cinema
RPD | Martin Cezar Feijó: O Multiartista de calças brancas
Pianista, compositor, poeta, escritor, cantor, cineasta, ator (rádio, televisão e cinema), produtor musical, artista plástico, Sérgio Ricardo viveu intensamente seu tempo histórico e fez muito pela cultura brasileira
João Mansur Lutfi nasceu no dia 18 de junho de 1933, na cidade de Marília, interior do Estado de São Paulo. E morreu aos 88 anos de idade no dia 23 de julho de 2020, na cidade do Rio Janeiro, depois de um longo período internado, inicialmente por Covid-19, da qual se curou, mas faleceu por problemas cardíacos, conforme noticiou a imprensa.
Foi pianista, compositor, poeta, escritor, cantor, cineasta, ator (rádio, televisão e cinema), produtor musical, artista plástico. Como dizia, só não aprendeu balé. E foi conhecido pelo nome artístico que adotou ainda moço, por sugestão de um diretor de televisão: Sérgio Ricardo. Um artista que fez muito pela cultura brasileira a partir da década de 1950, principalmente nos anos 60. Um período fértil e criativo, em que o Brasil se revelava muito inteligente na pertinente definição de Roberto Schwarz, diferente da atualidade, em que o país parece dominado pela boçalidade.
Filho de um sírio emigrado, Abdalla Lufti, que chegou no Brasil em 1926, e de uma brasileira filha de árabes, Maria Mansur, que nasceu em 1912. Era uma família musical, cantavam em casa músicas populares árabes, e Abdalla tocava alaúde. Todos os irmãos estudaram música ou se dedicaram às artes, como o caso de Dib Lutfi, um dos maiores diretores de fotografia da história do cinema brasileiro.
Aos 8 anos de idade, João Lufti foi matriculado no Conservatório Cecília, em Marília, para aprender piano, o que foi decisivo em toda sua vida. Com 17 anos, foi morar com um tio, que era proprietário de uma rádio, na cidade de São Vicente (ZYH-3, Rádio Cultura São Vicente), onde não só aprendeu tudo sobre rádio, mas também adquiriu conhecimento de música popular brasileira, que foi fundamental em sua trajetória.
Após uma temporada na Baixada Santista, mudou-se para o Rio de Janeiro, para morar com outro tio e preparar terreno para toda a família se mudar. No Rio, trabalhou na rádio Vera Cruz como locutor, depois na TV Tupi como ator.
Nesta época, foi-lhe sugerido adotar um nome artístico. Optou por Sérgio Ricardo, com o qual entrou para história da cultura brasileira. Na TV Rio, apresentou programas musicais e teve contatos com Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, o que lhe abriu as portas para um movimento musical nascente, a Bossa Nova. Como pianista, substituiu Tom Jobim na noite carioca. Tocando piano e cantando na noite, ficou conhecido no meio musical.
Em 1957, gravou seu primeiro disco (78 RPM), com as canções “Vai, Jangada”, de Newton Castro e Geraldo Serafim, e “Sou Igual a Você”, de Nazareno de Brito e Alcyr Pires.
Mas foi com “Bossa Romântica de Sérgio Ricardo”, em 1959, que demonstrou afinidades musicais com o novo estilo. O período era de grande efervescência cultural e o inquieto artista aspirava também o cinema.
A melhor maneira de seguir uma carreira coerente e multifacetada é acompanhar o próprio roteiro realizado por Sérgio Ricardo ao comemorar seus 85 anos de vida, em 2018. Foi um show com apoio do Canal Brasil, gravado em Niterói, no teatro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFF). Deste magnífico show – Cinema na música de Sérgio Ricardo – resultou um produto dirigido por Paulo Henrique Fontenelle 2019), hoje disponível na plataforma Now e nos formatos CD e DVD, lançados pela Biscoito Fino.
O show foi o último trabalho apresentado pelo artista, com a participação de seus filhos Marina Lutfi, idealizadora do projeto, Adriana Lutfi e João Gurgel. Com um time formado por maestros na percussão (Diego Zangado) e baixo (Giordano Gasperin). Contou ainda com as participações de Dori Caymmi, João Bosco, Alceu Valença e Geraldo Azevedo.
As músicas acompanham cenas dos filmes em que Sérgio Ricardo teve importante participação, como diretor – “O menino de calças brancas” (1961), “Esse mundo é meu” (1964), “Juliana do Amor Perdido” (1969)) e “A noite do espantalho” (1972) –, ou compositor – “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “Terra em Transe” (1967), os dois de Glauber Rocha.
Em depoimento a publicação em fascículos da Editora Abril, lançada nas bancas em vinil na década de 70 do século passado, volume 37, dedicado à obra de Sérgio Ricardo, o amigo de longa data, Ziraldo, assim o definiu: “Sérgio não estourou em termos de massa. Certamente jamais irá estourar. Não que sua música seja elaborada demais, sofisticada ou impenetrável; o mistério é outro. Sua honestidade consigo mesmo chega a exageros que o definem como dos seres humanos mais puros e de melhor caráter que eu já conheci em minha vida. Seu pavor à mentira, à mistificação, ao engano e à hipocrisia criaram em sua volta uma certa impenetrabilidade que é a sua forma de se defender do mundo.”
Sérgio Ricardo, um artista que viveu intensamente seu tempo histórico. Coerente em busca de uma dignidade, como o menino de calças brancas, que buscava superar os limites da pobreza sonhando e realizando. Enfrentando vaias com coragem e solidário a todos que buscaram uma cultura brasileira inteligente, diversificada e bela, mesmo que nem sempre tendo o reconhecimento que merecia, mas que a História o fará.
Referências
CONTIER, Arnaldo Daraya. “Sérgio Ricardo - Modernidade e engajamento político na canção”, in: Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Marcos Napolitano, Rodrigo Czajka, Rodrigo Patto Sá Motta (organizadores). Belo Horizonte: UFMG, 2013, pp. 339-358.
HAGMEYER, Rafael, SARAIVA, Daniel Lopes (organizadores). “Esse mundo é meu: as artes de Sérgio Ricardo”. Curitiba: Appris, 2018.
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. “A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985). Ensaio histórico”. São Paulo: Intermeios: USP – Programa de Pós-graduação em História Social, 2017.
Martin Cezar Feijó é historiador e professor titular-doutor na Facom da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).
Cineclube Vladimir Carvalho indica filmes sobre racismo e violência policial
Unidade mantida pela FAP pretende colaborar com combate ao racismo, que voltou a ser assunto de polêmica nesta semana
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O Cineclube Vladimir Carvalho, mantido pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília, continua a indicar filmes sobre racismo e violência policial, no mês de agosto. No Brasil, a luta contra esse crime foi envolvida em uma polêmica após a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz publicar um artigo de opinião na Folha de S.Paulo, criticando a cantora Beyoncé pelo novo álbum "Black is King", lançado na última sexta-feira (31).
A historiadora foi chamada de racista pelo movimento negro e nas redes sociais por dizer, no título, que Beyoncé erra ao "glamourizar a negritude" no novo álbum e "precisa entender" a fazer uma luta antirracista que não envolva "pompa" e "brilho". Depois das críticas, Lilia pediu desculpas e disse que a Folha também deveria assumir a responsabilidade por ser autora do título e do subtítulo.
Negros e negras são 56% da população brasileira, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mas são minoria em posições de liderança no mercado de trabalho e entre representantes políticos. Por outro lado, de acordo com o Atlas da Violência, são 75% das vítimas de homicídio, inclusive por parte da polícia, e compõem mais de 60% da população carcerária.
A seguir, veja sugestões de filmes sobre racismo e violência policial:
MISSISSIPI EM CHAMAS
SINOPSE:
Mississipi, 1964. Rupert Anderson (Gene Hackman) e Alan Ward (Willem Dafoe) são dois agentes do FBI que estão investigando a morte de três militantes dos direitos civis. As vítimas viviam em uma pequena cidade onde a segregação divide a população em brancos e pretos e a violência contra os negros é uma tônica constante.
Ano: 1989
Duração: 2h 08min / Drama, Suspense
Direção: Alan Parker
Elenco: Willem Dafoe, Gene Hackman, Frances McDormand
Nacionalidade: EUA
HISTÓRIAS CRUZADAS
SINOPSE:
Jackson, pequena cidade no estado do Mississipi, anos 60. Skeeter (Emma Stone) é uma garota da sociedade que retorna determinada a se tornar escritora. Ela começa a entrevistar as mulheres negras da cidade, que deixaram suas vidas para trabalhar na criação dos filhos da elite branca, da qual a própria Skeeter faz parte. Aibileen Clark (Viola Davis), a emprega da melhor amiga de Skeeter, é a primeira a conceder uma entrevista, o que desagrada a sociedade como um todo. Apesar das críticas, Skeeter e Aibileen continuam trabalhando juntas e, aos poucos, conseguem novas adesões.
Data: 2012
Duração: 2h 26min / Drama
Direção: Tate Taylor
Elenco: Emma Stone, Jessica, Chastain, Viola Davis
Nacionalidades: EUA, Índia, Emirados Árabes Unidos
O MENINO QUE DESCOBRIU O VENTO
SINOPSE:
Sempre esforçando-se para adquirir conhecimentos cada vez mais diversificados, um jovem de Malawi se cansa de assistir todos os colegas de seu vilarejo passando por dificuldades e começa a desenvolver uma inovadora turbina de vento.
Data: 2019
Duração: 1h 53min / Drama
Direção: Chiwetel Ejiofor
Elenco: Maxwell Simba, Chiwetel Ejiofor, Aïssa Maïga
Nacionalidades EUA, Malawi, França, Reino Unido
RAY
SINOPSE:
Em 1932 Ray Charles (Jamie Foxx) nasce em Albany, uma pequena e pobre cidade do estado da Georgia. Ray fica cego aos 7 anos, logo após testemunhar a morte acidental de seu irmão mais novo. Inspirado por uma dedicada mãe independente, que insiste que ele deve fazer seu próprio caminho no mundo, Ray encontrou seu dom em um teclado de piano. Fazendo um circuito através do sudeste, ele ganha reputação. Sua fama explode mundialmente quando, pioneiramente, incorpora o gospel , country e jazz, gerando um estilo inimitável. Ao revolucionar o modo como as pessoas apreciam música, ele simultaneamente luta conta a segregação racial em casas noturnas que o lançaram como artista. Mas sua vida não está marcada só por conquistas, pois sua vida pessoal e profissional é afetada ao se tornar um viciado em heroína.
Data: 2005
Durção: 2h 32min / Drama, Musical
Direção: Taylor Hackford
Elenco: Jamie Foxx, Kerry Washington, Regina King
Nacionalidade: EUA
MALCOLM X
SINOPSE:
Biografia do famoso líder afro-americano (Denzel Washington) que teve o pai, um pastor, assassinado pela Klu Klux Klan e sua mãe internada por insanidade. Ele foi um malandro de rua e enquanto esteve preso descobriu o islamismo. Malcolm faz sua conversão religiosa como um discípulo messiânico de Elijah Mohammed (Al Freeman Jr.). Ele se torna um fervoroso orador do movimento e se casa com Betty Shabazz (Angela Bassett). Malcolm X ora uma doutrina de ódio contra o homem branco até que, anos mais tarde, quando fez uma peregrinação à Meca abranda suas convicções. Foi nesta época que se converteu ao original islamismo e se tornou um "Sunni Muslim", mudando o nome para El-Hajj Malik Al-Shabazz, mas o esforço de quebrar o rígido dogma da Nação Islã teve trágicos resultados.
Data: 1993
Duração: 3h 21min / Biografia,
Drama, Histórico
Direção: Spike Lee
Elenco: Nelson Mandela, Denzel Washington, Albert Hall
Nacionalidade EUA
SELMA - UMA LUTA PELA IGUALDADE
SINOPSE:
Cinebiografia do pastor protestante e ativista social Martin Luther King, Jr (David Oyelowo), que acompanha as históricas marchas realizadas por ele e manifestantes pacifistas em 1965, entre a cidade de Selma, no interior do Alabama, até a capital do estado, Montgomery, em busca de direitos eleitorais iguais para a comunidade afro-americana.
Data: 2015
Duração: 2h 08min /
Drama, Histórico, Biografia
Direção: Ava DuVernay
Elenco: David Oyelowo, Tom Wilkinson, Carmen Ejogo
Nacionalidades Reino Unido, EUA
ÔNIBUS 174
SINOPSE:
Uma investigação cuidadosa, baseada em imagens de arquivo, entrevistas e documentos oficiais, sobre o seqüestro de um ônibus em plena zona sul do Rio de Janeiro. O incidente, que aconteceu em 12 de junho de 2000, foi filmado e transmitido ao vivo por quatro horas, paralisando o país. No filme a história do seqüestro é contada paralelamente à história de vida do seqüestrador, intercalando imagens da ocorrência policial feitas pela televisão. É revelado como um típico menino de rua carioca transforma-se em bandido e as duas narrativas dialogam, formando um discurso que transcende a ambas e mostrando ao espectador porque o Brasil é um país é tão violento.
Data: 2002
Duração: 2h 13min / Documentário
Direção: José Padilha, Felipe Lacerda
Nacionalidade Brasil
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Vladimir Carvalho: 1930 - A revolução nonagenária
Não foi uma insurreição de velhinhos como pode se supor a partir do título acima, até porque os longevos daquela época não chegavam facilmente aos noventa anos de idade como ocorre em muitos casos hoje, graças aos progressos das ciências. Trata-se mesmo é do grande movimento revolucionário que mudou, de certa forma, a fisionomia política e social do país e que, em outubro próximo, completará nove décadas. Os anos de 1920 já prenunciavam, em muitos setores da comunidade brasileira, uma vontade insopitável de mudanças e foram marcados por uma inquietação e um alarido com o fim de despertar o Brasil, o gigante adormecido pela inépcia e incúria da Primeira República, já precocemente velha.
Em cotejo com outros países estávamos estagnados. Não avançáramos no terreno das ciências, a educação era uma quimera e o analfabetismo batia no teto. A economia marcava passo no sobe e desce dos preços do café, nosso principal produto de exportação no mercado internacional, obrigando-nos a constantes queimas de divisas enfraquecendo o tesouro nacional. Nas artes, salvara-se - com ressalvas - o barulho feito pela Semana de Arte Moderna.
Seguíamos no ritmo lerdo, marcado desde muito pela oligarquia dos coronéis donos de terra, em prejuízo dos pobres e de uma classe média que, nos grandes centros urbanos, começara, porém, a dar sinais de inquietação. Os primeiros a se rebelarem contra este estado de coisas foram os militares, que vinham em desacordo com o governo de Artur Bernardes. Em julho de 1922, um grupo de tenentes dominou o Forte de Copacabana e depois de desigual, mas renhido combate, foram vencidos no episódio que ficou conhecido como Os Dezoito do Forte.
Os “tenentes” se reagrupariam em 1924 em torno de Luiz Carlos Prestes e Miguel Couto com o propósito de levantar o país, pregando a revolução, na tentativa de sublevar as populações marginalizadas pelas oligarquias e contra o governo. Encetaram heroica marcha que só terminaria em 1927, cobrindo 24 mil quilômetros de norte a sul do Brasil, a qual ficou conhecida lendariamente pelo nome de Coluna Prestes, em homenagem ao seu capitão comandante.
Seu feito seria enaltecido pelo poeta Pablo Neruda, mas, na prática e em termos revolucionários, não obteve o êxito pretendido, embora tenha permanecido como marcante estímulo político no espírito da classe média urbana. Os militares, leia-se o “tenentismo”, seguiram conspirando juntamente com as lideranças de jovens políticos dos partidos burgueses em ascensão, com forte protagonismo dos gaúchos.
No início de 1929, o presidente Washington Luís lançou a candidatura do paulista Júlio Prestes, do PRP, desrespeitando o pacto tradicional da política conhecida popularmente como “café com leite”. Era a vez dos mineiros, que entraram em reboliço. Desse tremendo mal estar resultou a criação da Aliança Liberal e o lançamento de Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda, para presidente da República, tendo como vice o presidente da Paraíba, João Pessoa. As eleições de 1º de março de 1930 deram a vitória ao candidato oficial, apesar do aparente favoritismo de Vargas.
O pleito foi vastamente acusado de fraudulento, com protestos que nada alcançaram de positivo nos tribunais. Instalou-se, então, um período de insatisfação e conspiração entre as jovens lideranças e os tenentistas, que se posicionaram, mais uma vez, a favor de uma revolução. Demorou, mas justo em 26 de julho daquele ano, ocorreu para surpresa de todos o assassinato de João Pessoa perpetrado pelo advogado João Duarte Dantas, desafeto político deste. A polícia deste varejara o escritório de Dantas, confiscando e publicando cartas íntimas por ele escritas à sua noiva, Anayde Beiriz, poeta e feminista.
O clima virou e forte comoção popular sobreveio reacendendo o estopim da oposição. Juarez Távora, membro proeminente da Coluna Prestes, fechou com os gaúchos de Vargas e junto com José Américo de Almeida – secretário de estado de João Pessoa – foi à garra levantando o Norte e o Nordeste. O féretro do presidente partiu de navio do porto de Cabedelo, fazendo paradas estratégicas, com direito a discursos em várias capitais, até chegar ao Rio de Janeiro, onde multidões o levaram ao sepultamento. O resumo da tragédia virou história com imagens retumbantes dos gaúchos amarrando seus cavalos no obelisco da Cinelândia. Seguiram-se a deposição de Washington Luís e a consequente ascensão de Getúlio à presidência. Este é, em linhas gerais, o “enredo” do meu filme O Homem de Areia, realizado há quarenta atrás.
*Vladimir Carvalho, Cineasta, escritor e Professor emérito da Universidade de Brasília
Público do Cine Drive-in de Brasília triplicou durante pandemia do coronavírus
No Brasil, os drive-ins vêm ganhando cada vez mais espaço, a maioria em caráter provisório, analisa Lilia Lustosa, na revista Política Democrática Online
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A pandemia do coronavírus Covid-19 tem ressuscitado o cinema drive-in em várias regiões do Brasil e do mundo. Em Brasília, o público triplicou depois da reabertura. “Durante a pandemia, o sucesso do drive-in já é fato”, afirma a crítica de cinema Lilia Lustosa, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de julho.
Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de julho!
Desde que as cidades começaram a entrar em quarentena, a modalidade de cinema nos carros tornou-se uma das poucas opções para os que desejavam assistir a um filme em tela grande ou de forma coletiva, conforme observa Lilia no artigo da revista. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todas as edições, gratuitamente, em seu site.
O Cine Drive-in de Brasília goza de uma situação privilegiada. Depois de quase ter sido fechado em 2014, foi declarado patrimônio cultural e material do Distrito Federal em 2017, de acordo com a lei n° 6.055, proposta pela deputada distrital Luzia de Paula. O espaço, que conta com uma tela de 312m² (a maior do Brasil), ficou fechado por 40 dias no início da pandemia, mas retomou às atividades no fim de abril, com um público cada vez maior.
Segundo a proprietária, Marta Fagundes, o público triplicou depois da reabertura, apesar das adaptações feitas para se adequar aos protocolos de segurança que a época exige: redução de 50% da capacidade (de 400 para 200 carros), distanciamento de 1,5m entre os veículos, compras dos ingressos apenas online, uso dos banheiros por uma pessoa a cada vez, uso obrigatório de máscara e fechamento da lanchonete.
No Brasil, os drive-ins vêm ganhando cada vez mais espaço, a maioria em caráter provisório, implementados por empresas de organização de eventos, muitas vezes em parceria com os próprios exibidores, que veem nesta velha fórmula uma solução temporária para sua sobrevivência.
Nos Estados Unidos, onde surgiu, mesmo durante a fase de isolamento, dos cerca de 300 drive-ins ainda em funcionamento, 25 continuaram abertos, segundo a Drive-in Theatre Owners Association. “E agora, com a retomada gradual das atividades em vários Estados, outros tantos se somaram à lista, como em vários países do mundo”, diz Lilia.
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Henrique Brandão: Os anos de 1960, nos EUA, pela lente do Harlem
Fui dormir tarde sábado. O motivo: resolvi “maratonar” a série “Godfather of Harlem”, em exibição na Fox Premium. Ontem, a Patricia Kogut ocupou o espaço de sua coluna para falar justamente dela. A série está disponível no Now, no canal da Fox Premium, e tem dez capítulos.
Não foi por acaso que a crítica de TV de O Globo dedicou generoso espaço à série. “Godfather of Harlem” (em tradução livre, “O Padrinho do Harlem”, mas, após o filme de Francis Ford Copolla, “The Godfather”, talvez seja mais apropriado traduzi-la para “O Poderoso Chefão do Harlem”), é uma série que vale cada minuto na frente da telinha (a partir de agora tem spoiler).
“Godfather of Harlem” conta a história de Bumpy Johnson que, em 1963, após sair da prisão, volta a Nova York e a seu bairro, Harlem, onde era o rei das ruas. O cenário que encontra, no entanto, é outro bem diferente de onze anos atrás. Na sua ausência, a máfia italiana invadiu seus domínios. A heroína, droga que se disseminou no período, agora dominava as ruas. Para manter seus negócios, Johnson terá que lutar contra os antigos aliados italianos.
A série é baseada em fatos reais. Bumpy Johnson (1905-1968) existiu e muitos dos personagens da série também. É o caso, por exemplo, de Malcolm X (1925-1965), seu jovem colega de crimes nas ruas do bairro. Ao sair da prisão, Bumpy encontra o amigo já convertido ao islamismo e um destacado prócer do movimento negro, agora preocupado com o trabalho social junto aos drogados e empenhado na luta pelos direitos civis. A relação entre eles é contraditória, mas fraternal, e perpassa toda a série.
Como todo bom filme de “gangster”, o conflito na disputa por espaços no submundo do crime, que envolve tráfico, apostas e prostituição é o elemento principal da trama. Não tem mocinho. Bumpy, apesar de paternalista com os parceiros e moradores, quando necessário é brutal, assim como seus rivais. A diferença é que ele está em seu habitat natural, o Harlem, bairro ao norte de Manhattan, majoritariamente habitado por negros. Viveu, desde sempre, a desigualdade social, o racismo e a violência. Diante do cenário, conseguiu sobreviver e se impor, adotando o método dos adversários.
O contexto dos anos de 1960, com a explosão do movimento dos direitos civis, é o pano de fundo da trama. Além de Malcolm X, outros personagens reais são importantes na história, como Adam Clayton Power Jr. (1908-1972), um pastor batista que foi o primeiro descendente afro-americano a ser eleito para a Câmara Federal em NY (de 1945 a 1971, pelo Partido Democrata).
Além dos personagens baseados em pessoas reais, o uso do noticiário transmitido pela TV, aparelho que era relativamente recente nos lares e bares dos EUA naquele período, é um recurso que situa, a todo momento, a narrativa dentro do tempo histórico.
Está tudo lá. Até Cassius Clay (1942-2016), o jovem boxeador em luta pelo cinturão dos pesos-pesados que, por conta de sua conversão ao islamismo, mudaria depois o nome para Mohamed Ali. Suas conversas com Malcolm X são definidoras de sua trajetória e a interferência de Bumpy Johnson, blindando-o das pressões da máfia italiana, fundamental para garantir o título. Está lá também o teatro Apolo, ícone do Harlem, palco de shows de figuras importantes da música negra norte-americana daquele momento, como James Brown.
É interessante observar as nuances das posições políticas dos envolvidos na luta pelos direitos civis em relação à Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, gigantesca manifestação que tomou conta da capital norte-americana em 28 de agosto de 1963. Cada qual com seus motivos, tanto Malcolm X como Adam Clayton têm ressalvas ao papel de liderança exercido por Martin Luther King (um dos organizadores da Marcha, John Brown, à época um jovem de 25 anos, acabou de falecer no EUA, vítima de câncer, aos 80 anos).
A série assume explicitamente a tese de que a máfia é a responsável pelo assassinato de John Kennedy. Ao ver a cena pela TV do assassinado de Lee Oswald, executado dentro de uma delegacia, na frente de jornalistas e de vários policiais, que nada fazem para impedir o crime, Bumpy Johnson comenta que é evidente a participação da polícia, infiltrada até a alma pela máfia, na queima do arquivo.
Na sequência, Bumpy Johnson explica aos comparsas a ligação da máfia com os Kennedy, que começa pelo pai do presidente eleito, que enriqueceu como contrabandista. O pivô do rompimento da aliança entre os Kennedy e a máfia, que apoiou John na eleição, foi a atuação de seu irmão Bobby no cargo de Procurador Geral dos EUA (este depois também seria assassinado pela “Cosa Nostra” em plena campanha eleitoral para presidente).
Fora o imbricamento com os fatos reais, que acrescenta verossimilhança à narrativa, salta aos olhos o evidente capricho da produção, com uma reconstituição de época primorosa.
O elenco é cheio de feras. A começar por Forest Whitaker, no papel de Bumpy, como sempre dando show. Giancarlo Esposito dá vivacidade ao deputado Adam Clayton e Nigél Tatch, brilha na pele do Malcolm X (a semelhança física é impressionante). Vicente D’Onofrio se destaca na composição de um mafioso italiano rude e violento (Vicent Gigante). Paul Sorvino encarna o chefe da “Cosa Nostra”, Frank Costello. Chamam atenção também a bela Ifenesh Hadera, como Mayme Johnson, esposa de Bumpy, e Antoinette Crowe-Legacy, a filha do mandachuva do Harlem viciada em heroína.
Patricia Kogut indica duas outras séries para quem estiver interessado em saber mais daquela época efervescente dos EUA: “Bob Kennedy president” e “Quem matou Malcolm X”. Este último, seis episódios que desvendam os meandros da política do movimento negro islamita norte-americano, com todas as suas idiossincrasias. Elas realmente acrescentam informações relevantes. Juntaria a esta lista o último filme de Spike Lee.
O fim dos dez capítulos deixa claro que haverá uma continuação. A primeira temporada acaba com o presidente Kennedy assassinado e Malcolm X sendo punido pela organização muçulmana à qual pertence, Nação do Islã. No entanto, nos EUA dos anos de 1960, muita coisa ainda viria a acontecer, principalmente em se tratando do movimento pelos direitos civis. Se for tão boa quanto a temporada de estreia, a continuação, promete.
Não perca!!!
Racismo: Cineclube Vladimir Carvalho indica filmes para ver após manifestações
No Brasil, negros representam mais da metade da população e maioria dos mortos pela polícia
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Após mobilizações contra o racismo, como a do grupo Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), tomarem conta do mundo, o Cineclube Vladimir Carvalho indica neste mês de junho filmes sobre o assunto para reforçar a luta contra esse tipo de crime. No total, no Brasil, negros são 56% da população e 75% dos mortos por policiais. Nos Estados Unidos, representam 13% das pessoas e 24% das vítimas assassinadas pela polícia.
Mantido pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em cima da Biblioteca Salomão Malina, em Brasília, o Cineclube Vladimir Carvalho está com as atividades presenciais suspensas desde o início da pandemia do coronavírus. A seguir, veja as sugestões:
1 - A Última Abolição
Uma retrospectiva detalhada de um momento emblemático da história do Brasil, a abolição da escravidão, apresentado de uma outra perspectiva. Ao contrário do que foi pregado por livros didáticos e outras vertentes da história oficial por muito tempo, não foi meramente a assinatura da Princesa Isabel na Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, que libertou os escravos, e tampouco tal liberdade foi um presente ou um passo na direção da mitológica democracia racial.
Durção: 1h 22min / Documentário
Direção: Alice Gomes
Nacionalidade Brasil
2 – 12 Anos de Escravidão
Não recomendado para menores de 14 anos
1841. Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) é um escravo liberto, que vive em paz ao lado da esposa e filhos. Um dia, após aceitar um trabalho que o leva a outra cidade, ele é sequestrado e acorrentado. Vendido como se fosse um escravo, Solomon precisa superar humilhações físicas e emocionais para sobreviver. Ao longo de doze anos, ele passa por dois senhores, Ford (Benedict Cumberbatch) e Edwin Epps (Michael Fassbender), que, cada um à sua maneira, exploram seus serviços.
Duração: 2h 13min / Drama, Histórico
Direção: Steve McQueen (II)
Elenco: Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch
Nacionalidade: EUA
3 - Cafundó
João de Camargo (Lázaro Ramos) viveu nas senzalas em pleno século XIX. Após deixar de ser escravo, ele fica deslumbrado com o mundo em transformação ao seu redor e desesperado para viver nele. O choque é tanto que faz com que João tenha alucinações, acreditando ser capaz de ver Deus. Misturando suas raízes negras com a glória da civilização judaico-cristã, João passa a acreditar que seja capaz de curar e realmente acaba curando. Ele torna-se então uma das lendas brasileiras, popularizando-se como o Preto Velho.
Direuração: 1h 42min / Drama
Direção: Paulo Betti, Clovis Bueno
Elenco: Paulo Betti, Leona Cavalli, Lázaro Ramos
Nacionalidade: Brasil
RPD || Lilia Lustosa: Eu, historiadora de cinema branca
Lilia Lustosa, em seu artigo, questiona como podemos mudar a situação de racismo que contamina a indústria cinematográfica do Brasil e do mundo
No mês passado, depois de entregar o artigo aqui para a Revista, ficou mais ou menos acertado que o próximo tema abordado seria o retorno dos Drive-ins, tendo ficado de fora do meu texto anterior, por não conseguir me manter dentro dos limites dos caracteres estipulados. Acabou sendo um bom acidente de percurso, porque, logo depois, impactada pelas notícias da morte do adolescente João Pedro por uma bala perdida no Complexo do Salgueiro e as imagens do sufocamento de George Floyd em Mineápolis, me veio um pensamento à cabeça: e se eu acordasse negra? Encararia a vida da mesma maneira? Teria a mesma segurança para desbravar territórios desconhecidos como venho fazendo nesses últimos doze anos em que vivo fora da minha terra? Teria entrado neste prédio, em pleno coração da branca Recoleta, em Buenos Aires, com a mesma cabeça erguida com que entrei? E do alto do privilégio da minha branquitude, minha resposta, imediata e honesta, foi não.
Recordei as imagens que havia visto dias antes no documentário Minha História (2020), de Nadia Hallgreen, sobre a turnê de Michelle Obama pelos EUA, para o lançamento de seu livro homônimo. Lembro de ter ficado arrepiada ao ver aquela mulher negra lotando estádios nos Estados Unidos de Trump, oferecendo inspiração e esperança a tantas pessoas daquele país. Fiquei, então, imaginando todas as dificuldades enfrentadas para chegar àquele palco. Será que Michelle sempre entrava nos prédios de cabeça erguida? Sentia-se inferior ou invisível aos olhos de alguém? Mas a ex-primeira dama, que já sentou em tantas mesas importantes (palácios, castelos, salas de aula de Princeton e Harvard), afirmou nunca se ter sentido invisível. A razão, segundo ela, teria sido a liberdade que vivenciou naquela mesa simples da sua sala de jantar, no sul de Chicago. Um lugar onde aprendeu o valor de sua voz e se muniu de forças para enfrentar a batalha que a vida lhe iria exigir. Um exemplo extraordinário para tantas meninas negras que se veem ali representadas, mas que não necessariamente têm a mesma sorte. Ao mesmo tempo, uma prova de que a invisibilidade é algo construído. E que, por isso mesmo, também pode ser desconstruído.
O tema foi me inquietando cada vez mais, e o webinar “Imaginários para um audiovisual antirracista”, organizado pelo SPCine, no fim de maio, deixou ainda mais claro o papel que nós, brancos, podemos e devemos ter. Naquele palco virtual, “frente à frente”, para um debate mais que urgente, estavam duas cineastas negras – Renata Martins (Aquém das Nuvens, 2010; Sem Asas, 2019) e Day Rodrigues (Mulheres Negras, 2016) –, e duas cineastas brancas – Laís Bodanzky (Bicho de Sete Cabeças, 2000; Como Nossos Pais, 2017) e Petra Costa (Helena, 2012; Democracia em Vertigem, 2019). A branquitude foi colocada contra a parede. Eu fui colocada contra parede! Muitos nomes de negros que atuam no universo cinematográfico brasileiro foram citados. Mas quantos conhecemos? Quantos nomes podemos citar de cabeça? E de mulheres negras então? Só para se ter uma ideia, segundo a ANCINE, dos 142 longas lançados, em 2018, somente 19,7% foram dirigidos por mulheres, e desses, nenhum teve qualquer negra na direção, nem no roteiro. E o que nós, brancos, temos feito para mudar essa situação de racismo que contamina a indústria cinematográfica do Brasil e do mundo?
Laís Bodanzky, que hoje ocupa a presidência do SPCine, falou da política afirmativa que a instituição vem adotando nos últimos anos, que dá pontos extras aos projetos que trazem pessoas negras em suas equipes. Ou seja, na corrida por um financiamento de produção audiovisual, sai na frente quem contar com talentos negros em seu time. Mas quantas são as instituições que adotam esse tipo de política? Quantos não são os que viram a cara para o sistema de cotas?
Laís chegou a acender uma luz de esperança dentro de mim, mas eis que as imagens da morte do menino Miguel, de 5 anos, deixado aos cuidados da patroa, enquanto sua mãe passeava os cachorros da família branca, relembrou-me que ainda estava muito longe o dia em que poderíamos falar de igualdade neste país. Senti-me sufocada, impotente, apequenada… E entendi o que a negritude chama de “genocídio da população negra”. Não é exagero. É fato. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. E o que nós, branquitude brasileira, temos feito para mudar esta situação? Como eu - historiadora de cinema branca - posso contribuir para virar esse jogo?
Day Rodrigues me deu a pista, ao afirmar que “pesquisa é política”. Ela tem razão. É preciso, então, redefinir nossos temas de estudo, incluir personalidades negras no currículo básico das escolas e universidades brasileiras, já que aquelas foram apagadas de nossos livros de história. É preciso falar de Adélia Sampaio, primeira cineasta negra a dirigir um longa-metragem. É preciso assistir a filmes feitos e escritos por negros. É preciso conhecer Viviane Ferreira (O dia de Jerusa, 2019), Camila de Moraes (Caso do Homem Errado, 2019), Jeferson De (Bróder, 2010), Ava DuVernay (Selma, 2014; A 13a Emenda, 2016; Olhos que condenam, 2019), Ryan Coogler (Fruitvale Station, 2013; Pantera Negra, 2018) e tantos outros. É preciso contratar profissionais negros. É preciso seguir pessoas negras no Instagram, divulgar o que elas fazem, ler os livros que elas escrevem. Tudo o que, até outro dia, me soava como um exagero… Finalmente, entendi que, ao trazer pessoas negras para a cena, estamos viabilizando a criação de um círculo virtuoso, quiçá capaz de se converter em ferramenta de desconstrução da invisibilidade da negritude.
A minissérie “Hollywood”, atualmente em cartaz na Netflix, que conta com produtores e diretores negros, permite-nos, de alguma maneira, sonhar com essa mudança. Ambientada no período pós II Guerra Mundial e baseando-se em alguns fatos e personagens reais – Hattie MacDaniel, Rock Hudson, Vivien Leigh, Scotty Bowers, Henry Willson, Anna May Wong –, o que vemos ali é um grande estúdio, sendo comandado por uma mulher branca, ousada o suficiente para aceitar o desafio de lançar um filme cujo roteirista é negro e homossexual, o diretor é filipino-americano, e a atriz principal, negra. Ao apresentar esse twist na realidade da época de ouro da meca do cinema, “Hollywood” lança a possibilidade de um outro curso para a história. E se tivéssemos tomado esse caminho, teríamos hoje mais igualdade na indústria cinematográfica?
Talvez. Mas como, por enquanto, isso não passa de ficção, resta-nos pensar sobre o que é possível ser feito hoje. Assim, ao invés de decorrer sobre o retorno dos Drive-ins, decidi usar este meu lugar de privilégio, para convidá-los a refletir sobre o racismo estrutural que, mais do que qualquer corona vírus, contagia nossa sociedade há séculos. Uma pandemia para a qual nunca se criaram vacinas, nem remédios, o único caminho sendo a conscientização e a reeducação da nossa gente. E o primeiro passo, reconhecer o racismo que habita cada um de nós.
*Lilia Lustosa é crítica de cinema
RPD || Lilia Lustosa: A morte do cinema. De novo?
Novas tecnologias, como o som, cores, a televisão, o VHS e a tecnologia digital transformaram o cinema desde o seu nascimento, em 1895. Hoje, em tempos de pandemia e na era do streaming, a disputa entre a telona e a telinha ganhou novos contornos, tons e sonoplastias, analisa Lilia Lustosa em seu artigo
Desde o nascimento do cinema, em 1895, vários foram os momentos em que sua existência foi colocada em questionamento. A chegada do som, em 1927, foi um dos mais marcantes. Salas de cinema tiveram que ser adaptadas, e sets de filmagem, reconfigurados, já que a exigência da proximidade dos ainda não tão potentes microfones acabava por limitar o movimento dos atores. O resultado foi uma espécie de retrocesso na mise-en-scène dos filmes até que toda a indústria pudesse estar adaptada à novidade. E muitos foram os cineastas que se opuseram à mudança, defendendo que a fala acabaria com a aura da nova arte. Charles Chaplin fazia parte desse time, resistindo a não mais poder à incorporação do som, rendendo-se, finalmente, em 1940, ao lançar seu corajoso O Grande Ditador.
A chegada da televisão, do VHS e, mais recentemente, da tecnologia digital foram outros momentos de grandes medos e transformações, em que mais uma vez se questionou a sobrevivência do cinema. Técnicos tiveram que aprender a manejar novas câmeras e novos softwares de edição; cineastas tiveram que apurar o olhar à nova imagem, agora com menos textura e mais artificialidade; atores tiveram que aprender a contracenar com fundos verdes ou azuis, a usarem fios grudados em seus corpos; e as salas de projeção tiveram mais uma vez que ser adaptadas para receber as novas máquinas. Até hoje, ainda há diretores que se recusam a filmar em digital, apegando-se à pureza da imagem analógica, ao granulado e à nostalgia de sua composição. Tarantino é um deles! Além de filmar exclusivamente em película, comprou até o pequeno New Beverly Cinema, em Los Angeles, só para garantir a preservação do cinema à moda antiga.
Estamos agora na era do streaming, e a existência da sétima arte como concebida naquele longínquo 1895 parece mais ameaçada do que nunca. A disputa entre telona e telinha, que já andava acirrada nos últimos tempos, ganhou novos contornos, tons e sonoplastias... E não foi pela chegada de uma nova tecnologia, não! A ameaça agora vem de um vírus que pegou a todos de surpresa, atingindo de uma só vez o corpo e a alma do cinema, contaminando toda a cadeia cinematográfica. De repente, não mais que de repente, criadores e espectadores tiveram seus movimentos engessados. A pandemia da Covid-19 fechou salas, interrompeu filmagens, adiou lançamentos e fez com que milhões de profissionais perdessem seus empregos. As ações das grandes produtoras despencaram, e a maioria dos exibidores e das pequenas produtoras está decretando falência. E o pior, tudo isso ainda sem solução no curto prazo, já que teatros, cinemas e shows estão entre as últimas atividades a serem retomadas, em função de suas naturezas aglomerativas.
Em meio a esta crise sem precedentes na história do cinema, as empresas de plataformas de streaming saem como as grandes (e talvez únicas) beneficiadas, com suas ações atingindo índices altíssimos e com o número de clientes aumentando a uma velocidade “de contágio” maior que a do próprio coronavírus. Um a zero para a telinha nesta fase da era do streaming! E, sem querer tomar partido nessa disputa, a meu ver, incongruente, a sobrevivência da sétima arte parece estar assim ao menos assegurada, já que assistir a filmes se tornou um dos grandes antídotos para sobreviver à dura realidade do confinamento. Nunca se assistiu a tantos filmes e séries como agora!
Seria, então, o “algoz” da sétima arte – segundo alguns puristas – hoje seu salvador? Será esse o futuro do cinema? O da telinha? A chance é grande, até porque nada pode nos garantir que esta pandemia seja a última do século. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood já até alterou seu regulamento a fim de permitir que filmes lançados e exibidos apenas na Internet possam concorrer ao Oscar em 2021, encerrando briga recorrente nos últimos anos. E, apesar de a maior parte dos grandes estúdios ainda se recusar a lançar seus blockbusters diretamente pelas plataformas digitais, lançamentos como o de Trolls 2, da Dreamworks/Universal Pictures, feito diretamente em VOD (video on demand), demonstraram ter seu valor. Cada visualização, a 19,99 dólares, rendeu cerca de 100 milhões em alguns dias “em cartaz”. Nada mal para um lançamento sem salas de cinema!
O fato é que, depois que as quarentenas forem levantadas, a experiência de ir ao cinema não será mais a mesma. Mudanças terão que ocorrer para que os espectadores possam se sentir seguros para voltar às telonas. Nos Estados Unidos, alguns Estados começam a dar os primeiros passos nessa direção. O Texas já autorizou a reabertura de salas, desde que com apenas 25% de ocupação. Massachusetts, que anda também ensaiando a reabertura, anunciou as mudanças que devem ocorrer: fileiras e cadeiras serão retiradas para que haja pelo menos 1,5m de distância entre os espectadores; as compras de ingressos serão feitas exclusivamente online, com impressão do bilhete feita em casa pelo espectador ou apresentação no formato digital (celular); álcool em gel estará disponível em vários pontos das salas, que, por sua vez, contarão com mais portas de saída.
Diante do novo cenário, é impossível não prever aumento no preço dos ingressos, o que fará com que a ida ao cinema seja cada vez mais um programa de elite. Mais pontos para a telinha?
Outro problema que se impõe quando da reabertura das salas é o dos conteúdos a serem exibidos. Quer dizer, com as produções todas em pausa por tantos meses, a que filmes iremos assistir? Em um primeiro momento, o mais provável é que entre em cartaz a leva represada de blockbusters – Viúva Negra, Mulan, Tenet, 007 etc. – que tiveram seus lançamentos adiados por medo de não conseguirem recuperar o montante estratosférico de dinheiro investido, caso tivessem optado pelo lançamento digital.
Em seguida, tendem a ganhar força as produções mais baratas, que exijam equipes pequenas, menos equipamentos e mais agilidade na conclusão dos projetos. Documentários também devem ter seu destaque, porque, em geral, cabem dentro de um orçamento mais modesto e podem ser montados com imagens de arquivos, entrevistas e, consequentemente, menos contatos humanos envolvidos. Quem sabe, agora, pequenas produtoras e coletivos de cinema ganhem mais espaço. Quem sabe consigam finalmente ter seus filmes devidamente distribuídos nas novas salas carentes de conteúdos. Estaríamos diante de um “neo Neo-realismo” ou de um “novo Cinema Novo” ?
Independentemente do que esteja por vir, neste cenário pós-pandemia, o Estado terá papel decisivo na retomada da atividade cinematográfica. No caso do Brasil, então, então, com uma indústria bem menos consolidada do que a americana, tendo tido também vários lançamentos adiados (A Menina que matou os pais, Três Verões, A Febre etc.) e produções interrompidas, a Ancine pode (e deve) ser a grande ferramenta de reconstrução do cinema nacional, ampliando as linhas de financiamento às pequenas e médias produções, criando linha de crédito para que os exibidores possam reabrir suas salas e incentivando as grandes empresas a investirem em cinema em troca de incentivos fiscais. Coisa que já acontecia, claro, mas que esteve ameaçada nos últimos tempos e que agora não pode falhar nem faltar. Obviamente, essas ações não vão impedir que a indústria cinematográfica entre em uma crise profunda, mas, além de aliviar o tamanho da queda, servem para dar-nos esperança e tempo para repensar o formato do cinema nestes novos tempos pandêmicos.
A pergunta que fica martelando é: quando tudo isso passar e o corona vírus já tiver virado História, voltaremos às salas de cinema como antes? Ou estaremos já tão acostumados à tela pequena que não nos daremos mais ao trabalho de sair de casa em prol da experiência coletiva da sala escura e da tela grande? Teremos aprendido a dar mais valor a produções mais artísticas, menos cheias de efeitos especiais? E os blockbusters, com seus budgets exorbitantes e suas equipes gigantescas, tornar-se-ão coisa do passado, símbolos de uma época sem riscos de contaminação?
Sobram perguntas e escasseiam respostas. Mas, nestes tempos de incertezas, angústias e questionamentos, uma única coisa parece certa: o cinema não vai morrer. Não vai ser desta vez…
*Lilia Lustosa é doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).
Lilia Lustosa lista filmes sobre universo das pandemias, como a do coronavírus
Em seu artigo, Lilia Lustosa cita filmes como Contágio (2011), do premiadíssimo Steven Soderbergh; Epidemia (1995), de Wolfgang Petersen; A Gripe (2013), do coreano Sung-Su Kim; 93 dias (2016), do nigeriano Steve Gukas; e a série documental Pandemia, produzida recentemente pela Netflix
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A ficção invadiu a realidade com Covid-19 e as plataformas de streaming ganharam destaque por sua utilidade para a humanidade em crise, dando uma trégua à guerra entre a telinha e a telona, avalia crítica de cinema Lilia Lustosa.
Em artigo que produziu para a nova edição da revista Política Democrática Online, ela cita e analisas algumas obras cinematográficas sobre pandemias que tomaram conta de países no mundo. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados de graça no site da entidade.
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A crítica de cinema cita filmes como Contágio (2011), do premiadíssimo Steven Soderbergh; Epidemia (1995), de Wolfgang Petersen; A Gripe (2013), do coreano Sung-Su Kim; 93 dias (2016), do nigeriano Steve Gukas; e a série documental Pandemia, produzida recentemente pela Netflix. “A ideia sendo comparar aquelas ficções à nossa real-ficção. Algo que fascina e traz medo ao mesmo tempo. Medo de ficar ainda mais neurótica. Medo de achar que toda tosse é coronavírus. Medo de perder um ente querido. Medo de enxergar todo o sofrimento do mundo, já sem nenhuma tela de proteção”, escreve.
Em seu artigo publicado na revista Política Democrática Online, Lilian diz que Contágio, filme americano com grande elenco (Matt Demon, Kate Winslet, Gwyneth Paltrow, Jude Law e Marion Cotillard), opta por destacar o papel das redes sociais como divulgadoras de informações sonegadas à população pelos meios oficiais. “Ao mesmo tempo, mostra-as também como difusoras de informações ainda não confirmadas, as famosas fake news”, diz, para continuar: “Na nossa real-ficção de hoje, o canal brasileiro de Youtube Spotniks, entre outros, faz o papel do teórico da conspiração interpretado por Jude Law, tendo disponibilizado recentemente o impactante Timeline Covid-19, reportagem sobre a evolução da pandemia no mundo, desde seu provável início até 31 de março”.
Com relação à estética, de acordo com Lilian, o coreano A Gripe destoa um pouco de 93 Dias, “Epidemia e Contágio pelo paroxismo de sua mise-en-scène, que mostra, por meio de uma câmera nervosa e de uma iluminação sombria, imagens grotescas de sangue jorrando, cadáveres sendo empilhados e corpos infectados, incinerados ainda vivos como medida de contenção do vírus”, afirma.
É, segundo a crítica de cinema, uma narrativa um tanto quanto inverossímil, que leva ao extremo o dilema trabalhado também em Epidemia: exterminar a população de uma única cidade versus deixar contagiar a população de todo um país. “Produção americana com elenco de peso (Dustin Hoffman, Morgan Freeman, Kevin Spacey, Rene Russo e Cuba Gooding Jr.) que sugere, ainda, a possibilidade de uma eventual guerra biológica, revelando a descoberta de um vírus letal por parte dos militares dos EUA, informação guardada a sete chaves pelo governo daquele país”, analisa.
De acordo com a autora, nenhuma ficção supera a angústia propiciada pela realidade. “Ao contrastar ficção e mundo real, porém, podemos acreditar, talvez como o Cândido, de Voltaire, que os líderes mundiais – ao menos, quase todos – estão tomando atitudes importantes e sensatas para resolver a maior crise que nossa geração já viu”, acentua. “E mesmo que algumas informações nos estejam sendo omitidas, bem ou mal, ações estão sendo tomadas a fim de frear a pandemia. E isso já é um alento, permitindo-nos vislumbrar os créditos no final do filme”, continua.
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Henrique Brandão: 1917 - O plano-sequência como protagonista
É difícil falar hoje em dia de cinema, dado que o grande thriller atual no Brasil é a postura irresponsável do presidente na condução da quarentena – quase um filme de terror – e, também, a sua conduta política, cada vez mais radical e estreita, sempre em direção à direita, deixando a nu suas reais intenções políticas e os interesses pessoais por trás dos movimentos que faz. Muitos fãs que apostaram neste roteiro macabro já se decepcionaram e pedem a devolução dos ingressos, alguns até com manifestação de apupos pelas janelas de suas casas. Outros, que nunca gostaram do canastrão escalado para o papel principal e tampouco dos atores coadjuvantes, seguem torcendo o nariz para esta chanchada que deixaria os geniais Oscarito e Grande Otelo envergonhados, tal a tacanhice das ideias expostas. Os próximos dias serão de grande suspense.
O que estamos assistindo não é um filme, mas uma sucessão de episódios cujo desdobramentos são ainda imprevisíveis na vida real. Já na telinha nossa de cada dia a que estamos sujeitos por conta da pandemia, é possível assistir filmes – e séries – melhores do que a conjuntura nos tem reservado.
Uma boa dica que estreou esta semana no Now é “1917”, filme que concorreu ao Oscar de 2020. Indicado em 10 categorias, acabou levando três estatuetas, sendo a mais importante delas a de fotografia – realmente exuberante – conferida a Roger Deakins, um veterano de indicações.
O filme tem um tênue fio condutor, apesar de ter concorrido à categoria de roteiro original. Dois soldados na Primeira Guerra Mundial (1914-18), recebem ordens de um general para entregar uma carta a um coronel que se encontra no front, avisando que aborte um ataque aos alemães, pois o aparente silêncio dos germânicos trata-se na verdade de uma emboscada.
A Primeira Guerra teve enormes baixas: 17 milhões de pessoas morreram no conflito. Os soldados muitas vezes passavam meses entrincheirados, em condições insalubres, e avançavam muito pouco em suas posições. É neste cenário que começa a, digamos assim, “corrida de obstáculos” dos jovens combatentes por entre as trincheiras da Tríplice Entente no norte da França.
Assim como os protagonistas de posse da carta saem em disparada serpenteando os tuneis repletos de soldados, a câmera que os acompanha na ação também não para: registra as imagens como se ela em si fosse um terceiro mensageiro, enfrentando lado a lado as peripécias e surpresas que a dupla encontra pelo caminho. Este é o grande diferencial do filme, realizado como um único plano sequência, mas também seu calcanhar de Aquiles. A “mise-em-scène” é excelente: centenas de figurantes são estrategicamente posicionados por onde a câmera passa, numa encenação naturalista de poucos diálogos e muita ação que mobiliza uma estrutura enorme para que tudo aconteça conforme a história avança. Deste ponto de vista, irrepreensível.
Nos dias de hoje não precisa ter frequentado escola de comunicação para saber que cinema é imagem em movimento. Todo mundo sabe, mesmo que não formule teoricamente, já que nosso código de mensagens é cada vez mais audiovisual. Cinema é linguagem.
No início do cinema não era a câmera que se movimentava, mas o personagem. Buster Keaton, com suas alucinadas correrias e Chaplin, na figura de Carlitos, o adorável vagabundo que vive fugindo da polícia, sempre derrapando ao dobrar uma esquina, são exemplos clássicos.
O desenvolvimento tecnológico permitiu trilhos que evitavam a trepidação durante os movimentos e câmeras mais leves possíveis de serem carregadas e que dispensavam o uso do tripé. O cinema ganhou mais dinâmica: os “travellings” e a câmera na mão passaram a fazer parte da linguagem. Mais recentemente, o trilho foi ficando para trás com o advento do “steadicam”, um estabilizador de câmera inventado em 1974, em que o fotógrafo entra dentro de uma estrutura de contrapesos que estabiliza a imagem. Hoje, tudo ficou mais leve e portátil.
O primeiro filme comercial a usar o “steadicam” como linguagem creio que foi ‘O Iluminado”, de Stanley Kubrick, baseado em obra de Setphen King, com seus “travellings” aterrorizantes pelos enormes corredores de um gigantesco hotel vazio no inverno, enquanto o personagem de Jack Nicholson enlouquece.
Planos-sequências são algo comum no cinema. São vários os exemplos. Talvez o mais famoso seja o de abertura de “A Marca da Maldade” (1958), de Orson Welles, uma obra-prima. Hitchcock filmou “Festim Diabólico” sem cortes, em planos-sequências até onde os chassis dos negativos permitiam. Filmou em ambiente fechado, o que facilita o ensaio dos atores.
A novidade de “1917” é realizar um filme inteiro quase que em locação ao ar livre, com centenas de figurantes. Algumas sequências ocorrem somente entre os dois soldados, ou nos tuneis das trincheiras ou em uma fazenda francesa. É uma façanha. E retrata muito bem, com direção de arte impecável, as condições terríveis da “guerra de posição”, como ficou conhecida a tática empregada do avanço lento e progressivo das posições estratégicas na Primeira Guerra.
O problema pela ousadia do uso do plano-sequência do início ao fim do filme é que ele, por privilegiar o meio ambiente em que a ação se desenvolve, acaba por distanciar o espectador da emoção do personagem. Ele sobrevive a tiros, bombas, granadas, explosões, cadáveres em profusão, corpos em putrefação, incêndios, ratos famintos, amigos mortos, civis em condições degradantes, sodados mutilados. Apesar do cenário tétrico que a Primeira Guerra engendrou, a sensação de dever cumprido ao final do filme, quando o personagem consegue afinal descansar, se sobrepõe aos horrores da carnificina que vivenciou. Seu esgotamento psicológico é imenso, mas tem pouco espaço. Sua “corrida de obstáculos” terminou.
Tecnicamente o filme é incontestável. A direção das cenas que envolvem centenas de pessoas, sua coordenação de movimentos, merece aplausos. Só por isso o filme merece ser visto. Uma aula de como o cinema avança impulsionado pelos avanços tecnológicos, superando marcos referencias e permitindo o desenvolvimento da linguagem.
Recomendo.
2020 começa bem para cinema brasileiro, diz Lilia Lustosa à Política Democrática Online
Crítica de cinema analisa, em artigo na revista da FAP, obras cinematográficas de grande destaque
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O ano de 2020 começou bem para o cinema brasileiro. A afirmação é da crítica Lilia Lustosa, em artigo publicado na 17ª edição da revista Política Democrática Online. “Primeiro foi a indicação do Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, ao Oscar de melhor documentário. Em seguida, foi a vez de Meu Nome é Bagdá (2020), de Caru Alves de Souza, levar o Grande Prêmio do Júri Internacional na Mostra Generation do Festival de Berlim, dedicada a produções sobre a juventude”, escreveu ela na publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).
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De acordo com Lilia, Berlinale, o mais politizado dos grandes eventos internacionais de cinema, esteve bem verde e amarela neste ano. A autora observa que o júri, que teve Kleber Mendonça Filho como membro, teve de avaliar o recorde de 19 filmes brasileiros (algumas coproduções) competindo em diversas categorias, incluindo a principal (Urso de Ouro) com Todos os Mortos (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra, que integram o coletivo paulista Filmes do Caixote. “Sinais do prestígio e do excelente nível que nossa cinematografia atingiu”, escreve a crítica de cinema.
Desde 1898, quando Afonso Segreto registrou as primeiras cenas brasileiras a bordo do navio Brésil, até os dias de hoje, o caminho não tem sido fácil. “Problemas de falta de regulamentação e de orçamentos escassos, somados à dificuldade para inserir filmes no circuito comercial, vêm desde sempre obstruindo as veredas de nossa cinematografia”, lamenta Lilia.
Apesar disso, segundo a autora do artigo publicado na revista Política Democrática Online, pode-se dizer sem medo que a qualidade do cinema brasileiro melhora a cada ano. Desde os anos 1930, de acordo com ela, o país produz obras belíssimas, como o Limite (1931), de Mário Peixoto, pouco conhecido entre nós, apesar de ter sido eleito pela Associação de Críticos Brasileiros como o maior filme nacional de todos os tempos. Ou ainda Ganga Bruta (1933), de Humberto Mauro, que impressionou tanto o historiador de cinema francês Georges Sadoul, que este tratou logo de incluí-lo entre os maiores cineastas do mundo.
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RPD || Lilia Lustosa: Ficção sem tela
A ficção invadiu a realidade com Covid-19 e as plataformas de streaming ganharam destaque por sua utilidade para a humanidade em crise, dando uma trégua à guerra entre a telinha e a telona, avalia Lilia Lustosa
Sempre fui grande fã de ficção científica e de distopias. Os livros que mais me marcaram na adolescência foram Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. Adulta, descobri Saramago e me encantei por seu Ensaio sobre a Cegueira, depois transformado em filme por Fernando Meirelles. Adaptação, aliás, que levou o escritor português às lágrimas quando de seu lançamento. No cinema, me marcaram Metrópolis (1927), de Fritz Lang, e Blade Runner (1982), de Ridley Scott. A verdade é que cenários distópicos sempre me fascinaram, não sei muito bem por que… Acho que imaginar como nós, seres humanos, agiríamos em situações extremas sempre desafiou minha mente. Ficava pensando em que soluções encontraríamos para superar obstáculos e restrições impostas, quão criativos seríamos para encontrar novas formas de viver. Mas eis que, de repente, a ficção invadiu a realidade e, agora, somos nós, os personagens daquelas ficções que tanto me encantavam. Hoje, a tela que nos separava daqueles universos fantasiosos já não existe mais. E, como meros personagens desta narrativa catastrófica, não temos quase nenhum poder de edição, a não ser seguir o script, trancafiados em nossas casas até a curva da pandemia “achatar”.
Diante deste cenário orwelliano, nunca as plataformas de streaming puderam ser tão úteis a nossa humanidade em crise, dando uma trégua à guerra entre a telinha e a telona. Estamos todos impedidos de ir ao cinema. Bem como ao teatro, ao estádio de futebol, ao churrasco com os amigos e por aí vai. Nesta hora, a sobrevivência da sétima arte parece ter como grandes aliadas as Netflix, Amazon Prime e Google Play da vida. O mundo para, mas a sétima arte continua viva! E mais: pode ser um grande remédio, ajudando a passar o tempo, divertindo, ensinando, distraindo, fazendo refletir, rir e chorar, mas podendo, também, ampliar nossos medos e angústias.
Talvez por essa razão, boa parte dos espectadores tem dado preferência atualmente a comédias leves ou aos chamados feel good movies. Algo capaz de fazê-los esquecer o que se está passando ao redor de suas quatro paredes, de sua bolha de proteção. Outros, como eu, vêem-se tentados a mergulhar de vez no universo das pandemias, revendo filmes como Contágio (2011), do premiadíssimo Steven Soderbergh, ou a assistir pela primeira vez a Epidemia (1995), de Wolfgang Petersen, a A Gripe (2013), do coreano Sung-Su Kim, a 93 dias (2016), do nigeriano Steve Gukas ou, ainda, à série documental Pandemia, produzida recentemente pela Netflix. A ideia sendo comparar aquelas ficções à nossa real-ficção. Algo que fascina e traz medo ao mesmo tempo. Medo de ficar ainda mais neurótica. Medo de achar que toda tosse é coronavírus. Medo de perder um ente querido. Medo de enxergar todo o sofrimento do mundo, já sem nenhuma tela de proteção.
Além das gotículas criminosas filmadas em close e em slow motion, todas essas ficções apontam para o isolamento – ou quarentena – como um dos primeiros passos a serem tomados no combate à contaminação. O despreparo dos sistemas sanitários para a contenção de um vírus desconhecido e a falta de investimentos necessários em pesquisas científicas são temas igualmente recorrentes. Fator ressaltado também na série Pandemia, composta por seis episódios que narram as lutas diárias de alguns profissionais da área de saúde – médicos, pesquisadores ou atores da OMS, USAID – para salvar vidas em diversos lugares do mundo (EUA, India, Congo, Vietnam). O que se apreende dali é que, apesar dos vários alertas dados pelo mundo científico nos últimos anos, os países não se prepararam devidamente para enfrentar a chegada de uma pandemia. Fato, aliás, constatado e confirmado cada vez que ligamos a televisão ou abrimos um jornal hoje em dia.
A produção, que é de 2019, deixa bem claro que estava muito próximo o momento em que uma nova pandemia iria emergir no planeta, sendo, portanto, da maior urgência preparar hospitais, profissionais de saúde, acelerar o andamento das pesquisas etc. E o que fizeram nossos líderes? Investiram em armas e em campanhas eleitorais para se manterem no poder. Negligenciaram as pesquisas tão necessárias para desenvolver novas vacinas e os estudos capazes de detectar os vírus ainda nos animais, antes que passassem para os humanos. Temas que, de alguma forma, também são discutidos, mesmo que de forma maniqueísta – por vezes, caricata –, nos filmes de ficção aqui mencionados, que colocam, de um lado, a classe científica correndo atrás de respostas, e de outro, os mandatários do poder escolhendo em que momento agir e divulgar tais respostas.
Com relação à estética, o coreano A Gripe destoa um pouco de 93 Dias, Epidemia e Contágio pelo paroxismo de sua mise-en-scène, que mostra, por meio de uma câmera nervosa e de uma iluminação sombria, imagens grotescas de sangue jorrando, cadáveres sendo empilhados e corpos infectados, incinerados ainda vivos como medida de contenção do vírus. Uma narrativa um tanto quanto inverossímil (assim esperamos!), que leva ao extremo o dilema trabalhado também em Epidemia: exterminar a população de uma única cidade versus deixar contagiar a população de todo um país. Produção americana com elenco de peso (Dustin Hoffman, Morgan Freeman, Kevin Spacey, Rene Russo e Cuba Gooding Jr.) que sugere, ainda, a possibilidade de uma eventual guerra biológica, revelando a descoberta de um vírus letal por parte dos militares dos EUA, informação guardada a sete chaves pelo governo daquele país.
Contágio, outro filme americano com grande elenco (Matt Demon, Kate Winslet, Gwyneth Paltrow, Jude Law e Marion Cotillard) opta por destacar o papel das redes sociais como divulgadoras de informações sonegadas à população pelos meios oficiais. Ao mesmo tempo, mostra-as também como difusoras de informações ainda não confirmadas, as famosas fake news. Na nossa real-ficção de hoje, o canal brasileiro de Youtube Spotniks, entre outros, faz o papel do teórico da conspiração interpretado por Jude Law, tendo disponibilizado recentemente o impactante Timeline Covid-19, reportagem sobre a evolução da pandemia no mundo, desde seu provável início até 31 de março.
O conteúdo ali apresentado deixa a OMS e o Estado chinês em maus lençóis, em função da lentidão em divulgar as verdadeiras informações sobre a real gravidade do novo coronavírus. Já no prólogo, a fórmula “Do futuro desta saga pouco sabemos. Do passado, aprendemos que os homens públicos podem ser tão inescrupulosos quanto um vírus” sintetiza bem o conteúdo da reportagem. É interessante notar, porém, que o Brasil ficou praticamente de fora da análise, até mesmo no momento em que o texto cita “líderes caricatos” que se recusam a acreditar no efeito desastroso da Covid-19, como os presidentes da Bielorússia, Alexander Lukashenko, e do Turcomenistão, Gurbanguly Berdymukhamedov.
Das ficções aqui mencionadas, 93 Dias é a única que se baseia em fatos reais, narrando a chegada do ebola à Nigéria, trazido por um diplomata liberiano. A história é contada sob a perspectiva da equipe médica que tratou do paciente e que, comandada pelo braço forte da Dra. Ameyo Adadevoh, conseguiu identificar rapidamente o vírus e isolar imediatamente o paciente, contrariando ordens das autoridades locais. No espaço de 93 dias, com 20 casos confirmados e 8 mortes, a OMS decretou a Nigéria um país livre de ebola e a Dra. Adadevoh foi transformada em heroína nacional. Apesar da produção modesta, bem diferente das produções hollywoodianas a que estamos acostumados, este case de sucesso nigeriano pode ser um bálsamo de esperança para tempos tão bizarros.
Por outro lado, Pandemia parece-me a produção mais aterrorizante de todas, já que, no caso das ficções – sobretudo em função de suas narrativas clássicas –, depois de duas horas de tensão, chega-se a uma solução, a um estado de alívio. Ao passo que, na real-ficção que estamos vivendo, tão bem retratada pela série, ainda não se pode antever esse momento de respiro.
A verdade é que, hoje, nenhuma ficção supera a angústia propiciada por nossa realidade. Ao contrastar ficção e mundo real, porém, podemos acreditar (talvez como o Cândido, de Voltaire) que os líderes mundiais – ao menos, quase todos – estão tomando atitudes importantes e sensatas para resolver a maior crise que nossa geração já viu. E mesmo que algumas informações nos estejam sendo omitidas, bem ou mal, ações estão sendo tomadas a fim de frear a pandemia. E isso já é um alento, permitindo-nos, quiçá, vislumbrar os créditos no final do filme.