pequenos poros. Até 40 voluntários, recrutados em duas cidades americanas, vão receber o fármaco na fase 1. O objetivo é ter a vacina para uso comercial em prazo de 12 meses a 18 meses.
A China também produz outras duas vacinas baseadas em células. As abordagens estão sendo desenvolvidas pelo Instituto Médico Genoimune de Shenzhen. Os cientistas acreditam que seria possível usar células geneticamente modificadas como vacinas. Essas células dendríticas, como são conhecidas, ajudam o sistema imunológico a reconhecer invasores.

Os pesquisadores querem incluir, no material genético das células, uma espécie de biblioteca de vários fragmentos de genes do Sars-CoV-2, assim como outros genes com a receita de moléculas que ativam o sistema imune. Ao produzir arquivo de substâncias estranhas quando entrarem em contato com o organismo, elas desencadeariam uma reação similar a uma infecção real, sem os riscos do contato com o vírus. A fase 1 do projeto já está em andamento. O grupo de Shenzhen planeja concluir o desenvolvimento da vacina até julho de 2023.


BCG pode ser grande aliada contra Covid-19
Aplicada em bebês recém-nascidos em países acometidos pela tuberculose, a vacina BCG, ou Bacillus Calmette-Guérin, está sendo pesquisada em pelo menos quatro países para ser aplicada na prevenção ao coronavírus. Estudo de pesquisadores dos Estados Unidos sugere que países que incluem a BCG no programa universal de imunização, como Japão, China e Brasil, podem ter 10 vezes menos casos de infecção de Covid-19 em relação aos demais.

Os pesquisadores americanos fizeram estudo com 178 países, durante a pandemia, e compararam aqueles em que a BCG é obrigatória com outros onde não há programa universal de imunização que inclua essa vacina. Os resultados preliminares mostram que, nos países onde a BCG não é obrigatória, o número de contaminados e mortos pela Covid-19 é 10 vezes maior.

Na Austrália, 4 mil profissionais de saúde participarão de uma pesquisa prática. Metade vai receber um produto sem efeito terapêutico. Na outra metade, será aplicada a dose da BCG. Os pesquisadores querem analisar se, em caso de possível infecção pelo coronavírus, os efeitos serão, ou não, mais leves.

A BCG é a vacina aplicada no braço em bebês recém-nascidos. No Brasil, é obrigatória desde a década de 1970, o que, segundo especialistas, ajuda a garantir alta cobertura vacinal. De acordo com os estudiosos, se for comprovada a eficácia da BCG contra o coronavírus, o Brasil sairá em vantagem.


Penúria castiga refugiados no Brasil, mostra reportagem da Política Democrática Online

Haitianos estão no grupo de estrangeiros que mais sofrem em busca de emprego e renda

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em busca de melhor qualidade de vida, centenas de imigrantes encantam-se ao encontrar uma oportunidade de trabalho no Brasil, mas, com o passar dos dias, vivem o pavor de serem explorados. Em Minas Gerais, por exemplo, trabalham até as 21 horas. Em média, são 17 horas por dia, com intervalo apertado para engolir refeição rápida. De segunda a sábado. A equipe de reportagem da revista Política Democrática Online viajou para cidades do Estado e verificou as dificuldades enfrentadas por pessoas oriundas de outros países para sobreviverem no Brasil.

Além das histórias de exploração de mão de obra, a reportagem mostra a história de duas irmãs do Congo que se mudaram para o Brasil para não serem vendidas por "dotes" no país africano.

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“Não gosto de trabalhar aqui. Já pensei muito em desistir e voltar para meu país, mas, por enquanto, não tenho outra opção e também não consigo ter permissão para trazer minha família”, conta Sonel, perto de um dos balcões da Ceasa. Ele perdeu a mãe no terremoto que matou 300 mil no Haiti há 10 anos e ainda tenta reconstruir a vida. Todo mês, envia para a mulher e dois filhos pequenos ajuda de R$ 500, metade do que recebe sem carteira assinada. No mercado nacional, há quase 12 milhões de brasileiros desempregados.

Administradores de duas empresas instaladas na Ceasa de Contagem, onde também trabalham brasileiros que não conseguem emprego melhor, tentaram impedir a equipe da revista de conversar com haitianos e tirar fotos. Não houve explicação. A suspeita é de exploração de mão-de-obra. Um deles ligou para a segurança terceirizada, que, em seguida, enviou quatro homens e pediu aos profissionais da reportagem para cessarem os trabalhos. Ninguém da administração da central compareceu ao local no momento.

O governo brasileiro registrou 774,2 mil migrantes em território nacional, de 2010 a 2018, conforme dados mais recentes do Relatório Anual do OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, divulgado no ano passado. Haitianos, venezuelanos e colombianos, segundo informações oficiais, são os que mais migram para o Brasil, o sexto país que mais recebe refugiados no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)

Assim como Sonel, Roberson (36) é outro haitiano que trabalha o dia todo na Ceasa. “É muito complicado aqui”, reclama. “Meu sonho é trazer minha família, minha mulher e meus dois filhos, para viver aqui no país, mas é tudo muito penoso porque as autoridades dificilmente liberam. Ficar longe da família é muito ruim. Quero voltar para meu país”, afirma, com forte sotaque francês e um pouco de dificuldade de falar a língua portuguesa.

O Conselho Nacional para os Refugiados (Conare), ao qual estão vinculados cinco ministérios e a Polícia Federal, concedeu refúgio a 21.541 pessoas, em 2019, o que representa 82,6% do total de casos analisados pelo colegiado. Em relação ao total de refúgios, porém, apenas 181 (0,84%) pessoas beneficiadas tiveram autorização para estender esse direito a algum familiar. Outros 3.883 (14,9%) processos foram encerrados por desistência, e 606 (2,3%), indeferidos.

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RPD || Reportagem Especial: Crise econômica e solidão desanimam refugiados no Brasil

Desvalorização de mão de obra dificulta sobrevivência de haitianos no Brasil; país aumenta número de refugiados e diminui autorizações para familiares

Cleomar Almeida

O corpo inclinado para frente faz o haitiano Sonel Pierre (37 anos) ter força para puxar o carrinho de mão com 800 kg de sacos de batata inglesa na Central de Abastecimento (Ceasa) em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. São 4 horas da madrugada. No mesmo local, muitos africanos usam a própria cabeça para descarregar caminhões lotados de mercadorias, ao passo que outros se revezam nas carrocerias em árduo trabalho braçal em condições degradantes. Longe da família, a situação só piora.

Em busca de melhor qualidade de vida, centenas de imigrantes encantam-se ao encontrar uma oportunidade de trabalho no Brasil, mas, com o passar dos dias, vivem o pavor de serem explorados. Na Ceasa, por exemplo, trabalham até as 21 horas. Em média, são 17 horas por dia, com intervalo apertado para engolir refeição rápida. De segunda a sábado. A equipe de reportagem da Revista Política Democrática Online viajou para Minas Gerais e verificou as dificuldades enfrentadas por pessoas oriundas de outros países para sobreviverem no Brasil.

“Não gosto de trabalhar aqui. Já pensei muito em desistir e voltar para meu país, mas, por enquanto, não tenho opção e também não consigo ter permissão para trazer minha família”, conta Sonel, perto de um dos balcões da Ceasa. Ele perdeu a mãe no terremoto que matou 300 mil no Haiti há 10 anos e ainda tenta reconstruir a vida. Todo mês, envia para a mulher e dois filhos pequenos ajuda de R$ 500, metade do que recebe sem carteira assinada. No mercado nacional, há quase 12 milhões de brasileiros desempregados.

Administradores de duas empresas instaladas na Ceasa de Contagem, onde também trabalham brasileiros que não conseguem emprego melhor, tentaram impedir a equipe da Revista de conversar com haitianos e tirar fotos. Não houve explicação. A suspeita é de exploração de mão-de-obra. Um deles ligou para a segurança terceirizada, que, em seguida, enviou quatro homens e pediu aos profissionais da reportagem para cessarem os trabalhos. Ninguém da administração da central compareceu ao local no momento.

O governo brasileiro registrou 774,2 mil migrantes em território nacional, de 2010 a 2018, conforme dados mais recentes do Relatório Anual do OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, divulgado no ano passado. Haitianos, venezuelanos e colombianos, segundo informações oficiais, são os que mais migram para o Brasil, o sexto país que mais recebe refugiados no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)

Assim como Sonel, Roberson (36) é outro haitiano que trabalha o dia todo na Ceasa. “É muito complicado aqui”, reclama. “Meu sonho é trazer minha família - mulher e dois filhos -, para viver aqui no país, mas é tudo muito penoso porque as autoridades dificilmente liberam. Ficar longe da família é muito ruim. Quero voltar para meu país”, afirma, com forte sotaque francês e um pouco de dificuldade de falar a língua portuguesa.

O Conselho Nacional para os Refugiados (Conare), ao qual estão vinculados cinco ministérios e a Polícia Federal, concedeu refúgio a 21.541 pessoas, em 2019, o que representa 82,6% do total de casos analisados pelo colegiado. Em relação ao total de refúgios, porém, apenas 181 (0,84%) pessoas beneficiadas tiveram autorização para estender esse direito a algum familiar. Outros 3.883 (14,9%) processos foram encerrados por desistência, e 606 (2,3%), indeferidos.

Nos últimos dois anos, o Brasil aumentou de 1.086 para 21.541 o número de refúgios concedidos no país, refletindo a onda da crise humanitária da vizinha Venezuela. No entanto, caiu o de refúgios garantidos a familiares, passando de 309, em 2018, para 181, em 2019, uma queda de 41% no período.

Boa parte dos imigrantes vive no limbo entre a falta de oportunidade de uma vida melhor no Brasil e o medo de recuo das políticas migratórias nacionais, em meio à série de ataques a direitos das pessoas, feitos pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. No último dia 17, o vídeo de um haitiano ganhou repercussão na internet. Após criticar Bolsonaro, pessoalmente, em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília, um dia depois de o presidente apoiar manifestações pelo país contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), o haitiano afirmou: “Você não é presidente mais”. A reportagem não conseguiu contato com o homem.

Acre, Amazonas, Distrito Federal, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e São Paulo são os que mais registram solicitações de refúgio para imigrantes no país. Assim como na Ceasa da cidade mineira, Brasília tem grande número de haitianos trabalhando sob sol forte. Eles concentram-se, principalmente, na rodoviária do Plano Piloto e em calçadas nos arredores, a 3 quilômetros do Congresso Nacional.

Longe da família, a falta de oportunidade de trabalho adequado só piora a situação. A pesquisa “Perfil Socioeconômico dos Refugiados no Brasil: subsídios para políticas” constata a dificuldade enfrentada por pessoas oriundas de outros países. “Aqueles que conseguem obter um emprego rapidamente percebem que as expectativas feitas não corresponderão à realidade, dado que o salário é pequeno e a renda não é suficiente”, afirma um trecho. “Essa frustração materializa-se em uma narrativa bastante comum dentre os refugiados entrevistados: no Brasil, é praticamente impossível melhorar de vida sendo funcionário, empregado”, continua.

A presença de imigrantes, solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil levanta desafios para formuladores e gestores das políticas públicas migratórias e diversos atores da sociedade civil que cumprem papel histórico na acolhida desses grupos. A secretária nacional de Justiça, Maria Hilda Marsiaj, diz que “o conhecimento rigoroso da imigração é ferramenta imprescindível para a formulação de políticas públicas e para a tomada de ações específicas que permitam a inserção e contribuição para o desenvolvimento do país”. Ela reconhece, ainda, que o monitoramento estatístico, amparado por análise sociodemográfica e socioeconômica, é tarefa do Estado e recomendação da comunidade internacional.

Coordenador científico do OBMigra, o professor do Departamento de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (UnB) Leonardo Cavalcanti alerta que as autoridades públicas devem estar atentas à elaboração de políticas públicas que não permitam a discriminação dos imigrantes que chegam ao país fugindo de guerras, perseguição política e desastres ambientais. “Há pessoas que chegam ao Brasil fugindo de situações muito delicadas e que, se na maioria das vezes não têm recursos financeiros, têm um bom nível de escolaridade e experiência profissional”, ressalta, em entrevista à imprensa.