cinema
Luiz Carlos Azedo: Distopia no presente
“Nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa”
A pergunta de meu amigo Carlos Alberto Jr., jornalista e cidadão do mundo, numa live, inspirou a coluna de hoje: “Estamos vivendo uma distopia no presente?”. Normalmente, a distopia está associada ao futuro, porque é a negação da utopia, ou seja, da sociedade desejada, uma projeção pessimista do futuro. De certa forma, sim, estamos vivendo uma realidade distópica, como as que aparecem no cinema. A série inglesa Black Mirror (Espelho Negro), lançada há quase 10 anos, por exemplo, em cada um de seus episódios, que são independentes, nos deixa em situação muito desconfortável em relação à tecnologia, à globalização, ao poder e à “sociedade do espetáculo”.
Qual é a grande distopia que estamos vivendo aqui no Brasil? Uma pandemia de coronavírus ameaça sair do controle e seu combate começa a ser militarizado, com a substituição de uma política de saúde pública participativa por estratégias militares que se baseiam em grandes manobras, controle de informações e saídas racionais para situações fora do controle, como criar mais vagas nos cemitérios para evitar que o aumento do número de mortos gere outro grave problema sanitário: cadáveres insepultos. É uma hipótese sinistra, mas faz sentido, porque a concepção do combate à epidemia é a de que se trata de uma guerra. Em tese, militares estariam mais preparados para isso do que civis, o que, obviamente, é um equívoco em se tratando de saúde pública.
O inimigo invisível entre nós, no trabalho, no supermercado, na fila da lotérica, dentro de casa. Todos nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa, nem sempre um educado “por favor, chegue mais para lá”. Os mais aptos a conviver com o novo coronavírus — os contaminados assintomáticos —, hoje são a maior ameaça, não importa se é um antigo colega de trabalho, um parente querido, um amigo de infância, a pessoa amada; amanhã, porém, poderão ser os salvadores da pátria, portadores de anticorpos e perpetuadores da espécie, os primeiros a voltar ao trabalho.
A salvação virá dos mais fortes e do Estado Levitã, que pode tudo? Qual será o custo de tudo isso? Na lógica do presidente Jair Bolsonaro, é preferível um maior número de mortos do que o colapso da economia; é preciso salvar o comércio, a indústria, os pequenos negócios e os biscates. No fundo, seu raciocínio antecipa a escolha de Sofia do intensivista que seria obrigado a escolher quem vai ter acesso ao respirador na UTI quando o sistema de saúde entrar em colapso.
A República, de Platão, citada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta numa alusão irônica ao famoso Mito da Caverna (metáfora criada pelo filósofo grego para explicar a condição de ignorância em que vivem os seres humanos e o que seria necessário para atingir o verdadeiro “mundo real”), inspirou Thomas Morus (1478-1535) a escrever Utopia. Publicada na Basiléia, em 1516, na época dos Descobrimentos, criticou a tirania e descreveu a sociedade ideal, prontamente associada ao Novo Mundo. Na Inglaterra, seu livro só viria a ser publicado em 1551, 17 anos após a morte do filósofo e estadista católico executado por ordem de Henrique VIII, da Inglaterra.
Tirania
Coube a outro inglês cunhar a expressão “distopia”, o liberal progressista John Stuart Mill, o primeiro a defender o direito ao dissenso e as prerrogativas das minorias, num famoso discurso no Parlamento britânico, em 1868, ao invocar os valores defendidos por Thomas Morus em confronto com a realidade do proletariado da Inglaterra durante a Revolução Industrial. O tema da distopia foi retomado no Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e em 1984, de George Orwell. Na primeira obra, a sociedade é domina por uma casta, que a submete a um condicionamento biológico e psicológico; no segundo, numa alegoria do burocratismo stalinista, um ditador muda a língua do povo, controla a vida dos cidadãos e manipula a imprensa.
Na literatura, portanto, a distopia é a denúncia da sociedade indesejada, autocrática, submetida à tirania e à ordem unida. Na vida real, voltando à pergunta inquietante do amigo, é uma ameaça latente, seria quase uma distopia do presente. Estamos vivendo uma situação inimaginável, num mundo globalizado, conectado em rede, onde todos acompanham tudo em tempo real. Trata-se de um colapso da economia mundial, provocado por um fenômeno da natureza que tem a ver com o “grande encontro” da teoria da evolução, a associação entre o vírus mutante e uma bactéria, que se reproduz em velocidade igual ou maior do que a moderna transmissão de dados.
A ficção distópica dos filmes de catástrofes vira realidade, com centenas de milhares de mortos. Ontem, o presidente Donald Trump anunciou que os Estados Unidos vão suspender a imigração legal por dois meses. O “sonho americano”, inspirado na Utopia de Thomas Morus, entrou em colapso. Aqui no Brasil, a grande distopia seria o colapso do nosso regime democrático.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-distopia-no-presente/
Coronavírus e naufrágio de Bolsonaro são destaques da revista Política Democrática
Nova edição da publicação da FAP detalha reflexos da pandemia em meio a projeções temerárias do presidente do Brasil
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A mudança de hábitos provocada pela pandemia do coronavírus, a adolescência política incapaz de oferecer riscos à democracia no Brasil, o pibinho da nova política econômica de Paulo Guedes e a situação desoladora de refugiados no país são os destaques da nova edição da revista Política Democrática Online. Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília, podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade, a partir desta terça-feira (24).
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O público pode conferir, na revista Política Democrática Online, a análise sobre o impacto do coronavírus nos hábitos das pessoas. “Não são poucos os desafios, mesmo depois que essa praga deixar de ceifar vidas. A grande questão que se impõe é: o que queremos ser, ilhas preocupadas com nossa sobrevivência exclusiva, ou seres humanos que aprendemos a lição de que, na prática da solidariedade, do compartilhamento, da generosidade, estaremos construindo um mundo melhor?”, questiona uma articulista.
Em análise sobre o governo Bolsonaro, o diretor executivo da FAP e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Alberto Aggio, afirma que, após a divulgação do raquítico PIB de 2019 (1,1%), as expectativas de crescimento se esvaneceram. “O conjunto da economia naufraga, o dólar dispara, os investidores somem, e a perturbadora crise do petróleo dá as caras”, diz. “Esse cenário preocupante se agrava ainda mais com a chegada ao país do novo coronavírus, cujo foco original afetou drasticamente a produção da ‘oficina do mundo’, nosso principal parceiro comercial”.
Além disso, em entrevista exclusiva, a juíza aposentada e ex-deputada federal Denise Frossard afirma que o Brasil ainda vive uma adolescência jurídica, política e histórica e, por isso mesmo, instável, mas que não oferece riscos à democracia. “O Brasil precisa entender que, na construção das leis, o legislador tem de ser mais explícito, mais específico. Estamos em um ótimo momento para atuar, em meio à reconstrução do sistema político e do sistema tributário, depois de já termos iniciado o processo de reforma da previdência”, afirma ela.
No editorial, a revista reforça o seu posicionamento, de forma intransigente, em defesa dos ideais democráticos e republicanos. “O norte da atuação política das forças democráticas deve ser apenas um: unidade em torno da defesa do estado democrático de direito. Nenhuma afronta à democracia, mesmo que apenas no plano da opinião, pode ser tolerada”, diz um trecho.
A revista Política Democrática Online também oferece ao público uma reportagem investigativa sobre a situação de refugiados no Brasil. Os enviados especiais a Minas Gerais, um dos Estados que mais concentram pessoas oriundas de outros países, mostram que a desvalorização de mão de obra dificulta sobrevivência de haitianos no Brasil, já que, na guerra ela sobrevivência, eles devem competir com quase 12 milhões de brasileiros desempregados. O país aumenta número de refugiados e diminui autorizações para familiares
A nova edição da revista também tem análises sobre outros assuntos de interesse público, atuais e relevantes, como economia e cultura, com a colaboração de especialistas, pesquisadores e profissionais de referência no mercado.
Todos os conteúdos da publicação são divulgados no site e tem chamadas nas redes sociais da FAP. O conselho editorial da revista é composto por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.
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RPD || Lilia Lustosa: (Que) Viva o cinema brasileiro!
Com documentários indicados ao Oscar e ao Grande Prêmio do Júri Internacional na Mostra Generation do Festival de Berlim, o ano de 2020 começou bem para o cinema brasileiro, avalia Lilia Lustosa
O ano de 2020 começou bem para o cinema brasileiro. Primeiro, foi a indicação do Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, ao Oscar de melhor documentário. Em seguida, foi a vez de Meu Nome é Bagdá (2020), de Caru Alves de Souza, levar o Grande Prêmio do Júri Internacional na Mostra Generation do Festival de Berlim, dedicada a produções sobre a juventude.
A verdade é que a Berlinale – o mais politizado dos grandes eventos internacionais de cinema – esteve bem verde e amarela neste ano. A começar pelo júri, que teve Kleber Mendonça Filho como membro, seguido da participação recorde de 19 filmes brasileiros (algumas coproduções), competindo em diversas categorias, incluindo a principal (Urso de Ouro) com Todos os Mortos (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra, que integram o coletivo paulista Filmes do Caixote. Sinais do prestígio e do excelente nível que nossa cinematografia atingiu.
Desde aquele longínquo 1898, quando Afonso Segreto registrou as primeiras cenas brasileiras a bordo do navio Brésil, até os dias de hoje, o caminho não tem sido fácil. Problemas de falta de regulamentação e de orçamentos escassos, somados à dificuldade para inserir filmes no circuito comercial, vêm desde sempre obstruindo as veredas de nossa cinematografia. Apesar disso, podemos dizer sem medo que a qualidade do cinema brasileiro melhora a cada ano. Não que já não fizéssemos bons filmes! Desde os anos 30, produzimos obras belíssimas, como Limite (1931), de Mário Peixoto, infelizmente pouco conhecido entre nós, apesar de ter sido eleito pela Associação de Críticos Brasileiros como o maior filme nacional de todos os tempos. Ou ainda Ganga Bruta (1933), de Humberto Mauro, que impressionou tanto o historiador de cinema francês Georges Sadoul, que este tratou logo de incluí-lo entre os maiores cineastas do mundo.
Acontece que, por muitos anos, as produções de sucesso eram oriundas quase que exclusivamente do eixo Rio-São Paulo, com algumas exceções brotando aqui e ali em outras regiões do país, o que acabava por gerar certo engessamento de temas e modelos. De uns tempos para cá, o que se nota é uma mudança neste panorama graças a aumento significativo no número de cursos superiores em cinema e audiovisual (87, em 2016; e 184, em 2020 – Fonte: Sistema e-MEC), e ao aparecimento de pequenas produtoras, coletivos de cinema espalhados pelas periferias de nossas capitais, e distribuidoras comprometidas com o cinema nacional em todos seus formatos. Assim, Distrito Federal, Pernambuco, Ceará, Minas, Rio Grande do Sul e outros Estados começam a fortalecer-se e a ganhar espaço no cenário cinematográfico nacional, somando esforços e diversificando nosso cardápio fílmico.
O veterano Cacá Diegues, já em 2013, quando homenageado no Festival do Cinema Brasileiro de Paris, declarou que o Brasil estava vivendo uma das épocas mais férteis de sua história, atribuindo esse boom justamente à descentralização das produções nacionais. Nomes como Gabriel Mascaro (PE), Adilson Queiroz (DF), Gabriel Martins (MG), Marília Rocha (MG), entre tantos outros, passaram a figurar na lista dos indicados em diversos festivais. Um grupo que alguns críticos vêm chamando de “Novíssimo Cinema Brasileiro”, em função de suas produções de baixo custo, com equipes reduzidas, sem depender do Estado ou com pouca participação dele. Alusão direta ao Cinema Novo, claro, que nos anos 60 se valia justamente desse modo de produção. Soma-se ainda a esse grupo uma geração já legitimada dentro e fora do país, que hoje produz filmes com orçamentos mais robustos, no modelo clássico, muitas vezes valendo-se do financiamento estatal, e da qual fazem parte o pernambucano Kleber Mendonça Filho e o cearense Karim Aïnouz, ambos premiados em Cannes, no ano passado.
Mas o melhor dessa história é que a descentralização não enfraqueceu o eixo Rio-São Paulo, que continua a produzir excelentes filmes, seja de arte, seja comercial, feitos por pequenas e grandes produtoras ou pelos tais coletivos formados nas comunidades. Produções como o encantador Turma da Mônica - Laços (2019), de Daniel Rezende (RJ), ou o engajado Um dia com Jerusa (2019), de Viviane Ferreira (SP), estão aí como prova. Sinais de que nosso cinema cresceu, se diversificou e amadureceu, apesar de todas as ameaças de boicote, vindas do governo ou do próprio público brasileiro, que parece ainda não acreditar que fazemos bons filmes em nosso país.
Mesmo assim, a fase é boa! Resta, claro, um longo caminho para que as produções menores cheguem até o grande público. Por enquanto, elas ficam restritas aos festivais. Situação que ainda precisa da participação do Estado para mudar. E é aí que mora o problema! Desde o início do governo Bolsonaro, paira uma espécie de nuvem cinza sobre o terreno cinematográfico brasileiro, ameaçando constantemente seu futuro e a continuidade de sua evolução: cortes nos orçamentos e nas leis de incentivo à cultura, redução nas linhas de financiamento, ameaças de fechamento de instituições, como a ANCINE, e de criação de “filtros” nos conteúdos dos filmes, funcionários de alto escalão plagiando discursos nazistas, demissões e admissões infelizes… Tempos sombrios que contrastam fortemente com o colorido de nosso cinema neste 2020.
Oscar 2020: O que o Parasita mostra sobre Hollywood? Veja crítica de Lilia Lustosa
Em artigo na revista Política Democrática Online, crítica de cinema aponta ínfima participação de negros
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Apesar da ausência de ausência de mulheres e negros indicados nas categorias principais do Oscar 2020, Hollywood começa finalmente a abrir os olhos para o que acontece longe de seu umbigo e começa a se dar ao trabalho de ver filmes com legenda. A avaliação é da crítica de cinema Lilia Lustosa, em artigo que ela produziu para a 16ª edição da revista Política Democrática Online. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza, gratuitamente, todos os conteúdos em seu site.
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No artigo exclusivo publicado na revista da FAP, Lilia critica o que chama de “participação ínfima” de negros na premiação deste ano. “Marca evidente de retrocesso em um campo já tantas vezes discutido e que, por algum tempo, tivemos a ilusão de ter avançado”, lamenta. Na opinião dela, foi surpreendente o número de mulheres que subiram ao palco, como Hildur Guonadóttir, trilha sonora; Jacqueline Durran, figurino; Nancy Haigh e Barbara Ling, direção de arte; Karen Rupert Toliver, curta de animação; Carol Dysinger e Elena Andreicheva, curta documentário.
A crítica de cinema observa que, diante do grande vencedor do Oscar 2020 – Parasita, do coreano Bong Joon-hoo –, a cerimônia de premiação lhe deixou a impressão de que Hollywood começa finalmente a abrir os olhos para o que acontece longe de seu umbigo. “Ou, como disse o próprio Joon-hoo no Globo de Ouro mês passado, começa a se dar ao trabalho de ver filmes com legenda!”, ironiza ela.
A mudança vem sendo sutil, segundo a crítica de cinema, no artigo publicado na revista Política Democrática Online. Ela lembra que, no ano passado, Roma (2018), do mexicano Alfonso Cuarón, falado em espanhol, já havia surpreendido ao ser indicado em 10 categorias, entre elas melhor filme estrangeiro e melhor filme, o que gerou certa polêmica. Spielberg chegou a se pronunciar, alegando que produções feitas para plataformas de streaming (no caso, a Netflix) não deveriam concorrer ao Oscar.
Mas, conforme escreve Lilia, Roma acabou ficando com 3 prêmios importantes: melhor filme estrangeiro, melhor fotografia e melhor diretor, perdendo, porém, o prêmio maior da noite. “Neste ano, a façanha se repetiu com o coreano Parasita que, indicado em 6 categorias, acabou sendo o grande vencedor, levando merecidamente 4 estatuetas – melhor roteiro original, melhor diretor, melhor filme internacional e melhor filme –, derrubando o favorito 1917, do inglês Sam Mendes, que, diga-se de passagem, é o clichê, do clichê, do clichê do filme de guerra hollywoodiano. 1917 foi premiado no que tinha de bom: diretor de fotografia, mixagem de som e efeitos visuais. Justo!”.
De acordo com Lilia, outro sinal de mudança na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana foi a sutil troca de nomes na categoria de filmes falados em língua estrangeira, que passou a se chamar “Melhor filme internacional”, e não mais “Melhor filme estrangeiro”. “’estrangeiro’, além significar ‘cidadão de outra nação’, também pode ser entendido como alguém ou algo que não pertence, algo estranho àquele lugar”, escreve, para continuar: “O que até então parecia ser de fato a norma em Hollywood. O que estaria por trás de tal mudança? Algum conluio político? Lobby empresarial? Uma mensagem para Trump em ano de eleições? Pode ser. Mas, independentemente disso, Parasita ganhou porque merecia, porque reunia todas as qualidades de uma grande obra cinematográfica (roteiro original, bela fotografia, primorosas montagem, direção, atuação, etc.)”.
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Cacá Diegues: Este mundo é um pandeiro
Talvez eu tenha sido o cineasta mais ‘chanchadeiro’ do Cinema Novo
O Cine Academia é um clube de cinema criado pela Academia Brasileira de Letras, em parceria com a Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), e com o apoio do Grupo Itaú de Cinemas. No ano passado, quando foi inaugurado, o Cine Academia exibiu filmes de Mário Peixoto, Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos. Agora, a partir deste mês de março, promove um ciclo chamado “Este mundo é um pandeiro”, nome de um clássico da comédia carioca, que acabou servindo também como título de um livro sobre “a chanchada de Getúlio a JK”, obra do ensaísta, crítico e curador do ciclo Sérgio Augusto.
O primeiro filme do novo ciclo, exibido na semana passada, foi “Carnaval Atlântida”, de 1952, dirigido por um dos craques da chanchada, José Carlos Burle. Um filme com grandes estrelas do gênero como Oscarito, Grande Otelo, Eliana, Cyll Farney, José Lewgoy e Maria Antonieta Pons, a inesquecível atriz e rumbeira hispano-americana.
A palavra “chanchada”, que nomeia genericamente aquela série de comédias musicais de grande sucesso popular, produzidas no Rio de Janeiro, entre meados dos anos 1940 e fins dos 50, era uma adaptação abrasileirada e pejorativa da italiana “cianciata”, gíria romana para baixa qualidade, uma “conversa jogada fora”. Na época de ouro da chanchada, realizadores e técnicos do cinema italiano se encontravam em São Paulo, contratados pela Vera Cruz, companhia financiada por um Matarazzo para elevar o nível do cinema brasileiro com “filmes sérios”. Os ítalo-paulistas acabaram se tornando os principais suspeitos pela classificação pejorativa das comédias cariocas.
As chanchadas foram sempre maltratadas pela crítica em geral, relegadas ao último plano do cinema mundial como total porcaria. Alguns jornalistas mais finos da época pediam até mesmo que os governos exercessem censura àqueles filmes, diante de sua má qualidade narrativa, técnica e moral. Na melhor das hipóteses, a má qualidade não era devida à formação dos cineastas; para os mais espertos, ela representava a mediocridade da sociedade de onde os filmes saíam e voltavam fazendo tanto sucesso.
Com a distância fria do tempo e a ajuda dos debates depois das projeções, podemos tentar compreender o sucesso popular desses filmes e o desprezo que sofriam das elites culturais do país. Talvez possamos até descobrir valores que nunca foram percebidos por causa do linchamento sistemático que sofriam.
Os cineastas de minha geração, imediatamente posterior àquela, colaboraram, por diferentes motivos, com impedir que a chanchada fosse reconhecida em seu tempo. Às vezes, por motivos nobres, como o da rejeição à reprodução de filmes americanos, musicais ou não, versões capengas de Frank Capra, Billy Wilder ou Vincente Minnelli (Cecil B. DeMille chegou a inspirar um personagem de “Carnaval Atlântida”, um produtor chamado Cecílio B. De Milho). Ou então pela ocupação sistemática das salas com público enorme e fiel, dificultando a distribuição de filmes menos “divertidos”, como os nossos. Mas, na maioria das vezes, as chanchadas eram repudiadas por puro oportunismo crítico.
Assim que comecei a fazer filmes, prestei homenagens discretas, às vezes disfarçadas, às chanchadas que me ajudaram a venerar o cinema. Seja no título de meu episódio em “Cinco vezes favela”, de 1962, seja nos primeiros longas-metragens que fiz a seguir, como “A grande cidade” e “Os herdeiros”. Assim como passei a escancarar essas homenagens em “Quando o carnaval chegar”, “Xica da Silva” e “Chuvas de verão”. Acho que eu talvez tenha sido o cineasta mais “chanchadeiro” do Cinema Novo.
Hoje, não se trata de querer que o cinema brasileiro volte à chanchada, ande para trás em busca de um período perdido por ignorância, pretensão e descuido. Mas que compreendamos o que a chanchada, herdeira do teatro de revista e do rádio, significou para a cultura popular do país. Citado por Sérgio Augusto em seu livro sobre o gênero, lembro a tese do crítico americano Dwight Macdonald, afirmando que “o cinema, malgrado o nariz torcido dos pedantes, repetia em escala planetária o fenômeno teatral da era elizabetana, produzindo espetáculos populares sem a obsessão da posteridade”. Como comentou o próprio Sérgio Augusto, usando uma gíria daqueles anos 1950, “Macdonald acertou na pinta”.
Cacá Diegues: Aqui e lá fora
Cinema é o maior instrumento de difusão de um modo de viver nacional, na oferta do que cada país tem de específico
O Festival de Cinema de Berlim é um dos três maiores certames cinematográficos do mundo. No seu nível de grandeza, só dá para comparar Berlim com Cannes e Veneza. Mas, diferente desses dois, Berlim se torna, cada vez mais, um festival eminentemente político, dando preferência aos filmes que revelam o que está acontecendo nos países de onde eles vêm. Em Berlim, os espectadores se aproximam mais profundamente dos países de onde os filmes vêm.
É nesse rigor político de Berlim que o cinema brasileiro vem se tornando uma presença indispensável. De tal modo que, no festival deste ano, que começou sexta-feira passada, temos nada menos que 19 filmes brasileiros selecionados, exibidos em diferentes sessões, inclusive na competição oficial. Na disputa pelo Urso de Ouro, contamos com “Todos os mortos", filme de Caetano Gotardo e Marco Dutra, ambos de nossa nova geração de cineastas originais. Esses 19 títulos são uma seleção de filmes que representam a diversidade de nosso cinema. Ou, dito de outro modo, a diversidade da cultura brasileira, uma produção múltipla de tudo o que somos e que podemos celebrar.
Poucos países, no mundo de hoje, podem ostentar essa qualidade múltipla e diversificada de sua cultura, essa cultura faiscante visível através de seu cinema, independente de etnias, regiões, gerações, preferências políticas, opções estéticas e tudo mais. O cinema brasileiro é hoje não só uma expressão do que somos de fato, como também uma projeção utópica de tudo que gostaríamos de ser. Ou, quem sabe, planejamos ser.
Embora tenhamos um cinema com essa rara representatividade, nem por isso nosso poder público se interessa por sua produção, difusão e promoção. Nenhum país do mundo, onde exista uma indústria cinematográfica, deixa de apoiar economicamente seus filmes. Da Coreia do Sul, de onde veio o ganhador do Oscar “Parasita”, à França, onde existem regras para que a própria população sustente seu cinema através de impostos sobre a bilheteria; das modestas indústrias cinematográficas do Mali ou da Romênia, da Guatemala ou de Cingapura, ao poderoso gigante americano de Hollywood, da pátria do capitalismo liberal que são os Estados Unidos; das cinematografias médias da América Latina, como México e Argentina, àquelas da Europa, como Alemanha e Espanha; em nenhum país, de qualquer continente, o Estado deixa de participar política e economicamente de sua indústria de cinema.
O cinema é o maior instrumento de difusão de um modo de viver nacional, na oferta do que cada país tem de específico, no soft power hoje expandido além das salas de projeção, para a televisão, o streaming e qualquer outro avanço digital que a humanidade esteja consumindo e ainda consumirá. Para qualquer nação do mundo, a seleção de 19 filmes num festival como o de Berlim seria, além de um reconhecimento de qualidade, uma oportunidade extraordinária de divulgação do que somos e fazemos. Uma oportunidade rara de nos destacarmos como criadores de uma indústria cultural que não apenas serve a nós mesmos, como põe ao alcance dos outros aquilo de que somos capazes.
Mas o desinteresse de nosso poder público pelos filmes que fazemos, o desejo doentio de orientar nossa produção cultural, impor a única ideologia que lhe interessa, tem feito nosso governo, um inimigo da inteligência, perder todas as oportunidades de valorizar o Brasil pelo mundo afora. No passado, a Ancine (Agência Nacional de Cinema) sempre colaborou com a difusão do cinema brasileiro no exterior, apoiando de algum modo os filmes selecionados para festivais internacionais, ou colaborando com seu lançamento comercial fora do país. Essa política fez do cinema brasileiro, sobretudo o mais recente, um elemento de prestígio para o próprio festival para o qual somos selecionados. E onde somos fartamente premiados, como aconteceu recentemente com “Bacurau” e “A vida invisível”.
Com Bolsonaro e seus ministros, o Fundo Nacional de Cultura teve, em 2019, o menor valor em dez anos. O fomento direto do governo, que já foi de 344 milhões de reais, não chegou a um milhão no ano passado. Não é de se estranhar, portanto, que a Ancine e o governo brasileiro não se interessem por nossos 19 filmes em Berlim, realizados por cineastas jovens, vindos de todas as regiões do país. Nosso prestígio internacional foi ignorado, como se repudiássemos o reconhecimento de nossa cultura e de nosso cinema. O presidente vai continuar a falar de filmes que nunca assistiu, como foi o caso de “Bruna Surfistinha”, reproduzindo conceitos de quem não sabe a importância do cinema brasileiro. Aqui e lá fora.
Educação, recuo da indústria e poder religioso são destaques da Política Democrática Online de fevereiro
No editorial, revista da FAP se posiciona duramente contra massificação da mentira
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Defesa de sistema nacional de educação, recuo da produção industrial brasileira, a força do sincretismo religioso e do misticismo em Brasília e uma análise sobre o Oscar 2020 são os destaques da edição de fevereiro da revista mensal Política Democrática Online. Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), podem ser acessados gratuitamente no site e também são divulgados nas redes sociais da entidade.
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A revista chega à sua 16ª edição com o propósito de ser uma publicação de intervenção política e cidadã. O editorial faz dura crítica à massificação da mentira. Segundo o texto, “está em curso evidente campanha contra as instituições democráticas”, ressalta um trecho. “Cidadãos já foram convocados, nos últimos meses, a sair às ruas em protesto contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, supostamente tomados pela velha política, na trincheira da resistência aos propósitos ‘renovadores’ do Executivo”, lamenta.
Na entrevista especial da revista Política Democrática Online, o superintendente executivo do Instituto Unibanco, Ricardo Henriques, afirma que o Brasil precisa avançar na construção de um sistema nacional de educação. Ele fala da necessidade de o país adotar uma Base Nacional Curricular Comum e do papel do instituto, que já conta com 35 anos de atuação em todo o país, entre outros assuntos.
Já o sincretismo religioso e o misticismo são abordados na reportagem especial, que mostra a força do poder espiritual em Brasília, além dos reflexos do aumento de evangélicos no país, inclusive no Congresso Nacional, e de pessoas que se consideram sem religião. “Aqui vem todo tipo de gente, cristão, espírita, católico, umbanda, ateu, agnóstico”, afirma o líder de um grupo que retrata a diversidade de manifestações religiosas na capital federal.
A revista Política Democrática Online também tem uma análise que mostra como o esquema anunciado pelo presidente norte-americano em 28 de janeiro último, após três anos de mandato e a dez meses das eleições presidenciais de 2020, decepcionou os que esperavam alguma sutileza política ou criatividade diplomática. “O governo Bolsonaro preferiu distanciar-se da maioria e manter a tendência de alinhamento integral a Donald Trump”, diz um trecho do artigo.
No campo da economia, outra análise se debruça sobre a produção da indústria brasileira, que, em 2019, recuou 1,1% na comparação com 2018, segundo informações divulgadas na primeira semana de fevereiro pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). “Os dados jogaram um balde de água fria nas expectativas de uma aceleração mais robusta do crescimento em 2020”, aponta o artigo publicado.
A publicação da FAP também mostra que obras do escritor e jornalista cubano Leonardo Padura, ganhador de diversos prêmios literários mundo afora, são leituras imperdíveis. Além disso, a crítica de cinema desta edição repercute a derrota do filme brasileiro Democracia em Vertigem no Oscar 2020 e as possíveis perspectivas para a maior competição de obras cinematográficas do mundo.
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O Irlandês: Filme com elenco de peso, analisa Lilia Lustosa na revista Política Democrática online
Em análise produzida antes da entrega do Oscar, crítica de cinema mostrou todo investimento da Netflix na obra de Scorcese
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Apesar de ter saído de mãos vazias do Globo de Ouro e do Oscar 2020, o super longa O Irlandês, de Martin Scorsese, produzido pela NetFlix, é um filme que reúne um elenco de peso. A avaliação é da Lilia Lustosa, colunista de cultura da revista Política Democrática online em artigo que ela produziu para a edição de janeiro da publicação, antes da maior e principal premiação do ramo cinematográfico. A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza todos os conteúdos gratuitamente em seu site.
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Na análise, anterior a entrega dos prêmios do Oscar, Lilia Lustosa lembra que O Irlandês era, até então, forte candidato na disputa e que eram muitas as fichas investidas. De acordo com a colunista, a empresa deu carta branca para o diretor ítalo-americano, que contou com cerca de US$ 160 milhões para realizar seu filme. “Certamente uma reação à entrada das poderosas Amazon, HBO Go, AppleTV e Disney+ no circuito das plataformas de streaming, que já representam real ameaça ao monopólio Netflix”, escreve a autora.
No artigo publicado na revista Política Democrática online, Lilia Lustosa disse que, ao invés de uma história pessoal e quase autobiográfica, como foi o caso de “Roma”, no ano passado, Scorsese reuniu elenco de peso (Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci) e fez homenagem aos melhores filmes de gangsters da história do cinema, incluindo seus próprios “Cassino” (1995) e “Bons companheiros” (1990), em que De Niro e Pesci já faziam dobradinha. Ela lembra que Scorcese já é consagrado por “Taxi Driver” (1976), “O lobo de Wall Street” (2013) e tantas outras preciosidades cinematográficas.
A autora do artigo lembra, também, que o filme O Irlandês é baseado no livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, lançado em 2004, e conta a história real de Frank Sheeran (com um De Niro maduro, esbanjando talento), considerado um dos prováveis assassinos do poderoso sindicalista americano Jimmy Hoffa, interpretado por Al Pacino. A autora o classifica como “show de atuação”. “Um crime até hoje sem solução, mas que cai como uma luva para retratar o mundo obscuro da máfia, essa espécie de universo paralelo em que as leis obedecem a uma ética particular, um tanto quanto questionável”, pontua.
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Política Democrática || Lilia Lustosa: Oscar 2020 - Cheiro de esperança no ar?
Apesar da ausência de ausência de mulheres e negros indicados nas categorias principais do Oscar 2020, Hollywood começa finalmente a abrir os olhos para o que acontece longe de seu umbigo e começa a se dar ao trabalho de ver filmes com legenda, avalia Lilia Lustosa
De todos os Oscares a que já assisti, creio que esse foi o que me deixou mais satisfeita, apesar da “derrota” brasileira (documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa) e da tão falada ausência de mulheres e negros indicados nas categorias principais. Uma falha grande da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana, sem dúvida, mas que acabou surpreendendo pelo número de mulheres que subiram ao palco: Hildur Guonadóttir, trilha sonora; Jacqueline Durran, figurino; Nancy Haigh e Barbara Ling, direção de arte; Karen Rupert Toliver, curta de animação; Carol Dysinger e Elena Andreicheva, curta documentário etc. Uma prova de que a indústria cinematográfica já foi ocupada por elas. Com Oscar ou sem Oscar! O mesmo não pode ser dito, no entanto, dos negros, que tiveram participação ínfima na premiação deste ano, numa marca evidente de retrocesso em um campo já tantas vezes discutido e que, por algum tempo, tivemos a ilusão de ter avançado.
Ainda assim, diante do grande vencedor da noite – Parasita, do coreano Bong Joon-hoo –, terminei de assistir à cerimônia com a impressão de que Hollywood começa finalmente a abrir os olhos para o que acontece longe de seu umbigo… ou, como disse o próprio Joon-hoo no Globo de Ouro mês passado, começa a se dar ao trabalho de ver filmes com legenda!
A mudança vem sendo sutil. No ano passado, Roma (2018), do mexicano Alfonso Cuarón, falado em espanhol, já havia surpreendido ao ser indicado em 10 categorias, entre elas melhor filme estrangeiro e melhor filme, o que gerou certa polêmica. Spielberg chegou a se pronunciar, alegando que produções feitas para plataformas de streaming (no caso, a Netflix) não deveriam concorrer ao Oscar. Mas Roma acabou ficando com 3 prêmios importantes: melhor filme estrangeiro, melhor fotografia e melhor diretor, perdendo, porém, o prêmio maior da noite. Neste ano, a façanha se repetiu com o coreano Parasita que, indicado em 6 categorias, acabou sendo o grande vencedor, levando merecidamente 4 estatuetas – melhor roteiro original, melhor diretor, melhor filme internacional e melhor filme –, derrubando o favorito 1917, do inglês Sam Mendes, que, diga-se de passagem, é o clichê, do clichê, do clichê do filme de guerra hollywoodiano. 1917 foi premiado no que tinha de bom: diretor de fotografia, mixagem de som e efeitos visuais. Justo!
Outro sinal de mudança na Academia foi a sutil troca de nomes na categoria de filmes falados em língua estrangeira, que passou a se chamar “Melhor filme internacional”, e não mais “Melhor filme estrangeiro”. Ora, “estrangeiro”, além significar “cidadão de outra nação”, também pode ser entendido como alguém ou algo que não pertence, algo estranho àquele lugar. O que até então parecia ser de fato a norma em Hollywood. O que estaria por trás de tal mudança? Algum conluio político? Lobby empresarial? Uma mensagem para Trump em ano de eleições? Pode ser. Mas, independentemente disso, Parasita ganhou porque merecia, porque reunia todas as qualidades de uma grande obra cinematográfica (roteiro original, bela fotografia, primorosas montagem, direção, atuação, etc.). Ou seja, ganhou porque é bom, não porque é coreano! Porém, ao laurear um “estrangeiro” com seu prêmio máximo, os norte-americanos dão ares de finalmente estar entendendo que já não há mais espaço para fronteiras (nem muros) neste mundão de meu deus. Somos todos cidadãos de um mesmo planeta, com sofrimentos, angústias, alegrias e anseios semelhantes. A tendência, a meu ver, é que em breve o “internacional” saia de cena, deixando a categoria de “melhor filme” aberta a todas as nações. E quem sabe não surja a categoria “Melhor filme norte-americano” para premiar as produções locais, como já acontece em prêmios da importância de um BAFTA, maior premiação inglesa. Me parece muito mais apropriado a essa aldeia global em que vivemos.
Nos prêmios para atriz, ator e coadjuvantes, não houve muita surpresa. Joachin Phoenix e seu Coringa estavam imbatíveis; Renée Zellweger e sua Judy estavam em tão perfeita simbiose, que em nenhum momento lembrávamos de que um dia ela fora Bridget Jones… Brad Pitt também excelente no seu papel de dublê, aliás, um riquíssimo personagem criado pelo grande Tarantino. Laura Dern foi a única que não me convenceu! Achei sua interpretação exagerada, beirando o caricato, o que não combina em nada com o estilo do excelente e sensato História de um Casamento, de Noah Baumbach. Sua parceira de cena, Scarlett Johansson, duplamente indicada em 2020 (melhor atriz e melhor atriz coadjuvante), poderia ter ficado com esse prêmio por seu extraordinário desempenho no belo e original Jojo Rabbit, de Taika Waititi.
Triste foi ver O Irlandês, com tantas nomeações (10, no total), sair de mãos vazias. Dificilmente veremos um elenco de tamanho peso reunido em outro filme dirigido por um mestre do porte de Scorsese. Seria esse um outro sinal de que Hollywood está querendo se abrir para o novo? Ou seria esta não-premiação às produções Netflix uma outra mensagem da indústria do cinema para as plataformas de streaming? De toda maneira, a duração exagerada do filme (3 horas e meia) deve ter contribuído para essa derrota. Fora, claro, o excelente nível dos competidores.
Para muitos brasileiros, a grande decepção foi mesmo termos voltado para casa sem a estatueta de melhor documentário. O vencedor foi Indústria Americana, de Julia e Jeff Reichert, produzido por ninguém mais, ninguém menos do que o casal Obama. Um sobrenome de peso que certamente ajudou muito o filme a se sair vitorioso, sobretudo em ano de eleições. Sinal de enfraquecimento de Trump? Talvez. Mas, deixando outra vez a política de lado, o filme não deixa por isso de ser merecedor do prêmio recebido. Com uma produção impecável, Indústria Americana é muito bem filmado e montado, narrando um problema pra lá de atual, que afeta trabalhadores do mundo inteiro: a desumanização das empresas, a redução no número de empregos ofertados, a ambição desenfreada dos empregadores, o enfraquecimento dos sindicatos, a luta pelos direitos trabalhistas etc. Tudo isso mostrando ainda o choque cultural entre China e EUA. Um prato cheio para a OIT (Organização Internacional do Trabalho), que poderá usá-lo como inspiração para o desenvolvimento de projetos vindouros.
Nosso Democracia em Vertigem, por sua vez, apesar de tratar de um tema que também está na ordem do dia, é um filme bem mais pessoal, narrado em primeira pessoa, contando a história de nossa jovem democracia, desde o fim da ditadura militar até os dias de hoje, já na era Bolsonaro. Uma história que se confunde com a própria história de vida da diretora Petra Costa, nascida em 1983, o que não diminui em nada o valor do filme. Ao contrário, o fortalece, tornando-o mais próximo de nós e talvez, por isso mesmo, mais verdadeiro. Vide o também indicado Para Sama, documentário sírio belíssimo, extremamente duro de ver, em que a diretora Waad Al-Kateab faz uma espécie de diário para sua filha Sama, que nasceu em meio a bombas, mortes e ruínas, contando a história de sua vida em pleno cerco à cidade de Alepo. Filme de um realismo assustador, mas que tem, ao mesmo tempo, a delicadeza e a grandeza de um amor de mãe.
Democracia em Vertigem perde um pouco da força na hora em que toma partido pela versão do “golpe” contra a presidente Dilma, já mais para seu final. Talvez um final aberto, que deixasse ao espectador o trabalho (e o direito) de tirar suas próprias conclusões sobre a História, teria fortalecido a narrativa de Petra. Um dos grandes trunfos de Parasita, aliás! Mas, claro, não há obra de arte sem viés, sem subjetividade, afinal ela está no cerne de tudo que fazemos, dizemos ou escrevemos. No entanto, ao tomar partido, assumimos o risco da crítica dos contrários. E isso tem um preço!
Apesar de Para Sama ter-me tocado mais, torci muito para nosso cinema brasileiro sair premiado. Seria mais uma prova de nossa força criativa, como foram os prêmios dados a Bacurau e A Vida Invisível de Eurídice Gusmão em Cannes no ano passado. Ao mesmo tempo, acredito que estar ali, em pé de igualdade com os gigantes da indústria cinematográfica, já seja por si só um prêmio! Um lembrar que nós fazemos parte do mapa geográfico do cinema, e não mais como os bons selvagens colonizados de outrora, mas como uma nação que luta, que acerta, que erra e sofre para erguer sua cinematografia, sua arte e para consolidar sua democracia. Sim, definitivamente há cheiro de esperança no ar…
Luiz Carlos Azedo: Tolerância
”A xenofobia, a misoginia, a homofobia, a justiça pelas próprias mãos e o desrespeito aos direitos e às garantias individuais são ameaças à democracia, ainda que aparentemente sejam isolados os casos”
O consagrado ator José de Abreu anunciou no Instagram que embarca hoje para a Nova Zelândia, onde pretende morar. Depois de muita malcriação nas redes sociais — para dizer o mínimo —, resolveu dar um tempo e curtir a namorada Carol Junger, com quem recentemente fez um périplo de 75 dias, por 11 países. Radical aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cai fora do rodamoinho em que entrou depois das grosserias que fez com a também consagrada atriz Regina Duarte, que aceitou o convite para ser secretária de Cultura do governo Bolsonaro.
Os ataques de José de Abreu a Regina Duarte deixaram perplexos até mesmo os seus aliados: “Fascista não tem sexo. Vagina não transforma uma mulher em um ser humano. Eu não vou parar, eu sou radical mesmo e estou em um caminho sem volta”, declarou ele, em áudio enviado para a colunista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, depois de várias postagens nas redes sociais atacando a atriz.
Saiu de cena como quem resolveu curtir a vida sem maiores compromissos: “Amanhã, começaremos uma nova fase de nossa vida em comum, vamos morar na Nova Zelândia. No começo, em Auckland. Se gostarmos, ficamos. Se não, Wellington ou Christchurch. Opções não faltam: país lindo, padrão de vida comparado aos países escandinavos, mas sem o ônus do frio. Pequeno, povo bacana, natureza… Que Deus nos ilumine e proteja #newzealand #newzealandlife #auckland #expatlife #novazelandia #vidamaluca”, escreveu.
Um radical que bate em retirada por livre e espontânea vontade da cena política brasileira deve ser motivo de comemoração, seja ele de esquerda, seja de direita. Às vésperas do Oscar, a cineasta Petra Costa, cujo filme Democracia em vertigem está entre os finalistas da categoria documentário, também sofre uma campanha intensa na internet por causa de sua abordagem sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff. De forma inédita, a secretaria de Comunicação do governo classificou a cineasta como uma “ativista anti-Brasil”.
Mas quem acabou indo para o pelourinho foi o jornalista Pedro Bial, que fez duras críticas ao filme e à cineasta, que narrou o filme. Segundo ele, Petra protagonizou uma “miada” insuportável. Em sua crítica, Bial disse que a cineasta ficou choramingando o filme inteiro, o que mobilizou uma cadeia de solidariedade à diretora, liderada pela ex-presidente Dilma Rousseff, personagem central do documentário. Bial está sendo atacado até mesmo por ex-colegas da TV Globo.
Estabeleceu-se uma polêmica sobre o filme que mistura alhos com bugalhos. O simples fato de ter sido selecionado como finalista do Oscar já garante à diretora Petra Costa o reconhecimento pela qualidade de sua obra, o que não tem nada a ver com concordar com a sua interpretação dos fatos, ainda mais quando sabemos que os documentários norte-americanos nunca primaram pela isenção política e ideológica. Onde está a intolerância? Nos ataques pessoais à diretora, não nas críticas ao filme, que podem ser consideradas justas ou injustas, dependendo do interlocutor.
Os limites
A tolerância requer aceitar as pessoas e consentir com suas práticas mesmo quando as desaprovamos fortemente, não é uma atitude intermediária entre a absoluta aceitação e a oposição imoderada. Um assassinato, por exemplo, não é tolerável. Nossos sentimentos de contrariedade ou desaprovação são intoleráveis quando movidos por preconceito racial ou étnico, por exemplo. Não se trata de tolerar aqueles que execramos, mas de não execrar as pessoas só porque parecem diferentes ou provêm de uma origem diferente.
Conflitos e desentendimentos políticos e ideológicos são totalmente compatíveis com o pleno respeito por aqueles de quem discordamos. A democracia, a rigor, existe para que isso ocorra num ambiente de coexistência, no qual o direito ao dissenso seja respeitado pela maioria. A tolerância religiosa, por exemplo, é o legado histórico das guerras religiosas europeias, ainda que muito sangue ainda seja derramado em alguns lugares do mundo, em nome do Criador. No Brasil, hoje, essa questão está vivíssima, porque a radicalização política e a intolerância estão instrumentalizando valores religiosos de uma forma que nunca deu bons resultados.
A tolerância exige valores e tem seus riscos, mesmo numa ordem democrática consolidada. A xenofobia, a misoginia, a homofobia, a justiça pelas próprias mãos e o desrespeito aos direitos e às garantias individuais são ameaças à democracia, ainda que aparentemente sejam isolados os casos. Ou seja, o limite da tolerância é o respeito à Constituição de 1988.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-tolerancia/
Política Democrática || Lilia Lustosa: Os olhos de Scorcese – a nova cartada da Netflix
Com “O irlandês”, o “super longa” de Martin Scorsese, a Netflix aposta suas fichas para concorrer aos prêmios do Oscar. O diretor ítalo-americano contou com cerca de 160 milhões de dólares para realizar seu filme
Um ano depois do megassucesso de “Roma” (2018), de Alfonso Cuarón, a Netflix aposta agora suas fichas no “super longa” de Martin Scorsese e aparece outra vez como forte candidato na disputa pelos prêmios Oscar, apesar de ter saído recentemente de mãos vazias do Globo de Ouro. E olhe que são muitas as fichas investidas, já que a empresa deu carta branca para o diretor ítalo-americano, que contou com cerca de 160 milhões de dólares para realizar seu filme. Certamente uma reação à entrada das poderosas Amazon, HBO Go, AppleTV e Disney+ no circuito das plataformas de streaming, que já representam real ameaça ao monopólio Netflix.
Desta feita, ao invés de uma história pessoal e quase autobiográfica, como foi o caso de “Roma”, no ano passado, Scorsese, já consagrado por “Taxi Driver” (1976), “O lobo de Wall Street” (2013) e tantas outras preciosidades cinematográficas, reuniu elenco de peso (Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci) e fez homenagem aos melhores filmes de gangsters da história do cinema, incluindo seus próprios “Cassino” (1995) e “Bons companheiros” (1990), em que De Niro e Pesci já faziam dobradinha.
Baseado no livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, lançado em 2004, “O irlandês” conta a história real de Frank Sheeran (com um De Niro maduro, esbanjando talento), considerado um dos prováveis assassinos do poderoso sindicalista americano Jimmy Hoffa, interpretado por ninguém mais, ninguém menos que Al Pacino, num show de atuação. Um crime até hoje sem solução, mas que cai como uma luva para retratar o mundo obscuro da máfia, essa espécie de universo paralelo em que as leis obedecem a uma ética particular, um tanto quanto questionável.
Composto por planos-sequências deslumbrantes e por uma trilha sonora potente, “O irlandês” é narrado em primeira pessoa por um Frank Sheeran já no fim da vida, solitário, sentado em uma cadeira de rodas numa sala de asilo. Em um longo flashback de duas camadas, a história vai e volta no tempo, tendo como fio condutor uma viagem de carro de Filadélfia a Detroit para assistir ao casamento da filha de um dos amigos mafiosos do todo-poderoso Russel Bufalino, interpretado pelo excelente Joe Pesci. Qualquer semelhança com “O poderoso chefão” não é mera coincidência!
A grande diferença é que, nesta história, o protagonista não é um dos poderosos chefões, mas um homem comum, um “peixe pequeno” em meio a tantos tubarões, alguém que leva uma vida sem luxos, dedicado a seu trabalho e sua família. Um veterano de guerra, que aprendeu a matar em combate e, de alguma maneira, se desumanizou depois desta experiência. Matar passou a ser um ofício como outro qualquer, como dirigir um caminhão… ou pintar casas! Algo a ser feito e pronto. De motorista trambiqueiro a provável assassino de Hoffa, o caminho foi longo e tortuoso. A cada flashback, vamos acompanhando seu envolvimento com crimes cada vez mais cabeludos, em que pinta cada vez mais paredes. Frank vai, assim, ganhando o respeito de uns, a confiança de outros e se tornando peça importante naquele jogo sujo e complexo. Vai, ao mesmo tempo, perdendo o respeito e o amor de alguns de seus mais próximos, como o de sua própria filha Peggy (Lucy Gallina/Anna Paquin), a personagem-luz do filme de Scorsese.
Sim, porque os olhos inquisidores da menina Peggy são, ao longo dessa história, nosso prumo, nosso retorno à realidade, nossa referência do que é correto, do que é justo, do que é ético em meio a tantas traições, assassinatos e crueldades que vão aos poucos se tornando a norma. Personagem de poucas falas, a filha de Sheeran é a consciência de que há algo de podre no reino dos sindicatos americanos, brasileiros, argentinos… e em tantos outros reinos. De que essa banalização da violência e relativização da ética talvez não sejam assim tão normais como aparentam ser. Os olhos de Peggy só recobram o brilho diante do idealismo de alguém como Hoffa, que, mesmo indo para a prisão, lutou até o fim por seu sindicato, por seu reinado, por seus sonhos. E por eles também morreu. Não que fosse um santo, já que também fez muitas concessões à ética na sua ânsia de manter-se à frente de seus teamsters (caminhoneiros). E talvez aí uma importante (e triste) constatação do quão difícil é manter-se no tal “bom caminho” quando se está dentro do jogo. Qualquer semelhança com a realidade brasileira talvez não seja mera coincidência!
Scorsese, que causou polêmica meses atrás, ao declarar que os filmes da Marvel não eram propriamente “cinema”, criticando abertamente o filme comercial, realizou uma obra esplendorosa (pela Netflix-super-comercial), apesar de excessivamente longa e, cá pra nós, um pouco cansativa para se ver de uma tirada só, principalmente se for em casa, à noite, esparramado num sofá aconchegante, ou na cama, já pronto para dormir. Por sorte, “O irlandês” também pode ser visto em algumas poucas salas de cinema, já que esse é um quesito obrigatório para se concorrer ao Oscar. De toda maneira, vale a pena encarar as três horas e meia deste filme que já nasceu cult, feito com esmero para os cinéfilos mais exigentes e perfeito para coroar uma longa carreira de sucesso e para homenagear uma geração de artistas e cineastas que revolucionou o cinema norte-americano nos anos 70 – a Nova Hollywood – e que chega agora aos 80 anos de idade, deixando um legado cinematográfico riquíssimo para o mundo.
Mas, deixando a cinefilia de lado, o mais apropriado talvez fosse dizer que “O irlandês” é um filme feito para ganhar Oscars e reafirmar a posição de liderança da Netflix. E o que há de errado nisso? Obras talhadas para ganhar prêmios ou para manter liderança de mercado sempre existiram e fazem parte do jogo cinematográfico. Resta-nos torcer para que os olhos de Peggy estejam sempre presentes a fim de garantir que a grande máfia cinematográfica mantenha-se no prumo.
Luiz Carlos Azedo: A força do diálogo
”Se Deus soubesse o que acontecerá, o futuro seria uma verdade absoluta e não existiria liberdade de escolha. Entretanto, ainda não aconteceu. Por isso, é possível influenciá-lo“
Com direção primorosa de Fernando Meirelles, roteiro de Anthony McCarten e fotografia de Cesar Charlone, Dois Papas é um filmaço da Netflix, com interpretações impecáveis de Jonathan Pryce, no papel do cardeal Jorge Bergólio, que viria a ser eleito o papa Francisco, e Anthony Hopkins, aos 80 anos, encarnando o Papa Bento XVI, que surpreendeu o mundo com uma renúncia até então inimaginável. Os dois travam um duelo verbal no qual os fatos históricos e a ficção se desenrolam como uma espiral de hélice dupla, que simultaneamente descreve as personalidades de ambos e traduz velhas polêmicas sobre o livre-arbítrio e o poder da fé. É um filme que mostra a força e a importância do diálogo.
É a partir dele que sugiro uma reflexão sobre 2020. As comemorações de passagem de ano têm origem 3 mil anos antes de Cristo, na Babilônia. Duravam 11 dias, seis a mais do que as de Salvador neste ano. Incluíam procissões, ritos de fertilidade e sacrifícios. O ano-novo romano, que deu origem à comemoração mais universal (também existem o ano-novo chinês, o islâmico e o judaico), foi criado por Julio Cesar, 43 anos antes de Cristo, por meio de decreto que dedicou o primeiro dia do ano a Jano, o deus de duas cabeças das origens. É uma festa pagã, cujas superstições têm as mais diversas procedências, das oferendas à Iemanjá, de origem iorubá, ao costume tcheco de comer lentilhas. Como rito de passagem, porém, as comemorações de ano-novo nunca foram celebradas pela Bíblia, que condena a adoração falsa e os excessos das festas de fim de ano.
É uma das muitas contradições da doutrina católica com a própria fé dos cristãos, o fio condutor do diálogo entre Bergólio, um ex-jesuíta, e Joseph Aloisius Ratzinger, que ascendeu ao papado como grande teólogo conservador de João Paulo II. Não é à toa que o espaço vazio deixado pela Igreja, após as comemorações do Natal, acabou ocupado no Brasil pela alegria e pela energia espiritual do candomblé e da umbanda, que dominam o sincretismo do ano-novo. Para os cristãos, independentemente dos ritos, ano-novo é sinônimo de esperança e mudança, tem tudo a ver com o livre-arbítrio e o poder da fé.
Livre-arbítrio
A polêmica cristã sobre o livre-arbítrio surgiu no norte da África, no início do século V, entre Santo Agostinho e o monge celta Pelágio, por causa do batismo de uma criança. Os cristãos acreditavam que o batismo lavava as manchas do pecado original. Perlágio dizia que as crianças não precisavam ser batizadas, porque não tinham livre-arbítrio e, portanto, não pecavam. E se mais tarde escolhessem o caminho de Deus, nem precisariam ser batizadas. Agostinho de Hipona, que estudou filosofia grega em Cartago e somente foi batizado aos 33 anos, depois de retornar ao cristianismo que havia abandonado quando jovem, sustentou a tese de que era impossível escolher o caminho de Deus por vontade própria. Para isso, segundo ele, era preciso a ajuda de Deus, daí a importância do batismo.
No filme, a conversa entre os dois papas gravita em torno do livre-arbítrio e da vontade de Deus, porque Bergólio queria se aposentar e precisava da autorização do papa. Mas não sabia que Ratzinger tinha o mesmo desejo e via nele seu sucessor, embora divergissem em quase tudo. De forma subliminar, a conversa entre ambos gira em torno da doutrina da predestinação, desenvolvida por Agostinho: é impossível a escolha do caminho de Deus por vontade própria, para isso é preciso uma graça divina. Fora uma saída salomônica para a preservação do dogma do batismo, a graça redentora do pecado original, a partir da qual o livre-arbítrio é possível. Curioso é que a tese da predestinação foi adotada de forma radical pelos protestantes, principalmente os calvinistas, a partir do princípio de que Deus não falha, tudo está decidido por Ele. Não era essa, porém, a visão de Agostinho: a escolha de Deus não substitui a escolha humana, mas a possibilita.
Essa polêmica é o fio condutor da conversa entre os dois papas sobre a relação da Igreja com o mundo atual, entre ironias, piadas e dúvidas existenciais sobre a fé em Deus. O resultado do diálogo entre o conservador Ratzinger e o reformista Bergólio é a opção de ambos pela mudança. O primeiro era impopular, sendo até chamado de ex-nazista por sua passagem pela Juventude Hitlerista na Alemanha; o segundo, carrega a culpa de ter conciliado com a ditadura da Argentina, quando fora o chefe dos jesuítas, o que acarretou a prisão de alguns religiosos aos quais havia proibido de ministrar o sacramento, por fazerem oposição ao regime, o que serviu de justificativa para que fossem presos.
Embora Deus seja onisciente, para os teólogos, se Deus soubesse o que acontecerá, o futuro seria uma verdade absoluta e não existiria liberdade de escolha. Nesse caso, a própria bondade de Deus estaria comprometida e não teria sentido a vinda de Jesus para a Terra, tão celebrada pelo cristianismo nas noites de Natal. Entretanto, como o futuro ainda não aconteceu, ele não existe. Por isso, para o cristianismo, é possível influenciá-lo com rezas e ações no presente. O futuro é aberto às mudanças. Em tempos de terraplanistas e fundamentalistas, esse é o recado do filme para católicos e não-católicos. Feliz ano-novo.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-forca-do-dialogo/