cineasta
Meu amigo cinepoeta Sérgio Muniz
Lilia Lustosa*, crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
Neste agosto, o cineasta Sérgio Muniz foi cinepoetar em outras bandas. Partiu de forma serena, como sempre havia desejado. Foi encontrar os companheiros Maurice Capovilla, Geraldo Sarno, Thomaz Farkas, Glauber Rocha e tantos outros nomes do nosso cinema estrelado.
Sérgio, que foi tantos – cineasta, poeta, acadêmico, gestor público, militante – é agora mais uma estrela no firmamento. E que estrela! Um homem-astro, que ainda nos anos 60, participou ativamente do que mais adiante seria chamado de Caravana Farkas[1]. Um grupo de jovens cineastas reunidos em torno do fotógrafo e produtor Thomaz Farkas, um visionário que resolveu desbravar o interior do Brasil, registrando a cultura popular por meio de câmeras leves e gravadores portáteis recém-chegados do estrangeiro. Eram os primórdios do cinema-direto no Brasil, que conseguia trazer para as capitais as realidades "desconhecidas" deste nosso imenso país-colcha-de-retalhos.
Sérgio-cineasta-militante participava de passeatas, movimentos contra a ditadura, tendo tido até a ousadia de realizar clandestinamente um documentário que abalou as estruturas: Você Também Pode Dar um Presunto Legal (1971/2006). Um filme sobre a ação do Esquadrão da Morte e do Delegado Fleury, chefe do DOPS, naqueles duros anos de ditadura militar. Os negativos tiveram que ser levados para Cuba e o filme foi editado e finalizado entre a Ilha, a França e a Itália, ficando pronto apenas em 1974[2]. Na ocasião, a conselho de amigos, Sérgio achou por bem não exibi-lo no Brasil, para não colocar em risco sua vida, tampouco a das outras figuras envolvidas em sua produção. Ainda assim, era preciso mostrar, denunciar! O cineasta-militante resolveu, então, distribuir o filme de forma gratuita e clandestina. E, por via das dúvidas, guardou uma cópia VHS bem escondida em um baú.
Nos anos 80, Sérgio-cineasta-acadêmico atravessou fronteiras e se tornou o primeiro Diretor Acadêmico da utópica Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Uma instituição criada pelo argentino Fernando Birri – “pai do Novo Cinema Latino-americano”–, pelo grande escritor colombiano Gabriel García Marquez e por outros cineastas latino-americanos de peso. Tudo com o aval de Fidel Castro, claro.
Após a experiência cubana, Sérgio-cineasta-gestor-público foi trabalhar com Marilena Chauí, quando a filósofa ocupava a Secretaria Municipal de São Paulo, na gestão da prefeita Luiza Erundina (1989 – 1992). Trabalhou também na Secretaria do Estado, onde desenvolveu projetos de ensino de audiovisuais para o Museu da Imagem e Som (MIS), tendo sido ainda consultor para a área de cinema do Memorial da América Latina.
De lá pra cá, muitas foram as realizações deste homem múltiplo, tanto dentro como fora do campo cinematográfico. No ano passado, por exemplo, do alto de seus 87 anos, colocou uma máscara para se proteger do coronavírus e foi para as ruas protestar em favor da democracia. O homem era danado de forte e nada o impedia de seguir o rumo de sua militância pela justiça social!
Sérgio era forte sim, mas também extremamente sensível. Era poeta e escrevia livros… Entre eles, "En San Antonio y São Paulo ou…" (1997), que tive o privilégio de receber autografado em Santa Fe, Argentina, em um belo encontro sobre os protagonistas do Brasil Verdade (1968) - conjunto de documentários produzidos entre 1964 e1965 por uma equipe de argentinos e brasileiros[3]. Foi a partir daquele encontro santafesino que nasceu nossa amizade. Assim como nasceu também nosso desafio poético. A ideia, saída de sua cabeça jovem e sonhadora, era a de fazer releituras de trechos de poemas já conhecidos. Para mim, um presente dos Sérgios!
Sérgio-cineasta-poeta-acadêmico-gestor-público-militante foi, finalmente, um dia de sol na vida de muita gente. Além do fantástico exemplo de como se realizar filmes em um país mergulhado nas águas turvas da ditadura, foi ainda uma lição de ética, coerência, criatividade, talento e, mais que tudo, de ombro amigo.
Vá em paz, Sérgio-amigo! Que o “más-allá" te receba de braços abertos!
¡Hasta siempre, amigo!
[1] Nome cunhado por Eduardo Escorel nos anos 90.
[2] Em 2006, Sérgio Muniz digitalizou o filme, substituindo a narração antiga por uma mais atual, e acrescentando alguns novos materiais, como recortes de jornais e revistas, imagens de televisão, e ainda transcrição de depoimentos de pessoas torturadas e fragmentos das obras de teatro "A Resistível Ascensão de Arturo Ui" (Bertold Brecht) e "O Interrogatório" (Peter Weiss).
[3] Estes quatro documentários estão na origem da futura “Caravana Farkas”.
Morre Jean-Luc Godard, o grande mestre da nouvelle vague no cinema, aos 91
Inácio Araujo*, Folha de São Paulo
Jean-Luc Godard, o ícone da nouvelle vague, morreu nesta terça-feira. Ele teria recorrido ao suicídio assistido, não por estar doente, mas muito cansado, de acordo com o relato de um familiar ao jornal francês Libération. A prática é permitida na Suíça, onde Godard vivia.
O diretor por trás de uma revolução no cinema veio de uma família de banqueiros riquíssima, mas procurou se afastar por completo dessa riqueza e foi como operário que financiou seu primeiro curta-metragem.
Mais tarde, já morando em Paris, ele roubou do avô um exemplar de um livro autografado por Paul Valéry especialmente para o avô, de quem era muito amigo. Godard podia ter pedido dinheiro em casa, mas preferiu o furto. Era sua forma de mostrar o desejo de independência.
Quando escreve seu primeiro artigo para a já mundialmente famosa revista Cahiers du Cinéma, há 70 anos, deu ao seu texto o nome de "Defesa e Ilustração da Decupagem Clássica". Expunha ali as virtudes dos filmes feitos e montados à maneira clássica, pois, como explicitaria quatro anos mais tarde, a montagem e a direção de um filme são a mesmíssima coisa.
Isso ele fez na revista daquele que foi "o pai espiritual" dos jovens redatores da revista —André Bazin, o criador da teoria realista do cinema moderno, para quem a montagem era não mais do que uma trapaça.
Jean-Luc Godard foi assim desde sempre —iconoclasta. Gostava de pôr tudo em questão, até ele mesmo.
Confira filmes de Jean-Luc Godard
Em 1959, questionaria o cinema inteiro, com "Acossado", sua retumbante estreia. Tudo era improvisado. Não havia roteiro. Pela manhã, o diretor tomava as notas sobre o que pretendia filmar naquele dia. Encerrava as filmagens quando entendia que a inspiração tinha acabado.
A classe cinematográfica tradicional, tão atacada nos Cahiers pela turma da nouvelle vague, se regozijava com aquele filme que, diziam, seria impossível de montar.
Doce ilusão. Não só "deu montagem", como a mais moderna do mundo. Aquela em que cada "raccord" —isto é, o encontro entre dois planos— parecia desafiar os postulados do "bom cinema" e anunciar o futuro de sua arte.
Desde então mudaram os parâmetros da montagem. Mas também os da filmagem. Com seu fotógrafo, Raoul Coutard, criou um estilo de reportagem, cinema com câmera na mão, sem luz artificial, ou quase, captação das ruas ao vivo, longe dos estúdios, um tanto de ficção e um tanto de documentário no mesmo filme.
Godard libertou o cinema de todas as convenções que o prendiam a um determinado tipo de forma. Sacudiu a poeira da sua arte com tal ênfase que com um único filme se tornou um diretor essencial para o conhecimento do cinema.
Sua arte era "a verdade em 24 quadros por segundo", disse. Era também a mais próxima do homem, pois a única que o captava por inteiro em seu tempo e espaço, sem intermediários. Mestre das frases de efeito (mas não só de efeito), postulou, com seu amigo Eric Rohmer, a superioridade de sua arte —"o cinema é um pensamento que toma forma, bem como uma forma que permite pensar".
Godard gostava da liberdade. Inclusive da de mudar de filme para filme. Cada filme era um novo experimento. Gostava, por isso mesmo, do cinema mudo, aquele de um tempo "em que o cinema ainda não sabia o que era" e se buscava, filme após filme. Antes de ser arte ou modo de expressão, o cinema se confundia então com a liberdade e a descoberta permanente.
Quando passou da crítica à direção, Godard desafiou todas as regras estabelecidas. Se as regras diziam que não se faz um primeiro plano com lente grande angular, ele fazia. Se diziam que não se pode usar branco para evitar o brilho, ele usava. Cada filme parecia ir em um sentido diferente do anterior. A contradição não deixa de ser uma forma de arte.
Além de Raoul Coutard, o fotógrafo, sua companheira nessa primeira fase foi a atriz dinamarquesa Anna Karina, por quem se encantou vendo um filme publicitário e com quem se casaria pouco depois, lançando seu rosto, já, em "Uma Mulher É u ma Mulher", de 1961.
O casamento duraria menos que a parceria. "Alphaville", de 1965, é o primeiro filme que eles fizeram depois da separação —e em não poucos momentos uma declaração de amor do cineasta por sua musa. Fariam ainda "Made in USA", de 1966.
A única fidelidade de Godard, desde então e até agora, foi à atualidade. Podemos vasculhar sua filmografia. É sempre do presente, de algo que o atrai ou inquieta que seus filmes estão falando. Além disso, se permitiu sempre ser contraditório.
A contradição atingiu também sua vida pessoal, como relata sua segunda ex-mulher, Anne Wiazemsky. Tão revolucionário na arte, podia ser doentiamente ciumento em casa. Casa que, por sinal, podia usar como locação. É Wiazemsky, de novo, quem relata a dureza de ser forçada a retomar pelo diretor, em cena, na manhã seguinte, a mesma discussão que tivera com ele, e no mesmo lugar, na noite anterior.
Para o bem e para o mal, assim construía sua arte. Seu amigo Eric Rohmer, também diretor, dizia que Godard era como um ladrão, que pilhava uma imagem aqui, uma citação literária ali, depois um trecho de música, depois a imagem de um outro filme, juntava tudo e transformava numa ideia própria. Assim montava seus painéis, colando pedaço a pedaço, às vezes desorientando o espectador que por vezes procurava ali uma profundidade que Godard mesmo nunca procurou. Sua arte era a do olhar, a da pele.
Era, também, do momento. Cada filme de Godard é uma espécie de documentário sobre o momento em que é feito —"O Pequeno Soldado", a Guerra da Argélia; "Alphaville", o totalitarismo informativo; "O Demônio das Onze Horas", a sociedade de consumo; "Weekend", a sociedade automobilística e seus congestionamentos-monstro; "A Chinesa" e a ascensão do maoísmo.
A esse último, por sinal, Godard aderiu nos idos de 1968. Renegou sua obra anterior, deixou o cinema comercial, passou a fazer filmes coletivos destinados à classe operária, que, verdade seja dita, não se sensibilizava muito com eles.
Godard passou daí às séries em vídeo, quando nenhum cineasta ousava usar essa tecnologia. Que importa? Godard experimentava. Foi experimentando que chegou à TV, com as séries "Seis Vezes Dois", de 1976, e "France, Tour, Détour, Deux Enfants", de 1977.
A partir daí, seus filmes podem ser definidos, cada vez mais, por um novo gênero —o ensaio cinematográfico. Nem ficção, nem documentário, às vezes os dois, às vezes nenhum. Voltou ao circuito comercial com "Salve-se Quem Puder (A Vida)".
Ora trouxe grandes estrelas, como Johnny Halliday e Isabelle Huppert, ora lançou talentos, como Marushka Detmers. Cada vez mais solitário, ele se recolheu à sua casa na Suíça e, não raro, apenas juntando pedaços de filmes de outros, soube impor, pela montagem, sua visão das coisas. Falou das guerras na Europa, da ascensão do neoliberalismo, da América, do socialismo.
Desde "Acossado", que sedimentou também o poder de seu ator-fetiche Jean-Paul Belmondo, até os mais recentes filmes-ensaio, é possível gostar ou não de sua arte, "entender" ou não o que está lá, achar chato ou não. Mas três coisas não se poderá negar: a primeira é que se contam nos dedos os artistas com a inteligência e a inquietude de Godard; a segunda, cada vez que ele pôs a câmera para filmar, combinou cores, moveu seus atores e produziu beleza; a terceira, desde que começou a filmar o cinema nunca mais foi o mesmo.
O solo em que pisamos, quem o fecundou foi Godard. Com chatices e erros, mas também e sobretudo com gênio e grandeza.
*Texto publicado originalmente no portal da Folha de São Paulo.
Acervo Capixaba exibe obra de Orlando Bomfim Netto
Entre as possibilidades de trabalho curricular a partir dos filmes podem ser exploradas a cultura popular, pesquisa etnográfica, patrimônio histórico, educação ambiental
O projeto “Acervo Capixaba – Orlando Bomfim Netto”, coordenado por Marcos Valério Guimarães, restaurou, digitalizou e difunde parte da obra de um dos mais importantes documentaristas brasileiros. Orlando Bomfim Netto foi o primeiro cineasta a registrar sistematicamente, a partir da década de 1970, aspectos da cultura do Espírito Santo em documentários que se tornaram peças importantes do patrimônio histórico e da cinematografia capixabas.
O projeto Acervo Capixaba digitalizou e restaurou as cópias de sete filmes, em 35mm e 16mm, produzindo novas cópias de exibição em formato digital, novas cópias de preservação do material escaneado em 4K e a reunidos diversos materiais relativos aos filmes, como fotografias, cartazes, críticas e reportagens publicadas à época.
Integram o projeto os filmes “Itaúnas, Desastre Ecológico” (1979, cor, 8′); “Tutti, Tutti, Buona Gente, propriamente buona” (1975, cor, 26′); “Mestre Pedro de Aurora, prá ficar menos custoso” (1978, cor, 10′); “Ticumbi – Canto para a liberdade” (1978, cor, 20′); “Augusto Ruschi Guainunbi” (1979, cor, 10′); “Dos Reis Magos aos Tupiniquim” (1985, cor, 10′), produzidos no Espírito Santo, e também a produção carioca “O Bondinho de Santa Tereza” (1977, cor, 28′).
O projeto “Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto” foi patrocinado pelo Fundo de Cultura do Estado do Espírito Santo (Funcultura). Acervo Capixaba é um selo da Pique-Bandeira Filmes para o relançamento de obras cinematográficas capixabas digitalizadas.
Produtora:
Pique-Bandeira Filmes
Idealização e Coordenação do Projeto:
Marcos Valério Guimarães
Produção Executiva:
Vitor Graize
Produção:
Igor Pontini, Vitor Graize
Digitalização e Remasterização:
Afinal Filmes
Fotos Divulgação:
Bianca Sperandio
Como contrapartida social da Lei Aldir Blanc, os filmes estão disponibilizados por meio de link gratuitamente
Acervo no link (playlist): https://www.youtube.com/playlist?list=PLPRi2drgWDaebzPTslRcWusrtC_qeqJnJ
VÍDEOS – ACERVO CAPIXABA ORLANDO BOMFIM NETTO
'Golpe de 64 mergulhou o país em ditadura de 21 anos', lembra João Batista
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de março, cineasta e escritor faz uma visão saudosista do período antes da ditadura militar
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O cineasta e escritor João Batista faz um relato emocionante da migração do cinema para a literatura, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março. A publicação mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
No início da década de 1960 do século 20, conforme ele conta, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. “O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país em uma ditadura de 21 anos”, lembra ele.
“Para minha geração, o cinema encarnava uma utopia vigorosa”, afirma. “Vindo do interior mineiro, entrei na Poli (Escola Politécnica da USP) em 1960, já com 20 anos, muita imaginação, crise existencial profunda e pouco conhecimento cultural”, lembra.
“Rica formação”
Batista conta que as crises se sucediam, principalmente em meio à eleição de Jânio, renúncia com golpe explícito, militares tentavam impedir a posse de Jango, mas, segundo ele, Jango tomava posse gerando um governo popular seguindo a mesma crise que se aprofundava até o golpe de 1964. “De qualquer maneira, um período rico de formação”, diz.
“Em quatro anos passando da esperança, da luta à derrota para os militares, enquanto, bebendo do porre democrático do governo JK, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade”, relata. “Bossa Nova, Teatro Novo, Cinema Novo. Minha geração finalmente tinha sua trilha traçada rumo ao futuro, distanciando-se de uma Brasil atrasado e pobre”, acrescenta.
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Face deletéria de Bolsonaro é destaque da Política Democrática Online de março
Veja todas as 29 edições da revista Política Democrática Online
RPD || João Batista Andrade: Migração do cinema para a literatura
No início da década de 1960 do século XX a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país em uma ditadura de 21 anos, lembra o cineasta e escritor João Batista de Andrade
Para minha geração, o cinema encarnava uma utopia vigorosa.
Vindo do interior mineiro, entrei na Poli (Escola Politécnica da USP) em 1960, já com vinte anos, muita imaginação, crise existencial profunda e pouco conhecimento cultural.
As crises se sucediam, eleição de Jânio, renúncia com golpe explícito, militares tentavam impedir a posse de Jango, mas Jango tomava posse gerando um governo popular seguindo a mesma crise que se aprofundava até o golpe de 1964. De qualquer maneira, um período rico de formação.
Em quatro anos passando da esperança, da luta à derrota para os militares, enquanto, bebendo do porre democrático do governo JK, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. Bossa Nova, Teatro Novo, Cinema Novo. Minha geração finalmente tinha sua trilha traçada rumo ao futuro, distanciando-se de uma Brasil atrasado e pobre.
O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país e minha juventude no absurdo de uma ditadura de 21 anos.
Eu já filmava e escrevia.
Hoje escrevo.
MUDANÇA DE HÁBITOS
Poderia escrever: escritor, cineasta.
Ou cineasta, e basta?
Escritor, catador de latas, doutor
Ou nada, parte de uma casta?
Rico, remediado ou vivendo de favor?
Onde estará o bom, o certo, o novo?
No cinema, na literatura ou no viver?
O mundo gira e minha cabeça arde
Em busca de saídas, alguma solução
Mas o povo, o povo, onde está o povo?
Não quero filmar praças e ruas vazias
E morrer nas salas de cinema que me odeiam!
Quem vê o que filmo?
Quem lê o que escrevo?
Quem quer saber o que fiz de novo?
Quem toca no que desenho, esculpo
Senão aqueles que vivem sob tantas perguntas?
Nada me tira desse labirinto
Nem adianta dizer sou negro
Sou índio, sou analfabeto, pobre
Como se tudo não passasse de um capricho
Sou o que sou, sem passado nem futuro
Catando pedras brilhantes onde pobres catam lixo
Só não quero ainda morrer
Nem de vírus nem de tristeza
Sem filmar, prefiro escrever
Escapando ao meu pobre destino
E é o que sempre fiz e faço agora
Um tanto alegre, um tanto comovido
Como escritor, era quase clandestino
Já que cada imagem tem seu santo
E dizem que não se pode ser os dois
Coisa que na vida sempre quis ser três
Como escritor, político, cineasta
Clandestino nunca fui, na arte ou no saber
Mesmo na política, meu nome é JB
Tantas vezes alertado e proibido
Fotografado, filmado e perseguido
Sempre criei desafios aos donos do poder
Cinema Brasileiro morreu tantas vezes
E pateticamente soube reviver
E vive mais do estado do que do sucesso
Nada paga o que se filma, monta, copia
E exibe em salas tão estrangeiras
Há impostos criados para o cinema
Mas há também impostores no caminho
-Para onde vai agora essa famosa grana?
Destino incerto, olhos e bolsos ligeiros…
Tristes utopias dos cinemas nacionais
Com mercados tão facilmente tomados!
Mãos de ratos nos tomam os impostos pagos
Para usar em suas regalias mortais
O Cinema Brasileiro, de olhar perdido
Leva fama injusta, tão usada e infeliz
Quando na verdade somos tão pequenos
Diante das bocas gigantes que nos sugam
O mesmo Estado, sempre enlouquecido
Refém de mãos tão ávidas quanto sujas
Mata-nos como piolhos sob o pente
Com um simples rabisco de caneta bic
Sabemos, sempre soubemos e sofremos
Numa disfarçada ou descarada ditadura
Tudo começa com perseguições, mortes
E a destruição de nossa cultura!
Ao escrever, parece que deixo o ringue
Onde lutei a vida inteira pela utopia
Cineasta da miséria, da fome e do sangue
Estaria jogando a toalha, triste dia…
-Nada disso! Nada disso, senhores
Procuro o melhor lugar dessa guerra
E onde possa buscar o povo, meus leitores!
Escrever é revirar entulhos em busca de vida
É procurar no lixo o que nos chama e pulsa.
Por isso aguardem o novo livro de ficção:
1964- Uma bomba na Escuridão
Romance de ficção
Crise e sofrimento vivencial
Para ler, sentir, gostar
Textos escritos por mim, perdido
Durante e depois do golpe militar.
Em formato novo, buscando o leitor digital
Escapando do cerco das salas e livrarias
Fugindo das prateleiras tomadas por autoajudas
Longe desse vil comércio elitista e mortal
Falsas ciências e outras tantas porcarias!
Filho de índios e negros sem os conhecer
Afinal, quem sou?
Não, não quero, ainda não posso morrer
Mesmo que agora, mal saiba viver.
* Cineasta, escritor.