cinemateca

Jean-Luc Godard é um diretor, roteirista e crítico de cinema franco-suíço | Foto: TV Pampa

Revista online | Godard, o gênio exausto

Vladimir Carvalho*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)

A morte consentida de Jean-Luc Godard pode sinalizar para muitos o final de uma era cinematográfica marcada desde a primeira vanguarda, nos anos 1920, por uma incessante busca de legitimação de uma atividade artística que, de cara, se autodenominava de Sétima Arte, com técnica e linguagem próprias. Cedo seria respaldada pela formação de uma mentalidade que nasceu com os cineclubes, os críticos e as revistas especializadas – o que hoje é conhecido de forma generalizada por cinefilia. Teorias e posturas estéticas renovadoras já se faziam sentir ao tempo do cinema soviético com Sergei Eisenstein, Dovijenko, Dziga Vertov e outros até a explosão que foi o Cidadão Kane, de Orson Welles, nos anos de 1940.

Na década posterior, os franceses jogaram papel importante a partir da ação desenvolvida pela Cinemateca Francesa e com o aparecimento do grupo liderado por André Bazin, grande influenciador e principal crítico da revista Cahiers du Cinéma, que se tornaria célebre e em cujo agitado seio surgiria o até ali desconhecido franco suíço. Ao lado de outros, como François Truffaut, Jacques Rivette, Eric Rohmer e Claude Chabrol, compondo a tendência que seria conhecida, ou apelidada, de “jovens turcos”. Mais tarde, alguns deles se renderiam aos encantos da prática cinematográfica como ativos diretores que defendiam a todo custo a autonomia de um cinema autoral, desde ali, em confronto com o poderio dos produtores que condenavam por princípio o filme clássico francês e valorizavam uma política de autores.

Nesse clima de camaradagem solidária, o futuro autor de Acossado (1960) pontificou-se como um ferrabrás da crítica atento à condução moderadora de Bazin, mas em franco contraste com Georges Sadoul, um marxista militante, que sempre defendeu o cinema soviético não só do período eisensteiniano como também os das gerações posteriores. Godard foi desde sempre um anarquista, pontificando-se na avaliação e cotação dos filmes, no famoso Conseil des Dix, da revista.

Em 1960 Godard vai à “guerra” com uma narrativa desconcertante e uma linguagem inédita até aquele momento. O público delirou com Acossado, e a crítica foi obrigada a reconhecê-lo. Segue-se com igual liberdade estética, Uma Mulher é uma Mulher (1962) e O Desprezo (1963). Depois a política faz a festa em Masculino, Feminino (1966); a moda godardiana continua em Made in USA (1966) e em A Chinesa (1967), que radicaliza em termos de desdramatização e nos aspectos políticos. É um cinema diametralmente oposto aos clássicos americanos, mas que tinha muito da simpatia que os “jovens turcos” nutriam pelos filmes B, nos Cahiers. Porém, ainda não era, claro, o Godard radical e em mutação do Grupo Dziga Vertov, do final dos anos 1960, e que, em Maio de 68, se confunde com os estudantes revoltados, filmando nas barricadas de Paris.

Veja todos os artigos da edição 46 da revista Política Democrática online

E foi nessa rumorosa onda de 1968, num veemente protesto contra a demissão do carismático Henri Langlois, da curadoria mor da Cinemateca Francesa, que o Festival de Cannes foi atropelado e quase não aconteceu. Godard protagonizou a cena principal, pendurado nas cortinas do Palais, impedindo que as sessões começassem, com ampla cobertura da imprensa. Em Paris, a redação dos Cahiers, na rua Marbeuf, virara um comitê de agitação em favor dos estudantes; e a temperatura subiu quando o filme de Jacques Rivette, A Religiosa, foi proibido. Novamente é um empedernido Godard que toma as dores e defende Rivette e seu filme, rompendo com o grande André Malraux, então ministro da Cultura, em carta que passou aos anais como uma irrespondível peça de condenação do Estado gaullista.

Entretanto, no âmbito de certa crítica, “a sua utopia de um cinema marxista, de parceria autoral com a classe trabalhadora, resultou tão frustrada quanto a aliança dos estudantes com os proletários da Renault”, como argutamente observou o crítico e escritor Sergio Augusto.

A propósito do perfil muitas vezes contraditório do autor de Je Vous Salue Marie (1985), podemos recordar aqui episódio ocorrido durante o Festival Internacional do Filme, o histórico FIF, do Rio de Janeiro. Godard compareceria ao mesmo para a apresentação do seu filme Alphaville. Tudo acertado, pouco depois ele mandou um telegrama desistindo de participar, num gesto de protesto e condenação da ditadura militar no Brasil. Instalada a confusão, surpreendeu a todos, negando peremptoriamente a autoria da mensagem, e atribuindo-a a terceiros. Quando tomou conhecimento da negaça, o crítico Robert Benayon, da revista Positif, rival dos Cahiers, presente ao evento brasileiro, desabafou para quem quisesse ouvir. Para ele, tratava- se de “mais uma daquele fascista!”. Nesse tempo, andava o autor dessas notas, trabalhando como assistente de Arnaldo Jabor, num filme que realizou sobre o FIF, Rio, Capital do Cinema, e ouviu os comentários acerca desse lance, nos bastidores da sede da mostra, no Copacabana Palace.

Essa época no Rio foi muito marcada pelos filmes e paixão pelos diretores da Nouvelle Vague. Uma pequena multidão de cinéfilos não arredava o pé das sessões do Cinema Paissandu, no Flamengo. Ali enturmei-me levado pelas mãos de Cosme Alves Neto e assisti, imerso na euforia da rapaziada, a quase todos os filmes de Godard lançados ali naquele ano de 1968. A cidade tomada pelo alvoroço político e pela revolta em virtude da morte de Edson Luiz, secundarista assassinado pela polícia no restaurante Calabouço, no aterro do Flamengo, estava transtornada. O clima era de insegurança e medo, mas filmes como Tempo de Guerra, de Godard, nos convocavam à ação, e, portanto, era também do Paissandu que partíamos para engrossar as fileiras da célebre Passeata dos Cem Mil. O Maio de 68 estava fresquinho em nossas agitadas cabeças. Mesmo sabendo das restrições ao autor de Masculino, Feminino, taxado até de fascista pelo pessoal da revista Positif, numa linha editorial que confrontava com os Cahiers du Cinéma, eu pouco ligava. Já havia lido os elogios de Georges Sadoul à Aruanda, o filme de Linduarte Noronha, em que atuei como roteirista e assistente, e num rompante juvenil pouco me interessava que Godard o achasse um stalinista superado pelo tempo, que já era tomado pelo revisionismo que resultou das sérias denúncias feitas por Kruschev; nem tomáramos conhecimento das restrições de Lévi Strauss ao franco suíço; tampouco da ojeriza que Jeanne Moreau lhe dedicava. Godard vivia agora a sua febre maoísta junto ao Grupo Dziga Vertov. E era nosso herói.

Muito depois é que tomaríamos conhecimento das peripécias do nosso ídolo quando da realização de seu filme Vento do Leste. Ele proporia a Glauber Rocha, que fazia importante participação na obra, que juntos destruíssem o cinema como arte. O brasileiro, sagaz como sempre, logo sacou que Godard começava a sucumbir à depressão e militava numa espécie de autodestruição, e a sua resposta foi a de que ele, Glauber, ao contrário, optava pela construção de um cinema inovador e de salvação, no Brasil e no Terceiro Mundo.

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
História do cinema brasileiro deve ser lembrada | Foto: Roman Rybaleov/Shutterstock
Vladimir Carvalho, um grande cineasta | Foto: FAP
Ticket cinema | Foto: ktsdesign/Shutterstock
O cinema é um do maiores entretenimento da sociedade | Foto: Fer Gregory/Shutterstock
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Cinema brasileiro | Foto: AlexLMX/Shutterstock
Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
História do cinema brasileiro deve ser lembrada | Foto: Roman Rybaleov/Shutterstock
Vladimir Carvalho, um grande cineasta | Foto: FAP
Ticket cinema | Foto: ktsdesign/Shutterstock
O cinema é um dos maiores entretenimentos da sociedade | Foto: Fer Gregory/Shutterstock
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Cinema brasileiro | Foto: AlexLMX/Shutterstock
previous arrow
next arrow
 
Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
História do cinema brasileiro deve ser lembrada | Foto: Roman Rybaleov/Shutterstock
Vladimir Carvalho, um grande cineasta | Foto: FAP
Ticket cinema | Foto: ktsdesign/Shutterstock
O cinema é um dos maiores entretenimentos da sociedade | Foto: Fer Gregory/Shutterstock
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Cinema brasileiro | Foto: AlexLMX/Shutterstock
previous arrow
next arrow

Gênio consumado, mas profundamente contraditório e iconoclasta, talvez naquele momento já se manifestasse no espírito de JLG o quadro psíquico que o dominou no fim da vida, depois da realização de filmes não tão brilhantes e plenos de vigor, como os daquela fase em que fez sombra a toda uma geração do cinema francês da Nouvelle Vague. Oriundos quase todos dos Cahiers, o qual terminou, é bom lembrar, por apoiar o Cinema Novo brasileiro, especialmente promovendo seus autores mais importantes e mais afinados com o ideário da revista, como é o caso de Glauber Rocha, Cacá Diegues e Gustavo Dahl.

Embora tumultuada, a existência de Godard foi profícua e intensa, mas sua morte assistida parece se justificar pelo cansaço e esgotamento que o vitimou, e sua descida se deu também pela inexorável ação, digamos assim, da força da gravidade em vista do peso de seus 91 anos. Que descanse em paz!

Sobre o autor

*Vladimir Carvalho é um cineasta e documentarista brasileiro de origem paraibana.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

Leia mais

Revista online | Sete meses de guerra e um sistema internacional em transição

Revista online | Militares e o governo Bolsonaro: política ou partidarização?

Revista online | Por que eu voto em Simone?

Revista online | O Chile do pós-plebiscito

Revista online | Um Natal com Darcy Ribeiro

Revista online | Os desafios fiscais para 2023

Revista online | Eleições atrás das grades

Revista online | Não! Não Olhe! Sim! Enxergue!

Revista online | 1789 e 1822: duas datas emblemáticas

Acesse a 46ª edição da Revista Política Democrática online

Acesse todas as edições (Flip) da Revista Política Democrática online

Acesse todas as edições (PDF) da Revista Política Democrática online


Top Gun Maverick | Foto: Shutterstock/chingyunsong

Revista online | Top Gun: Maverick – um voo de nostalgia

Lilia Lustosa*, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022) 

Recentemente, uma sequela (sequel, em inglês) vem arrasando quarteirões e dando o que falar justamente por despertar na plateia aquela sensação gostosa de reviver o passado, de voltar no tempo, de reencontrar ídolos ou crushes da juventude. Top Gun: Maverick é uma explosão de nostalgia, com direito a Tom Cruise, Val Kilmer, Danger Zone (música de Kenny Loggins) e aquele sentimento de anos 1980 que invade por completo tela e mente. 

Trinta e seis anos depois do sucesso de Top Gun: Asas Indomáveis (1986), longa-metragem que lançou Tom Cruise ao estrelato e garantiu seu lugar na cultura pop mundial, o novo Top Gun veio ainda melhor, mostrando que o tempo, às vezes, pode aprimorar uma obra, assim como faz com bons vinhos. 

Veja todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online

Para dirigir essa sequela de peso, Joseph Kosinski foi o escolhido. Conhecido por sua aptidão no uso da computação gráfica – Tron: O Legado (2010) e Oblivion (2013) –, desta feita, o diretor americano optou por manter a estética e o estilo de seu predecessor, Tony Scott, filmando in loco, sem fundo verde. As cenas de abertura são exatamente como as do primeiro filme, incluindo a fonte utilizada para apresentar os créditos. Kosinski parece não ter querido deixar dúvidas sobre a filiação de seu Top Gun, prestando, ao mesmo tempo, bela homenagem ao diretor britânico que tirou sua própria vida em 2012. Kosinski agrega, porém, verniz de modernidade ao filme, aliando o que há de melhor na tecnologia atual ao realismo do cinema daqueles tempos. Em Top Gun: Maverick, os atores voam mesmo! Não é CGI. E mais, eles filmam também, já que nem diretor nem cinegrafista podiam acompanhá-los nos voos. 

Tom Cruise Kelly McGillis| Foto: Shutterstock/Stefano Chiacchiarini '74
Piloto de caça | Foto: Shutterstock/Christopher Chambers
Tron o legado | Foto: Shutterstock/Kathy Hutchins
Top Gun Maverick | Foto: reprodução
Top Gun 2022 | Foto: reprodução
Caças supersônicos | Foto: Shutterstock/oneinchpunch
Top Gun Maverick | Foto: Shutterstock/chingyunsong
Estatueta do Oscar | Imagem: reprodução/CNN
Tom Cruise Kelly McGillis
Piloto de caça
Tron o legado
Top Gun Maverick
Top Gun 2022
Caças supersônicos
Top Gun Maverick
Estatueta do Oscar
previous arrow
next arrow
 
Tom Cruise Kelly McGillis
Piloto de caça
Tron o legado
Top Gun Maverick
Top Gun 2022
Caças supersônicos
Top Gun Maverick
Estatueta do Oscar
previous arrow
next arrow

Para que os atores pudessem enfrentar tantos desafios, o próprio Maverick – ops! Tom Cruise – preparou um boot camp de três meses para deixar todos no ponto para subir nos aviões. Kosinski, por sua vez, instalou quatro câmeras dentro de cada jato, duas viradas para os atores e duas para fora, e ainda lançou mão de drones e aviões com a equipe de filmagem voando ao lado dos protagonistas. Uma proeza de realização e, sobretudo, de montagem, ponto alto do filme. As sequências de voos são de tirar o fôlego. Super-realistas e editadas à perfeição para fazer os espectadores voarem junto naqueles caças supersônicos. 

O roteiro, talvez, seja o ponto mais fraco do longa. Mas isso já era no original. Afinal, a trama de Top Gun 1 é bem simples: piloto rebelde, com muito talento, mas que não gosta de obedecer às ordens. Entra para a equipe de elite da Marinha americana, a Top Gun. Por seu temperamento, vai acumulando inimigos e perdendo oportunidades na carreira. Para piorar a situação, em um momento de rebeldia aérea, acaba perdendo seu melhor amigo e parceiro de voo, Nick “Goose” Bradshaw (Anthony Edwards). Uma ferida difícil de cicatrizar e que vai apagar um pouco a chama de rebeldia de Pete “Maverick” Mitchell. 

No filme atual, o capitão Maverick é um piloto de testes, estagnado na carreira e na vida. Ele é chamado para treinar a equipe escolhida para uma missão quase impossível. Os seis pilotos selecionados da Top Gun terão que eliminar um inimigo que não tem cara (russos, chineses?). Entre eles está Bradley “Rooster” Bradshaw (Miles Teller), filho de seu amigo Goose. Maverick vai viver um dilema: treinar o rapaz para que ele participe dessa missão suicida ou eliminá-lo do grupo, protegendo sua vida, mas impedindo-o, com isso, de alcançar seus sonhos? 

Top Gun 2 traz à tona velhos sentimentos, fantasmas e medos, além de propor uma reflexão sobre a maturidade e a passagem do tempo. Não que Maverick tenha perdido a rebeldia, mas agora ela é mais pensada, contida, controlada. As transformações físicas também têm destaque. Nesse quesito, um momento especial é a aparição de Tom “Iceman” Kasansky (Val Kilmer), antigo inimigo de Maverick, que, por seu talento e conformação às regras, chega à diretoria da Top Gun. Na vida real, sabe-se que Val Kilmer passa por um momento difícil, tendo perdido a voz depois de um câncer de garganta. Mas a tecnologia do século 21 torna sua participação possível e emocionante.  

Quem ficou de fora mesmo foi a música-tema do primeiro Top Gun, Take My Breath Away, interpretada pela banda Berlin. Para seu lugar, Hold My Hand foi especialmente composta, interpretada por ninguém mais, ninguém menos que Lady Gaga. Será que ela também leva o Oscar, como fez sua predecessora?  

Mas o melhor de Top Gun: Maverick é que ele prescinde de conhecimento prévio do filme de 1986, sendo assim um excelente entretenimento também para os jovens de hoje. As explicações necessárias estão todas ali, permitindo que todos desfrutem dessa aventura banhada de sol oitentiano. Mas, se der, vale assistir ao primeiro Top Gun e, também, ao documentário Val (2021), dirigido por Ting Poo e Leo Scott. Eles podem acrescentar um tom de sépia às emoções do presente, fazendo tudo ganhar mais alma e sentido.  

Sobre a autora

*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de março de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.

Leia também

Revista online | “Bolsonaro é um bom exemplo de degradação”, diz Carlos Melo

Revista online | Povos quilombolas: invisibilidade, resistência e luta por direitos

Revista online | Guerra às drogas e a insistência no fracasso

Revista online | A reinvenção da democracia brasileira e as eleições de 2022

Revista online | O que o Brasil pode ganhar com o novo mercado regulado de carbono 

Revista online | Apoie mulheres

Revista online | As implicações da educação domiciliar

Revista online | Cenário eleitoral e guerras de narrativas

Revista online | Voltaremos a Crescer?

Revista online | O que nos dizem aquelas tatuagens nazistas do batalhão Azov

Acesse todas as edições (Flip) da Revista Política Democrática online

Acesse todas as edições (PDF) da Revista Política Democrática online


RPD 35 || Reportagem especial: Do prenúncio à nova tragédia - Caso Cinemateca confirma descaso com cultura

Incêndio mostra, na prática, reflexos da postura do governo do presidente Jair Bolsonaro com o setor no país

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

Dois anos e dez meses separaram o prenúncio do risco de mais descaso com a cultura no Brasil e a tragédia do recente incêndio que destruiu parte da Cinemateca Brasileira, cujos prejuízos, ainda imensuráveis, são alvo de novas investigações do Ministério Público Federal (MPF), em São Paulo. Instituições e representantes do setor cultural cobram a responsabilização do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Em setembro de 2018, ainda candidato à presidência, Bolsonaro sinalizou com seu descaso para a cultura, após o incêndio que atingiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. “E daí?”, retrucou, na época, ao ser questionado sobre o maior desastre que arruinou o patrimônio científico e histórico do país. “Já está feito, já pegou fogo, quer que eu faça o quê?", respondeu à imprensa.

Depois de 15 dias do mais recente incêndio na história da Cinemateca brasileira, registrado em 29 de julho deste ano, o governo Bolsonaro seguiu na ofensiva. No último mês, anunciou demissões de técnicos da instituição, que preserva o mais rico acervo cinematográfico do país, com mais de 250 mil rolos de filmes e mais de 1 milhão de roteiros, fotos, cartazes e livros relacionados ao cinema.  O fogo fez parte do teto do galpão desabar, e o prédio foi interditado.

No entanto, a sede da Cinemateca estava fechada desde agosto de 2020, quando o secretário especial da Cultura, Mário Frias, tomou as chaves do local com escolta policial. Agora, ele tornou-se alvo de uma queixa-crime apresentada pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados por causa do incêndio, que também é investigado pela Polícia Federal.

João Batista: incêndio foi criminoso, não porque tenham botado fogo, mas pelo abandono da Cinemateca. Foto: Arquivo pessoal

“O incêndio foi criminoso, não porque tenham botado fogo, mas pelo abandono da Cinemateca, vítima do desejo político de destruição da memória, da criatividade e da crítica.  Arquivos de filmes são incendiários na essência de suas materialidades, principalmente de filmes antigos, ainda em nitrato. Deixar a Cinemateca sem funcionários é um grande crime”, disse o escritor e cineasta João Batista de Andrade.

O cineasta ressaltou a “queda brutal nos investimentos culturais”. “No cinema, por exemplo, há milhões de reais paralisados na Ancine, a agência reguladora e financiadora do cinema no Brasil.  Enquanto isso muitos filmes em produção estão paralisados e uma infinidade de projetos sem viabilidade previsível. Destruir a cultura é um projeto nefasto de poder. É o que estamos vivendo”, criticou ele.

Cobrança

Em 2020, por exemplo, o MPF cobrou explicações da Secretaria Especial de Cultura sobre a falta de repasses orçamentários à Cinemateca Brasileira. O contrato entre o Ministério da Educação e a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) chegou a ser suspenso porque o governo não repassou nenhuma parcela dos R$ 12 milhões previstos no orçamento para a entidade gerir o local. Funcionários tiveram salários atrasados.

Diante da gravidade da situação, o MPF ajuizou, em julho do ano passado, ação civil pública e apontou que o grande problema foi a má transição na gestão da Cinemateca, de 2019 para 2020: encerrou-se o contrato de gestão da Acerp sem a União se responsabilizar pela continuidade nos trabalhos técnicos internos da Cinemateca, assumindo-os diretamente ou por outro ente gestor.

Apesar de ter saído acordada em agosto do ano passado, após o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) deferir recurso do MPF, essa transição ainda está sendo implementada pela União. A promessa é de que seja firmado um novo contrato de gestão.

O procurador da República Gustavo Torres Soares avaliou a situação como preocupante e disse que “a Cinemateca Brasileira corre sério e iminente risco de dano irreparável por omissão e abandono do governo federal”, responsável pela manutenção e preservação dela.

“Infelizmente, também é público e notório que, nos últimos anos, em razão da omissão na gestão de bens culturais, históricos e turísticos pelo Poder Público, a sociedade brasileira sofreu a perda de inúmeros bens materiais e imateriais dessa natureza”, destacou o procurador da República.

Rodrigues: "Desmonte da cultura não é um fenômeno isolado do governo Bolsonaro”. Foto: Pedro Ventura/Agência Brasília

“Política destruidora”

Professor da Fundação Armando Alvares Penteado e doutor em comunicação pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Martin Cezar Feijó afirmou que “o caso da cinemateca é o mais flagrante de uma política destruidora”. “A cultura representa a diversidade inaceitável para um projeto que se pretende único: autoritarismo”, acentuou.

“A cultura é sempre subversiva. Fazer alusão à queima de livros do nazismo não é desproposital nem retórica. Ela é concreta. Estamos vivendo um desmonte da cultura, da política do audiovisual, da educação e da ciência”, acrescentou o professor.

O secretário de cultura do Governo do Distrito Federal (GDF), Bartolomeu Rodrigues, afirmou que “o desmonte da cultura não é um fenômeno isolado do governo Bolsonaro”. “No governo Bolsonaro, isso ficou mais visível, mais latente. Ele extinguiu o Ministério da Cultura, e organizações importantes estão hoje tecnicamente impossibilitadas de fazer alguma coisa pela cultura nacional”, observou, ao lembrar outros episódios de incêndio na Cinemateca Brasileira.

Antes deste ano, o fogo já atingiu o local pelo menos outras quatro vezes: em 1957, 1969, 1982 e 2016, sempre perdendo entre 1.000 e 2.000 fitas em cada. No primeiro, quase todo o acervo foi perdido. O MPF e a Polícia Federal ainda não finalizaram o levantamento exato do estrago provocado pelo incêndio neste ano na cinemateca.  

A expectativa é de que os trabalhos sejam concluídos nos próximos meses. Depois disso, o MPF vai analisar se pedirá à Justiça a responsabilização de possíveis culpados tanto no âmbito cível quanto na esfera criminal.


Entidades criticam o novo edital elaborado pelo governo Bolsonaro para o  gerenciamento da Cinemateca Brasileira. Foto: Divulgação/Cinemateca

Governo enfrenta críticas por causa de novo edital

Depois da inércia administrativa que levou ao incêndio na Cinemateca Brasileira, o governo federal lançou edital para contratação de organização social habilitada a gerir o local que tem o maior acervo cinematográfico do país, pelo valor de R$ 10 milhões anuais. A Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) diz que o valor é menos do que a metade do necessário.

Presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, Débora Butruce já se manifesta há anos contra o valor reservado no orçamento do governo para manter as atividades. Segundo ela, o montante adequado para executar bem todas as atividades no local é de R$22,5 milhões.

As propostas poderão ser enviadas até o próximo dia 16, mas a publicação do resultado definitivo está prevista para 18 de novembro. A Comissão Técnica é composta por servidores da Secretaria Especial de Cultura, da Secretaria Nacional do Audiovisual, da Agência Nacional do Cinema e do Instituto Brasileiro de Museus, designados pela Secretaria Executiva do Ministério do Turismo.

Em 2020, o governo já havia sofrido críticas após lançar proposta com valor de R$ 12 milhões anuais para a Cinemateca Brasileira. "Esse edital feito a toque de caixa nos dá medo. Quem vai assumir isso aqui?", disse a pesquisadora Eloá Chouzal, uma das organizadoras de manifestações em favor da cinemateca.

Em maio daquele ano, a direção da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que já chegou a ter repasses atrasados por parte do governo pela gestão da cinemateca, chegou à secretaria para tentar negociar um novo contrato, em meio a um quebra-cabeças que colocou o local como moeda de troca em mesa de negociações.

Naquela época, a direção da Cinemateca foi prometida pelo presidente Jair Bolsonaro a Regina Duarte após sua demissão da Secretaria Especial da Cultura. A então secretária sofreu semanas de fritura antes de ser demitida depois de ficar menos de três meses no cargo.

A saída de Regina foi costurada pela deputada federal Carla Zambelli, que chegou a dizer que a nomeação da atriz para a Cinemateca dependeria só de questões burocráticas.

Com a hipótese de rompimento do contrato de gestão atual e a falta de recursos e de um plano para a Cinemateca por parte da secretaria, o cargo prometido a Regina tem se revelado cada vez mais incerto.

Parte do acervo da Cinemateca destruído pelo incêndio ocorrido em julho passado. Foto: CBMSP

* Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.


'Incêndio na Cinemateca não é acidente',diz cineasta Luiz Bolognesi

Após repetidos alertas sobre risco de fogo, cineasta Luiz Bolognesi pede responsabilização das autoridades e diz que comunidade artística internacional está chocada. "Cinematecas guardam o acervo audiovisual de um povo."

DW Brasil

Para o cineasta Luiz Bolognesi, o fogo que atingiu parte do acervo da Cinemateca Brasileira na quinta-feira (29/07) não se trata de um acidente – diante dos avisos repetidos e insistentes de que a entidade estava abandonada e que havia risco de incêndio – mas de um crime administrativo, pelo qual as autoridades competentes precisam ser responsabilizadas.

"Estamos diante de um crime administrativo, de a pessoa não cumprir a função para a qual tem um salário e atribuições. Precisa de uma investigação e está na hora de as pessoas responderem pelos crimes", afirma Bolognesi em entrevista à DW Brasil.

Ele disse que o ocorrido na Cinemateca é uma "tragédia" e que a comunidade artística internacional está "chocada". "Cinemateca de qualquer país é tratada com muito cuidado. É onde está depositado o acervo audiovisual de um povo", diz.

O cineasta, que venceu uma mostra da Berlinale deste ano pelo filme A última floresta, sobre o povo Yanomami, afirma que o governo Jair Bolsonaro, como todo governo com "tendência totalitária", tem um "projeto político" para "destruir o cinema".

Bolognesi: "Vem sendo avisado há mais de um ano que as estruturas estão abandonadas"

"A arte é o âmbito da diversidade e sempre foi questionadora. Se você tem um governo de esquerda, a arte questiona o governo de esquerda. Se tem um governo de direita, a arte questiona o governo de direita. E um governo que está o tempo todo ameaçando o Supremo, o Congresso, as eleições, é um governo que tem uma tendência totalitária, e esses governos procuram sempre destruir a cultura. Porque você não controla o artista", afirma.

Ele diz que o "salto quântico" na degradação da Cinemateca coincide com a gestão Bolsonaro, e identifica um problema semelhante na Agência Nacional de Cinema (Ancine), que é financiada por tributos recolhidos de produtores de conteúdo e de empresas de telecomunicação, mas não tem destinado recursos para obras brasileiras. "Há ali também desvio do objetivo, porque eles arrecadam os recursos, pagam os salários dos funcionários, mas não fazem a finalidade de fomento", diz.

O secretário especial de Cultura, Mario Frias, que está em Roma para uma conferência dos ministros da Cultura do G20, postou mensagem no Twitter culpando a gestão petista pelo descaso na Cinemateca e disse que solicitou perícia da Polícia Federal para apurar o motivo do incêndio.

Como você avalia o incêndio no acervo da Cinemateca?
A comunidade artística sente isso como uma tragédia, inclusive a comunidade internacional, que está chocada porque uma cinemateca de qualquer país é tratada com muito cuidado. Seja nos Estados Unidos, no México, na França, na Alemanha. É onde está depositado o acervo audiovisual de um povo. Depois que a gente já teve um incêndio no Museu Nacional, agora temos um incêndio que queimou uma parte do acervo da Cinemateca. A gente já sabe que tinham negativos de curta metragem, parece que de longas metragens também. Toda uma história de Embrafilme, do Instituto Brasileiro de Cinema, toneladas de documentos que contam a nossa história, é gravíssimo.

Agora, isso não é um acidente, vem sendo avisado há mais de um ano que as estruturas estão abandonadas. Uma coisa é a Cinemateca não funcionar legal porque não tem investimento. Mas o mínimo, manter uma equipe que permita que o acervo de um país não se incendeie, não tem como não ter. O custo não é elevado nem discutível.

Trata-se de um crime, e tem que ser responsabilizado criminalmente quem foi avisado ao longo de um ano... Há nove dias, a Procuradoria da República notificou o governo do perigo iminente de um incêndio e nenhuma atitude foi tomada. Na minha opinião, estamos diante de um crime administrativo, de a pessoa não cumprir a função para a qual tem um salário e atribuições. Precisa de uma investigação e está na hora de as pessoas responderem pelos crimes.

Nesta sexta, um dia após o incêndio, o governo publicou edital para contratar uma entidade para gerir e preservar o acervo da Cinemateca. O que isso indica?
Eles já estão com medo da responsabilização jurídica. Acho que algumas autoridades, agora orientadas por seus advogados, sabem que correm risco. E aí falam "estávamos em processo, não deu tempo". É isso, medo da responsabilidade judicial, é uma omissão administrativa, muito grave.

O descaso que você menciona é resultado de um projeto ou de pouca capacidade administrativa?
A minha interpretação, pelo conjunto da obra, pela paralisação da Agência Nacional de Cinema, que não está mais fazendo fomento, pelo abandono da Cinemateca, pelo abandono da Funarte [Fundação Nacional de Artes], o corte de verbas para a universidade, o corte de investimentos em ciência e tecnologia, parece que é um projeto de um governo que está atacando frontalmente a cultura, a ciência e a inteligência brasileira. Me parece que é um projeto político.

Em relação à Cinemateca, não era a hora de já ter todo o acervo digitalizado?
A Cinemateca estava em um processo lento e contínuo de digitalização do acervo, que foi totalmente interrompido. Essa é uma tendência de todas as cinematecas, guardar e preservar as suas fontes originárias, sejam películas dos anos 1920, sejam fitas magnéticas de 1970, e guardar uma cópia digital que fica para a eternidade. A gente está muito atrasado nesse processo se for comparar com a Cinemateca do México, a francesa ou a alemã.

Além de parar a digitalização, cortaram-se os investimentos a ponto de não ter profissionais e tecnologia suficiente para impedir a destruição de um material que é extremamente delicado e sensível ao fogo. As películas pegam fogo quase como álcool, todo mundo sabe que existem mil cuidados para guardar esse material. Isso vinha sendo denunciado e se agravou muito desde o início do governo Bolsonaro.

Qual é o marco temporal da piora na administração da Cinemateca?
O abandono maior realmente começa com o governo Bolsonaro. A Cinemateca vinha tendo um tratamento melhor sendo construído, passamos algumas crises de redução de investimento no governo Dilma [Rousseff], que a turma da cultura reclamou, mas o salto quântico no abandono, a ponto de todo mundo falar "está para pegar fogo" e o cara não fazer nada até o dia que pega fogo, coincide com as mudanças que foram feitas a partir do governo Bolsonaro, que retirou todo mundo que tinha lá e largou tudo abandonado.

O povo do cinema tentou manter a Cinemateca funcionando com recursos não federais, levantando recursos, e o Ministério da Cultura entrou com uma ação e, com o uso da Polícia Federal, tirou o povo do cinema e disse "vocês não vão cuidar de nada, porque isso é um equipamento que tem uma vinculação com o Poder Federal e nós vamos cuidar".

De forma geral, como o governo Bolsonaro lida com o cinema brasileiro?
O governo Bolsonaro tenta destruir o cinema brasileiro. Porque a arte é o âmbito da diversidade, traz um pensamento complexo e sempre foi questionadora. Se você tem um governo de esquerda, a arte questiona o governo de esquerda. Se tem um governo direita, a arte questiona o governo de direita. E um governo que está o tempo todo ameaçando o Supremo, o Congresso, as eleições, é um governo que tem uma tendência totalitária, e esses governos procuram sempre destruir a cultura. Porque você não controla o artista.

No âmbito do cinema, a Agência Nacional de Cinema parou de fazer fomento. Os recursos do audiovisual brasileiro não vêm de Lei Rouanet nem do Orçamento. Tem um imposto criado na época da privatização das empresas de telefonia pelo governo Fernando Henrique [Cardoso] que teria que ser utilizado para o desenvolvimento da indústria de informática e o audiovisual. Até hoje esse recurso é recolhido e direcionado, [entre outras finalidades] para que a Agência Nacional de Cinema faça a política de fomento. Desde que o governo Bolsonaro chegou, o dinheiro entra e sai a conta gotas. Há ali também desvio do objetivo da agência, porque eles arrecadam os recursos, pagam os salários dos funcionários, mas não fazem a finalidade de fomento.

Qual é a situação atual do audiovisual brasileiro?
O audiovisual brasileiro é muito potente. Com esse imposto criado no governo Fernando Henrique e regularizado no governo Lula, o Brasil estava entre os dez maiores produtores de audiovisual do planeta, quando o governo Bolsonaro começa. Não é pouca coisa, estamos do lado de quem produz muito e barato, por um custo em dólar extremamente competitivo, e somos um dos maiores consumidores de streaming do planeta, como Netflix e Amazon. Então, apesar de a Ancine ter paralisado a nossa produção autoral, a indústria do audiovisual continua resistindo e produzindo porque os players estrangeiros viram uma oportunidade de produzir séries e filmes de qualidade, tanto na dramaturgia como tecnicamente.

Uma parte da indústria está sobrevivendo trabalhando para players americanos, mas estamos perdendo o nosso próprio patrimônio audiovisual, porque por meio da Ancine as produtoras brasileiras eram detentoras dos produtos feitos aqui, dirigíamos a linguagem do que queríamos fazer. Hoje a indústria brasileira está trabalhando para os players estrangeiros, não totalmente porque tem a Globoplay e alguns outros.

Mas o objetivo do governo era quebrar toda uma indústria que tem cerca de 60 mil empregos diretos e 300 mil indiretos porque a cultura vai contra o projeto totalitário. Uma economia de R$ 25 bilhões, maior que a do turismo em termos de faturamento. O incêndio na Cinemateca é só uma manifestação absurda de toda uma política de destruição de uma indústria e de uma memória.


Fonte:
DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/inc%C3%AAndio-na-cinemateca-n%C3%A3o-%C3%A9-acidente/a-58710325


‘Dívida da Cinemateca Brasileira chega a R$ 14 milhões’, diz Henrique Brandão

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, jornalista lamenta descaso do governo com uma das maiores instituições do audiovisual do mundo

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não repassou verba alguma este ano para a Cinemateca Brasileira. “A dívida chega a R$ 14 milhões”, alerta o jornalista Henrique Brandão, com base em dados da a Associação Roquette Pinto, mantenedora do espaço desde 2018. Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de setembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, ele lembra que a unidade é responsável pela preservação do audiovisual brasileiro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de setembro!

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. Segundo Brandão, os sinais do estrangulamento financeiro já vinham do ano passado. “Dos R$ 13 milhões previstos no orçamento, o governo só repassou R$ 7 milhões. Este mês, a Associação Roquete Pinto jogou a toalha: entregou as chaves ao governo federal e demitiu os 41 funcionários do corpo técnico. A bola agora está com a Secretária Especial de Cultura. Sinal de que o que está ruim pode piorar”, observa.

Fundada em 1946 e instalada em São Paulo, a Cinemateca Brasileira tem o maior acervo de imagem em movimento da América Latina, além de ser considerada uma das maiores instituições do gênero do mundo. Abriga cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos, entre roteiros, fotografias, cartazes, recortes de imprensa, e arquivos pessoais, como o de Glauber Rocha (1939-1971).

Além do valioso acervo, conforme observa Brandão no artigo da revista Política Democrática Online, sua sede, situada no Antigo Matadouro Municipal de São Paulo, na Vila Clementino, tem duas modernas salas de exibição e uma área externa para projeção de filmes. 

“Neste governo, o nome da Cinemateca tem sido citado em vão”, lamenta o jornalista. “O presidente ofereceu um cargo inexistente de chefia como consolo para a saída de Regina Duarte que, por sua vez, achou legal assumir ‘um museu do cinema’”, ironiza ele, para destacar que a cinemateca tem muitas funções importantes, menos a de museu.

Quem assim a enxerga confunde preservar com embalsamar, de acordo com Brandão. “Pensamento conservador. Há muito que os principais museus do mundo – como o Louvre – têm feito, com sucesso, esforço considerável para sacudir a poeira de seus salões”, diz ele, para continuar: “Uma das funções mais importantes de uma Cinemateca, em todo mundo, é formar plateias.  Em suas salas de cinema acontecem workshops, lançamentos de filmes, exibição de clássicos fora de catálogos. Muitas vezes é a oportunidade para crianças de escolas de comunidades terem seu primeiro contato com um filme em tela grande”.

Leia também:

Guerra ideológica aterroriza vítimas de estupros no Brasil, mostra reportagem

O que caracteriza a mentalidade bolsonarista? João Cezar de Castro Rocha responde

‘Lista de perdedores é imensa’, diz Everardo Maciel sobre propostas de reforma tributária

Sergio Denicoli explica como agem ‘robôs militantes’ e aponta final ‘infeliz’

O que está por trás do poder catártico do cinema? Confira o artigo de Lilia Lustosa

Reforma tributária, estupros e paixão por robôs são destaques da Política Democrática

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


RPD || Henrique Brandão: A Cinemateca Brasileira corre perigo

Com o maior acervo documental em audiovisual da América Latina, a instituição passa pela maior crise de seu período recente. Nas mãos do governo Bolsonaro, ainda não recebeu nenhum repasse de recursos do Governo Federal em 2020

Desde a eleição do sinistro capitão, a Cultura está sob ataque cerrado. Alguns episódios ligados à pasta poderiam até soar como paródias, não tivessem sidos levados a sério por quem estava no comando do setor. Regina Duarte, ex-namoradinha do Brasil, ficou meses paquerando o cargo que, por fim, assumiu. Mas o casamento durou pouco. Para constrangimento geral, ao apagar das luzes de seu breve reinado, deu entrevista em que minimizou as torturas praticadas na ditadura. Seu antecessor, Roberto Alvim, não ficou atrás: em vídeo, imitou Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, com direito a trilha sonora de Richard Wagner.

Seria cômico se não fosse trágico para o País. Como todo governo com viés autoritário, o atual pega pesado com a Cultura, onde vê inimigos por toda parte. A ordem é cercar, sufocar, exterminar. O comandante em chefe deu o primeiro passo assim que assumiu: rebaixou o ministério a uma secretaria, subordinando ao Turismo toda a área cultural. Não tivesse sido suficiente, deixa morrer, por inanição, setores importantes de atividades vitais, como o audiovisual.

Um dos exemplos mais dramáticos é o da Cinemateca Brasileira: embora esteja instalada na capital paulista, em uma estrutura da Prefeitura de São Paulo, todo o acervo e os recursos para sua manutenção estão sob a responsabilidade do Governo Federal. Segundo a Associação Roquette Pinto, mantenedora do espaço desde 2018, o governo Bolsonaro não repassou verba alguma este ano. A dívida chega a R$ 14 milhões. Os sinais do estrangulamento financeiro já vinham do ano passado: dos R$ 13 milhões previstos no orçamento, o Governo só repassou R$ 7 milhões. Este mês, a Associação Roquete Pinto jogou a toalha: entregou as chaves ao Governo Federal e demitiu os 41 funcionários do corpo técnico. A bola agora está com a Secretaria Especial de Cultura. Sinal de que o que está ruim pode piorar.

Fundada em 1946, a Cinemateca Brasileira é responsável pela preservação do audiovisual brasileiro. Considerado o maior acervo de imagem em movimento da América Latina e uma das maiores instituições do gênero do mundo, abriga cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos, entre roteiros, fotografias, cartazes, recortes de imprensa, e arquivos pessoais, como o de Glauber Rocha (1939-1971). Além do valioso acervo, sua sede, situada no antigo Matadouro Municipal de São Paulo, na Vila Clementino, tem duas modernas salas de exibição e uma área externa para projeção de filmes.

Neste governo, o nome da Cinemateca tem sido citado em vão. O presidente ofereceu um cargo inexistente de chefia como consolo para a saída de Regina Duarte que, por sua vez, achou legal assumir “um museu do cinema”. A Cinemateca tem muitas funções importantes, menos a de museu. Quem assim a enxerga confunde preservar com embalsamar. Pensamento conservador. Há muito que os principais museus do mundo – como o Louvre – têm feito, com sucesso, esforço considerável para sacudir a poeira de seus salões.

Uma das funções mais importantes de uma cinemateca, em todo mundo, é formar plateias. Em suas salas de cinema acontecem workshops, lançamentos de filmes, exibição de clássicos fora de catálogo. Muitas vezes, é a oportunidade para crianças de escolas de comunidades terem seu primeiro contato com um filme em tela grande.

Várias gerações de cineastas e amantes do cinema devem sua formação às cinematecas. Para mim, são inesquecíveis as sessões que frequentei na Cinemateca do MAM/RJ à época do lendário Cosme Alves Neto (1937-1996). No auge do regime militar, Cosme trocava as latas de filmes, a fim de evitar a apreensão de fitas censuradas pela ditadura.

Quem olha a memória como um retrato imóvel na parede não percebe que ela é algo vivo, que abarca passado, presente e futuro, em um movimento único. O filme de ontem do inesquecível Carlitos (1889-1977), a montagem revolucionária de Eisenstein (1898-1948) ou as vidas secas dos retirantes de Nelson Pereira dos Santos (1898-2018) têm uma nova leitura no olhar do jovem de hoje.

O deliberado descaso do Governo Federal com este patrimônio inestimável do povo brasileiro é inaceitável. No local existem materiais que exigem condições especiais de conservação, como os filmes de nitrato, que, se não estiverem em ambiente adequadamente climatizado, podem entrar em autocombustão.

Infelizmente, a Cinemateca corre o sério perigo de arder em chamas. Seu fechamento, além do risco de incêndio, tem consequências amazônicas para a Cultura do país.

*Henrique Brandão é jornalista, escritor e amante de cinema