ciência
Ruy Castro: O porquê de tanta macheza
Bolsonaro não pode mais deixar o poder, daí as armas, a blindagem e os jagunços, dentro ou fora da lei
Sem essa de maricas no seu quintal. Jair Bolsonaro gosta de se cercar de rapazes fortes, marombados. Daniel de Tal, ex-PM e YouTuber federal, é um deles. Há dias, para impressionar Bolsonaro, o bofe gravou um vídeo pregando o fechamento da democracia e ameaçando bater com um gato morto nos 11 senhores do STF, que, juntos, passam de 700 anos de idade. Outro favorito de Bolsonaro era o também ex-PM e também he-man Adriano Nóbrega. Mas a vida dá voltas. Daniel tornou-se um estorvo para Bolsonaro e foi jogado ao mar. E, por motivo de força maior, em 2020, na Bahia, Adriano foi convencido a ir para o céu.
Por sorte, abundam reposições. Bolsonaro, como se sabe, prestigia qualquer formatura de PMs e bombeiros. Não apenas se sente bem entre aqueles coletes e coturnos, como admira a constância com que as duas corporações suprem a milícia —três forças com que um dia precisará contar numa eventualidade. Para se garantir e não correr riscos, Bolsonaro igualmente não perde as formaturas de cadetes, certo de que os jovens oficiais lhe serão mais eficientes do que os generais puídos e babões que hoje o avalizam.
Completando seu fascínio pelos homens de ação, Bolsonaro tenta a todo custo “flexibilizar” os decretos que restringem armas de fogo. Por ele, qualquer bonitão capaz de aguentar no braço o tranco de um fuzil ao disparar deve ter o direito de portar esse fuzil e usá-lo contra os inimigos da pátria, como os globalistas, constitucionalistas, jornalistas e outros comunistas que ameaçarem sua perpetuação no poder.
Sim, porque esse é o objetivo de tanta macheza. Bolsonaro já foi alertado de que não pode mais deixar o poder. Precisa dele —blindando-se, armando-se, cercando-se de jagunços, dentro ou fora da lei— para não ser levado ao banco dos réus.
Do qual, se se sentar, pode nunca mais se levantar. Só a contagem de seus crimes levará décadas.
Hélio Schwartsman: A fé na ciência
A ciência é como a democracia e o melhor que temos para produzir conclusões provisórias que dependem mais da realidade do que dos desejos
Precisamos nos guiar pela ciência. Estou entre os primeiros a subscrever essa ideia, mas é preciso cuidado para não estabelecer com a ciência uma relação tão dogmática quanto a que se tem com as religiões.
Para início de conversa, a ciência quase nunca oferece certezas. Ela trabalha mais é com probabilidades, e todas as conclusões que ela permite devem ser tratadas como verdades provisórias. E é preciso enfatizar o “provisórias”.
Todas as teorias científicas produzidas até aqui se mostraram erradas, como é o caso da teoria médica dos humores, de Hipócrates e Galeno, ou gravemente incompletas, como a física newtoniana. Não temos nenhuma razão para acreditar que as teorias correntes, que ainda não fomos capazes de avaliar com precisão, experimentarão um destino muito diferente.
Um observador sensato deveria trabalhar com a perspectiva de que tudo o que a ciência considera conhecimento certo hoje não o será amanhã. E isso pensando só em termos de teorias. Se formos às pesquisas acadêmicas propriamente ditas, o arroz com feijão da ciência, o panorama é até pior.
Por uma série de problemas, que vão da metodologia à estrutura das carreiras e das publicações, boa parte das conclusões de trabalhos científicos que são feitos atualmente está errada. Nas contas de John Ioannidis (Stanford), a maioria das pesquisas em medicina não merece crédito. Para Jeffrey Leek (Universidade de Washington), os erros alcançam só 14% dos estudos. Os números melhoram na física, mas pioram nas ciências sociais e na psicologia.
Se as coisas são tão precárias, por que seguir a ciência? Creio que a ciência é um pouco como a democracia. É um sistema confuso, cheio de ruídos e distante de qualquer ideal. Ainda assim, é o melhor sistema que temos, se não para encontrar verdades, para produzir conclusões provisórias que dependem mais da realidade do que de nossos desejos. Não é pouco.
Luiz Carlos Azedo: Pra chamar de nossas
Há uma revolução na produção de vacinas. Essa é a notícia boa. A notícia ruim é o que está acontecendo em Manaus, onde o SUS entrou em colapso por falta de oxigênio
A guerra das vacinas entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Doria é como um copo pela metade: de um lado, gera muita desinformação sobre imunização da população; de outro, promove uma corrida para ver quem vai vacinar primeiro. Entretanto, vamos tratar das vacinas que estão sendo produzidas no Brasil, tanto pelo Instituto Butantan quanto pela Fiocruz, que são as que vão resolver o nosso problema. A Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) divulgou nota na qual esclareceu que os estudos realizados para testagem de diferentes imunizantes utilizaram critérios distintos.
Por exemplo, no estudo da americana Moderna, foram considerados dois sintomas de um grupo formado por febre, arrepios, dor no corpo, dor de cabeça, dor de garganta, perda de olfato ou paladar com diagnóstico viral confirmado ou um sintoma grave, como falta de ar, tosse, diagnóstico radiológico como casos de covid-19. Ou seja, dois sintomas leves ou um sintoma grave. No estudo da AstraZeneca (Oxford), um sintoma do grupo formado por febre, tosse, falta de ar, perda de olfato ou paladar; ou seja, a maioria sintomas leves, mais um grave (falta de ar), para fechar o diagnóstico.
No estudo do Instituto Butantan, foram considerados casos com qualquer um dos sintomas leves, mais sintomas não incluídos por outros estudos: náusea, vômito e diarreia. Em consequência, esse estudo abriu margem para detecção de mais casos por diagnóstico molecular, que, nos demais estudos, provavelmente, não foram detectados — por não serem considerados sintomáticos. Além disso, focou nos graus de gravidade da doença sugeridos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ao contrário dos demais.
A diferença de parâmetros parece maluquice, mas é um reflexo do avanços da ciência em busca da vacina. Na verdade, as tecnologias também são diferentes e não existe uma padronização para os estudos da fase III, embora a Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, e a nossa SBI recomendem isso. Por exemplo, enquanto a CoronaVac utiliza os métodos tradicionais de produção de vacina, os imunizantes da Oxford e a Sputnik V, por meio de engenharia genética, usaram os adenovírus como “meio de transporte” de genes codificando a proteína S do novo coronavírus (Sars-CoV- 2). Uma vez inoculado, o adenovírus com o gene do coronavírus induz uma resposta imunológica no corpo humano.
Segunda onda
As vacinas BioNTech/Pfizer e Moderna, que já estão sendo aplicadas nos Estados Unidos, também resultam de uma abordagem revolucionária, aplicável a quaisquer vacinas futuras: um vírus é sequenciado, recebe uma parte inofensiva em mRNA, corrigido de modo a não ser imuno-rejeitado, que garante a imunização. Há uma revolução na produção de vacinas. Essa é a notícia boa.
A notícia ruim é o que está acontecendo em Manaus, onde o SUS entrou em colapso por falta de oxigênio, tragédia que pode se reproduzir em outros estados onde a segunda onda já chegou. Não foi à toa que o Reino Unido fechou suas fronteiras para passageiros oriundos do nosso país e de nossos vizinhos. A existência de uma variante brasileira do vírus, confirmada em Manaus, é ainda mais ameaçadora porque os anticorpos de quem já teve a doença, segundo recente pesquisa, garantem imunidade por um período de cinco a seis meses, o que explica o aumento de casos de reinfecção.
O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, corre para conseguir uma vacina para o presidente Jair Bolsonaro chamar de sua, no caso, a vacina da Oxford produzida na Índia. Ao mesmo tempo, faz suspense sobre a aprovação da CoronaVac. Não estamos, porém, numa guerra civil, como a Revolução Constitucionalista de 1932, estamos numa pandemia. Segundo a SBI, os números totais dos estudos das vacinas da Fiocruz (Oxford) e da vacina do Instituto Butantan (CoronaVac) são muito semelhantes. Entretanto, a vacina da Fiocruz foi testada na população geral, e a do Instituto Butantan, em profissionais de saúde atendendo pacientes da covid-19. O que o estudo do Instituto Butantan diz é que houve redução em 50% de qualquer sintoma na população de profissionais da saúde; e o da Oxford, em 62% de toda a população. Em ambos os casos, o mais importante é que evitam internações e mortes, desde que haja, realmente, vacinação em massa.
Luiz Carlos Azedo: No dia D, na hora H
Historicamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições de vacinar 10 milhões de pessoas por dia, mas passa por um de seus piores momentos
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, evita cravar uma data de início para a vacinação contra a covid-19 no país. Disse ontem, em Manaus, que a imunização vai começar “no dia D e hora H”. Parece piada pronta: o começo da vacinação está sendo tratado como um segredo militar. O mais provável, porém, é que o Ministério da Saúde não saiba mesmo quando terá vacinas, seringas e agulhas disponíveis. Desculpem-me o trocadilho, o Dia D é um agá.
Na História, o chamado Dia D foi um segredo guardado a sete chaves pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial. No dia 6 de junho de 1944, a Operação Overlord iniciou o desembarque das tropas aliadas na Normandia, no norte da França. A Alemanha passava por um momento delicado na guerra. A força do exército alemão havia sido contida pelos soviéticos a partir de 1942. Os desgastes que o fronte na União Soviética geraram foram muito altos, principalmente em Stalingrado e Kursk, e a Alemanha carecia de recursos para manter a guerra no nível necessário.
Os objetivos dos Aliados, ao planejar a invasão da Normandia, foram: (1) libertar a França do controle nazista, ao qual estava submetida desde 1940 e, ao criar uma nova frente de batalha (a oeste), (2) aumentar a pressão sobre a Alemanha, atacada ao leste pela União Soviética e ao sul (na Itália) por americanos e britânicos. A Operação Overlord foi vista com desconfiança pelos britânicos, ainda traumatizados pela dramática retirada de Dunquerque, no começo da invasão da França, quando foram encurralados na praia pelos alemães. Temiam um fracasso, ainda mais em razão das ofensivas desastradas no Mar Mediterrâneo e na costa italiana, onde faltou apoio aéreo.
A operação, porém, foi um sucesso; as batalhas mais duras ocorreram depois do desembarque, principalmente em Ardenas, quando os alemães tentaram uma contraofensiva ao se retirar da França. A Alemanha nazista sabia que um ataque Aliado contra a Normandia aconteceria, mas não quando e onde exatamente isso seria feito. As vãs esperanças de Hitler estavam depositadas na famosa Muralha do Atlântico, linha defensiva criada pelos alemães nos territórios ocupados na costa francesa. As operações do Dia D contaram com 5.300 navios, que realizaram o transporte de cerca de 150 mil homens e de 1.500 tanques, com apoio de 12 mil aeronaves, em cinco praias francesas, cuja conquista permitiu que os Aliados conseguissem posicionar mais 300 mil soldados na Normandia até o final do dia 7 de junho, com perda de apenas três mil soldados mortos.
Guerra da vacina
O custo da guerra da vacina entre o Ministério da Saúde e o governo de São Paulo no Brasil está sendo muito maior. A média móvel da última semana foi de 1.016 mortes por dia por covid-19, chegando à marca de 203.140 mortos, ontem, de um total 8,104 milhões de contaminados. Historicamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições de vacinar 10 milhões de pessoas por dia, mas passa por um de seus piores momentos. “No primeiro dia que chegar a vacina, ou que a autorização for feita, a partir do terceiro ou quarto dia, já estará nos estados e municípios para começar a vacinação no Brasil”, garante o general Pazuello.
Pela primeira vez, o objetivo não será a imunidade completa, mas frear a contaminação, com a aplicação de, pelo menos, uma dose do imunizante do laboratório Astrazeneca em parceria com a Universidade de Oxford, importado às pressas da Índia (2 milhões de doses), enquanto a Anvisa faz novas exigências para liberação das vacinas produzidas pelo Instituto Butantan (CoronaVac) e pela própria Fiocruz (Oxford).
Para iniciar a campanha antes de São Paulo, que pretende imunizar a partir do dia 25 de janeiro, data de aniversário de fundação da capital paulista, Pazuello quer reinventar a roda, a pedido do presidente Jair Bolsonaro: “Com duas doses você vai a 90 e tantos por cento (de imunização); com uma dose, vai a 71%. Com 71%, talvez a gente entre para imunização em massa, é uma estratégia que a Secretaria de Vigilância em Saúde vai fazer para reduzir a pandemia. Talvez, o foco seja não na imunidade completa, mas, sim, a redução da contaminação e, aí, a pandemia diminui muito. Podendo aplicar a segunda dose na sequência, chegando a 90%”, disse. Trocando em miúdos, é tudo para inglês ver; pois, por enquanto, faltam vacinas para atender até mesmo os grupos de risco.
Pazulello, porém, garante que o Ministério da Saúde nunca deixou de trabalhar tecnicamente com o Butantan para comprar a vacina, “quando estiver registrada e garantida a segurança e eficácia pela Anvisa ou autorização de uso emergencial (…). Onde está a dificuldade? Não há registro na China nem autorização de uso emergencial ainda. E a Anvisa tem tido dificuldades de receber toda essa documentação pronta. Nós estamos trabalhando com o Butantan direto para que ele forneça essa documentação”, justifica Pazuello. O Butantan, em parceria com um laboratório chinês Sinovac, já produziu 2,8 milhões de doses, além de 6 milhões que importou diretamente da própria China e que serão destinadas ao Ministério da Saúde.
Luiz Carlos Azedo: Perdido na pandemia
Bolsonaro não sabe o que fazer em meio à pandemia do novo coronavírus, pois nem crise sanitária nem recessão se resolvem com negacionismo, mas com ações governamentais
“O Brasil está quebrado. Não consigo fazer nada” — disse, com todas as letras, o presidente Jair Bolsonaro, ontem, queixando-se da situação em que se encontra o governo federal. Para não variar, culpou a imprensa e se fez de vítima, mas o estrago está feito. Além de terem virado piada pronta nas redes sociais e motivo de chacota nos meios políticos, suas palavras são um desastre para a economia. O impacto de uma afirmação dessa natureza junto aos agentes econômicos e investidores estrangeiros pode ser avassalador.
Poderiam ser ditas por qualquer empreendedor em dificuldades financeiras ou trabalhador desempregado, porém, na boca do presidente da República, essas afirmações funcionam como uma mensagem de desesperança. Revelam que Bolsonaro não sabe o que fazer em meio à pandemia do novo coronavírus, pois nem crise sanitária nem recessão se resolvem com negacionismo, mas com ações governamentais. Não chega a ser uma novidade, porque o presidente da República sempre disse que não entende de economia e que, nesse métier, quem daria as cartas seria o ministro da Economia.
Entretanto, o Ministério da Economia passou recibo de que não tem dinheiro em caixa. O governo brasileiro não honrou o pagamento da penúltima parcela de US$ 292 milhões para o aporte de capital no Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), a instituição financeira criada pelos cinco países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O prazo para a quitação da parcela terminou no último dia 3. Agora, o Brasil está inadimplente com o banco que ajudou a fundar e é um dos acionistas.
Por incompetência do Palácio do Planalto, o dinheiro para o pagamento da parcela da dívida com o Banco do Brics e outros compromissos com os bancos multilaterais ficou fora do projeto de lei que foi votado no fim do ano para remanejar despesas do Orçamento de 2020 e atender a demandas de obras de interesse do governo e emendas de parlamentares aliados. É um vexame: ficamos inadimplentes justamente no ano em que o brasileiro Marcos Troyjo assumiu a presidência da instituição por indicação do governo Bolsonaro, com US$ 3,5 bilhões em financiamentos aprovados para o Brasil, em 2020.
Fora de foco
No fim do ano, o argumento para votar correndo o texto de remanejamento das verbas do Orçamento do ano passado, na frente de votação de outros projetos importante — como o aumento do Bolsa Família ou a revisão da tabela do Imposto de Renda — foi o de que o governo precisava honrar os seus compromissos com organismos multilaterais e não podia ficar com a imagem arranhada na comunidade internacional.
Não à toa, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), subiu nas tamancas ontem. O Ministério da Fazenda tentou responsabilizar o Congresso, mas foi a própria base do governo que manobrou para que não houvesse convocação extraordinária durante o recesso parlamentar. A prioridade do Palácio do Planalto é a disputa pelo controle das Mesas da Câmara e do Senado e, para os candidatos governistas, reunir o Congresso daria palanque para a oposição.
Mesmo assim, Bolsonaro se faz de vítima: “Queria mexer na tabela de Imposto de Renda. Esse vírus potencializado pela mídia que nós temos, essa mídia sem caráter que nós temos. É um trabalho incessante de tentar desgastar para retirar a gente daqui para voltar alguém para atender os interesses escusos da mídia”, disse. Assim, o presidente passou recibo de que não está fazendo as entregas que deveria, depois de dois anos de mandato.
Talvez por isso tenha sido organizada a sua “visita técnica” ao Ministério da Saúde, que durou quase duas horas. Segundo o ministro Eduardo Pazuello, Bolsonaro se inteirou das providências que estão sendo tomadas para comprar vacinas, agulhas e seringas para a campanha de vacinação contra a covid-19. O presidente da República saiu da reunião sem dar entrevistas. Moral da história: continuamos sem saber quando começará a campanha de vacinação.
Luiz Carlos Azedo: O ano que não começou
No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó
2021 é uma espécie de ano que ainda não começou, perdoem-me o trocadilho com o título do livro de Zuenir Ventura, 1968: o ano que não terminou. Talvez, o sinal mais emblemático de que ainda estamos vivendo no ano passado sejam os passeios do presidente Jair Bolsonaro em Guarujá (SP), nos quais voltou a provocar aglomerações e circular sem máscaras com assessores e seguranças da Presidência. Mais déjà-vu, impossível. 2020 foi um ano perdido, com 196 mil mortos pela covid-19, e parece que não quer acabar.
Para a maioria da população, o ano somente vai começar quando a vacina chegar. O negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e suas declarações sobre a real necessidade de as pessoas se vacinarem são uma cortina de fumaça para a incompetência do seu governo no enfrentamento da crise sanitária. O aumento exponencial do número de casos no mês de dezembro é um recado claro de que é impossível restabelecer plenamente as atividades econômicas sem a imunização em massa da população. A chegada do vírus mutante da Inglaterra é uma preocupação a mais, pela velocidade de sua propagação.
O tempo, porém, não corre igual para todo mundo. Por exemplo, para alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) — Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello —, que resolveram voltar a trabalhar em janeiro, em pleno recesso, o ano começou mais cedo. No Congresso, o ano só começará com a eleição das Mesas da Câmara e do Senado.
Pega fogo a disputa entre o líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo presidente Bolsonaro, e Baleia Rossi (MDB-SP), o candidato de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à sua sucessão no comando da Câmara, que, ontem, recebeu o apoio formal da maioria da bancada do PT. Lira ainda é o favorito, mas ninguém ganha eleição de véspera. No Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) tenta emplacar o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) na Presidência, mas esbarra nas candidaturas do MDB, que tem quatro postulantes cabalando votos: Simone Tebet (MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ); Eduardo Braga (AM), líder da bancada; Fernando Bezerra (PE), líder do governo no Senado; e Eduardo Gomes (TO), líder do governo no Congresso. Quem conseguir mais apoio será o candidato de toda a bancada da legenda, pactuaram.
Entregas
No calendário do Executivo, o terceiro ano de mandato é o das entregas. Pelo andar da carruagem, até aqui, Bolsonaro levou o governo no gogó. Além da vacina, não entregou a reforma tributária, as privatizações, a reforma administrativa, a retomada do crescimento etc. Manteve sua popularidade em plena pandemia muito mais em razão do auxílio emergencial do que das suas realizações, à custa da expansão exponencial do deficit fiscal. Como tem a pretensão de se reeleger, agora começará uma corrida contra o relógio, porque o tempo que lhe resta de mandato cada vez será o recurso mais escasso no governo.
No calendário das entregas, a vacina é a principal demanda da população. Seu ano de entregas somente vai começar quando as pessoas forem imunizadas. Mesmo assim, uma parcela enorme da população continuará desempregada, porque a economia somente deve entrar em recuperação no segundo semestre. Sem auxílio emergencial, a vida não será fácil para quase 68 milhões de brasileiros que receberam o benefício no ano passado. Muitos terão que se reinventar, porque as atividades econômicas estão passando por muitas transformações.
Com a pandemia, o trabalho remoto e a concentração de capital avançaram bastante. A maioria das empresas que sobreviveram mudou suas operações, em maior ou menor grau, impactando outras atividades. Por exemplo, o mercado imobiliário e as companhias de aviação sofreram impactos irreversíveis a curto prazo. A concentração de capital também é visível a olho nu, basta entrar num shopping center e ver as lojas que fecharam e as que estão sendo abertas. As empresas de logística também se beneficiaram tremendamente do comércio eletrônico.
Como em todo ano-novo, porém, somos passageiros da esperança. Toda crise é sinônimo de oportunidades. Elas aparecem e é preciso agarrá-las com as duas mãos. Ciência e tecnologia, ao longo da história, sempre abriram novos horizontes para a humanidade. Não será diferente agora. Que 2021 venha logo para todos.
Luiz Carlos Azedo: O ano mais longo
São inovações que podem evitar que a pandemia tome conta de 2021. Mas o que explica o sucesso das novas vacinas é o maciço investimento em pesquisas
Certo mesmo é que 2020 vai entrar 2021 adentro, por causa da pandemia do novo coronavírus, cuja segunda onda é o fantasma que ronda a Europa e os Estados Unidos às vésperas do ano-novo. Aqui, no Brasil, será um pouco pior, porque a vacina contra covid-19 está muito atrasada e, por isso mesmo, os efeitos predatórios das atitudes e decisões do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia serão também mais duradouros. Como já disse antes, quem deveria liderar a luta contra a doença sabota os esforços de prefeitos, governadores, dos sanitaristas e infectologistas, socorristas e enfermeiros, intensivistas e fisioterapeutas para controlar a doença e salvar vidas.
O próprio Ministério da Saúde é sabotado, sob comando de um general bem mandado, nomeado para o cargo por ser especialista em logística de transportes de tropas, armas e suprimentos, mas que se revelou o ministro mais incompetente da história da saúde pública no Brasil: Eduardo Pazuello. Provavelmente, ainda será condecorado e promovido a general de quatro estrelas por maus serviços prestados. Vivemos tempos distópicos.
Como não lembrar do jovem rapper Emicida, que acaba de lançar um documentário excepcional na Netflix: AmarElo, é tudo pra ontem. “Talvez seja bom partir do final/ Afinal, é um ano todo só de sexta-feira treze/ ‘Cê também podia me ligar de vez em quando/ Eu ando igual lagarta, triste, sem poder sair/ Aqui o mantra que nos traz o centro/ Enquanto lavo um banheiro, uma louça, querendo lavar a alma/ Na calma da semente que germina/ Que eu preciso olhar minhas menina”. O historiador Daniel Aarão Reis, em artigo publicado no jornal O Globo (26/12), fez uma belíssima crítica sobre o filme, que se passa em torno de uma apresentação no Teatro Municipal de São Paulo, lotado por pessoas da periferia paulista, que nunca haviam entrado naquele templo da nossa cultura.
“A construção do futuro melhor dependerá da capacidade de articulação, vontade determinada e raiva no coração. Que é como cantam, em trio, Majur, Pablo Vittar e Emicida, os belos versos de Belchior: ‘Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro’. Nesta sinistra pandemia, a ideia de que viveremos livres, corajosos e solidários foi o melhor presente de Natal que poderíamos ter. Obrigado, Emicida”, escreve o professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).
A pandemia é o espectro por trás da letra de É tudo pra ontem: “A folha amarela, igual comida, envelhece”/ É a vida, acontece com pessoa e documento/ É tão triste ter que vir, coisa ruim pra nos unir/ E nem assim agora, mano, vamo’ embora a tempo/ Viver é partir, voltar e repartir (é isso)/ Partir, voltar e repartir (é tudo pra ontem)/ Viver é partir, voltar e repartir/ Partir, voltar e repartir”. Ninguém tem dúvida de que a vacina era para ontem, a vacinação já começou em mais de 40 países, inclusive na vizinha Argentina, que comprou a vacina russa, Sputnik V, feita a partir de uma tecnologia nova, que utiliza adenovírus — vírus causadores de resfriado comum. O governo do Paraná também comprou essa vacina.
As vacinas
A primeira e a segunda dose da Sputnik V utilizam adenovírus diferentes, algo exclusivo do Instituto Gamaleya. Por meio de engenharia genética, são removidos os genes de reprodução viral dos adenovírus, ou seja, ele não vai causar resfriado, será utilizado apenas como “meio de transporte”. Dentro desses adenovírus são colocados genes codificando a proteína S do coronavírus (SARS-CoV- 2). Estas proteínas são as que ficam na coroa do vírus causador da covid-19 e se ligam aos receptores no corpo humano. Uma vez inoculado, o adenovírus com o gene do coronavírus induz uma resposta imunológica no corpo humano. Após 21 dias, ocorre a segunda vacinação, com outro tipo de adenovírus, mas o mesmo material genético do SarsCoV-2. Então, segundo os dados russos, ocorre uma imunidade ainda mais forte e duradoura.
O método é semelhante ao usado pela Universidade de Oxford — a vacina na qual o Ministério da Saúde apostou todas as fichas e que será produzida pela Fiocruz. As vacinas BioNTech/Pfizer e Moderna, que já estão sendo aplicadas nos Estados Unidos, também resultam de uma abordagem revolucionária, “aplicável a quaisquer vacinas futuras”, segundo o geneticista Richard Dawkins: “Sequencie um vírus e digite uma parte inofensiva em mRNA, corrigido de modo a não ser imuno-rejeitado. mRNA faz o resto para você. Funciona com qualquer vírus”, explica no Twitter.
São inovações desse tipo que podem evitar que a pandemia tome conta de 2021. Mas o que explica a velocidade e sucesso da produção dessas vacinas é o maciço investimento feito em pesquisas. Sem as vacinas, a economia mundial entrará em colapso. Entretanto, desculpe-me o trocadilho, a manipulação genética é dose pra leão para os negativistas, que não confiam nem nas vacinas que utilizam o método mais tradicional: o vírus atenuado da própria doença, como acontece com a vacina chinesa CoronaVac, que já está em produção no Instituto Butantan. Eppur se muove, diria Galileu Galilei.
Feliz ano-novo, em 2021 estarei de volta.
Luiz Carlos Azedo: Mudar ou ser mudado
Nada será como antes depois de controlada a pandemia — no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado
A segunda onda da pandemia de covid-19, que registra mutação do novo coronavírus — há evidências de que já transborda da Inglaterra para outros países europeus e, provavelmente, chegou ou chegará por aqui — é a face mais visível de uma contradição com a qual teremos que lidar durante muitos anos: a globalização é um fenômeno objetivo e irreversível, mas carece de mecanismos de governança mundial eficazes para neutralizar seus efeitos mais perversos, que aprofundam as desigualdades no mundo.
A pandemia é uma lente de aumento sobre o problema, se levarmos em conta que as transformações na estrutura produtiva do planeta, cujo dinamismo é ditado pelas inovações tecnológicas e os novos conhecimentos, colocaram em xeque as políticas ultraliberais. Revelou que a saúde pública, por exemplo, continua sendo uma prioridade para a economia. Muitos imaginavam, com o advento do não-trabalho e a inutilidade de grandes exércitos industriais de reserva, que políticas universalistas de saúde deixariam de ser necessárias para a reprodução do capital em escala global, assim como a boa formação educacional pública e gratuita, pois supostamente já não se precisaria da mesma abundância de mão de obra saudável e escolarizada disponível para o desenvolvimento.
Quem diria, por exemplo, que o home office se generalizaria em decorrência de um problema de saúde pública e não apenas da existência da tecnologia necessária para a reestruturação da organização do trabalho. Foi mais ou menos o que ocorreu com a telefonia fixa, criada no final do século XIX, mas somente incorporada à vida doméstica após a Segunda Guerra Mundial, com a diferença de que o smartphone se popularizou num intervalo de tempo muito menor (o iPhone foi criado em 2007). O que aconteceu com a grande indústria mecanizada, na qual a maior parte dos operários foi substituída por robôs, está se dando, agora, nos grandes escritórios e lojas de departamento, por causa da pandemia, numa velocidade maior do que se imaginava, e de forma irreversível.
É nesse contexto que a eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, com a derrota do nacionalismo e do negacionismo de Donald Trump, dará um novo impulso aos debates que já estavam em curso nos grandes fóruns internacionais, sobre o problema da governança global e a necessidade de um desenvolvimento mais sustentável, cujo epicentro vinha sendo o Fórum Econômico Mundial, em Davos. Que ninguém se iluda, nada será como antes depois de controlada a pandemia — o que deve acontecer no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos, com a vacinação em massa —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado, com o 5G e a plena implantação da Internet das Coisas, com ênfase na economia limpa e no combate às desigualdades.
Modernização
Não se espantem com o aumento da frequência com que a sigla ESG (environmental, social and corporate governance) — não confundir com a Escola Superior de Guerra — entrará no glossário do nosso economês. Sustentabilidade, responsabilidade social e governança corporativa formam, agora, uma espécie de Santíssima Trindade para os principais fundos de investimentos e grandes corporações. Estima-se que 45 trilhões estão sendo aplicados em empreendimentos com essas características, ou seja, metade dos investimentos previstos em todo o mundo. Multinacionais como Nestlé, Walmart e Tesco já excluíram de sua lista de fornecedores, por exemplo, os produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O resultado prático já se faz sentir no agronegócio, que vende cada vez menos para a Europa.
No Brasil, os ciclos de modernização sempre foram impulsionados pelo Estado, concentraram renda e descartaram mão de obra dos ciclos anteriores (açúcar, ouro, café, borracha). O que os historiadores chamam de “revolução passiva” resultou na industrialização, na modernização da agricultura e na urbanização acelerada dos país, porém, aprofundou desigualdades regionais e sociais. O ciclo de substituição de importações se esgotou, mas as consequências perversas, que dispensam maiores detalhes, de tão escancaradas estão, perduram. O conceito de “revolução passiva” — mais do que “modernização autoritária” ou “via prussiana” —, valoriza os aspectos políticos desse processo, em boa parte ocorrido durante a ditadura Vargas (1930-1945) e o regime militar (1964-1965). Nesse sentido, devemos destacar os governos de Juscelino Kubitscheck (1956-1960), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010), nos quais houve crescimento econômico e redução da pobreza, num ambiente democrático, sem prejuízo das ressalvas à inflação, à focalização dos gastos sociais e à corrupção generalizada, respectivamente.
No Brasil, pesos pesados da economia, nacionais e estrangeiros, já se articulam em defesa da economia sustentável, da boa governança corporativa e da transparência nas relações público-privadas. Saem na frente diante de um novo ciclo da globalização, mas esbarram numa situação em que o governo Bolsonaro realiza uma marcha forçada na direção contrária. De certa forma, a disputa de narrativas que já se estabeleceu na sociedade — em torno de temas como nossa política externa, a Amazônia, a política de saúde pública, a violência urbana etc. — reflete essa contradição. De alguma maneira, o Brasil terá que se reposicionar diante do que está em curso no mundo. Ou o governo muda ou será mudado em 2022.
Luiz Carlos Azedo: A vacina do Natal
Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança
Talvez esse seja o pior Natal de nossas vidas, em termos sociais, é claro, porque a experiência de vida de cada um é que determina a avaliação. Festa que congrega a família, confraterniza os amigos, dissemina amor e solidariedade, neste ano, a data magna do cristianismo, que é comemorada por todas as religiões ecumênicas, está sendo marcada pela maior tragédia humanitária já vista por nossas gerações, desde a Segunda Guerra Mundial. Aqui no Brasil, só não é maior por causa do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, apesar de um presidente da República que, com seu negativismo, no combate à crise sanitária, sabota seu povo, seu governo e, em ultima instância, a si próprio.
Entretanto, é Natal. Os miseráveis, os enfermos, os condenados, todos sem exceção, de alguma forma, são acarinhados com votos de esperança e compaixão. Os poetas, os cantores, os cronistas, todos que podem espalhar amor e esperança se encarregam de fazer chegar sua mensagem àqueles que estão na pior. De igual maneira, os trabalhadores dos serviços essenciais, de plantão, mesmo privados da convivência com suas respectivas famílias, com sua labuta, principalmente os cientistas e o pessoal da saúde, mandam o recado: confiem, estamos cuidando de vocês. A magia do Natal é uma enorme força transformadora da sociedade, no sentido civilizatório, mesmo agnósticos e ateus devem reconhecê-lo.
A propósito, o biólogo evolucionista Richard Dawkins, no livro O Gene egoísta, publicado em 1976, sua obra-prima, tenta explicar a evolução biológica ao mostrar como certas moléculas replicadoras (ancestrais dos genes) poderiam ter evoluído de modo a formar as primeiras células e, a partir daí, todos os seres vivos existentes. O microscópico encontro de um vírus com uma bactéria, por exemplo, é um grande evento histórico da criação, que se reproduz na natureza a todo instante e provoca mutações genéticas. A covid-19 é fruto desse fenômeno.
Dawkins tentar explicar o problema profundo de nossa existência ao sugerir que os organismos vivos são sofisticadas máquinas de sobrevivência, eficientemente moldadas pelo processo de evolução para promover a replicação sexuada dos genes nelas contidos. Entretanto, essa abordagem levanta sérios questionamentos filosóficos. Seremos meros replicadores de genes, controlados por eles. Onde entra a consciência? Dawkins afirma que genes não têm vontades próprias ou valores morais. Aqueles genes que apresentam um comportamento que seria visto como egoísta pelos seres humanos são os que se mantêm representados dentro dos genomas das espécies, ao longo do processo evolutivo, com o passar dos anos e milênios. O altruísmo seria uma estratégia de sobrevivência, principalmente nos seres humanos.
Eugenia
Genes são polímeros químicos de fósforo e carbono, associados a uma molécula de açúcar e bases nitrogenadas, encapsulados em duas fitas reversas e complementares; ou seja, genes são codificados em moléculas de DNA. Dawkins sugere uma forma de seleção natural darwiniana na qual as moléculas quimica- mente mais estáveis perduravam — enquanto aquelas mais instáveis eram destruídas. A evolução sempre dependeu da adaptação, uma molécula mais estável é mais adaptada ao universo em que vivemos. Assim como existe luta pela sobrevivência na sociedade humana, existe, também, num ambiente molecular.
Hoje, sabemos que os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram as máquinas de sobrevivência mais eficazes para morarem; aqueles que foram menos aptos não deixaram descendentes. Cerca de 4 bilhões de anos depois, Dawkins explica: “Com certeza, eles não morreram, pois são antigos mestres na arte da sobrevivência. (…) Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se, esses replicadores. Agora, eles recebem o nome de genes e nós (todos os organismos vivos) somos suas máquinas de sobrevivência.”
O gene passa de corpo em corpo através das gerações, manipulando as máquinas de sobrevivência por meio de instruções escritas em linguagem digital (A, C, T e G), abandonando tais corpos mortais na medida que eles vão ficando senis e duplicando-se em sua prole. As instruções dizem basicamente: copie-me, ou seja, viva e reproduza. A reprodução é o processo de cópia dos genes, é o processo que os mantém vivos ao longo dos tempos. Socialmente falando, porém, essa eugenia (seleção de certos genótipos para a reprodução em lugar de outros) é totalmente inaceitável. Lembra as teorias de superioridade ariana e o Holocausto.
Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. A postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus — “a melhor vacina é pegar o vírus” — é um inaceitável darwinismo social. Fé e confiança na ciência, por isso, são o melhor remédio contra a desesperança. Que venham as vacinas contra a covid-19. Feliz Natal!
Luiz Carlos Azedo: O vírus não brinca
O negacionismo de Bolsonaro funciona como sabotagem aos esforços governamentais para conter a pandemia, inclusive os do Ministério da Saúde, cada vez mais enrolado na própria burocracia
Não há sanitarista no Brasil que não tenha estudado o caso da epidemia de meningite ocorrida durante a década de 1970, em pleno regime militar, bem como a campanha de vacinação que controlou a doença. A epidemia começou em Santo Amaro, na Grande São Paulo, causando 2.500 mortes na capital paulista. Mesmo com a incidência de casos saltando a cada ano, e com mortalidade oscilando de 12% a 14% dos doentes, o regime militar escondia os números da população e negava a existência de epidemia, estabelecendo censura prévia aos veículos de comunicação para que não divulgassem o que estava ocorrendo. Médicos e sanitaristas não podiam dar entrevistas.
Só a partir de 1974, quando a doença já grassava em áreas centrais de São Paulo, e não havia mais como negar a situação, com hospitais em colapso, os generais começaram a reconhecer o problema. Na época, o Brasil vivia o chamado “milagre econômico” e os militares temiam que a divulgação da epidemia gerasse pânico na população e prejudicasse as atividades econômicas.
Enquanto a meningite matava moradores da periferia, conseguiram abafar o assunto, mas, quando a epidemia atingiu bairros nobres de São Paulo, as autoridades foram obrigadas a admitir que havia uma crise de saúde. O estrago já estava feito. A incidência em São Paulo subiu de 2,16 casos por 100 mil habitantes, em 1970, para 5,90 casos em 1971. Em 1972, chegou a 15,64 diagnósticos por 100 mil habitantes e, em 1973, atingiu os 29,38 casos por 100 mil habitantes. A partir de 1974, houve uma explosão, motivada pela circulação do meningococo A, gerando uma sobreposição de surtos. Em 1974, a taxa de meningite chegou a 179,71 casos por 100 mil habitantes.
Com a curva de casos em ascensão sobre áreas centrais do Sudeste e em Brasília, não havia mais como impedir o fluxo da informação. Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu o poder e reconheceu a existência do problema, criando a Comissão Nacional de Controle de Meningite, que importou milhões de doses da vacina. Somente em 1977, porém, a epidemia foi controlada. Havia se expandido de tal forma que a campanha de vacinação teve de atingir 97% dos municípios brasileiros. Se os nossos sanitaristas aprenderam com a epidemia de meningite, parece que os militares no Ministério da Saúde esqueceram completamente a experiência do passado, com a diferença de que, agora, vivemos numa democracia e eles não têm mais como evitar a revelação dos fatos e a discussão dos problemas.
Perde perde
Não dá mais para escamotear: estamos numa segunda onda da epidemia do novo coronavírus. O Brasil registrou, nas últimas 24 horas, 433 mortes e 25.193 novos casos da covid-19; o número de vítimas fatais da doença no país subiu para 181.835, e o total de casos confirmados aumentou para 6.927.145. A única maneira de evitar uma tragédia maior do que a da primeira onda é manter a política de distanciamento social e promover a vacinação em massa da população. O vírus não está para brincadeira, a segunda onda já atinge 18 estados e o Distrito Federal.
Entretanto, o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Dória, se digladiam. É um jogo de perde-perde. O primeiro dispõe de recursos para vacinar a população, mas não dispõe ainda de uma vacina, pois a de Oxford, já comprada pelo governo brasileiro, não está pronta, e a da Pfizer, que havia sido oferecida e fora desprezada, não está disponível, embora o governo federal agora queira comprá-la. O segundo tem a vacina chinesa CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan, mas precisa ainda de aprovação da Anvisa, que negaceia os prazos e tenta mudar as regras do jogo.
Em algum momento, a realidade falará mais alto. Com a velocidade com que a segunda onda está se propagando, será inevitável a adoção de novas medidas de distanciamento social, para evitar o colapso do sistema hospitalar. O reiterado negacionismo de Bolsonaro, porém, funciona como uma espécie de sabotagem aos esforços governamentais para conter a pandemia, inclusive os do próprio Ministério da Saúde, cada vez mais enrolado na própria burocracia. Uma campanha de vacinação em massa precisa de mobilização da sociedade, de convencimento da necessidade e da eficácia da vacina. Retardar a aprovação da vacina produzida pelo Butantan, porque seria um êxito de Doria, e desacreditar sua eficácia, em razão de sua procedência chinesa, é um tiro no próprio pé.
Ontem, a Anvisa divulgou uma nota mudando de 72 horas para 10 dias o prazo de aprovação das vacinas, além de fazer referência a supostas implicações geopolíticas de cada vacina, que precisariam ser analisadas, o que levou o governo de São Paulo a desistir de pedir o uso emergencial da vacina e apostar na sua iminente aprovação definitiva, pela agência reguladora da China. É um contrassenso sob todos os aspectos: praticamente todas as vacinas que estão sendo desenvolvidas no mundo têm algum nível de participação da China, pois foram os cientistas chineses que forneceram o sequenciamento genético utilizados nas pesquisas.
Luiz Carlos Azedo: Faltou combinar com os russos
Como previu o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, chegamos ao final do ano com 180 mil mortos. Novamente, precisamos do distanciamento social, enquanto não chega a vacina
Tem momentos da política que Brasília descola do Brasil, não a dos candangos que nasceram na cidade e nela ganham o pão com o suor de cada dia, mas aquela que todos conhecem pela arquitetura monumental de Oscar Niemeyer: a da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes. Esta semana foi um desses momentos, com o centro político e administrativo do país completamente descolado da realidade nacional e voltado para a disputa pelo controle do Congresso, embora a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado estejam marcada para 1º. de fevereiro. O drama do país é a segunda onda da pandemia do novo coronavírus.
Cercado de áulicos por sete lados — o oitavo, na Rosa dos Ventos, é a trincheira dos filhos —, Bolsonaro parece aquele Presidente prisioneiro de uma jaula de cristal a que se referia o economista Carlos Mattus, o ex-ministro do Planejamento de Salvador Allende, o caso clássico do líder isolado, prisioneiro da Corte “que controla os acessos à sua importante personalidade”. O presidente sem “vida privada, sempre na vitrine da opinião pública”, com a diferença de que não precisa representar um papel, Bolsonaro aparece ante os cidadãos que representa e dirige como realmente é: um líder sem empatia, indiferente ao luto dos familiares e amigos das vítimas da pandemia do novo coranavírus, cujo carisma está associado à truculência e ao conservadorismo.
Ontem, quando atingimos a marca dos quase 180 mil mortos e 6,78 milhões de infectados, Bolsonaro anunciou o “finalzinho” da “gripezinha”, ao inaugurar o vão central de uma ponte em Porto Alegre (RS). No mesmo dia, a segunda onda da pandemia do novo coronavírus atingiu 21 estados e o Distrito Federal, pressionando o sistema de saúde pública com uma velocidade muito superior à primeira. Para não desmentir o chefe, os militares que aparelharam o Ministério da Saúde atrasam a divulgação de dados, minimizam a expansão da doença e fazem uma ginástica danada para escamotear o que todo mundo já sabe: não fizeram o dever de casa e a vacinação em massa contra a COVID-19 aqui no Brasil vai atrasar, e muito.
No mundo, a segunda onda atinge com força a Europa, a ponto de a primeira-ministra Angela Merkel fazer um apelo dramático aos alemães, para que façam o isolamento social. Nos Estados Unidos, epicentro da segunda onda, a FDA, agência reguladora norte-americana, aprovou a toque de caixa a utilização da vacina da Pfizer-Biontech, justamente a vacina que havia sido descartada pelo Ministério da Saúde, porque sua logística exigia armazenamento 70º abaixo de zero. Agora, o ministro Eduardo Pazuello, um general de divisão do Exército, supostamente especialista em logística, tenta comprar a vacina que lhe fora oferecida e recusou em agosto passado.
Vacinas
Bolsonaro deu ordens para que o Ministério da Saúde comece a vacinação antes do ano-novo, uma missão quase impossível, porque a vacina da Pfizer não estará disponível. Enquanto o governo federal tenta adquirir uma vacina para chamar de sua, o Instituto Butantan já está produzindo, “24 horas por dia, sete dias na semana”, 1 milhão de doses/dia da CoronaVac. A vacina chinesa foi adquirida pelo governador João Doria (PSDB), que anunciou o início da vacinação em massa em São Paulo para o dia 25 de janeiro, aniversário da capital paulista, fundada por Manoel da Nóbrega, José de Anchieta, João Ramalho e o Cacique Tibiriçá, em 1554, contra a orientação do Bispo Sardinha e da Corte portuguesa.
Desculpe-me o trocadilho, mas Pazuello me lembra o Sargento Tainha. Como nas estórias em quadrinhos do Recruta Zero, erros de conceito costumam levar qualquer estratégia ao desastre. Além do conceito correto, uma estratégia exitosa pressupõe, ainda, um método adequado e um ambiente favorável. A militarização do Ministério da Saúde foi um erro de conceito, não tem a menor chance de dar certo. Os métodos autoritários, centralizadores e sem transparência contribuem ainda mais para o fracasso, além de se somarem ao ambiente desfavorável criado pelo negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, tanto na sociedade como na própria estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS).
Como previu o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, chegamos ao final do ano com 180 mil mortos. Como no começo da pandemia, novamente precisamos do distanciamento social e do uso generalizado das máscaras de proteção individual para conter a expansão da pandemia e evitar o colapso dos hospitais, enquanto não chega a vacina. Felizmente, a corrida mundial para fabricá-la está chegando ao final. O conhecimento acumulado no caso da SARS-CoV-1 e a cooperação científica mundial, com destaque para a divulgação, pelos chineses, do sequenciamento genético da SARS-CoV-2, possibilitaram o desenvolvimento de 80 vacinas, que estão sendo testadas em todo o mundo. Apostar apenas numa delas, no caso, a vacina de AstraZeneca-Oxford, como fez Bolsonaro, foi um tiro pela culatra. Custava nada manter a parceria com São Paulo; afinal, quem vai sair na frente mesmo é a Argentina, cujo presidente, Alberto Fernández, comprou a vacina russa Sputinick V e será o primeiro a ser vacinado, antes do Natal, para mostrar que o medicamento é seguro.
Luiz Carlos Azedo: Poderia ser pior?
Não temos um plano efetivo de vacinação em massa por parte do Ministério da Saúde, cujo titular é um general de divisão da ativa, especialista em logística
Não gosto de análises catastróficas nem do quanto pior, melhor. Prefiro a teoria das duas hipóteses do humorista Aparíccio Apporelly, o Barão de Itararé, descrita por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere. O escritor alagoano deliciava-se com as anedotas e os comentários espirituosos do jornalista gaúcho, encarcerado durante a ditadura de Getúlio Vargas. Com sua voz pastosa e hesitante, dono de um “otimismo panglossiano”, o Barão sustentava que tudo ia bem e poderia melhorar, fundado numa demonstração de que diante de cada situação haveria sempre uma pior: “Excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida”, explicava Graciliano. Com a palavra, o próprio Apporelly quando estava preso:
“Que nos poderia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor, esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas, ainda assim, não convinha alarmar-nos, pois essa desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela”.
O raciocínio irônico do Barão de Itararé é altamente filosófico e serve para qualquer situação. Por exemplo, para a turma enrolada na Lava-Jato, que agora assiste, de tornozeleira eletrônica ou no xadrez, o ex-juiz Sergio Moro ser contratado como especialista em combate à corrupção por um grande escritório de consultoria que presta serviços à Odebrecht. Como se sabe, Emilio Odebrecht, para salvar a empresa e aliviar a cana de seu filho, Marcelo Odebrecht, negociou uma delação premiada com o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que quase implodiu o sistema político brasileiro. Alguns imaginam que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff pavimentou o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro; não, essa estrada foi asfaltada pelo escândalo da Petrobras e o uso generalizado de caixa dois nas campanhas eleitorais.
Pandemia
Mas, voltemos à teoria das duas hipóteses. O ano da pandemia do novo coronavírus está acabando, porém a covid-19 recrudesceu. Há uma corrida mundial para conter a segunda onda na Europa e nos Estados Unidos, que é repetição do que ocorreu com a gripe espanhola, 100 anos atrás. Agora, além do isolamento social, estarão sendo utilizadas vacinas em caráter emergencial. No Brasil, em razão do negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e da mentalidade castrense do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, estamos numa guerra entre o governo federal, que comprou a vacina de Oxford, inglesa, que será produzida pela Fundação Oswaldo Cruz, e o governo de São Paulo, que adquiriu a vacina chinesa CoronaVac, cuja fabricação será iniciada pelo Instituto Butantan. Há, também, uma vacina russa, a Sputnick V, adquirida pelo governo do Paraná.
Entretanto, não temos um plano efetivo de vacinação em massa por parte do Ministério da Saúde, cujo titular é um general de divisão da ativa, especialista em logística, que será o grande responsável pelo atraso da campanha de vacinação. No momento, sua grande preocupação é negar a existência de uma segunda onda da pandemia, sabotar as medidas de isolamento social e atrasar a liberação da vacina chinesa. Vidas não importam, afinal, não existe guerra sem defuntos. E onde aplica-se a teoria das duas hipóteses? Ao comparar o número de mortos com os que sobreviveram à covid-19, graças aos esforços heróicos dos profissionais da saúde.
Nas últimas 24 horas, houve 776 mortes, somando 175.307 óbitos desde o começo da pandemia. A média móvel de mortes no Brasil, nos últimos sete dias, foi de 544. Desde o começo da pandemia, 6.487.516 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus, com 50.883 desses casos confirmados nas últimas 24 horas. Em média, nos últimos sete dias, houve 40.421 novos diagnósticos por dia, a maior desde agosto, que registrou 40.526 mortes. O aumento no número de casos foi de 37%. A pandemia recrudesceu nos seguintes estados: PR, RS, SC, ES, MS, AC, AP, RO, CE, PB, PE, RN e SE.