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Cristovam Buarque: Olhe a responsabilidade, gente
Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo
Nesta semana, a reforma ministerial mostrou que Bolsonaro já está trabalhando para o pós-segundo turno, enquanto os líderes e partidos de oposição continuam no pré-primeiro. Com o novo Ministro da Defesa, ele deseja controlar as Forças Armadas; com o novo Ministro da Justiça busca o controle sobre as polícias estaduais; com a liberação da compra e porte de armas, equipa sua milícia paralela. Com Forças Armadas, polícias e milícias, Bolsonaro passa a ter forças armadas nas ruas, para contestar derrota por pequena margem de eleitores, caso não consiga argumento para contestar o resultado na Justiça Eleitoral.
Enquanto isto, as oposições continuam divididas entre os possíveis candidatos que depois disputarão entre eles qual vai ao segundo turno. Estes embates deixam marcas que poderão levar outra vez a abstenções e votos nulos no segundo turno, como aconteceu em 2018. Difícil imaginar os eleitores do PT votando em Ciro ou outro candidato, e eleitores do Ciro e de outros candidatos votando no Lula ou outro do PT, salvo se fosse construída uma aliança ampla de todos desde o primeiro turno.
Felizmente, tudo indica que o exército não está aceitando o papel de milícia do Bolsonaro, e alguns dos candidatos pela oposição assinaram um manifesto conjunto em defesa da democracia. Mas todos que percebem as consequências da reeleição do atual governo sobre o futuro do Brasil, deveriam se encontrar em um debate franco sobre qual deles tem mais chance de vencer a eleição; também quais as qualidades, erros e méritos que se reconhecem; em que princípios estariam unidos no governo seguinte. Esta reunião poderia ter a participação de entidades da sociedade civil, como ocorreu em momentos decisivos da história. Poderia inclusive ser presidida por uma ou mais destas entidades.
Pena que a política é mais dominada pela arrogância do otimismo do que pela consciência dos riscos. Cada candidato já se considera com um pé no segundo turno, e tem confiança que unirá os eleitores dos que ficaram para trás. Imaginaram isto em 2018, mas nem a boa qualidade do candidato do PT foi suficiente para evitar a rejeição que o partido tinha. Pode ser diferente agora, se o candidato for Lula e o PT tiver rejeição menor, sobretudo depois da anulação Lava Jato de Curitiba; ainda mais com o reconhecimento oficial de que houve parcialidade do juiz contra Lula. Mesmo assim, não é claro se ele e o PT teriam menos rejeição. É possível que mesmo sabendo o que Bolsonaro representa, muitos eleitores ficarão em casa, ou viajarão para não votar, ou votarão nulo, induzidos pela ideia divulgada pela própria oposição, de “nem Bolsonaro, nem PT”. Possível também que eleitores do PT façam agora o que foi feito com Haddad em 2018, anulando o voto e se abstendo.
Estes líderes precisam entender que, divididos, dificilmente qualquer deles tomará o lugar do candidato do PT, mas o PT deve entender que, solitário, dificilmente ganhará no segundo turno se não tiver o apoio dos outros candidatos e partidos. Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo.
Os candidatos e líderes de partidos que se opõem à estratégia da reeleição de Bolsonaro têm diante deles a imensa responsabilidade de não falharem por arrogância, por vaidade, preconceito. Não podem neste momento colocar seus partidos e suas propostas na frente do interesse maior da democracia e do futuro do país. É preciso unidade com um candidato de baixa rejeição que leve a uma vitória expressiva, cale os fanáticos e desarme as milícias, oficiais ou não.
*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro
Luiz Carlos Azedo: A Páscoa na pandemia
O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos
Antes de mais nada, feliz Páscoa para todos. É uma data ecumênica por sua própria origem, pois foi ressignificada pelos cristãos como um momento de renovação das esperanças. A origem da Páscoa é o Pesach, a comemoração judaica da libertação dos hebreus da escravidão do Egito. Narrada nos Pentateucos, os primeiros cinco livros da Bíblia, em hebraico, a palavra significa “passagem” e faz menção ao anjo da morte no Egito — a décima praga, conforme a narrativa bíblica. A festa foi reinventada pelos cristãos, passando a se remeter à crucificação e à ressurreição de Cristo.
“E, se Cristo não ressuscitou, logo logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé”, diz o apóstolo Paulo, em I Coríntios 15:14. Na fé católica, foi por meio da ressurreição que a humanidade teve a redenção de seus pecados. Jesus Cristo sacrificou-se para redimir o povo e dar-lhe uma nova chance de salvação. No seu sacrifício, o poder de Deus teria se manifestado.
Estamos encerrando a Semana Santa sem procissões nem missas campais, porém, plena de simbolismo. O Brasil vive uma das maiores tragédias de sua história, com uma média de mais de 3 mil mortos por dia nas últimas semanas, em razão do descontrole da pandemia da covid-19. Existe uma energia humana nos subterrâneos dessa tragédia social que, em algum momento, transbordará para as ruas. Essa resiliência, que seria traduzida nas cerimônias religiosas tradicionais, de alguma forma, acabará se transformando em manifestação política.
Além do agravamento da crise sanitária, também há desorganização da economia. Não estamos falando da redução das atividades econômicas em razão do distanciamento social, mas da desestruturação das contas públicas e da falta de um projeto de retomada do crescimento econômico. É um problema anterior à pandemia, mas que se agravou com ela, principalmente agora, com a aprovação de um Orçamento da União completamente fora da realidade, que agrava as dificuldades já existentes e cria novos problemas, contratados para o pós-pandemia.
Perda de tempo
Há um estresse político criado por arroubos autoritários e tentativas de ruptura do pacto federativo da Constituição de 1988. À época da Constituinte, como tudo estava em discussão, havia moedas de troca suficientes para construção dos acordos entre União, estados e municípios. Agora, uma das dificuldades para aprovação da reforma tributária, por exemplo, é a escassez dessas moedas. O xis da questão acaba sendo sempre a polêmica sobre a arrecadação do ICMS na origem ou no destino das mercadorias, além dos termos da partilha das receitas dos impostos entre os entes federados.
O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante como a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos políticos — na política externa e na Defesa, no meio ambiente e na segurança pública, no respeito aos direitos humanos e às minorias —, desloca a ação do governo dos verdadeiros problemas do nosso desenvolvimento. A janela de oportunidade das reformas, o primeiro ano de mandato, foi desperdiçada. Agora, em plena pandemia, antecipou-se a disputa eleitoral, porque Bolsonaro conseguiu fazer com que sua reeleição subisse no telhado.
A expectativa de poder está se deslocando de Bolsonaro para a oposição. Mesmo com os desgastes causados pela Lava-Jato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se coloca na arena em vantagem, ao comparar suas realizações de governo com as de Bolsonaro. A última proeza do presidente da República foi unir os demais pré-candidatos, no episódio de demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa e dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. O governador paulista João Doria (PSDB), o ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT), o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM), o empresário João Amoedo (Novo) e o comunicador Luciano Huck (sem partido) mandaram o recado: Bolsonaro, não! Podem não se unir no primeiro turno, mas estão contra a reeleição.
Luiz Carlos Azedo: É autoritarismo mesmo
Não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes em apuros, que começam a recorrer à força do Estado contra a opinião pública
O professor e historiador Alberto Aggio é um estudioso da política latino-americana, seu livro Um lugar no mundo (Fundação Astrojildo Pereira/ Fondazione Instituto Gramsci) dedica especial atenção à discussão do conceito de populismo. É um crítico tanto de sua “banalização”, como um termo que expressa estilos políticos de caráter depreciável, quanto do seu uso como “teoria explicativa” do desastrado percurso histórico latino- americano rumo à modernidade, “na qual a presença do Estado na vida social e econômica se fixa como seu elemento mais negativo e que necessita ser superado ou destruído”. Na sua avaliação, o populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo, buscava a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, incorporando as massas à cidadania pela via dos direitos sociais. Foi “uma fuga para frente”.
Tratava-se de promover transformações sem rupturas violentas, revolucionárias, como em outros processos de industrialização. Interditou a via clássica de passagem à modernidade, caracterizada pela incorporação dos trabalhadores à democracia liberal. No caso brasileiro, o populismo emergiu após a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas, e ganhou feições democráticas em seu segundo governo, na década de 1950. Caracterizou-se como um Estado de bem-estar social incompleto, com programa nacionalista que estatizava alguns setores da economia e legislação trabalhista e corporativista, que organizou e concedeu direitos sociais aos trabalhadores, mas também lhes retirou a autonomia.
O que isso tem a ver com o governo Bolsonaro? Nada! Por isso mesmo, não tem sentido as preocupações com uma possível “guinada populista” do atual governo. O risco é outro: a transformação de um governo bonapartista, com clara hegemonia de um determinado grupo de militares, num governo autoritário que confronta os demais Poderes e, de certa forma, o regime democrático no qual se instalou e funciona. O presidente Jair Bolsonaro não esconde de ninguém que seu espelho é o regime militar instalado após o golpe de 1964, que fará aniversário no último dia deste mês, cujas comemorações estão sendo preparadas por seus aliados, dentro e fora dos quartéis.
Desastre sanitário
No momento mais dramático da pandemia de covid-19, Bolsonaro insiste em suas teses negacionista, apesar de forçado a substituir o general Eduardo Pazuello no comando do Ministério da Saúde, em razão do seu fracasso. Colocou no cargo o médico cardiologista Marcelo Queiroga, que ainda não substituiu os militares neófitos em saúde pública corresponsáveis pelo desastre sanitário que estamos vivendo. Sua mais recente decisão sobre a pandemia foi entrar com uma ação contra governadores e prefeitos que adotaram o “toque de recolher”, que são medidas de restrição de circulação noturna dos habitantes das cidades nas quais a pandemia está fora de controle, preconizadas por sanitaristas, não se compara a um “estado de sítio”. Bolsonaro sabe que está afrontando o pacto federativo, a autonomia de estados e municípios. Sua intenção é responsabilizar o Supremo pela crise econômica provocada pela pandemia. Prefeitos e governadores também não são responsáveis pelo colapso sanitário e a crise econômica, a grande responsabilidade é do presidente da República, pessoal e indivisível.
Há outros fatos ainda mais graves em relação aos impulsos autoritários de Bolsonaro, como as ações da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério da Justiça e da Polícia Federal com intuito de processar, investigar e prender oposicionistas. O uso político e abusivo desses aparatos de coerção do Estado para intimidar àqueles que criticam seu governo e sua atuação, com base numa anacrônica Lei de Segurança Nacional herdada da ditadura, é muito preocupante. Não, não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes autoritários em apuros, que começam a recorrer à força do Estado para exercer o poder contra a opinião pública, sem considerar os direitos das minorias e a legitimidade do dissenso numa ordem democrática.
Luiz Carlos Azedo: Apagão logístico na Saúde
Queiroga assume o ministério deslumbrado com o cargo e alinhado com Bolsonaro, mas completamente perdido diante da gravidade da crise sanitária
O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, assume o cargo em meio a um apagão logístico: faltam vacinas, mesmo com o escalonamento da programação, leitos, respiradores, oxigênio, material para intubação, sedativos e pessoal treinado em várias regiões do país. Em São Paulo, o estado com mais recursos, maior rede hospitalar e principal produtor de imunizantes do país, a situação é dramática, com uma morte a cada dois minutos. Queiroga fez, ontem, um discurso ambíguo, no qual defendeu a “política de saúde do presidente Jair Bolsonaro” e, ao mesmo tempo, destacou a importância das “evidências científicas” na condução da pasta, o que é uma contradição. Bolsonaro é contra as medidas de governadores e prefeitos para conter a propagação do vírus e evitar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). Está deslumbrado com o cargo, mas completamente perdido diante da gravidade da situação.
Com a saída de Pazuello, não haverá uma transição, mas continuidade da política que estava sendo implementada por ele. Nenhuma mudança na equipe do ministério, formada por militares, foi anunciada. O novo ministro assumiu a pasta no dia em que o Brasil registrou 2.841 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, recorde absoluto desde o início da pandemia, e 84.362 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Com isso, o número de vítimas fatais da doença chegou a 282.128, e o total de casos, a 11,603 milhões. Falta uma coordenação nacional de combate à pandemia, agravada pelo fato de que o presidente Bolsonaro estimula a desobediência civil e o desrespeito às medidas de isolamento social.
Rio Branco, Rio de Janeiro, João Pessoa, Macapá e Aracaju interromperam a aplicação da primeira dose da vacina contra a covid-19 porque o estoque acabou. Maceió suspendeu a imunização programada para ontem. Em Belford Roxo (RJ), milhares de pessoas se aglomeraram nos postos de vacinação sem conseguir receber a dose, todos idosos. Até agora, o Brasil vacinou cerca de 10 milhões de pessoas, o que equivale a 4,7% da população. É muito pouco, porque a chamada P1, originária de Manaus, já se espalhou por todo o país. Esse vírus mutante é responsável pelo novo perfil da pandemia, com taxa de contaminação mais alta e letalidade maior. Também está hospitalizando pacientes mais jovens, por longo tempo.
Falta de insumos
Em São Paulo, foram 679 novas mortes provocadas pela covid-19 em 24 horas, a maior taxa desde o início da pandemia. O estado totaliza 64.902 óbitos causados pelo coronavírus. Nessa escalada, será inevitável um lockdown em muitas cidades, pois 90% dos leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) para covid-19 estão ocupados. O índice considera hospitais públicos e particulares. Na Grande São Paulo, a taxa média é ainda maior, 90,6%. Em todo o estado, 69 cidades já alcançaram 100% de ocupação de leitos de UTI. São 24.992 pessoas internadas, sendo 10.756 em UTIs e 14.236, em enfermaria.
No Rio Grande do Sul, foram 502 óbitos nas últimas 24 horas. É o maior registro diário em toda a pandemia. A taxa de ocupação dos leitos de UTIs estava em 109,6%. Dos 3.461 pacientes hospitalizados em leitos críticos, 2.534 são de pessoas confirmadas com covid (73,2%). Na rede privada, a situação é ainda mais grave: 135% das vagas de UTI adulto estão ocupadas. No Sistema Público de Saúde (SUS), a taxa é de 99%. Faltam equipamentos; os profissionais de saúde estão esgotados e adoecendo.
Em Mato Grosso, faltam respiradores. Em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá, médicos que trabalham na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Bairro Ipase desmontaram estetoscópios para usar a mangueira do aparelho como mangueira de oxigênio, já que o insumo está em falta. No Ceará, todos os hospitais da rede privada de Fortaleza estão em colapso, com 100% dos leitos de enfermaria e UTI ocupados. No Paraná, 28 hospitais de Curitiba e região estão em colapso, mesmo com o lockdown. Em Santa Catarina, faltam bloqueadores neuromusculares e anestésicos para a realização de intubação de pacientes em tratamento contra a doença. Acabaram os estoques de medicamentos, como Rocuronio, Propofol e Atracúrio.
Luiz Carlos Azedo: A crise continua
A troca de ministro não está ocorrendo para mudar a política sanitária ou porque Bolsonaro estava insatisfeito com Pazuello, mas para evitar a instalação de uma CPI na Saúde
O presidente Jair Bolsonaro indicou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Associação Brasileira de Cardiologia, para o cargo de ministro da Saúde, no lugar do general de divisão da ativa Eduardo Pazuello, que deve voltar à caserna. Foi o desfecho de três dias de muita confusão e intensa fritura do militar, que atuou de forma desastrada à frente da pasta, seguindo cegamente a orientação do presidente da República durante a pandemia da covid-19. Queiroga assumirá o cargo sob forte desconfiança, depois da recusa da médica goiana Ludhmila Hajjar, que fora convidada por Bolsonaro, mas recusou o convite por discordar da orientação do chefe do Executivo.
O convite à cardiologista e intensivista do Hospital das Clínicas foi um tiro no pé. Hajjar pretendia promover um choque de gestão à frente do Ministério da Saúde, defendendo a criação de leitos e preparação das equipes de atendimento à covid-19; o apoio ao lo- ckdown decretado por governadores e prefeitos; a formação de um comitê de crise 24 horas para apoiar as demais autoridades do Sistema Único de Saúde (SUS); e mobilização das sociedades médicas, a rede de saúde privada e as empresas para combater a pandemia. A médica também é contrária ao uso de cloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada no “tratamento precoce”, defendendo um protocolo unificado de atendimento aos pacientes de covid-19 que adote as melhores práticas comprovadas.
As conversas entre Bolsonaro e Hajjar, no domingo e ontem pela manhã, foram um desastre, por causa das divergências entre ambos e do fato de que os bolsonaristas fizeram intensa campanha de difamação contra a médica, que sofreu ameaças de morte e até tentativas de invasão do seu quarto no hotel de Brasília, onde pernoitou. Ingenuamente, estimulada por políticos e autoridades de quem tratou de covid-19, Hajjar imaginou que Bolsonaro estava disposto a mudar a orientação do Ministério da Saúde. Suas posições críticas em relação à pandemia eram públicas e conhecidas. Frustrada pelo fato de que o presidente não pretende mudar a orientação do Ministério da Saúde e assustada com os ataques que sofreu dos partidários do chefe do Planalto, Hajjar resolveu revelar à imprensa a conversa com Bolsonaro e denunciar as agressões dos bolsonaristas, reiterando, também, suas posições sobre o combate à pandemia.
Bolsonarista raiz
Com as horas contadas no cargo, Pazuello fez uma prestação de contas de sua atuação à frente da pasta na tarde de ontem. Focou na aquisição de vacinas contra covid-19, cujo atraso está sendo desastroso. Em nenhum momento reconheceu seu fracasso ou fez autocrítica. Na verdade, a troca de ministro não está ocorrendo para mudar a política do Ministério da Saúde ou porque Bolsonaro estava insatisfeito com Pazuello. O general foi defenestrado porque os líderes do Congresso exigiram sua substituição para evitar a instalação de uma CPI voltada a investigar a sua atuação à frente da pasta, como deseja a oposição.
Enquanto Pazuello concedia sua entrevista de despedida, Queiroga se reunia com Bolsonaro no Palácio do Planalto. Logo depois, o próprio presidente anunciou sua indicação: “Foi de- cidido, agora à tarde, a indicação do médico, doutor Marcelo Queiroga, para o Ministério da Saúde. Ele é presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. A conversa foi excelente, já conhecia há alguns anos, então não é uma pessoa que tomei conhecimento há poucos dias. Tem tudo, no meu entender, para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento em tudo que o Pazuello fez até hoje”, afirmou à porta do Palácio da Alvorada.
Queiroga é bolsonarista raiz, será o quarto ministro da Saúde desde o começo da pandemia da covid-19, há pouco mais de um ano; seus antecessores foram o médico e ex-deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) e o médico oncologista Nelson Teich, além de Pazuello. Formado em medicina pela Universidade Federal da Paraíba, fez residência em cardiologia no Hospital Adventista Silvestre, no Rio de Janeiro. Tem especialização em hemodinâmica e cardiologia intervencionista. Indicado por Bolsonaro para ser um dos diretores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), não chegou a ocupar o cargo, porque dependia ainda de aprovação do Senado. Assume para dar continuidade à política de Bolsonaro. Ou seja, a crise continua.
Luiz Carlos Azedo: Cadê as vacinas, Bolsonaro?
As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), que sanitaristas e infectologistas vinham fazendo desde o mês passado, estão se confirmando
A cúpula do governo já se deu conta de que está protagonizando a maior tragédia sanitária da nossa história, ao fracassar no combate à covid-19, com o negacionismo reiterado do presidente Jair Bolsonaro e a incompetência do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Ontem, em solenidade no Palácio do Planalto, bem que Bolsonaro tentou dar um cavalo de pau e mudou o discurso em relação às vacinas, até disse que a senhora sua mãe foi vacinada em São Paulo (com a Coronavac do instituto Butantan, quanta ironia, a vacina do governador João Doria). Somente fez isso porque foi duramente atacado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua atuação como presidente da República durante a pandemia.
As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), advertência que os sanitaristas e infectologistas vinha fazendo desde o mês passado, estão se confirmando. O Brasil registrou nas últimas 24 horas 2.286 mortes por Covid-19 e 79.876 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O número de vítimas fatais da doença no Brasil chegou a 270.65 e o total de casos aumentou para 11,202 milhões. Mesmo assim, Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para conter a propagação da pandemia com o isolamento social, enquanto não há vacinas suficientes para imunizar a população.
“A política do lockdown adotada no passado, o isolamento ou confinamento, visava tão somente dar tempo para que hospitais fossem aparelhados com leitos de UTI e respiradores. O governo federal não poupou esforços, não economizou recursos para atender todos estados e municípios”, disse Bolsonaro. O presidente anunciou que o Brasil já adquiriu 270 milhões de doses de vacinas, a maioria para o primeiro semestre deste ano, mas as vacinas não chegam na frequência que a velocidade de propagação do vírus exige, por causa da incompetência do governo nas negociações. Voltou a defender o “tratamento imediato” com medicamentos não recomendados pelas autoridades de saúde, ao sancionar uma lei que prorroga a suspensão do cumprimento de metas pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS).
Patentes
O general Pazuello, atarantado com a ameaça de que a crise de Manaus se repita simultaneamente em várias capitais do país, também corre atrás do prejuízo. Tenta minimizar seu fracasso e ressalta os esforços dos principais centros de produção de vacinas: “Sem a produção da Fiocruz e do Butantan, nós hoje praticamente não teríamos vacinado ninguém. Essa é a realidade”. Desde janeiro, o país utiliza os imunizantes CoronaVac e Oxford/AstraZeneca.
Ontem, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Genebra (Suíça), porém, o Brasil voltou a se manifestar contra a suspensão dos dispositivos de propriedade intelectual sobre patentes de remédios, vacinas e outros produtos de combate à pandemia da Covid-19. A proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul em outubro de 2020 visa a suspender patentes ligadas a tratamentos e métodos de prevenção para a Covid-19. Na epidemia de AIDS, a quebra de patentes foi fundamental para controlar a doença.
Diante do fracasso, Pazuello pediu ajuda à China, que tanto foi hostilizada pelos filhos do presidente Bolsonaro e integrantes do governo, inclusive o chanceler Ernesto Araújo. Enviou ofício à embaixada da China no Brasil para pedir auxílio para a compra de 30 milhões de doses da vacina da farmacêutica chinesa Sinopharm, que havia sido ofertada pelo governo chinês no ano passado, pois trata-se de um laboratório estatal, mas à época não houve interesse do governo. Pazuello também negocia a compra de outros imunizantes, como o produzido pela Pfizer, único com registro definitivo concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que é outra novela.
Jamil Chade: 'Presidente, vamos chorar para que nossos mortos sejam lembrados como suas vítimas'
Choramos para construir um futuro. E, evidentemente, são essas lágrimas que o senhor mais teme
Senhor presidente,
Uma vez mais, suas palavras sobre a pandemia ecoaram pelo mundo. Dos corredores da ONU às padarias de bairro onde sabem que sou brasileiro, vieram me comentar e, no fundo, me confortar.
Estou cada vez mais convencido de que existe um enorme risco de que, ao final desta pandemia, o Brasil se transforme no “misterioso país das lágrimas”. Acumuladas na alma de cada família, nas estatísticas dos jornais e no espírito de uma nação, as mortes registradas nos últimos meses tiraram um país de seu eixo, já frágil e já tão acostumado a enterrar seus filhos.
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O senhor bem sabe que nada disso era inevitável. O destino do vírus estava em nossas mãos, como mostraram vários países do mundo que, mesmo sem uma vacina, o sufocaram. Já vocês preferiram sufocar nossos sonhos.
Existe uma percepção de que somos filhos de uma pátria, uma noção complemente equivocada alimentada por perigosos nacionalistas que formam a base da ala mais radical de seu governo. Uma nação nasce de seus filhos, é determinada por sua coragem, moldada a partir de sua diversidade. Seu futuro depende daqueles que choram. Jamais daqueles que se acomodam.
No fundo, as lágrimas mais sinceras são da parcela mais otimista da sociedade. Do grupo que acredita que o mundo pode ― e deve ser melhor.
Presidente,
Quando seu líder máximo manda uma sociedade engolir o choro, sua mensagem é clara: parem de lutar. Aceitem o que existe. As lágrimas sabem que exigir que elas cessem é, por si só, um gesto autoritário.
Provavelmente o senhor saiba que chorar não é um sinal de fraqueza. Mas sim de indignação, de recusa em aceitar um destino.
Escrevo essa carta apenas para informar que vamos chorar até construir algo novo. Vamos chorar para permitir que cada uma das pessoas amadas que nos deixou seja lembrada como uma vítima de suas escolhas políticas. E não apenas como vítima de um vírus.
Essas lágrimas não serão engolidas. Por seu arco-íris que formam, elas são expressões de uma determinação para colocar fim a uma noite escura.
Não choramos pelo passado. Não o resgataremos. Tampouco choramos por uma vontade de vingança.
Choramos para construir um futuro. E, evidentemente, são essas lágrimas que o senhor mais teme.
Saudações democráticas
*Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
Luiz Carlos Azedo: O Brasil está de luto
Nada disso, porém, importa para o presidente Bolsonaro. Seu comportamento é o que pode ser chamado de darwinismo social, segundo o qual os mais fortes sobrevivem
Com mais 1.699 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas e 75.102 novos casos, o Brasil está de luto fechado. Já são 260 mil famílias que choram pela perda de entes queridos, mas o presidente Jair Bolsonaro conseguiu, ontem, bater o recorde da falta de respeito e empatia com as vítimas da pandemia do novo coronavírus, que já tem 10.793.732 de casos confirmados: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, disse, ao criticar medidas de restrição de circulação da população em meio a recorde de mortes pela doença.
Bolsonaro está irritado com governadores, que cobram mais empenho do governo na compra das vacinas, liberação de verbas para mais leitos e o endosso do Ministério da Saúde às recomendações dos seus sanitaristas. Os governadores, em documento encaminhado ao governo, alegam que estão no “limite” e que a vacinação em massa “é a alternativa que se afigura como a mais recomendável e, provavelmente, a única capaz de deter a pandemia”.
“Neste momento, há novas, reais e importantes justificativas para que o Brasil obtenha, com celeridade, novas remessas de imunizantes, a principal delas é a chegada e a rápida disseminação, já no estágio de transmissão comunitária, da nova variante P1, que tem se revelado ainda mais letal, prejudicando os esforços para proteger a vida de nossas cidadãs e cidadãos, bem como de suas famílias”, afirmam no documento.
Os governadores destacam que as preocupações das autoridades sanitárias de todo o mundo estão voltadas para o Brasil, por causa das nossas dimensões continentais e do grande número de casos, mas, sobretudo, devido à falta de controle sobre a expansão da pandemia e suas novas variantes, que podem pôr em risco todo o esforço feito para imunizar no mundo, se não houver igual empenho de vacinação no Brasil. “O mundo acompanha com preocupação o rápido avanço do contágio por essa variante no Brasil, o que torna o bloqueio da disseminação desse tipo de vírus matéria de interesse de diversas nações, inclusive porque outras variantes podem dela advir”, afirmam, com toda a razão.
Darwinismo social
O que está acontecendo no Brasil equivale à tragédia da Aids na África do Sul, que tem 5,7 milhões de infectados pela doença, ou seja, 11,8% dos 49,2 milhões de habitantes. A Aids virou uma endemia por causa do negativismo do ex-presidente Thabo Mvuyelwa Mbeki, que sustentava a tese de que era causada por falta de vitaminas e recomendava tratamento com ervas medicinais dos sacerdotes tribais. Não é uma interpretação muito diferente das ideias do presidente Jair Bolsonaro, que sabota todos os esforços feitos pelas demais autoridades para combater a pandemia.
O encontro de um vírus (que não é considerado um ser vivo) com uma bactéria é considerado pelos biólogos um dos fenômenos da criação. Esse encontro é que permite a reprodução do vírus e também possibilita mutações genéticas. A mutação E484K encontrada na variante brasileira P1 é uma das alterações já identificada no novo coronavírus: o Sars-Cov-2. Essa mutação também está presente em outras duas variantes que causam preocupação pelo mundo: a B.1.1.7, identificada no Reino Unido, e B.1.351, na África do Sul. Suspeita-se de que ela ajude a se tornar mais transmissível e enfraqueça os anticorpos humanos contra o vírus.
Pesquisadores da Fiocruz identificaram a E484K no Ceará, no Paraná, em Santa Catarina, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em Pernambuco, em Alagoas e em Minas Gerais. No Paraná e no Ceará, o índice de prevalência da mutação superou os 70% nas amostras, o que é muito grave. Nada disso, porém, importa para o presidente Bolsonaro. Seu comportamento é o que pode ser chamado de darwinismo social, segundo o qual, os menos aptos deixariam de existir, porque não são capazes de se adaptar e acompanhar a linha evolutiva. Assim, entrariam em extinção, acompanhando o princípio de seleção natural.
Luiz Carlos Azedo: Mortes, recessão e desemprego
O negativismo de Bolsonaro em relação ao distanciamento social, à eficácia das vacinas e ao uso adequado de máscaras aumenta as dificuldades para combater o vírus
As notícias não são boas, porque a recessão, o desemprego e as mortes por covid-19 avançam. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro vive num mundo só dele, que talvez não seja compartilhado nem pela maioria de seus seguidores, cujo negacionismo em meio à crise sanitária não chega a ponto de se recusar a tomar uma vacina. Em vez de liderar o combate à pandemia, Bolsonaro ataca governadores e prefeitos que tentam conter sua expansão. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode entrar em pânico. Que nem a política, de novo, do ‘fique em casa’. O pessoal vai morrer de fome, de depressão?” — disse Bolsonaro, ontem, a apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília.
Como sempre acontece quando se vê diante de dificuldades, o presidente terceiriza responsabilidades e se faz de vítima: “Para a mídia, o vírus sou eu”. Ontem, o Brasil registrou 1.910 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, um novo recorde desde o início da pandemia, e mais 71.704 novos casos, segundo informou o Ministério da Saúde. O número de óbitos pela doença chegou a 259,2 mil, e o total de casos aumentou para 10,718 milhões. O cenário é de colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS) na maioria dos estados. Em Santa Catarina, por exemplo, dezenas de pessoas morreram por falta de UTI; casos graves estão sendo transferidos para o Espírito Santo.
A transmissão da doença está sendo homogênea e mais rápida do que a vacinação; o estoque de contaminados aumenta exponencialmente, sem leitos suficientes nas UTIs para internação, inclusive na rede privada. Entretanto, a narrativa de Bolsonaro é obsessivamente eleitoral, responsabiliza governadores e prefeitos pela recessão e o desemprego, por causa das medidas de distanciamento social. Explora o senso comum das pessoas que querem manter seus empregos ou atividades produtivas como se não houvesse amanhã.
A causa da recessão e do desemprego em todo o mundo é a pandemia da covid-19, que somente pode ser combatida de forma eficaz e definitiva com a vacinação em massa da população. O negativismo de Bolsonaro em relação ao distanciamento social, à eficácia das vacinas e ao uso adequado de máscaras aumenta as dificuldades para combater o vírus, a recessão e o desemprego, porque tira do eixo de coordenação da política de saúde pública o Ministério da Saúde e estimula a população a reproduzir atitudes temerárias em relação ao vírus, como aglomerações, abraços e apertos de mão, sem o uso correto de máscaras.
Auxílio emergencial
Com 4,1% de recessão em 2020, o Brasil saiu do ranking das 10 maiores economias do mundo e caiu para a 12ª colocação, segundo levantamento da agência de classificação de risco Austin Rating. Em 2019, o Brasil ficou na nona posição. Fomos superados por Canadá, Coreia e Rússia. São raros os momentos da história em que o Brasil andou para trás. Mesmo durante a hiperinflação, no governo Sarney, todos os indicadores sociais melhoraram. Recentemente, isso somente ocorreu durante a recessão do governo Dilma Rousseff (PT), que foi afastada pelo impeachment.
Bolsonaro subestima o que está acontecendo. É uma fuga da realidade. Com base nas projeções do FMI para 2021, a Austin estima que o Brasil pode cair para a 14ª posição no ranking das maiores economias do mundo, sendo superado também por Austrália e Espanha, considerando um cenário otimista de alta de 3,3% do PIB brasileiro deste ano e uma taxa de câmbio média de R$ 5,24 por dólar.
A contrapartida para evitar um desastre maior na economia é a aprovação do auxílio emergencial, sobre cuja necessidade há um amplo consenso, mas existem muitas divergências quanto às condições em que isso pode ser feito. Ontem, em nota técnica, o Ministério da Economia alertou o Congresso Nacional de que a prorrogação do auxílio emergencial sem respeitar os limites fiscais “tem o potencial de deteriorar a trajetória inflacionária, reduzir a atividade econômica e aumentar o desemprego”. Entretanto, isso ‘e estimulado por Bolsonaro, cujas decisões intempestivas e intervencionistas na economia estão “fritando” o ministro Paulo Guedes, o que também agrava a crise.
Luiz Carlos Azedo: A tragédia do negacionismo
Bolsonaro é paranoico, vê conspiração em tudo. Acredita que os defensores do lockdown querem desestabilizar seu governo e aprovar o seu impeachment
O presidente Jair Bolsonaro bateu no teto do negacionismo quando atacou governadores e prefeitos que adotaram medidas de lockdown. Em Fortaleza, durante evento que causou aglomeração e ao qual compareceu sem máscara, na sexta-feira, disse: “Agora, o que o povo mais pede, e eu tenho visto, em especial no Ceará, é trabalhar. Essa politicalha do ‘fique em casa, a economia a gente vê depois’, não deu certo e não vai dar certo”. Aproveitou para ameaçar os governadores que não seguirem a sua cartilha: “O auxílio emergencial vem por mais alguns meses e, daqui para a frente, o governador que fechar seu estado, o governador que destrói emprego, ele é quem deve bancar o auxílio emergencial”.
Mirou, sobretudo, o governador cearense Camilo Santana (PT), que havia endurecido as medidas de distanciamento social. Fortaleza está com uma taxa de ocupação de leitos de UTI de 94%, sendo uma das capitais em risco de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). As demais são: Porto Velho (RO), 100%; Florianópolis (SC), 96,2%; Manaus (AM), 94,6%; Goiânia (GO), 94,4%; Teresina (PI), 93%; e Curitiba (PR), 90,0%. O país já contabilizou 10,4 milhões de casos e 252 mil óbitos por covid-19 desde o início da pandemia. Na véspera das declarações, Bolsonaro havia questionado o uso de máscaras, enquanto o país batia o recorde de mortos num único dia: 1.582.
Psicologicamente, negacionismo é uma forma de escapar de uma verdade desconfortável. Na ciência, o negacionismo é definido como a rejeição dos conceitos básicos, incontestáveis e apoiados por consenso científico a favor de ideias radicais e controversas. Costuma se fortalecer quando a sociedade se depara com situações de instabilidade, como essa crise sanitária, ou diante de algo nunca presenciado, um vírus novo e letal, como é o caso. O negacionismo apela para teorias e discursos conspiratórios, que acabam favorecendo disputas ideológicas, interesses políticos e religiosos. Bolsonaro é paranoico, vê conspiração em tudo. Acredita que os defensores do lockdown (medida para conter a velocidade de propagação do vírus e evitar o colapso do sistema de saúde) querem desestabilizar seu governo e aprovar o seu impeachment.
Vacinas
No governo, além de Bolsonaro, os ministros de Relações Exteriores, Ernesto Araujo; do Meio Ambiente, Ricardo Salles; e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, em suas respectivas pastas, estão na linha de frente do negacionismo. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, também fez parte desse time. Sua responsabilidade no colapso do SUS em Manaus, por falta de oxigênio, está sendo investigada, assim como no atraso da compra de vacinas, inclusive, as que estão sendo produzidas no Brasil, como a CoronaVac (Instituto Butantan); a Oxford (Fiocruz) e a Sputnik V (União Química, privada). Agora, corre atrás das vacinas da Pfizer, que negocia desde agosto e refugou em setembro passado.
O negacionismo é insidioso e perigoso, pois atua no campo ideológico para influenciar a opinião pública e legitimar governantes com posições anticientíficas. Com isso, pode resultar em tragédias humanitárias. É o caso da epidemia de Aids na África do Sul, que chegou a registrar 5,4 milhões infectados, para uma população de 48 milhões de pessoas. O ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki (1999-2008) ficou para a história como o principal negacionista do HIV/Sida, que mandou tratar com erva, o que custou a vida de mais de 300 mil pessoas. Há quem exija que seja julgado por crimes contra a humanidade.
A negligência no combate à pandemia, a negação das vacinas e a insistência na promoção de tratamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19, pelo presidente Jair Bolsonaro, porém, provocou ampla mobilização de médicos, pesquisadores e entidades científicas, que atuam nos meios de comunicação e nas redes sociais para combater a fake news e explicar à população o que realmente está acontecendo. O negacionismo irresponsável é tanto que até hoje o governo não fez uma campanha oficial de esclarecimento e incentivo à vacinação, que é a última fronteira do combate ao negacionismo em relação à pandemia da covid-19.
Luiz Carlos Azedo: Pazuello descobre a pólvora
O SUS pode entrar em colapso, como aconteceu em Manaus, em Santa Catarina, Tocantins, Rondônia, Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará, Paraíba, Maranhão e Sergipe
Há um ano, bem no começo da pandemia da covid-19, se discutia se era uma “gripezinha”, como disse o presidente Jair Bolsonaro, ou uma grave crise sanitária. O então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, insistia que era preciso adotar a política de distanciamento social, para achatar a curva de contaminação e evitar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto se esperava uma vacina eficaz contra o novo coronavírus. Acabou demitido por contrariar Bolsonaro. O oncologista Nelson Teich, que o substituiu, pediu demissão rapidinho. Bem-mandado, o general de divisão Henrique Pazuello foi nomeado para o cargo.
Naquela ocasião, já se sabia que a pandemia cresceria exponencialmente. Entretanto, incentivados por Bolsonaro, os negacionistas embarcaram na canoa furada da gripezinha, nem mesmo máscaras usavam, e colocavam em dúvida a eficácia das vacinas, que, finalmente, estão chegando, mas em quantidade menor do que a necessária para conter a expansão da doença. Desprezaram o conhecimento e a experiência de sanitaristas, infectologistas e cientistas. O primeiro escalão do Ministério da Saúde foi substituído por um grupo de militares neófitos em saúde pública.
Bolsonaro agiu como aquele rei persa que apostou e perdeu a partida de xadrez. Como recompensa, o seu vizir pediu um grão de trigo no primeiro quadrado do tabuleiro, dois no segundo, quatro no terceiro e assim por diante, dobrando sempre as quantidades. O rei achou a recompensa insignificante, oferecendo joias, odaliscas, palácios, mas o vizir recusou. Só desejava os montes de trigo. Na hora de pagar a aposta, porém, o rei teve uma surpresa muito desagradável. O número de grãos começou pequeno: 1, 2, 4, 8, 16, 32 (…) e foi crescendo, 128, 256, 512, 1.024… Quando chegou à última das 64 casas do tabuleiro, era de quase 18,5 quintilhões.
A história foi contada pelo físico norte-americano Carl Sagan (Bilhões e bilhões: reflexões sobre vida e morte, Companhia das Letras, 1998) para chamar a atenção para a importância de se levar em conta os números exponenciais na análise da escala dos mais variados assuntos. É o caso da pandemia de coronavírus, que pode virar uma endemia, se a política de vacinação do governo continuar errática, para não dizer toda errada, como está sendo realizada.
Colapso
Na quarta-feira, chegamos a 250 mil óbitos, com média móvel recorde de 1.129 mortes por dia. Estudo da Fiocruz referente à Semana Epidemiológica 7 de 2021 (período de 14 a 20 de fevereiro) mostra que oito dos 27 estados apresentam sinal de crescimento de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e da covid-19 (95,4% do total de testes positivos), enquanto seis apresentaram tendência de queda. Entretanto, todas as regiões do país estão em risco. Ceará, Santa Catarina e Tocantins apresentam sinal forte (probabilidade maior que 95%) de crescimento na tendência de longo prazo (seis meses). Bahia, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul mostram sinal moderado (probabilidade maior que 75%). Ceará e Paraíba acumulam cerca de seis semanas consecutivas de crescimento, enquanto Tocantins apresenta cinco semanas. Alagoas, Goiás, Maranhão e Rondônia, embora estejam com sinal de estabilidade na tendência de longo prazo, vêm de longo período de crescimento.
Ontem, o ministro Pazuello anunciou que o governo tem três estratégias para enfrentar a pandemia: atendimento imediato em unidades básicas de saúde, estruturação de leitos de UTI e de enfermaria e impulsionamento da vacinação. Ou seja, descobriu a pólvora. Admitiu que a nova cepa do coronavírus, que surgiu em Manaus, já está em várias regiões do país. Citou aumento da contaminação no Pará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, em Goiás, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Na verdade, os sinais de que o SUS pode entrar em colapso, como aconteceu em Manaus, vêm da escassez de leitos em Santa Catarina, Tocantins, Rondônia, Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará, Paraíba, Maranhão e Sergipe.
Quando Pazuello fala em pronto atendimento nas unidades básicas de saúde, não fica claro qual é o tipo de tratamento. Segundo a revista científica New England Journal of Medicine, a pesquisa Solidarity (Solidariedade) mostrou que medicamentos como hidroxicloroquina, remdesivir, lopinavir e interferon tiveram pouco ou nenhum efeito em pacientes hospitalizados com o novo coronavírus. A pesquisa é organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, no Brasil, conduzida pela Fiocruz. Esse coquetel faz parte do chamado “tratamento precoce”, que era recomendado pelo Ministério da Saúde e foi desaconselhado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Janio de Freitas: A Folha merece corrigir seu caminho
Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 anos do jornal
Nos 100 anos da Folha, estendi por 40 anos, completados em novembro de 2020, um equívoco que se desdobrou em incontáveis outros. Um telefonema de Boris Casoy, então diretor de Redação, com um convite para minha colaboração no jornal, dava seguimento a uma sugestão de Flávio Rangel a Otavio Frias Filho, que procurava novo ocupante para a coluna fina da página 2.
Não ia durar mesmo, então comecei, não com os esperados seis textos por semana, três cabiam. Não se conversou sobre o gênero de coluna. Meu antecessor viera de décadas como editorialista de política, com estilo e temática dessa linhagem. Esperavam de mim, supus, a continuação assim. Nem tentei: em São Paulo com o nome de Janio, jornalista do abominável balneário do Rio e incapaz de fazer o que não sabia, na certa seria o horror dos leitores experimentais. Corri para uma crônica de fundo político, com temperos improváveis e cardápio variado.
O oposto do que Otavio desejava, vim a saber não muito depois. O convite foi um equívoco. De Otavio nunca ouvi uma referência positiva a artigo meu. A rigor, ouvi dois elogios: um, ao artigo “Cuba ida e volta”, quando me disse sentir-se em culpa por me haver retido no trabalho estiolante da coluna; outro, no artigo sobre a Grécia do mar Egeu, onde me emocionara muito. Um elogio para cada 20 anos é ao menos uma média original.
Quando Frias pai quis me passar para um espaço próprio e fixo, seis dias na semana, relutei muito comigo mesmo. Fui vencido por outro equívoco. Ano a ano, o canto alto e junto à dobra da página 5 recebeu e entregou um assunto exclusivo, em geral relevante e um tanto atrevido. O ponto final de uma coluna sinalizava o início do trabalho para a seguinte, ou as seguintes. Uma insensatez. Que pressenti, porém não aliviei, como é mais comum, pelo orgulhoso fascínio desta profissão imprópria para os países de falso “em desenvolvimento”.
Frias pai é merecedor de um reconhecimento ainda não feito pelo jornalismo. Nem mesmo na Folha. A extensão peculiar da liberdade informativa, base da identidade que o jornal veio a formar, só foi possibilitada por um fator contrário à pressão tradicional do poder econômico para conter o jornalismo entre limites estreitos. Tem um nome: é o fator Octavio Frias de Oliveira.
O jornal já se tornara o polo da rejeição pública à ditadura, com a campanha das Diretas Já induzida por Otavio. No regime civil, manteve a posição privilegiada com o jornalismo crítico aos problemas governamentais da abertura. E “esse movimento [do jornal] veio acompanhado do exercício do jornalismo investigativo”, como disse a O Globo, sobre o centenário da Folha, o presidente da Associação Nacional de Jornais, Marcelo Rech. “A Folha não inventou o jornalismo investigativo, mas a denúncia da fraude na licitação da ferrovia Norte-Sul (...), em 1987, foi um divisor de águas.”
Deu-se uma corrida obcecada às revelações do jornalismo investigativo. O que só foi possível porque Frias acionou uma capacidade extraordinária de reduzir ressentimentos e obter o convencimento dos atingidos, nos interesses e no prestígio, pelas revelações da Folha. Aos atos traumáticos do jornalismo, foi comum seguir-se imediata operação de Frias, regada a simpatia natural e completada com a oferta de espaço à resposta do atingido —argumento definitivo da inexistência de qualquer propósito que não o jornalismo democrático. A Folha compunha uma identidade única.
Os olhares de mútuo entendimento entre mim e a Folha macularam-se no governo Fernando Henrique. Desde a campanha eleitoral, toda a “mídia” serviu a ele, não só ao Plano Real e sua eficácia anti-inflacionária. O senso crítico e a responsabilidade social e institucional reprimiram-se. Houve muita ilegalidade e muita imoralidade, mas o comprometimento político e partidário contrapôs-se, com mais força, à crítica necessária e ao jornalismo investigativo.
O governo Fernando Henrique foi um período tão nefasto para a “mídia” —não considerado o aspecto financeiro, de grandes benefícios— que essa influência vigora até hoje. Mostrou-se em todas as campanhas eleitorais desde aqueles anos 1990. Fez o grande espetáculo da barragem protetora às violências judiciais e políticas da Lava Jato de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Mostra-se na complacência com a corrupção dos Aécios do PSDB. Já se entorta para a eleição presidencial de 2022.
Das crônicas de fundo político, o anteparo da Folha me levou a uma coluna de informações quentes e buriladas. Daí, isolado, passei à reação ao deletério fernandismo-peessedebismo. Por fim, terceirizado, a expor percepções perdidas ou relegadas no afundamento do país em crise total e mortal.
Quarenta anos que sinto sem divisões anuais, volume uniforme de tempo, nada que desejasse reviver. Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 da Folha: logo aos primeiros textos, tratar o assunto militares como qualquer outro, contra o velho tabu; aproveitar os desequilíbrios de Gilmar Mendes e invadir a intocabilidade do Supremo, com mais um tabu que caía; e revelar, com a Norte-Sul e muitas outra fraudes desvendadas e anuladas, a corrupção que é a alma do “desenvolvimento” no Brasil.
A imprensa está em crise, mundo afora. A Folha merece corrigir seu caminho para vencer mais essa pressão.