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Luiz Carlos Azedo: O bêbado e a borboleta
“Desafiar o novo coronavírus se tornou uma espécie de obsessão para o presidente da República, que se comporta como quem adquiriu imunidade contra a doença”
No livro O revólver que sempre dispara (Casa Amarela), Emanuel Ferraz Vespucci analisa as causas, os comportamentos e as consequências para a saúde de diversas dependências químicas, inclusive o alcoolismo e o tabagismo. É um livro despido de preconceito e, do ponto de vista clínico, como não poderia deixar de ser, serve de referência para os que lidam com o problema: usuários em busca de tratamento, seus familiares e terapeutas. O livro explica de maneira clara como as diversas drogas causam dependência física e psicológica, os problemas que acarretam e as maneiras de enfrentá-los, sem moralismo. A perda de controle sobre o álcool, a cocaína, o crack, a maconha, morfina, calmantes, inibidores de apetite e outros psicotrópicos é um problema muito mais amplo do que se imagina.
A dependência funciona como uma roleta russa. Em algum momento a bala que está no cilindro do rerólver será disparada, na medida em que o sujeito arrisca mais uma vez. Ou seja, o acaso tem um limite, quanto maior a frequência, maior a probalidade de ocorrência. Por causa da dependência, algo grave acontecerá na vida da pessoa, pode ser um acidente de carro, a perda do emprego, um surto psicótico, um infarto.
O que interessa aqui é a analogia da roleta-russa, ou seja, do revólver que sempre dispara. Durante a pandemia de Covid-19, por causa do risco de contaminação, sair de casa é uma espécie de roleta russa, mesmo que a pessoa utilize máscaras e luvas. Acontece que o presidente da República — com o objetivo declarado de desmoralizar a política de distanciamento social preconizada pelas autoridades médicas, inclusive seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e responsabilizar governadores e prefeitos pela recessão econômica — resolveu sair às ruas com frequência e, nesses passeios, visitar o comércio local para estimular proprietários e consumidores a manterem uma vida normal. Bolsonaro ignora uma epidemia que está matando mais de 100 pessoas por dia no Brasil, o equivalente a um desastre de grandes proporções.
Desafiar o novo coronavírus se tornou uma espécie de obsessão para o presidente, que se comporta como quem adquiriu imunidade contra a doença, como acontece com aqueles que já foram contaminados, se recuperaram e adquiriram anticorpos ou que, por qualquer outra razão, têm uma sistema imunológico mais robusto, geralmente mais jovens. Não se sabe se o presidente está imunizado; ele se recusa a revelar os resultados dos exames que fez. Bolsonaro age como um jogador compulsivo, o que não deixa de ser uma dependência, sem levar em conta que a maioria das pessoas não está preparada para lidar com o aleatório.
Teoria do caos
É aí que chegamos a O andar do bêbado (Zahar), o instigante livro do físico Leonard Mlodinow, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, sobre o acaso na vida das pessoas, ou melhor, sobre como funciona a aleatoriedade. O novo coronavírus se multiplica como um “Efeito Borboleta”, descoberto em 1960, pelo matemático Edward Lorenz, base para a Teoria do Caos. Mostra como pequenas alterações nas condições iniciais de grandes sistemas podem gerar transformações drásticas e significativas.
Lorenz, que também era meteorologista, realizava cálculos relacionado a padrões climáticos num computador. Em vez de colocar 0,000001, conforme fez na primeira vez, ele colocou 0,0001, alterando completamente o resultado da simulação, como se o bater de asas de uma borboleta na Austrália provocasse um furacão no Caribe. Foi o que aconteceu com o coronavírus na Alemanha e na Coreia do Sul, países que mais bem monitoraram a epidemia e conseguiram mantê-la sobre controle, com testes em massa e hospitalização dos contaminados. No primeiro caso, bastou que uma pessoa contaminada usasse o saleiro num almoço de família para a epidemia se propagar; no segundo, um único paciente, de 30 casos confirmados, escapou do isolamento e disseminou a doença.
Na Sexta-feira da Paixão contabilizamos 1.056 mortes e 19.638 casos confirmados, 44 dias após o primeiro caso registrado no país e 24 dias depois do registro da primeira morte. São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará e Amazonas estão em risco de colapso do sistema de saúde pública. Numa hora em que o país precisa de coesão social e alinhamento das políticas de combate ao novo coronavírus, para evitar o colapso do sistema de saúde, Bolsonaro aposta na autoimunizaçao pelo contagio e num medicamento de eficácia limitada nos tratamentos, a hidroxicloroquina, para evitar as mortes, e prega a retomada imediata das atividades econômicas, com adoção do chamado isolamento seletivo ou vertical. Essas apostas foram feitas em outros países, como os Estados Unidos, Inglaterra e Japão, e fracassaram.
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Luiz Carlos Azedo: Eleições na berlinda
“A epidemia não impediu a montagem de chapas de vereadores nem as pré-candidaturas a prefeito, mas muita gente torce pelo adiamento do pleito”
Se antecipando ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o juiz federal Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara Cível da Justiça Federal em Brasília, detonou, ontem, as eleições municipais deste ano, para escolha de prefeitos e de vereadores, ao determinar o bloqueio dos recursos do fundo partidário (dinheiro destinado aos partidos políticos) e do fundo eleitoral (para custear campanhas eleitorais). Decidiu que os recursos ficarão à disposição do governo federal para serem usados em medidas de combate ao coronavírus ou em ações contra os seus reflexos econômicos, inviabilizando o funcionamento dos partidos e suas campanhas eleitorais. Ontem, o Brasil atingiu 14.018 casos confirmados do novo coronavírus, com 686 mortes.
“Os valores podem, contudo, a critério do Chefe do Poder Executivo, ser usados em favor de campanhas para o combate à Pandemia de Coronavírus — Covid-19, ou para amenizar suas consequências econômicas”, determinou o magistrado, que acolheu ação popular impetrada por um advogado paulista. Com R$ 959 milhões, o fundo partidário é usado para permitir o funcionamento das legendas. O fundo de financiamento de campanhas acumula R$ 2,034 bilhões, dinheiro que estava destinado às campanhas das eleições municipais de outubro.
A sentença, em tom de manifesto, soa como música para aquela parcela da opinião pública que odeia os políticos: “Dos sacrifícios que se exigem de toda a Nação, não podem ser poupados apenas alguns, justamente os mais poderosos, que controlam, inclusive, o orçamento da União”, argumentou o juiz federal. Segundo ele, a manutenção dos fundos “se afigura contrária à moralidade pública”, “aos princípios da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” e, ainda, “ao propósito de construção de uma sociedade solidária”.
Nos bastidores do Congresso, que vota medidas de emergência para evitar que os trabalhadores informais fiquem sem nenhuma fonte de renda e para garantir a sobrevivência das empresas, também se discute o adiamento das eleições, em razão da epidemia. Até agora, o calendário eleitoral foi mantido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A epidemia não impediu a montagem de chapas de vereadores nem as pré-candidaturas a prefeito, com intensa troca de partidos e novas filiações, até o último domingo, mas muita gente torce pelo adiamento.
Calendário
Sempre houve no Congresso quem defendesse a coincidência das eleições, acenando com uma prorrogação de mandato por mais dois anos para prefeitos e vereadores. Essa ideia, porém, vem sendo rejeitada. Mexer na duração dos mandatos é considerado um precedente perigoso para a democracia, em qualquer hipótese, quando nada porque a história do Brasil associa essas mudanças a rupturas institucionais. Entretanto, a epidemia de coronavírus realmente coincidirá com o processo eleitoral.
As eleições municipais só ocorrerão em outubro, mas a contagem regressiva está em pleno curso. Para os eleitores, 6 de maio é o último dia para que regularizem a sua situação junto à Justiça Eleitoral. Pessoas que perderam o recadastramento biométrico e tiveram o título cancelado, que não justificaram a ausência nas últimas eleições ou desejem alterar o domicílio eleitoral têm até esse dia para resolver suas pendências nos cartórios eleitorais.
Em 15 de maio, começa a arrecadação facultativa de doações por pré-candidatos aos cargos de prefeito e vereador. Pré-candidatos que apresentem programas de rádio ou televisão ficam proibidos de fazê-los a partir de 30 de junho. A partir de 4 de julho, estão proibidas nomeações, exonerações e contratações, assim como transferências de recursos, entre outras, ou seja, a administração pública é engessada. As convenções partidárias para a escolha dos candidatos deverão ser realizadas de 20 de julho a 5 de agosto.
Segundo o calendário epidemiológico, nesse período, a epidemia estará ultrapassado o seu ápice, mas isso é apenas uma projeção estatística. Os registros de candidaturas devem ser protocolados na Justiça Eleitoral antes da meia-noite de 14 de agosto. Em 16 de agosto, começa a propaganda eleitoral, inclusive na internet. O horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão será veiculado de 28 de agosto a 1º de outubro. O primeiro turno de votação está previsto para 4 de outubro; o segundo turno, para a eleição de prefeitos em municípios com mais de 200 mil eleitores, ocorrerá no dia 25 do mesmo mês.
Hoje, as eleições não poderiam ser realizadas na maioria das capitais, sobretudo São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Recife, Manaus e Florianópolis, e alguns grandes cidades. Na maioria dos municípios, não haveria maiores dificuldades. Entretanto, não se sabe o que acontecerá até outubro. Na epidemia da “gripe espanhola”, que matou milhares de pessoas no Rio de Janeiro em 1918, somente 5 mil dos 36 mil eleitores compareceram às urnas em novembro daquele ano, na eleição para o Senado. Em março, na eleição presidencial, 22 mil haviam votado.
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Luiz Carlos Azedo: Ilustre passageiro
"A reação dos países à epidemia é proporcional à envergadura de seu sistema de saúde, esclarecimento da população e escala de medidas de contenção por parte dos governos"
Um dos mais famosos “cases” da propagada brasileira é um anúncio de bondes: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum Creosotado”. O poeta Bastos Tigres levou a fama, mas a autoria seria do farmacêutico Ernesto de Souza (1864-1928), criador da fórmula, que até hoje serve de exemplo nas escolas de comunicação, por causa da simplicidade de seus versos. De acordo com o anúncio publicado no jornal Correio da Manhã, de 8 de agosto de 1920, a fórmula do Rum Creosotado, produzido pela centenária Drogaria Granado, era mesmo aquela que aparece na propaganda, com “fartos elementos para a hygiene dos pulmões”: iodo, hypophosphito de sódio (NaH2PO2), e de cálcio [Ca(H2PO2)2]. Naquela época, como grande público tinha baixa escolaridade, os versos e a ilustração facilitavam a propagação do anúncio boca a boca.
Seu principal concorrente era o Biotônico Fontoura, criado em 1910 pelo médico Cândido Fontoura para sua esposa. Seu amigo Monteiro Lobato, que tomava o produto para combater o cansaço, batizou a fórmula exaltando suas propriedades e o nome do criador. O Biotônico ganhou muita fama por causa da Lei Seca dos Estados Unidos (1920-1933), para onde foi exportado e fez muito sucesso como remédio que podia ser comprado nas farmácias, mas que servia para aliviar a abstinência dos beberrões, por causa do teor de 9,5% de álcool. No Brasil, era usado como abridor de apetite das crianças, misturado com leite condensado e ovos de pata, um coquetel antianêmico. Em 2001, a Anvisa proibiu que produtos destinados às crianças tivessem qualquer quantidade de álcool em sua composição, razão pela qual o produto foi modificado, ganhando os sabores morango e uva, sem álcool, para as crianças. Rico em ferro, é vendido até hoje, por R$ 26.
A propósito do tipo faceiro, ilustre passageiro ao lado, era o caso do secretário de Comunicação da Presidência da República, Fábio Wajngarten, que viajou aos Estados Unidos com o presidente Jair Bolsonaro e seus familiares e está com coronavírus. Toda a comitiva presidencial — parentes, ministros, assessores civis e militares, parlamentares — fez exames ontem para saber se alguém mais foi contaminado. Fábio está em isolamento, depois de fazer novo exame em São Paulo; o resultado da contraprova confirmou a infecção. Bolsonaro, a primeira-dama Michelle e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, fizeram o teste no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República, e não apresentam sintomas da doença.
Desdenhar do coronavírus é a mesma coisa que acreditar que o Rum Creosodato resolveria o problema dos pulmões, numa época em que a penicilina não havia sido descoberta e, por isso mesmo, não existiam antibióticos capazes de curar a tuberculose, e a pneumonia era quase fatal. Essa suposição é alimentada pela baixa letalidade da epidemia (entre 0,5% e 3,5% dos infectados), que atinge grupos de risco (cardiopatas, diabéticos e idosos). O problema é a velocidade da propagação da epidemia, que aumenta sua letalidade por causa da incapacidade de o sistema de saúde atender o crescimento exponencial de casos graves, que exigem entubação dos pacientes em leitos de UTIs. Até a volta dos Estados Unidos, Bolsonaro tratava o assunto de forma até leviana, comparando o coronavírus a uma simples gripe e culpando a imprensa — sempre ela — pelo justificado temor que se disseminou na população, o que é muito diferente de pânico.
Escolhas
Trata-se de uma escolha de Sofia (decisão difícil sob pressão e enorme sacrifício pessoal, como a vista no filme homônimo de 1982, que valeu a Meryl Streep o Oscar de melhor atriz), entre a redução das atividades da sociedade, principalmente as aglomerações e circulação das pessoas, com consequente redução da atividade econômica, ou o colapso do sistema de saúde, sem leitos, máscaras, tomógrafos, respiradores e outros equipamentos para quem precisa, provocando o aumento do número de mortos. A capacidade de reação dos países à epidemia é mais ou menos proporcional à envergadura de seu sistema de saúde, nível de esclarecimento da população e escala de medidas de contenção da epidemia por parte dos governos.
O caso da China proporcionou aos especialistas da Organização Mundial de Saúde (OMS) um estudo do comportamento da doença em diversas regiões do país, que está servindo de paradigma para o enfrentamento da epidemia, sobretudo depois do colapso do sistema de saúde da Itália, que é um dos melhores do mundo. As ruas desertas das cidades italianas escondem o drama terrível dos hospitais lotados, onde não se morre só de coronavírus, mas de câncer, ataque cardíaco, traumatismo craniano, pneumonia e até gripes comuns, por falta de leitos de UTIs.
O Brasil vai contratar 5 mil médicos pelo Programa Mais Médico e direcionar 2 mil leitos de UTI para o tratamento de pacientes com Covid-19 pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, em entrevista coletiva, revelou que o nível de preocupação com leitos aumentou após registros dos casos na Itália. Ontem, em Florianópolis (SC), prefeitos das capitais e das principais cidades do país, se reuniram para discutir medidas de combate ao coronavírus. Ninguém se iluda, o sucesso no combate ao coronavírus precisa de medidas governamentais corajosas, dos prefeitos e dos governadores, para reduzir a velocidade de propagação da epidemia e contê-la, poupando vidas.
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Luiz Carlos Azedo: Carnaval em Guarujá
“Bolsonaro não gosta de desfiles de escolas de samba, prefere as paradas militares. O carnaval é a negação de tudo o que ele pensa. Deveria, porém, prestar mais atenção ao recado dos foliões”
Existe um dilema na vida nacional que somente a antropologia social dá conta de percebê-lo na sua dimensão cultural: a contradição entre os aspectos autoritários, hierarquizados e violentos da nossa sociedade e a busca de um mundo harmônico, democrático e não conflitivo. O antropólogo Roberto da Matta captou esse dilema no livro Carnavais, Malandros e Heróis, de 1979, um clássico da interpretação do Brasil. Na época, o carnaval de rua não era ainda a grande manifestação de massas que se registra hoje em praticamente todos os estados, porém, os desfiles de escola de samba no Rio de Janeiro já traduziam a alma de um Brasil mais profundo.
Este comentário de Henrique Brandão, jornalista e um dos fundadores do bloco Simpatia é quase amor, me remeteu das redes sociais para a obra de Da Matta: “O que se viu e ouviu no Sambódromo neste carnaval foram enredos criativos e, uma boa parte, autorreferentes. Mangueira, Tuiuti, Ilha e Tijuca usaram as comunidades de origem para contar suas histórias. Outras, falaram de personalidades com forte identificação com as localidades de onde surgiram as escolas, como Joãozinho da Gomeia (Grande Rio) e Elza Soares (Mocidade). O Salgueiro exaltou o primeiro palhaço negro do Brasil. Os indígenas que habitavam o Rio antes da chegada dos portugueses foram cantados pela Portela. As Ganhadeiras de Itapuã, negras de ganho que compravam suas alforrias em Salvador, foi o tema da Viradouro. A criatividade destes enredos se refletiu nos sambas, com uma safra de alto nível. Enfim, mesmo lutando contra a má vontade do poder público — principalmente do prefeito-bispo que demoniza o carnaval — as escolas saíram de suas zonas de conforto e foram buscar em suas raízes a chave para renovarem seus desfiles. Há muito não via um carnaval tão bom na Sapucaí”.
Segundo Da Matta, o lado autoritário e hierarquizado da sociedade brasileira tem três dimensões: uma ordem formal, baseada em posições de status e prestígio social bem definidos, onde não existem conflitos e onde “cada um sabe o seu lugar”; uma oposição sistemática entre o mundo das “pessoas”, socialmente reconhecidas em seus direitos e privilégios, e um universo igualitário dos indivíduos, onde as leis impessoais funcionam como instrumentos de opressão e de controle (“para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”); e o sagrado, onde se opera uma suposta equalização da sociedade, já que todos são filhos de Deus, mas, ao mesmo tempo, são mantidas estruturas claramente hierárquicas de santidade.
Nesses sistemas, se estabelece uma tensão permanente entre a vida doméstica, na qual deve reinar a paz e a harmonia e cada um vale pelo que é, e a vida mundana, onde a batalha cotidiana pela sobrevivência é anônima, dura e impiedosa. Os privilégios da elite do tipo “você sabe com quem está falando” impõem à maioria as relações de mercado e as regras da burocracia, restando ao cidadão comum o velho “jeitinho” para minimizar as agruras da vida banal. É aí que o carnaval subverte tudo, pois é uma manifestação essencialmente igualitária, na qual a transgressão e a liberdade traduzem para as ruas as relações espontâneas. O carnaval de rua cresce, inverte a ordem e mostra que continuamos a ser uma sociedade hierárquica, desigual; na folia, as mulheres, os negros, os pobres e os excluídos assumem o lugar que quase sempre lhes é negado nos demais dias do ano.
Napoleão
Paradas militares, procissões e solenidades oficiais ritualizam e explicitam os aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade brasileira; a irreverência dos blocos de rua e os heróis populares das escolas de samba, o seu oposto. O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus quatro dias, dramatiza e transpõe para o mundo da “rua” os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são o outro lado da ordem imposta de cima para baixo.
Na antropologia, a “cultura” é um conceito-chave para a interpretação da vida social, não é uma forma de hierarquizar a sociedade. Não marca uma hierarquia de “civilização”, mas a maneira de viver de um grupo, sociedade, país ou pessoa. É justamente porque compartilham de parcelas importantes desse código (a cultura) que indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos como parte de uma mesma totalidade. Segundo Da Matta, desenvolvem relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos de comportamento diante de certas situações. A cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós.
O presidente Jair Bolsonaro passou o carnaval em Guarujá, não gosta de desfiles de escolas de samba, prefere as paradas militares. O carnaval é a negação de tudo o que ele pensa. Como primeiro mandatário da nação, porém, deveria prestar mais atenção ao recado dos foliões, compreenderia melhor o nosso povo e suas aspirações mais profundas. Entretanto, enquanto o povo se divertia, endossou pelas redes sociais a convocação de uma manifestação para fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Como quem prepara um “coup d’état”, Bolsonaro testa suas cadeias de comando e capacidade de mobilização, numa afronta à Constituição de 1988. Com todo respeito, nesse “apronto”, vestiu a fantasia de Luís Napoleão.
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Luiz Carlos Azedo: De olho nas eleições
“A nomeação Marinho para o Desenvolvimento Regional surpreendeu os meios políticos, mas vai ao encontro dos desejos da base governista, que se queixava da atuação de Canuto à frente da pasta”
Craque da articulação política do governo na aprovação da reforma da Previdência, o ex-deputado Rogério Marinho foi nomeado, ontem, ministro de Desenvolvimento Regional, no lugar de Gustavo Canuto, que vai assumir a presidência da Dataprev, a empresa de processamento de dados do INSS. Marinho era secretário especial do Trabalho e Previdência no Ministério da Economia, estava cotado para o lugar de Onyx Lorenzoni, na Casa Civil, e agora vai ampliar o poder do ministro Paulo Guedes na gestão dos recursos federais, principalmente no Norte e no Nordeste. O adjunto Bruno Bianco assumirá o lugar de Marinho na secretaria especial.
A mudança no governo mostra a preocupação do presidente Jair Bolsonaro com as regiões Norte e Nordeste, onde tem sua menor aprovação nas pesquisas de opinião. Sinaliza também uma maior preocupação com sua articulação no Congresso, onde Marinho tem amplo trânsito e agora passará a gerenciar a distribuição de recursos federais nos estados que compõem a região. Canuto, seu antecessor, era um foco permanente de críticas dos parlamentares da base governista, que se queixavam das dificuldades para liberação de suas emendas. Num ano de eleições municipais, a mudança é estratégica para o desempenho eleitoral dos aliados de Bolsonaro.
Rogério Marinho integrava a equipe de Guedes desde a transição do governo, sendo nomeado secretário especial do Trabalho e Previdência por sua atuação na área durante o governo de Michel Temer, pois foi o relator da reforma trabalhista na Câmara. Filiado ao PSDB, entre 2007 e 2018, foi deputado federal pelo Rio Grande do Norte. O Ministério do Desenvolvimento Regional, no governo Bolsonaro, resultou da junção dos antigos ministérios da Integração Nacional e das Cidades. A mudança também tem a ver com a intenção do governo de lançar novos programas de grande impacto nos municípios, nas áreas de saneamento, mobilidade urbana e construção civil.
A nomeação de Marinho surpreendeu os meios políticos, mas vai ao encontro dos desejos da base governista, que se ressentia da atuação de Canuto. O general Luiz Eduardo Ramos, secretário-geral da Presidência, sai fortalecido com a mudança, pois foi o principal canal de reclamações dos políticos contra Canuto e participou da decisão de substituí-lo. A presença de Marinho esvazia ainda mais o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que já havia perdido o Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) do governo para o ministro da Economia, Paulo Guedes, e agora terá mais um ministro na Esplanada que dispensa sua intermediação para se relacionar com o Congresso.
Delação premiada
Preso desde 2016, o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral conseguiu que sua delação premiada negociada com a Polícia Federal fosse homologada pelo ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF). Autoridades com foro privilegiado estão citadas na delação, que segue em sigilo de Justiça. A homologação pode representar uma reviravolta no caso do ex-governador, condenado 13 vezes na Lava-Jato, com penas que chegam, somadas, a 380 anos de cadeia.
O acordo de delação premiada de Cabral provocou uma onda de especulações nos bastidores do Judiciário, ainda mais porque o procurador-geral da República, Augusto Aras, chegou a se manifestar contra a homologação. Segundo rumores na PF, integrantes do Poder Judiciário também são citados, entre eles ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para redução da pena, Cabral se comprometeu a devolver R$ 380 milhões recebidos por meio de propina quando ele ocupava o cargo de governador. A PF não decidiu quais benefícios seriam concedidos a Cabral, o que caberá ao Supremo, ao apreciar o relatório de Fachin.
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Luiz Carlos Azedo: A mudança na PGR
“Aras tem enfatizado seu papel nos assuntos de natureza econômica e a independência do MPF. Sinaliza certo desalinhamento em relação ao Palácio do Planalto”
A despedida da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ontem, no Supremo Tribunal Federal (STF), da função de representante do Ministério Público Federal (MPF), virou um ato em defesa da democracia e da independência entre os Poderes da República. Seu mandato terminará na próxima terça-feira e, a partir de agora, todos os holofotes estarão voltados para o subprocurador-geral Augusto Aras, indicado para o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro. Dodge foi muito reverenciada na sessão do Supremo, mas todos os discursos, inclusive o dela, soaram como advertência ao seu substituto. Até a aprovação do nome de Aras pelo Senado, a Procuradoria-Geral da República será chefiada interinamente pelo vice-presidente do Conselho Superior do MPF (CSMPF), Alcides Martins.
Raquel Dodge recebeu homenagens do presidente do STF, Dias Toffoli, e dos demais ministros. Toffoli disse que a procuradora “foi firme e corajosa” ao promover a efetivação dos direitos das pessoas e proteger a ordem constitucional, mas o seu principal recado foi a defesa da autonomia do Ministério Público Federal, “forte e independente na defesa dos direitos e das liberdades das pessoas e no combate à corrupção”, sem o que os valores democráticos e republicanos da Constituição de 1988 “estariam permanentemente ameaçados”.
Na mesma linha se pronunciou o decano da Corte, ministro Celso de Mello, cujo discurso foi uma espécie de resposta ao comentário feito pelo presidente Jair Bolsonaro de que o novo procurador-geral seria uma dama no seu jogo de xadrez, ou seja, o principal aliado político. “O Ministério Público não serve a pessoas, não serve a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da República”, disse.
Dodge deixa a Procuradoria-Geral da República derrotada, pois pretendia permanecer no cargo e contava com apoios importantes no Congresso e no Supremo, porém, com altivez. Sua atuação não foi pautada por iniciativas espetaculares como as do ex-procurador-geral Rodrigo Janot, mas foi particularmente intensa em defesa das mulheres, dos indígenas, das minorias e em questões ambientais. Seu discurso de despedida no Supremo reiterou essas preocupações: “No Brasil e no mundo, surgem vozes contrárias ao regime de leis, ao respeito aos direitos fundamentais e ao meio ambiente sadio também para todas as gerações”. E destacou o papel do Supremo: “É singularmente importante a responsabilidade do STF para acionar o sistema de freios e contrapesos para manter leis válidas perante a Constituição.”
Desalinhado
Augusto Aras faz uma grande peregrinação pelos gabinetes do Senado, em busca da maioria dos votos dos 81 senadores em plenário. Primeiro, porém, seu nome precisa ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que deve se reunir na próxima semana. Aras é uma espécie de anfíbio, até aqui acumulou o cargo com a sua banca de advocacia, uma das maiores da Bahia, estado cuja bancada o apoia com gosto, do ex-governador Jaques Wagner (PT) ao senador Ângelo Coronel (PSD). O senador Otto Alencar (PSD), titular na Comissão de Constituição e Justiça, é um dos principais articuladores da aprovação de seu nome pelos colegas.
Ontem, Aras sinalizou um reposicionamento em relação ao presidente Jair Bolsonaro, durante conversa com o senador Alexandre Vieira (Cidadania-SE), um dos articuladores da chamada CPI da Lava-Toga. No encontro, relatou que, na primeira conversa com o presidente da República, deixou claro que exerceria suas prerrogativas constitucionais plenamente. De forma inusitada, parte da conversa entre Aras e Vieira teve o vídeo divulgado.
“Tive o primeiro contato com o presidente da República através de um amigo de muitos anos e, nesse mesmo primeiro contato, disse ao presidente exatamente isso: ‘Presidente, o senhor não pode errar (…), porque o Ministério Público, o procurador-geral da República, tem as garantias constitucionais, que o senhor não vai poder mandar, desmandar ou admitir sua expressão. Tem a liberdade de expressão para acolher ou desacolher qualquer manifestação. O senhor não vai poder mudar o que for feito’”, disse Aras.
No Senado, a aprovação do nome de Aras pode vir a ser consagradora, apesar da oposição do grupo de senadores que apoiam a Lava-Jato. Aras tem enfatizado o papel do procurador-geral nos assuntos de natureza econômica, além de defender a independência do MP junto aos senadores. Sinaliza um certo desalinhamento em relação ao Palácio do Planalto. Quem o conhece, diz que é polivalente como operador do direito e habilidoso na negociação política.
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Luiz carlos Azedo: A festa imoral
“De onde vem tanta energia? Não é das academias de ginástica, é de certas contradições entre a revolução nos costumes, que a liberdade proporciona, e os preconceitos arraigados e discriminações”
Há muito tempo, não tínhamos um carnaval como o deste ano, em que a alma transgressora dos cidadãos, liberada pela revolução dos costumes, se choca frontalmente com a política oficial, que propõe uma espécie de contrarrevolução cultural. O carnaval é imoral, digamos, assim, no sentido mais conservador e religioso do termo. A propósito dessa contradição, a cultura judaica, tão perseguida, tem muita coisa a nos ensinar. Para o rabino Nilton Bonder, a “alma” seria nada mais que o componente consciente da necessidade de evolução, a parcela de nós capaz de romper com os padrões e com a moral. Sua natureza seria, portanto, transgressora, por não corroborar os interesses da moral.
Um dos exemplos utilizados pelo rabino para explicar a tese, no livro a Alma Imoral, que serviu de roteiro para o monólogo interpretado por Clarice Niskier, de muito sucesso, é justamente a relação corpo-alma. Ao longo dos anos, a cultura afirmou ser o corpo a fonte do imoral e a alma, do moral. O primeiro ato de Adão e Eva como seres conscientes foi cobrir o corpo nu, dando a noção de indecência e imoralidade do corpo, frente ao despertar da alma supostamente moral. No entanto, é justamente o contrário. A alma é imoral e não o corpo.
A tradição tem três eixos: a família, os contratos sociais e as crenças. A primeira foi moldada para atender às necessidades reprodutivas; os segundos, para preservação da vida humana; as terceiras, para respaldar tudo isso no plano ideológico. O processo civilizatório é a transgressão das tradições, ultrapassando-as, geração após geração, mas preserva esses objetivos vitais.
No teatro, Clarice Niskier apresenta o monólogo em estado de nudez real e, ao mesmo tempo, simbólica. A alma desnuda, em conflito com o corpo vestido, coloca em xeque dogmas religiosos. “A psicologia evolucionista aponta o corpo como o gerador da moralidade. É justamente para dar conta de seus interesses de preservação que a moralidade é engendrada. Esta moralidade é oposta às forças transgressoras da alma. Assim, a alma vive do que a sociedade reconhece como imoral”, argumenta o rabino.
Quarta-feira de Cinzas
Toda nudez será castigada, diria Nelson Rodrigues, menos no carnaval. É impressionante o ressurgimento do carnaval de rua em todo o país como uma festa de grandes multidões. Já era uma tradição no Rio de Janeiro, Salvador e Recife/Olinda, mas agora se transformou em megaevento popular em outras cidades, como São Paulo, cujo carnaval já não deve nada a ninguém, e Brasília, cujos blocos tomam conta do Plano Piloto desde a semana passada. De onde vem tanta energia? Não é das academias de ginástica, é da tal alma imoral. E de certas contradições entre a revolução nos costumes, que a liberdade proporciona, e os preconceitos arraigados e discriminações que as pessoas sofrem no cotidiano, pelos mais diversos motivos. O carnaval as liberta.
O antropólogo Roberto Da Matta, há mais de 40 anos, nos demonstrou que o carnaval é um ritual que vira pelo avesso as tradições de nossa sociedade: o povo organiza a festa, os pobres se vestem de nobres, as mulheres aparecem irreverentes e desnudas, troca-se o dia pela noite, a relação com o sobrenatural e o imaginário se materializa nas ruas por meio das pessoas comuns.
“Carnavais, malandros e heróis” também nos mostra porque a festa tem que acontecer, apesar das tragédias recentes, como as de Brumadinho e do Ninho do Urubu. Com seus pierrôs e colombinas, porta-bandeiras e mestres-salas, monstros e palhaços, marinheiros e melindrosas, pinguins e batmans, super-homens e mulheres-maravilha, o carnaval é o abre-alas da crítica social e das mudanças dos costumes. Na Quarta-feira de Cinzas, a festa acaba e tudo volta ao normal, mas é sempre bom parar para pensar no recado dos foliões. Eles mostram o que se passa na alma das ruas.
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Luiz Carlos Azedo: A lição de Brumadinho
“A narrativa de que a legislação e a fiscalização ambientais são um entrave ao desenvolvimento não é somente falsa, é um erro de conceito, assim como achar que o aquecimento global é cascata”
Erros de conceito custam caro para qualquer estratégia empresarial. Costumam causar desastres irreparáveis, como os de Mariana e Brumadinho. O poder da Vale nos estados onde atua, como Minas, Pará, Maranhão e Espírito Santo, além do poderoso lobby que sempre manteve junto ao governo federal, ao Congresso e ao próprio Judiciário, foi exercido de forma permanente para reduzir custos com medidas de segurança e de controle de impacto ambiental. Prefeituras de todas as áreas onde atua vivem perdendo as quedas de braço com a empresa, que prefere fazer políticas compensatórias de caráter social e urbano do que investir mais pesado na redução de danos ambientais. Agora, a casa caiu.
O plano para “descomissionar” todas as suas barragens construídas pelo método de “alteamento” ã montante é uma confissão de culpa e o reconhecimento de que houve erro de conceito na forma como a empresa resolveu tratar os dejetos de suas atividades de mineração, que poderiam ser reaproveitados utilizando tecnologias mais modernas. “Todas as barragens da Vale apresentam laudos de estabilidade emitidos por empresas externas, independentes e conceituadas internacionalmente”, alega a companhia. As represas que desmoronaram, porém, também tinham esses laudos. No caso de Brumadinho, seus responsáveis já estão até presos.
Qual é a razão de tais medidas não terem sido adotadas antes? A própria Vale fornece uma pista. Estima-se que serão gastos R$ 5 bilhões para a desativação das barragens, ao longo dos próximos três anos. A empresa está sendo obrigada, por medida de segurança, a suspender as operações de Abóboras, Vargem Grande, Capitão do Mato e Tamanduá, no complexo Vargem Grande, e as operações de Jangada, Fábrica, Segredo, João Pereira e Alto Bandeira, no complexo Paraopeba, incluindo também a paralisação das plantas de pelotização de Fábrica e Vargem Grande. Deixarão de ser produzidos 40 milhões de toneladas de minério de ferro ao ano, dos quais 11 milhões de toneladas de pelotas.
A Vale pretende redirecionar a produção para outras regiões do país — cada vez mais, as suas atividades de mineração se deslocam de Minas/Espírito para o Pará/Maranhão — e aproveitar todos os trabalhadores da empresa, mas qual será o impacto na economia das cidades mineiras e capixabas, em termos de arrecadação e geração de emprego e renda? Com certeza, será muito negativo. O caso de Brumadinho, nesse aspecto específico, é muito pedagógico, pois reflete um erro de conceito da empresa em relação ao reequilíbrio de suas atividades com o meio ambiente e o entorno social. Há outros erros correlatos, mas o principal talvez seja a subordinação da agenda ambiental aos interesses da produção e da lucratividade financeira da empresa, custe o que custar, embora isso esteja em contradição com a missão definida no planejamento estratégico da própria: “Transformar recursos naturais em prosperidade e desenvolvimento sustentável”.
Narrativas
Brumadinho também pôs de pernas para o ar a narrativa do novo governo sobre a questão ambiental, que se tornou uma agenda emergente. Os trabalhos no Congresso serão reabertos amanhã, mas nos corredores da Câmara e do Senado, ontem, já se articulavam uma comissão especial de inquérito para investigar a Vale e outra comissão, mista, isto é, em conjunto com o Senado, para investigar milhares de barragens existentes no país, muitas delas sem licenciamento sequer. Não se deve demonizar a mineração, que é uma atividade essencial para a economia do país, mas há que se repensar o modus operandi das companhias: o custo da tragédia de Brumadinho será muito maior do que aquele que se teria se tivesse adotado medidas efetivas. O saldo dessa tragédia, até agora, é de quase 100 mortos e mais de 250 pessoas desaparecidas. O impacto na opinião pública das operações de resgate é mundial e já mobiliza os organismos internacionais e acionistas da própria Vale.
Mariana é um exemplo do poder do lobby da Vale junto aos governos, ao Congresso e ao Judiciário no sentido de não honrar suas responsabilidades ambientais e sociais; a empresa simplesmente se recusa a pagar as multas aplicadas e é um dos atores mais poderosos no sentido de desmoralizar os órgãos de controle ambiental e seus técnicos. A narrativa de que a legislação e a fiscalização ambientais são um entrave ao desenvolvimento não é somente falsa, é um erro de conceito. Mais ou menos como achar que o aquecimento global é uma cascata dos seus pesquisadores, quando as alterações climáticas estão aí mesmo, alterando a rotina das pessoas e provocando catástrofes naturais pelo mundo. O Brasil não está fora disso.
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Luiz Carlos Azedo: Governo fraco
A União, o Congresso, os governos estaduais, as empresas de transportes e os caminhoneiros brigam por um acordo que jogue a conta no colo do consumidor
“Isso é coisa de governo fraco”, sapecou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ao criticar a mobilização das Forças Armadas para enfrentar a crise de abastecimento provocada pela greve dos caminhoneiros (na verdade, um grande locaute das transportadoras, que só agora começa a ser enfrentado pelo governo como manda a lei). Na quarta-feira, Maia foi protagonista de uma votação na Câmara que complicou ainda mais a situação, ao induzir os deputados a votarem pela extinção do Pis-Cofins no diesel dizendo que a perda seria de R$ 3 bilhões, quando na realidade seria de R$ 10 bilhões. Disse que as contas da receita estavam erradas, ao contrário dos cálculos da assessoria técnica do relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-RJ).
O último presidente da Câmara a se aproveitar de um governo fraco foi o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), que abriu o processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT), aliado à oposição, mas hoje está cumprindo pena em regime fechado. Dilma havia passado por um tremendo desgaste em 2013, quando foi surpreendida por grandes manifestações de protestos em todo o país, mas, mesmo assim, conseguiu a reeleição. Não resistiu, porém, quando as mobilizações de rua convergiram para as articulações no Congresso, em razão do colapso de sua “nova matriz econômica”, que jogou o país na maior recessão de sua história e provocou desemprego em massa. Seu vice, Michel Temer, entrou na conspiração e assumiu seu lugar. É um presidente fraco pela própria natureza.
Ao contrário de Cunha, Maia é hoje o primeiro na linha de sucessão de Temer. Na semana passada, o ambiente na Câmara era de vaca estranhar o bezerro, como gostam de afirmar os políticos. Os que haviam votado contra a denúncia contra Michel Temer diziam que sua manutenção no cargo foi um erro. Estava-se pagando um preço muito alto por isso, pois o governo não se recuperou da crise ética, apesar da queda da inflação e dos juros baixos. Aliados de Temer admitem que estão sendo muito cobrados pelos eleitores por causa do voto contra a denúncia. O ambiente na Câmara não é favorável ao governo. Resumindo, se houver uma nova denúncia, Temer será afastado do poder.
Maia sabe disso e parece arrependido do apoio a Temer. Teve os destinos do país nas mãos, mas não atendeu ao apelo da maioria dos seus pares, depois de um puxão de orelhas de sua mãe, uma chilena que viveu os dias dramáticos da queda de Salvador Allende ao lado do ex-prefeito Cesar Maia, então um jovem professor de economia exilado no Chile. Mariangeles Ibarra Maia, em mensagem encaminhada ao filho, pediu: “Não conspire contra Temer”. A pré-candidatura de Maia a presidente da República parecia uma jogada para garantir a recondução ao comando da Câmara; agora, começa a ter outro sentido.
Caso Temer fosse afastado, Maia assumiria a Presidência e poderia concorrer à reeleição no cargo. Há dois caminhos para isso: abrir um processo de impeachment, o que teria uma conotação golpista para o presidente da Câmara; ou esperar a terceira denúncia contra Temer, com base na investigação do Porto de Santos. Nos tempos de Janot, isso já teria ocorrido. A procuradora-geral Raquel Dodge, porém, não tem a mesma gana do antecessor contra Temer, por quem foi nomeada para o cargo, sendo a segunda mais votada entre os procuradores.
Abastecimento
O Brasil já teve muitos governos fracos, alguns acabaram depostos, como a Regência da princesa Isabel, em 1889, e os governos de Washington Luiz, na Revolução de 1930, e o de João Goulart, em 1964. Mas nenhum foi tão fraco como a Regência Provisória que assumiu o comando do país com a abdicação de Dom Pedro I, em 1831, formado pelo paulista José da Costa Carvalho, o maranhense João Bráulio Munis e o general Francisco de Lima e Silva. Num dos seus piores momentos, o governo passou seis dias cercado por mercenários amotinados, traficantes e fidalgos insatisfeitos. Nessa crise, avultou-se o ministro da Justiça, o padre Diogo Antônio Feijó, e um jovem major do Exército, Luiz Alves de Lima e Silva, filho do general, que enfrentaram os amotinados e, depois, uma série de rebeliões. Era uma época em que o nosso Estado-nação estava nos seus primórdios.
Hoje, temos um governo fraco, mas um Estado forte, com instituições sólidas e mão pesada. É uma ironia, mas a crise que estamos vivendo decorre mais do segundo do que do primeiro aspecto. Resulta de um conflito distributivo no qual a conta já não fecha, além de uma estratégia de desenvolvimento que tem como polos mais dinâmicos da indústria a produção de veículos automotivos e a exploração e o refino de petróleo do pré-sal, de um lado; a construção civil nas cidades e a produção de commodities agrícolas no campo, de outro. O Estado forte vive de aumentar impostos de combustíveis, telecomunicações e energia elétrica, para financiar governos ineficientes e subsidiar setores privilegiados da economia.
A paralisação colapsou a economia, enquanto a União, o Congresso, os governos estaduais, as empresas de transportes e os caminhoneiros brigam para ver quem vai ganhar mais ao jogar a conta no colo do consumidor. Por essa razão, a greve dos caminhoneiros gerou sentimentos contraditórios na população, que num primeiro momento ficou contra o governo, porque abraça a ideia de reduzir impostos para baixar o preço do combustível, muito inflacionado pela alta do dólar. Até o abastecimento entrar em colapso. Agora, a opinião pública se volta contra os grevistas, mas não refresca o governo. A crise política instalada só se resolverá nas eleições
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Marco Aurélio Nogueira: A governança democrática das cidades
Em tempos de política em crise, de debate público empobrecido e partidos desorientados, é de saudar a iniciativa do Partido Popular Socialista (PPS) de publicar as resoluções principais de uma Conferência Nacional por ele organizada sobre as cidades brasileiras.
A Conferência – realizada em Vitória (ES) nos dias 19-20 de março de 2016 – representou a culminância de um amplo processo de debates e discussões entre militantes políticos e especialistas que se estendeu por vários meses em diferentes cidades do país. A publicação (acesse aqui) oferece aos cidadãos um rico painel da vida urbana e dos problemas das cidades brasileiras, assim como sugere um roteiro para a organização de uma agenda que os enfrente.
Nele, são apresentadas análises e sugestões sobre Saúde, Educação, Finanças, Mobilidade Urbana, Segurança e Cultura. O texto não é acadêmico. Seu objetivo é fornecer elementos para a gestão técnico-política das cidades brasileiras, sendo direcionado para administradores municipais, vereadores e ativistas, mas também para o cidadão de modo geral, maior interessado na questão. O material, porém, recusa a ideia de ser visto como um “modelo” ou um “manual” a ser aplicado indistintamente. Não se vê como um “pacote” de propostas, mas como material de reflexão. É o que de fato se destaca, ainda que, por ser documento partidário, seja inevitável que se façam recomendações operacionais, que poderão ser traduzidas em termos políticos e eleitorais. Não há porque fazer ressalvas a este aspecto, assumido desde logo pelos organizadores.
Na parte propriamente analítica, o texto procura jogar luz sobre o estado atual das cidades brasileiras, especialmente das maiores, que conhecem um cenário de grandes transformações e mudanças mas permanecem amarradas a um quadro de exclusões e desigualdades expressivas, bolsões de segregação social, crise financeira e graves problemas ambientais.
Tal esforço de compreensão apoia-se no conceito de governança democrática: é preciso governar as cidades com os olhos na realidade (local, nacional, global) e nas possibilidades concretas de atuação, mas é preciso fazer isso compartilhando decisões com a cidadania. Como diz o texto de apresentação, “é preciso que haja organização política de interesses e capacidade de elaboração, mesmo que parcial, mas substantiva, de projetos de reforma e de transformação da realidade”.
Trata-se de um ponto importante, nesta nossa época em que detonar os governos e refutar a política se tornaram mania compulsiva, presente até mesmo na conduta de vários candidatos às prefeituras, que se apresentam como “gestores” e não como “políticos”, propondo-se a governar a partir de uma racionalidade administrativa superior que excluiria os cidadãos e se afirmaria sobre eles.
O documento do PPS critica com firmeza a “concepção verticalizada da ação política e de governo”, que vem de cima para baixo e implica uma orientação de caráter “gerencial”, autoritária, que pouco ajuda a que se fortaleça a vida democrática. Tal crítica é o ponto central do documento, dando sentido às sugestões que são apresentadas para as diferentes áreas da gestão municipal.
Não se trata, portanto, para o PPS, de simplesmente governar, apresentar planos e “propostas de governo”. É preciso fazer vibrar a atuação política (cívica) dos cidadãos, organizados em maior ou menos medida. Um governo democrático deve se propor sempre a organizar a cidadania, “empoderá-la”. Dadas as circunstâncias atuais, precisa se dispor a ser um governo-em-rede, aberto ao diálogo, à interação entre os atores, à participação da sociedade. Governo mais horizontal que vertical, apoiado mais na colaboração que na decisão unilateral. Um governo-dínamo, seria possível dizer: organizador da capacidade de ação da sociedade tendo em vista a cidade como construção coletiva.
É uma perspectiva nada fácil de ser assimilada ou traduzida em termos práticos, mas boa para ser incorporada como plataforma de reflexão e de atuação. O PPS, como seria de esperar, vê nela a materialização de seu esforço para qualificar o reformismo que o tipifica e para consolidar seu lugar no campo da esquerda democrática, dando vazão a uma política de caráter progressista e democrático.
Faz isso de maneira laica, sem apelos ideológicos rebarbativos ou promessas finalísticas de uma nova sociedade que nasceria de uma ruptura radical. A preocupação explícita é enfrentar em termos políticos realistas algumas questões concretas da vida urbana, de forma a publicizá-las e a convertê-las em parâmetro para a atuação cívica e as lutas que tiverem lugar nas cidades. (O Estado de S. Paulo – 28/09/2016)
Fonte: pps.org.br
Qual capital lidera o ranking de bem-estar urbano no Brasil?
Levantamento inédito do Observatório das Metrópoles, coordenado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), revela que o Índice de Bem-Estar Urbano (Ibeu) da cidade de São Paulo é pior do que o indicador de capitais como Goiânia (GO), Aracaju (SE) e Palmas (TO). A pesquisa mediu o bem-estar nos 5.565 municípios do país.
Entre as 27 capitais, a cidade paulista ocupa a 12ª posição, com índice de 0,8119 --ela está no 1.897º lugar entre todas as cidades do país. Vitória (ES) lidera, com 0,9. Quanto mais próximo de 1,0, melhor é a condição de bem-estar urbano.
No ranking geral, considerando todos os municípios do Brasil, as cinco primeiras colocadas estão no Estado de São Paulo. Buritizal é a campeã nacional (0,951). Na 5.565.ª posição, o pior índice é de Presidente Sarney (MA), com 0,444.
Ranking das 27 capitais brasileiras
Vitória (ES) - 0,9000
Goiânia (GO) - 0,8742
Curitiba (PR) - 0,8740
Belo Horizonte (MG) - 0,8619
Porto Alegre (RS) - 0,8499
Campo Grande (MS) - 0,8275
Aracaju (SE) - 0,8214
Rio de Janeiro (RJ) - 0,8194
Florianópolis (SC) - 0,8161
Brasília (DF) - 0,8131
Palmas (TO) - 0,8129
São Paulo (SP) - 0,8119
João Pessoa (PB) - 0,7992
Fortaleza (CE) - 0,7819
Recife (PE) - 0,7758
Salvador (BA) - 0,7719
Cuiabá (MT) - 0,7704
Natal (RN) - 0,7383
Boa Vista (RR) - 0,7249
Teresina (PI) - 0,7218
Maceió (AL) - 0,7036
São Luís (MA) - 0,7003
Rio Branco (AC) - 0,6972
Manaus (AM) - 0,6903
Belém (PA) - 0,6593
Porto Velho (RO) - 0,6542
Macapá (AP) - 0,6413
O estudo Ibeu Municipal avaliou cinco indicadores de qualidade: mobilidade urbana, como o tempo de deslocamento de casa para o trabalho; condições ambientais (arborização, esgoto a céu aberto, lixo acumulado); condições habitacionais (número de pessoas por domicílio e de dormitórios); serviços coletivos urbanos (atendimento adequado de água, esgoto, energia e coleta de lixo); e infraestrutura.
A dimensão que apresenta a pior situação de bem-estar, nacionalmente, é a infraestrutura das cidades: 91,5% dos municípios estão em níveis ruins e muito ruins. Para avaliar a infraestrutura, o Observatório considerou sete indicadores: iluminação pública, pavimentação, calçada, meio-fio/guia, bueiro ou boca de lobo, rampa para cadeirantes e logradouros. Somente um município apresenta condição muito boa de infraestrutura: Balneário Camboriú (SC).
Para Marcelo Ribeiro, professor da UFRJ e pesquisador do Observatório, o Ibeu revela uma desigualdade regional. "Os municípios que apresentaram as melhores condições estão nas regiões Sudeste e Sul, um pouco no Centro-Oeste. Os piores índices, em geral, estão no Norte e Nordeste, e também no Centro-Oeste, uma zona de transição", disse.
Arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Lúcio Gomes Machado destaca que Palmas e Brasília, com melhores Índices do que a capital paulista, são cidades planejadas.
"Uma cidade razoavelmente planejada, ainda que seja mal gerida, carrega durante bom tempo esse planejamento como trunfo positivo."
Segundo Machado, a falta de integração com os municípios da região metropolitana e o crescimento desordenado de São Paulo ajudam a explicar a 12ª posição entre as capitais.
Em nota, o governo do Estado disse que "trabalha continuamente para garantir as condições necessárias ao crescimento dos municípios paulistas". Procurada, a Prefeitura de São Paulo não comentou.
Campeã
Há um ano, a administradora Janete Rodrigues, 40, trocou uma vida agitada em Belo Horizonte, metrópole de 2,5 milhões de habitantes, pelos dias pacatos em Buritizal, de 4.077 moradores, no norte do Estado de São Paulo.
Ela gostou tanto do lugar que decidiu fincar raízes: arrendou uma pousada e levou o filho de 16 anos para a cidade paulista.
"Estava num nível de estresse muito alto. Vim a passeio, ver minha mãe, e decidi ficar. Aqui é tudo organizado, parece que cada coisa está em seu lugar. Já dispensei os remédios para o estresse", disse Janete.
A cidade é planejada. Todas as ruas têm rampas para cadeirantes e não há terrenos vazios na área urbana de Buritizal. As informações são do jornal "O Estado de S. Paulo".
Matéria publicada no portal UOL.
Fonte: cidadessustentaveis.org.br