cidadania
RPD || João Cezar de Castro Rocha: Verdade factual como programa de ação política
Habilidade de Trump e de Bolsonaro, tanto em pautar o debate público, como em desviar a atenção de temas que lhes são desfavoráveis, tem relação direta com milagre da multiplicação de fatos alternativos, avalia Castro Rocha
A ridícula tentativa golpista de Donald Trump fornece confirmação inesperada da noção de verdade factual, tal como proposta por Hannah Arendt. Se passarmos da caricatura à caracterização do evento, aprenderemos lição fundamental para lidar com o bolsonarismo, sobretudo num ano que promete ser muito difícil.
Voltemos um pouco no tempo: no dia 22 de janeiro de 2017, logo após a posse de Donald Trump, o porta-voz do presidente, Sean Spicer, afirmou que o número de pessoas que se deslocou a Washington para a cerimônia era muito maior do que a multidão presente na investidura de Barack Obama. Imediatamente, e com grande facilidade, comprovou-se o oposto: a comparação das fotografias áreas das duas ocasiões chega a ser humilhante para Trump. Numa entrevista, a conselheira do presidente, Kellyanne Conway, ao ser questionada sobre a falsidade da informação, superou o constrangimento com um lance de gênio, propondo uma noção-síntese de governos como os de Donald Trump e Jair Messias Bolsonaro: “The Press Secretary gave alternative facts”.
Fatos alternativos! Conceito que recusa a distinção apolínea entre rumor e fato, com base no tempo vertiginoso do universo digital, que dificulta a checagem imediata dos dados, e cuja ação direta inaugura a pólis pós-política por meio das redes sociais. A potência dos fatos alternativos na criação infatigável de narrativas foi comprovada à exaustão pela capacidade de manter as massas digitais mobilizadas em permanente excitação. Se fosse necessária prova definitiva, bastaria observar a reação dos apoiadores de Trump e sua disposição em acreditar nas teorias conspiratórias as mais absurdas. A habilidade de Trump e de Bolsonaro, tanto em pautar o debate público, como em desviar a atenção de temas que lhes são desfavoráveis, relaciona-se intrinsecamente ao milagre de multiplicação de fatos alternativos.
Em entrevista recente, dada ao deputado federal Eduardo Bolsonaro, o presidente Bolsonaro, ostentando o livro do abjeto torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, A verdade sufocada, traduzia em português hesitante o achado de Kellyanne Conway:
Então, tem os fatos aqui. Recortes de jornais, né? Que... (sic) noticiava o fato em si. Então, não tem como fugir disso aqui... E como nós nos livramos do comunismo naquele momento. Não tem que se envergonhar disso. É uma história, com H, não é historinha contada pela esquerda. Então… isso daqui [Bolsonaro folheia o volume de A verdade sufocada] devia ser uma leitura obrigatória, né? de pessoas que queiram saber da verdade… o que foi aquele período de pré-1964 e um pouquinho depois do 1964, também. Então, A verdade sufocada é um livro com fatos, né? que aconteceram na história recente do Brasil.
Os fatos alternativos do coronel Ustra são bem conhecidos: nunca houve tortura durante a ditadura militar. A ascensão da extrema-direita no Brasil é incompreensível sem essa torção perversa de dados objetivos em narrativas conspiratórias, cujo eixo não se altera: dada a iminência do “perigo vermelho”, toda e qualquer violência se justifica. E nem mencionei a força dos fatos alternativos em correntes de whatsapp em campanhas eleitorais: mamadeira erótica, ideologia de gênero, marxismo cultural e tantos delírios similares produzem com celeridade desestabilizadora ondas-tsunami.
Como governar, porém, no reino encantado e narcísico dos fatos alternativos? Como negar a gravidade de uma crise mundial de saúde e, ainda assim, esperar que o eleitorado não seja capaz de distinguir rumor de fato diante de um caso dessa seriedade? Não há disputa de narrativas que se sobreponha ao valor da Vida; o encontro com a finitude esclarece brutalmente que a Morte não pode ser reduzida a “memes”, por mais compartilhados que sejam. Como perder uma eleição e, ainda assim, esperar que juízes sérios aceitem reverter o resultado legal através de ações sem evidências consistentes, sem provas claras de uma fraude sistêmica que se alega ter ocorrido?
Devo ser mais claro: bem urdidos e alinhavados com astúcia numa narrativa coesa, fatos alternativos são poderosas armas políticas: bombas atômicas na infodemia contemporânea. Contudo, num tribunal independente, avaliados por juízes autônomos, fatos alternativos não são nada: flatus vocis. A verdade factual se impõe.
Eis aí um programa de ação: olvidemos as declarações diversionistas do presidente e nos concentremos no esclarecimento objetivo do fracasso de seu governo.
*Professor Titular de Literatura Comparada da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ensaísta
RPD || Guilherme Casarões: Ser ou não ser um pária mundial?
Isolamento do Brasil sob o governo Bolsonaro não tem precedentes em nossa história. Congresso Nacional e oposição devem se unir para adensar interação com governos e parlamentos estrangeiros, avalia Casarões
O Brasil está por um triz de se transformar em pária internacional. A crise econômica se arrasta há uma década, agravada pela conjuntura mundial. Desmatamento descontrolado e incêndios ilegais colocam o país nas manchetes de todo o planeta. Violência policial, violação de direitos indígenas e assassinatos políticos causam revolta nacional e arranham a já frágil imagem de nossa democracia. Nos altos círculos da diplomacia ocidental, discute-se seriamente a hipótese de isolar política e economicamente o governo brasileiro, cujo presidente, cercado de militares, é visto como prejudicial às boas relações do Brasil com o mundo.
O ano é 1989, mas poderia ser uma boa descrição do que vivemos hoje. Na superfície, a semelhança entre os dois momentos neste intervalo de três décadas é expressiva. Mas há uma diferença fundamental: ao contrário de José Sarney, enfraquecido, prestes a sair da presidência e com pouco controle sobre o que restou da imagem internacional do Brasil, Jair Bolsonaro quer marginalizar o Brasil como parte de seu projeto pessoal de poder.
Nos últimos dois anos, Bolsonaro construiu relações personalistas (e fugazes) com lideranças de extrema direita, hostilizou sócios de longa data, como Argentina, China e França, e abandonou virtualmente todos os tabuleiros multilaterais nos quais o Brasil se firmara como liderança. Tudo isso com a chocante complacência de seu ministro de Relações Exteriores, que ficará para a história como o diplomata que, pela inédita subserviência e obtusidade ideológica, desmoralizou a diplomacia nacional.
Não surpreende, portanto, que as perspectivas da política externa para 2021 não sejam exatamente alvissareiras. Se depender somente do governo atual, a tendência é agravar o isolamento brasileiro sem qualquer precedente em nossa história bicentenária. O país que se orgulhava da ação internacional pragmática e universalista, sem descurar os princípios pacifistas e multilaterais que marcaram a era republicana, fechou o trágico ano de 2020 causando temor, apreensão e até certo deboche ao redor do mundo.
Ainda que não seja tarefa fácil, creio que o Brasil possa virar o jogo. Antes de tudo, é necessário romper o “bunker” ideológico-olavista que se enraizou no governo. Se Bolsonaro tiver juízo – o mesmo que o levou a reconhecer, embora muito tardiamente, a vitória de Joe Biden – ele precisa substituir, com urgência, os dois maiores porta-vozes da péssima reputação brasileira no exterior, Ernesto Araújo e Ricardo Salles. Afeitos a teorias conspiratórias e inimigos dos consensos científicos e da boa diplomacia, ambos se transformaram em vozes radicalizadas que, ao açularem a militância bolsonarista mais aguerrida, são vistas como reais ameaças à cooperação multilateral.
A demissão de Araújo e Salles é simbólica, mas paliativa. O maior entrave à melhoria da imagem do país é o próprio presidente. Mesmo adotando tom mais moderado, Bolsonaro dificilmente abandonará pautas que lhe são caras politicamente, como a negação da vacina, o Foro de São Paulo ou o nióbio amazônico. Por isso mesmo, uma guinada na política externa dependerá de pressão constante sobre o governo por parte de pelo menos dois atores: o parlamento e os entes subnacionais. Nenhum deles conseguirá agir sozinho, mas poderão, juntos, criar uma espécie de diplomacia paralela que permita que o Brasil sobreviva ao governo de turno.
Outrora reativo em temas internacionais, o Congresso Nacional precisa criar e adensar canais de interação com governos e parlamentos estrangeiros. Forças de oposição devem trabalhar para reocupar espaços nas Comissões de Relações Exteriores das casas e construir, sempre que possível, uma agenda positiva em campos abandonados pelo bolsonarismo, como cooperação técnica, integração regional, direitos humanos e meio ambiente.
Durante a pandemia (e graças a ela), governadores e prefeitos conquistaram certa independência para desenvolver laços de cooperação científica, ajuda sanitária e aquisição de insumos. Diante do cenário de acirrada disputa política, cujo objetivo último é viabilizar nomes de oposição ao presidente em 2022, é possível que alguns desses atores movimentem-se no sentido de ampliar ainda mais os espaços de atuação subnacional em política externa, com importantes implicações para o futuro das relações internacionais do país.
Nada disso se concretizará sem o apoio de setores da sociedade brasileira. Industriais, ruralistas, cientistas, acadêmicos, ativistas, entre outros, reconhecendo a emergente correlação de forças na inserção internacional do Brasil, deverão trabalhar lado a lado com parlamentares e outros agentes políticos para resgatar nossa reputação no exterior. A despeito dos esforços do atual governo para fazer do Brasil um pária, o isolamento e o ostracismo certamente não expressam a vontade de maioria da população.
*Cientista político e professor da FGV EAESP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Michigan (2019-2020).
RPD || Elimar Nascimento: O enigma Bolsonaro
Verdadeiro estelionato eleitoral, com as bandeiras da campanha que o elegeu presidente em 2018 se desfazendo, Bolsonaro mantém-se forte, ocupando o primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para 2022
Se um leitor atento percorrer os principais jornais do País ao longo de 2020, editoriais, inclusive, e seus articulistas, particularmente, encontrará os mais distintos epítetos atribuídos ao Presidente Bolsonaro. Todos negativos. Colhi alguns como exemplo: irresponsável, incompetente, psicopata, errático, acéfalo, imbecil, negacionista e insano. Para não citar o mais comum: antidemocrata. A conclusão de nosso leitor não poderia ser outra: este é um governo a caminho de um fim precoce. As cláusulas indispensáveis, porém, para se alcançar este desfecho estão longe de serem preenchidas: o presidente não perdeu o apoio da opinião pública, tem a seu favor uma rede de comunicação invejável (redes sociais e veículos tradicionais), goza de prestígio entre o empresariado e caminha para obter, senão a maioria, uma força expressiva no Congresso. E ainda conta, em princípio, com o prestígio das Forças Armadas, amplamente representadas em seu governo.
Desde o início de 2020 os principais analistas políticos deste País dizem que o governo Bolsonaro está no fim. E os motivos parecem consistentes: o governo tem desprezado o enfrentamento da pandemia; tem-se omitido nos cuidados com o meio ambiente, e particularmente a Amazônia, recebendo críticas de grandes empresários nacionais e governos estrangeiros; tem uma politica externa desastrosa, sendo objeto de “gozação”, desprezo e escárnio de governos e mídia internacional; tem filhos acusados de prevaricação e o próprio presidente é objeto de investigação por tentativa de uso de entidades públicas em favor de interesses pessoais e familiares; tem estimulado ações contra as instituições democráticas; e detém a capacidade de ter os piores ministros da educação da história deste País.
Um verdadeiro estelionato eleitoral, um dos motivos pelo qual a presidente Dilma sofreu o impeachment, está em curso. As quatro grandes bandeiras de sua campanha eleitoral estão-se desfazendo: o combate à corrupção foi interrompido, com seu ícone despedido e a Operação Lava Jato sendo desfeita; a defesa da nova politica está-se desmanchado a olhos vistos na aliança com o Centrão; a pandemia mandou para o espaço a política econômica liberal, e a batalha pela recuperação dos velhos costumes e valores não avança. Mas Bolsonaro mantém-se forte. Em todas as pesquisas de intenção de voto para eleições presidenciais, ele ocupa o primeiro lugar. Seu governo tem, somados as avaliações de ótimo/bom e regular, 59% de aceitação.
O enigma é ainda mais evidente quando se examinam as recentes eleições municipais. Bolsonaro foi fragorosamente derrotado, inclusive nas últimas eleições realizadas em Macapá, quando seu candidato, contando com o apoio do prefeito e governador locais, sendo irmão do presidente do Senado, perdeu. Venceu apenas nos confrontos diretos com o PT, principalmente no embate mais relevante, em Vitória do Espirito Santo.
Todas as análises sobre esse fenômeno politico pecam pela excessiva simplificação: base ideológica forte, carisma (sic), sentimento antipetista, vocaliza uma opinião majoritária no País (conservadorismo), navega na onda mundial da ascensão da extrema direita.
Para vencer, no entanto, o candidato preferido nas intenções de voto de todos os institutos de pesquisa, será necessário desvendar este enigma: por que, com tantos desmantelos, o Presidente goza de tamanho prestígio? Sobretudo, que a recente tradição brasileira é a de que todos os presidentes são reeleitos. Para vencê-lo, é preciso mais do que um bom candidato, é indispensável desfazer sua imagem junto a opinião pública. Por enquanto, todas as tentativas da oposição e seus críticos foram infrutíferas. Inversamente, parece alimentá-la.
Esse é o maior desafio em 2021 para as forças democráticas: desvendar o enigma do “mito”.
*Sociólogo político e socioambiental. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília e do Programa de Pós-Graduação Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.
RPD || André Eduardo Fernandes e André Borges: A questão fiscal e a urgência das reformas
Governo Bolsonaro tem de romper paralisia em relação às reformas inadiáveis, antes que a economia brasileira “derreta". Desde 2014 que o país vive situação permanente de déficit primários e taxa de crescimento medíocre
A questão fiscal sempre foi um dos problemas fundamentais da economia brasileira. Uma análise histórica desde o início da República revela constante desequilíbrio entre as receitas e as despesas nas contas públicas. Na pandemia, causada pelo novo coronavírus, registrou-se uma explosão dos gastos públicos, que ameaça gerar aumento dos déficits primários e da relação dívida/PIB, aproximando-se perigosamente dos 100%. De acordo com o Ministério da Economia, a previsão mais recente (novembro) de déficit primário para este ano é de R$ 844,6 bilhões, vale dizer, a assombrosa cifra de quase 10% do Produto Interno Bruto!
É ilusão supor que essa situação seja somente reflexo da pandemia. Como dito acima, a questão do déficit público é estrutural. A última vez em que se registrou superávit primário (sem considerar as despesas com juros) foi em 2013, com 1,9% do PIB da época. Desde 2014, o Brasil vive situação de permanentes déficit primários, ao mesmo tempo em que exibe taxa de crescimento medíocre. Em 2019, os primeiros dados do PIB já não foram animadores. O cenário, projetado pelos agentes do mercado, considerando os mais otimistas, chegava a apontar para cerca de 2% de crescimento do PIB. Divulgados, no entanto, os indicadores econômicos de 2018, frustraram-se as expectativas em relação ao PIB, e o mercado chegou a reduzir a previsão de crescimento para entre 1,5% e 2%, isso antes mesmo da chegada dessa pandemia ao Brasil.
Urge, portanto, acelerar a discussão sobre reformas estruturais do Estado brasileiro. Isso é apenas emergencial. Não se pode enfrentar a questão somente depois de a pandemia passar. É preciso enfatizar e ter claro que a arrecadação não é suficiente para bancar as despesas obrigatórias do governo, levando ao financiamento por meio de títulos de dívida, com prazos cada vez menores de colocação e riscos de prêmio crescentes. Sem contar que mais de 90% do orçamento brasileiro é destinado a gastos obrigatórios dos mais variados tipos! Esta obrigatoriedade torna a dinâmica da dívida particularmente explosiva em uma situação de queda brusca de arrecadação como a imposta pela pandemia. Isto é insustentável!
O que até o momento impediu o desastre foi a imposição de uma âncora fiscal, o teto de gastos, objeto, porém, do mais virulento ataque de parte das forças populistas. O teto de gastos é o que ainda dá certa credibilidade quanto à solvência do governo federal. Mas não se pode esquecer que um dos pilares da teoria econômica é que não existe almoço de graça. Vale dizer, impõem-se escolhas e sacrifícios para assegurar, a partir de análises objetivas, amparadas por conceitos técnico-científicos, livres, portanto, de narrativas populistas, as prioridades dos investimentos públicos, se se pretende evitar a degeneração dos indicadores macroeconômicos.
O que tem de ser revisto – privilégios do funcionalismo público e subsídios à zona franca de Manaus, por exemplo? Ou os recursos destinados a merendas escolares ou leitos hospitalares? Qual a escala relativa de importância dos gastos estatais no universo do orçamento? Há consciência nos corredores do poder de que a fragilidade da infraestrutura desestimula o investimento produtivo? Que o elevado custo de aquisição de capital compromete a produtividade do trabalho? Que a produtividade, estagnada desde a década de 1980, se reflete na baixíssima taxa de crescimento dos salários?
Em uma palavra, onde investir para assegurar acréscimo de bem-estar para a população brasileira, tanto agora como no futuro?
Crises são oportunidades, desde que se consiga romper a paralisia do atual governo em relação às reformas inadiáveis, antes que a economia brasileira “derreta”. Reformas nas escolhas feitas no orçamento, reformas no sistema tributário, reformas na administração pública, ou seja, o que não faltam são reformas extremamente necessárias que precisam ser feitas com urgência para que a situação fiscal não leve o país à insolvência a uma outra década perdida ou pior.
RPD || André Amado: Os grandes escritores e o término de suas obras
André Amado analisa como os grandes autores garantem, por meio da técnica literária, o interesse do leitor até o fim das tramas de suas histórias
Se dependesse de consenso, obra alguma dos grandes escritores terminaria. Vejam só.
Com a autoridade de ter sido o autor de A Room With A View (1908) e Howards End (1910) e reconhecido como o decano dos críticos literários, E. M. Foster estimava que as histórias devessem ter começo, meio e fim. Ilustrava com As mil e uma noites, em que a narrativa seguia a cronologia de o jantar vir depois do almoço; a terça, depois da segunda; e a decadência, depois da morte.
Henry James (1843-1916) chamava o último capítulo de um livro de wind-up (arredondamento), quando se distribuíam prêmios, pensões, maridos, esposas, filhos, milhões, parágrafos acrescentados e comentários alegres. Já Italo Calvino (1923-85) dribla a ironia de James e distingue tipos diferentes de término das narrativas: quando o herói supera as adversidades, morre ou amadurece; e, no caso dos romances policiais, quando se descobre o culpado. De maneira geral, para Calvino, o final de um romance deveria ocorrer sempre que contribuísse para evitar a repetição, na mesma linha do que dissera Jane Austen (1775-1817): o romancista não tem como ocultar o momento em que a história acaba.
Outros escritores seriam até mais contundentes. Atribui-se a Flaubert (1821-80), por exemplo, a sentença de que é burrice querer concluir uma história. Para Ricardo Piglia (1941-2017), sem finitude não há verdade, declaração quase idêntica à de Stephen Koch (1968- ): se não houver final, não há história. Carlos Mastronardi (1901-76) arrematou: Não temos uma linguagem para os finais; talvez uma linguagem para os finais exija a total abolição das linguagens.
Alberto Manguel (1948- ) acrescenta um complicador. Resgata a Divina comédia para revelar o truque de Dante – o propósito da peregrinação é contar as aventuras. Vale dizer, a narrativa da viagem consiste em situar no final o começo. É o que também pensa Allan Poe. Em “Assassinatos na rua Morgue” (1841), o desfecho da história determina a ordem e a causalidade dos eventos narrados no começo. Trata-se da técnica do closure (fechamento), pela qual o escritor se fixa no desfecho e constrói a narrativa de trás para frente, buscando, assim, assegurar-se do controle completo do desenvolvimento da trama e da santidade do mistério, que só poderá ser revelado no último momento, tornando-se quase um personagem invisível da trama.
Tudo bem. Enfim o consenso parece formar-se: a retenção do segredo da história garante o interesse do leitor. Melhor técnica para o fechamento da obra, impossível. Só que Patricia Merivale e Susan Sweeny (1999) exploraram outras opções que batizaram de história metafísica de detetives, segundo a qual o objetivo da investigação não seria mais encontrar uma resposta clara para o enigma perfeito dado a priori, mas decifrar o sentido do próprio texto. Em “La muerte y la brújula”, Jorge Luiz Borges reforçaria a transgressão: desafia a estrutura da narrativa fechada, ao não resolver os mistérios e a suscitar outros mistérios igualmente impenetráveis.
Garcia-Roza (1936-2020) admirava Allan Poe e Borges e, por isso, convidou ambos para enriquecer sua visão da literatura. De um lado, recusou que o autor pudesse sozinho desfazer as intrigas e decodificar a trama das histórias. Para ele, existiriam tantos autores de uma obra quanto leitores. Daí não ser mais possível uma única interpretação. Ao leitor, a tarefa, portanto, de produzir sua própria interpretação. De outro, Garcia-Roza citava Poe (A essência de todo crime permanece oculta, “O homem da multidão”, 1940) para ressaltar o conceito de inescrutabilidade, significante que não permitia simplificação. Em uma palavra, mistérios podem ser explicados, mas a interpretação de um enigma requer nova interpretação e, assim, sucessivamente, sem fim. Não há, pois, solução para o enigma. Nunca.
Como todo escritor de gênio, Ian McEwan não chega a celebrar o consenso sobre o término de uma obra, mas, de alguma maneira, nos explica porque a alternativa é até mais convincente. Em Atonement (2001), Briony demora a vida toda para entender que não tem como chegar a final algum para a história que está contando, o que, por sua vez, acaba afetando a própria forma final da obra que o leitor tem em mãos, na qual ele tampouco encontra um fim satisfatório, bem fechado como aqueles das histórias fabulosas em que a Briony acreditava tão piamente, quando criança (Tatiana Souza, tese de doutorado apresentada à Universidade Estadual da Paraíba).
Podem-se encerrar as provocações reunidas neste artigo com a reflexão de Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual um livro sobre a literatura contemporânea não pode ter conclusão, porque o contemporâneo é o inacabado, o inconcluso. Pode-se, ainda, recorrer ao bruxo do Cosme Velho e reviver o final inesquecível de Memórias Póstumas: Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online
RPD || Ana Paula Miranda e Rosiane Rodrigues de Almeida: Os efeitos da política de “Deus acima de todos”
Discurso de ódio, numa interpretação bíblica supremacista, une grupos de perfil evangélico-pentecostal, tráfico e milícias em ataques aos direitos de grupos minoritários, como os afrorreligiosos, nas regiões metropolitanas das grandes cidades do país
As denúncias de violações de direitos envolvendo religiosos afro acompanham a expansão do neoconservadorismo de grupos de perfil evangélico-pentecostal. As perseguições se distinguem das de outros momentos históricos, pela Igreja Católica e/ou pelo Estado, porque hoje há formalmente mecanismos institucionais de garantia de direitos dos povos de terreiro.
Uma das razões é a interpretação da liberdade religiosa, prevista em lei, a partir de uma matriz evangélica que se afirma vítima de perseguição, ao mesmo tempo em que constrói uma agenda política de “direita cristã”, inspirada no modelo estadunidense, com forte presença na formulação de políticas públicas, a partir dos anos 1980. Isto se identifica já nos debates para a Constituição Federal de 88, quando a bancada evangélica despontou com perfil “conservador” e “tradicionalista”, difundindo discursos que, em nome de Jesus, atacavam direitos de grupos minoritários. Este modelo se opõe ao defendido pelos afrorreligiosos, que têm lutado pela garantia da liberdade de crença, sujeita a limitações, porque não se pode impedir o exercício de outros direitos fundamentais.[1]
A chamada “nova onda conservadora” tem afetado o desenvolvimento de uma política democrática na manifestação plural das diferenças no espaço público, revelando nuances de políticas “cristofascistas”[2], que lidam de forma binária com os povos tradicionais - associados às práticas maléficas, num ideário inspirado na supremacia branca estadunidense.
Se até 2000 eram comuns conflitos entre afrorreligiosos e evangélicos em relações de proximidade (vizinhos, parentes, etc.), há décadas as agressões envolvem também traficantes e/ou milicianos, seguidores de igrejas pentecostais. O fenômeno deixou de ser mera conversão de “bandidos” e tornou-se uma disputa por outros fronts – econômicos e político-eleitorais – que misturam imperativos teológicos e doutrinários com projeto político de nação. Nos Estados Unidos, as consequências dessa direita cristã se veem na política externa internacional e nas ações voltadas ao meio ambiente e direitos humanos.[3] No caso brasileiro, além desses efeitos é preciso destacar a emergência de outra dimensão – o papel dessas igrejas na interação de grupos paramilitares (tráfico e milícias), para consolidação de um “domínio armado”[4], que tem resultado em ataques e expulsão de terreiros e na unificação de áreas nas regiões metropolitanas das grandes cidades sob um mesmo comando, como é o caso do “Complexo de Israel”, favelas da zona norte do Rio, que sob a bandeira de Israel, são geridas pelo tráfico e milícia juntos. Tudo isso é fundamentado por discursos de ódio que possibilitam a consolidação e visibilidade dessas ações extremistas, numa interpretação bíblica supremacista. As consequências diretas desses conflitos são o agravamento de preconceitos em relação às moralidades, aos saberes e práticas dos afrodescendentes e dos indígenas, bem como na produção de uma nova forma de colonização política, discursiva e territorial.
Consideramos que esse processo de radicalização do ideal supremacista branco, baseado no tripé fenótipo-origem-religião[5], presentes no imaginário nacional desde o século XIX, foi atualizado e produz novas narrativas de inferiorização. A emergência da política nacional do “Deus acima de todos”, adotada pelo presidente Jair Bolsonaro, é, portanto, a expressão de um projeto de poder que associa o expansionismo ao racismo ao tratar as minorias como símbolos do “atraso”, ao mesmo tempo que reinventam povos eleitos e ressuscitam a teoria do branqueamento no país.
A afirmação do vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), um homem heteroidentificado como “pardo”, de que o Brasil herdou a “indolência” dos índios e a “malandragem” dos africanos, é um exemplo de como essa política recusa a alteridade, em nome de Jesus, e mistura os discursos nacionalista e supremacista, com a defesa de uma ordem imposta pela força. A “ilusão brasileira da brancura”[6] está a serviço da invisibilidade das práticas institucionais genocidas que seguem agindo, a despeito das salvaguardas legais, num projeto de extinção de todos que não se representem como “brancos”. Assim, o ideal supremacista no Brasil está a serviço da manutenção dos privilégios da aristocracia, que não se prende ao fenótipo, mas a uma ideologia de “mérito” que o mito da democracia racial criou e que a teologia da prosperidade glorifica – a branquitude como hegemonia segue como a representação social consagrada no Brasil.
*Professora de Antropologia da UFF; Pesquisadora do INC-INEAC-UFF)
** Bolsista de Pós-Doutorado da FAPERJ; Pesquisadora do INC-INEAC-UFF)
[1] MIRANDA, A.M. 2020. “Terreiro politics” against religious racismo and “christofascist” politics. Vibrant, 17: 1-20.
[2] O termo classifica políticas públicas e sociais que, em nome do cristianismo, excluem os grupos minoritários. In HEYWARD, I. C. Saving Jesus from Those who are Right: Rethinking what it Means to be Christian. Minneapolis: Fortress Press, 1999.
[3] RESENDE, E. S. 2010. “A Direita Cristã e a política externa norteamericana: a construção discursiva da aliança entre Estados Unidos e Israel com base na ideologia evangélico-protestante”. Carta Internacional, 5 (1): 3-20.
[4] MIRANDA, A.M.; MUNIZ, J.O. 2018. “Dominio armado: el poder territorial de las facciones, los comandos y las milicias en Río de Janeiro”. Revista Voces En El Fenix, 68: 44 - 49.
[5] ALMEIDA, R. R. “A luta por um modo de vida: as narrativas e estratégias dos membros”, Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, 2019.
[6] CÂNDIDO, A. 2002. Racismo: crime ontológico [Entrevista]. Ethnos Brasil, I (1): 21- 28.
O Estado de S. Paulo: Executiva nacional do Cidadania aprova defesa de impeachment de Bolsonaro
Partido reúne sete deputados e três senadores; presidente da sigla, Roberto Freire diz que governo é um ‘desastre nacional’
Camila Turtelli, O Estado de S. Paulo
BRASÍLIA – O Cidadania, que reúne sete deputados e três senadores, decidiu engrossar o coro pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro. A Executiva Nacional da sigla aprovou na manhã desta segunda-feira, 20, a defesa do processo no Congresso. Segundo o presidente da legenda, Roberto Freire, foram 13 votos favoráveis e 4 contrários.
“Ninguém se pronunciou contra o impeachment, os quatro votos foram questão de oportunidade, avaliação de que talvez não seja esse o exato momento”, disse Freire ao Estadão/Broadcast.
A defesa da saída de Bolsonaro, no entanto, precisa ainda ser aprovada pelo Diretório Nacional do partido, com 112 titulares, em uma reunião agendada para o dia 4 de fevereiro. “O partido está unido na ideia de que esse governo é um desastre nacional”, disse Freire.
A sigla já declarou apoio na Câmara à candidatura de Baleia Rossi (MDB-SP) para sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ). No Senado, são três senadores ao lado da candidatura de Simone Tebet (MDB-MS).
Atualmente há mais de 60 pedidos de impeachment protocolados na Câmara e caberá ao próximo presidente da Casa, a ser eleito no dia 1º de fevereiro decidir sobre o destino desses pedidos.
Nesta quarta-feira, 20, o líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), candidato do Palácio do Planalto na disputa da Câmara, disse que a discussão sobre eventual processo de impeachment de Bolsonaro não é assunto de sua campanha. “Impeachment é tema pertinente ao presidente atual da Casa. Não vou usurpar nem um dia do mandato dele”, declarou Lira, em visita ao Rio. “Se eu me eleger no dia 1°, eu falo dessa questão.”
Na semana passada, partidos de oposição da Câmara anunciaram um pedido coletivo de impeachment, sob o argumento de que ele cometeu “crimes de responsabilidade em série” na condução da pandemia do coronavírus. Assinado por Rede, PSB, PT, PCdoB e PDT, que reúnem 119 deputados, o pedido cita o colapso da saúde em Manaus e diz já ter passado a hora de o Congresso reagir.
“O presidente da República deve ser política e criminalmente responsabilizado por deixar sem oxigênio o Amazonas, por sabotar pesquisas e campanhas de vacinação, por desincentivar o uso de máscaras e incentivar o uso de medicamentos ineficazes, por difundir desinformação, além de violar o pacto constitucional entre União, Estados e Municípios”, diz nota conjunta dos partidos, que defendem a volta imediata dos trabalhos do Congresso.
Evandro Milet: De João Gilberto a Steve Jobs - Gênios inovadores e excêntricos
Em uma apresentação de João Gilberto, reconhecido mundialmente pela criação da batida da bossa nova, em 2003, numa casa de shows em São Paulo, um convidado perguntou: - “João, existe a perfeição?” - “Não, mas a imperfeição me incomoda muito”. Ele queria aperfeiçoar a perfeição”, afirmou seu biógrafo Ruy Castro.
A carreira de João Gilberto foi construída de perfeccionismo intransigente e de excentricidades (rejeitava violões onde só ele identificava defeitos no som). Viveu recluso as últimas décadas até o falecimento em 2019. Sobre ele corriam histórias inusitadas como a prática de jogar cartas, por debaixo da porta fechada do apartamento, com o porteiro que ficava no corredor.
Algumas pessoas geniais naquilo que fazem, têm essa mania de perfeição e algumas excentricidades. Steve Jobs foi um deles. Aprendera com seu pai, que fazia móveis, a cuidar do acabamento até das partes escondidas que não seriam vistas. Gostava de citar Leonardo da Vinci, para quem a simplicidade era a máxima sofisticação. Essa concepção ele compartilhou com o designer chefe da Apple, Jony Ive, outro perfeccionista genial e que buscava o simples. Ive dizia: “O fato é que é muito fácil ser diferente, mas muito difícil ser melhor.”
Para contratar designers para o grupo, conhecimentos de engenharia e informática eram um trunfo, mas não eram indispensáveis. “Nós procuramos personalidade, talento arrebatador e capacidade de trabalhar em pequenos grupos. Também queremos um designer que nos impressione a ponto de nos intimidar.”
A preocupação com a contratação de pessoal era permanente: “não faz sentido contratar pessoas inteligentes para depois dizer a elas o que fazer. Nós contratamos pessoas inteligentes para que elas nos digam o que fazer.”
Para Jobs, o design era mais que a aparência. “ A maioria das pessoas comete o erro de pensar que design é o que se vê. As pessoas acham que é a aparência - que os designers recebem uma caixa e a ordem: “Faça isso ficar bonito!”. Mas não é isso o design. Não é só a aparência e a sensação. O design é como funciona.”
A parceria de Jobs com Ive gerou vários ícones do design. O iPod foi um deles e que lançou várias características que seriam utilizadas em produtos posteriores. Bono, do U2, definiu seu charme de forma límpida quando disse que o iPod “é sexy”. Seus produtos ficavam no cruzamento da tecnologia com a arte e são efeitos de uma mania obsessiva de perfeição criando coisas insanamente grandiosas que deixassem uma marca no universo - nas próprias modestas palavras de Jobs.
Jobs também tinha suas excentricidades. Tirando uma imagem da série Guerra nas Estrelas, funcionários da Apple diziam que ele tinha uma campo de distorção da realidade, capaz de convencer as pessoas a fazer coisas aparentemente impossíveis, que o fazia tão esquisitamente carismático que as pessoas quase precisavam ser desprogramadas depois de falar com ele. Sobre isso, ele mesmo se justificava com Alice no País dos Espelhos de Lewis Carrol: "Quando Alice diz que por mais que tente não consegue acreditar em coisas impossíveis, a Rainha Branca retruca: Nossa! Pois eu às vezes acredito em seis coisas impossíveis antes do café da manhã."
Personalidade mercurial, com mudanças de humor que espalhavam medo nos seus funcionários, era capaz de demitir alguém dentro do elevador ou achar idiota uma ideia apresentada por alguém em um dia e, uma semana depois, aparecer com a mesma ideia como se fosse sua.
A mania de perfeição era tão forte em Jobs que ele passou meses em uma nova casa sem conseguir comprar móveis e eletrodomésticos procurando algo sempre melhor.
Nem todo gênio é excêntrico, mas parece recorrente a ideia de que a excentricidade acompanha muitas vezes a genialidade.
Luciano Huck: Escutar, pactuar e agir - Sugestões para 2021
Muitas vidas teriam sido salvas se as autoridades tivessem ouvido mais os doentes, os profissionais de saúde e aqueles que trabalham em serviços essenciais
O ano de 2020 foi violento. Da porta para dentro de casa, um liquidificador de angústias, ansiedades, incertezas, reflexões profundas sobre valores e prioridades. Da porta para fora, toda sorte de maluquices, ataques à ciência, à democracia e às liberdades, desorganização total, mortes em números de zona de guerra.
Não cabe aqui nem minimizar nem varrer para debaixo do tapete a maior crise sanitária da história. Vivemos o mais doloroso evento para a humanidade desde a II Guerra no ano que passou. Isso fica ainda mais especialmente grave neste momento em que os números de casos e mortes voltam a se acelerar no Brasil.
Tenhamos consciência de que a vacinação, quando finalmente chegar, não nos fará esquecer tanto sofrimento. O ano de 2020 foi também de aprendizados e exercícios valiosos. Fez frutificar a solidariedade e multiplicar as redes de apoio. Reforçou a fé da sociedade na cooperação humana e na democracia. Mostrou a importância do Estado, na forma do SUS e na competência dos profissionais da saúde. Revelou a excelência de nossos cientistas e pesquisadores. Confirmou a capacidade das pessoas e das empresas de se desdobrarem para tocar a vida adiante, com engenho e determinação.
Essas lições igualmente vão ficar para sempre. Tenhamos isso em mente. Em 2020, o planeta foi forçado a parar. Em 2021, precisaremos, de algum jeito, forçá-lo a voltar a girar. Tal oportunidade é valiosa demais para aproveitá-la com os mesmos pensamentos, as mesmas idiossincrasias, as mesmas atitudes. Não podemos mudar o nosso passado, mas somos livres para escolher o nosso futuro.
Tenho conversado com muitos pensadores atuais, pessoas capazes de iluminar o pós-pandemia, e deles tirei sugestões para 2021, que vou resumi-las em três ensinamentos-convites que gostaria de compartilhar aqui.
O primeiro desses ensinamentos-convites é o de escutar. Escutar quem não tem sido ouvido. Escutar quem estudou. Escutar quem pensa diferente de você.
Minha carreira de comunicador foi construída prestando atenção no que os outros têm a dizer, em suas histórias, em suas dificuldades, sacrifícios e lições de vida. Nestes vinte anos rodando pelos quatro cantos do Brasil, em razão do meu trabalho na TV, tomei o pulso da realidade de um país potente, mas ainda vergonhosamente desigual. Aprendi muito com a nossa gente e continuo a aprender. Nosso povo tem muito a ensinar — sobretudo a quem se acha dono da verdade. Apurar os ouvidos é transformador. Se você escutar de verdade, não vai ter como ignorar os problemas que existem nem as propostas mais robustas e consequentes que surgem para enfrentá-los. Leva a gente a perceber que a realidade nada tem de binária.
Voltemos à pandemia. Era a chance de o poder público escutar com atenção os doentes e suas famílias. De ouvir os profissionais de saúde, os cientistas e todos aqueles que trabalham em serviços essenciais. Era hora de focar em quem foi mais impactado pela crise, em quem mais colaborou para solucioná-la. Muitas vidas teriam sido salvas se nossas autoridades tivessem ouvido mais essas pessoas.
Agora tomemos a questão da Amazônia. Se é fundamental escutar os alertas urgentes e os registros aflitivos da ciência e da meteorologia, também é importante ouvir as necessidades e privações das pessoas que vivem na região e de lá tiram o seu sustento. Qualquer programa de bioeconomia só será realmente sustentável na região das florestas quando houver um entendimento entre diferentes pontos de vista — ou seja, se for feito um encontro de ideias entre ambientalistas, produtores rurais e povos tradicionais, sem descartar ninguém que aja no marco da lei.
Então o segundo ensinamento-convite que proponho é o de juntar as pessoas, reunir as melhores ideias e buscar consensos. Tem muita gente decente no Brasil com vontade genuína de contribuir para fazer um país melhor. Uns dirão que isso é utópico, que as lutas (de classes?) do dia a dia jamais permitirão convergências. Conversa fiada — tão conveniente àqueles, aliás, que prosperam justamente com o imobilismo.
Exemplos não faltam de políticas públicas pactuadas e executadas a várias mãos, do Plano Real ao Bolsa Família, do SUS à Lei Maria da Penha. Em 2019, bem antes da pandemia, eu defendi num seminário no centro financeiro de São Paulo a urgência de o Brasil atacar a nossa abissal desigualdade socioeconômica. Tinham me dito que a plateia farialimer torceria o nariz para a defesa de um programa de renda mínima. Pois aconteceu o contrário. Na vida, os bons exemplos arrastam — e, no trato da questão pública, precisa ser assim também.
O terceiro convite para 2021 nasce dessa disciplina de escutar e de buscar entendimentos. É o imperativo de agir. Temos de tirar do papel as boas ideias. A curiosidade somada à iniciativa e à capacidade de execução pode mover montanhas. Numa conversa recente, a historiadora Anne Applebaum fez para mim a defesa de um reagrupamento político e da instalação de uma contranarrativa com o objetivo de deter os extremos antidemocráticos. Um chamado que considero irresistível e que conta com ventos a favor. Amém!
Nas últimas eleições municipais, as capitais e as maiores cidades rejeitaram inapelavelmente a polarização política. E agora na Câmara desponta a frente multipartidária mais ampla das últimas décadas. É gente diferente unida por um mesmo propósito: nada mais poderoso.
Neste momento tenso da história do Brasil, cheio de instabilidades, é normal que especulações e interpretações equivocadas apareçam por todos os lados. Existe uma vontade pessoal minha de atuar na construção de um futuro mais próspero e justo para a nossa sociedade. Essa vontade já é bastante notória. Venho procurando exercê-la de maneira constante e intensa por meio do diálogo, do mapeamento e da divulgação de boas práticas. Todos os meus passos em 2020 foram dados à luz do dia, sempre em caráter apartidário e pessoal. Divulguei informações sobre a pandemia com responsabilidade e frequência na TV e nas minhas redes sociais — mais de 30 milhões de pessoas impactadas semanalmente.
Contribuí para erguer pontes entre a iniciativa privada e comunidades desassistidas — da distribuição porta a porta de álcool em gel e kits de higiene até cestas básicas.
Participei do grupo de criação da União Rio, de inúmeras iniciativas com a Central Única das Favelas, procurando assim auxiliar financeiramente quem mais sofreu com os efeitos da pandemia na saúde e na economia.
Abri uma escuta permanente para aprender, apoiar e viabilizar iniciativas inclusivas e antirracistas — de um piloto de distribuição de renda não bancarizada em Alagoas à oferta de um intensivo digital e gratuito para inscritos do Enem no Rio Grande do Sul.
Tentei também contribuir dando protagonismo e reconhecendo vozes das periferias e do Brasil profundo, as quais conheço bem, presto atenção, ouço e com quem apreendo há mais de duas décadas viajando pelo país.
Puxei para o debate público brasileiro mais de uma dúzia de pensadores internacionais que, de alguma forma, podem inspirar nossos caminhos pós-Covid — de economistas que estudam a desigualdade, como Esther Duflo e Thomas Piketty, a referências da tecnologia e da inclusão digital, como Nandan Nilekani e Peter Diamandis.
Como cidadão, tento contribuir com meu país até onde minha voz alcança. Consciente da violência, dor e desfuncionalidade do ano que passou, concluí que preciso ir além em 2021. E quero chamar mais gente para avançar: escutando, pactuando e agindo.
Numa de suas tantas letras maravilhosas, um dia Caetano Veloso escreveu que “coragem grande é poder dizer sim”. A gente precisa de um país mais eficiente e afetivo, em que as pessoas tenham o direito de sonhar e as oportunidades não sejam determinadas pela cor da pele ou pelo CEP de nascimento. Uma nação com mais formaturas e menos funerais.
Temos de arregaçar as mangas das nossas camisas, pisar firme no chão da realidade e elaborar um projeto de nação que faça o Brasil liderar agendas globais.
É urgente trabalhar para ser a maior potência agroindustrial sustentável do planeta. Uma economia verde admirada, capaz de produzir e preservar, mas também de extinguir a miséria e combater com rigor as nossas enormes desigualdades.
Para isso, nós teremos de nos mexer, de unir favela e asfalto, campo e cidade, conectando Brasília ao mundo. Tal desafio só será possível se nossas lideranças reconhecerem a necessidade de fazer concessões em nome do bem comum. Pois nada acontecerá por geração espontânea.
Somos muitos. Podemos muito. Aqui estão algumas sugestões para juntos construirmos o futuro próximo do Brasil. Feliz 2021!
*Luciano Huck é apresentador de televisão e empresário
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720
O que mostra a eleição de Bruno Covas em São Paulo? Paulo Fábio Dantas Neto explica
Em artigo na revista da FAP de dezembro, professor da UFBA analisa relação do resultado das urnas com governador João Doria
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O doutor em ciência política e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Paulo Fábio Dantas Neto diz que há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das eleições de 2020 na capital paulista. Em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro, ele cita que a primeira mostra que a reeleição do prefeito Bruno Covas foi uma vitória do governador João Doria e a segunda aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional.
Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!
Todos os conteúdos da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Na primeira hipótese, segundo ele, poderia se estimular uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Na segunda, acrescenta, o objetivo seria superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.
Na avaliação de Dantas Neto, o peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. “Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram”, afirma. “Em Fortaleza, a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu”, acrescenta.
Dessa bifurcação surge uma outra questão, de acordo com o autor do artigo, que foi vereador em Salvador (1983-1988), deputado estadual (1989) e secretário municipal de Educação (1994). “Saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Sinalizam a chance de uma frente ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda”, acrescenta.
Isso, segundo ele, pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. “Do nome, ainda estão longe”, afirma o professor da UFBA. “Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo-Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com ‘essência’ de centro-direita”, diz.
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Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Há quarenta anos, em dezembro de 1980, morria Nelson Rodrigues. “Além de dramaturgo, jornalista, contista, romancista e cronista, era um frasista de mão cheia. Talvez o maior da língua portuguesa. Suas tiradas caíram no gosto do povo. Continuam atualíssimas, sínteses do que há de melhor e pior na alma humana”, afirma o jornalista Henrique Brandão, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.
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Todos os conteúdos da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Para Brandão, as peças de Nelson Rodrigues são um primor de denúncia da hipocrisia reinante. “Imoral, sem vergonha, tarado, lascivo, pornográfico, são epítetos com os quais, a cada estreia de uma peça, foi brindado pelos setores defensores da ‘moral e dos bons costumes’ da sociedade carioca –provavelmente proferidos por uma ‘grã-fina de narinas de cadáver’, uma das criações geniais do cronista implacável”, escreve, no artigo.
O artigo na revista Política Democrática Online deste mês conta que Nelson Rodrigues atuou em várias frentes. “Sua obra teatral é monumental: deixou 17 peças, algumas delas marco do teatro brasileiro, como Vestido de Noiva, de 1943. É considerado por muitos críticos o maior dramaturgo brasileiro do século XX”, diz Brandão, no texto.
Em outro trecho, ele ressalta que até quem não gosta de futebol se delicia com as crônicas esportivas de Nelson Rodrigues. “Antológicas, não perderam a atualidade. E por que não, passado tanto tempo? Porque não se referia a minúcias dos jogos. Ele captava a essência da partida em momentos mágicos, o embate futebolístico como espetáculo único, com seus personagens próprios”, assevera.
Antes do golpe de 1964, escreve Brandão, Nelson não metia a colher na política. “A partir de 1968, contudo, começou a implicar com quem fazia oposição aos militares. Revelou-se anticomunista ferrenho, apesar de ter convivido com jornalistas de credo diferente, como Antônio Callado, a quem chamava de ‘doce radical’, conta o autor do artigo.
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Cristovam Buarque: Obscurantismo na luz
Nossos textos básicos precisam ser conhecidos e respeitados pelo que iluminaram do nosso passado. Mas, para que iluminem o futuro, é preciso saber o que eles obscurecem: um país racista, violento, desigual e atrasado por não cuidar da educação de sua população''
Casa grande e senzala é uma das mais substanciais obras iluminadoras do passado, mas obscurece ao dar a ideia de que o Brasil é uma democracia racial. Quando publicado, fazia menos de 50 anos da Lei Áurea, depois de mais de três séculos de escravidão. Mesmo assim sugere que a relação entre senhores e escravos, especialmente com escravas, indicaria falta de racismo, apesar da exploração brutal contra eles.
No caso das relações sexuais, tratava-se de ato de violência, não gesto de tolerância. Apesar dessa violência ter mestiçado a cor de nossa gente, ela era produto do machismo, da supremacia branca e do poder escravocrata. Ela não quebraria o racismo porque a fábrica do racismo não está na genética que mestiça a pele, mas na educação que forma a mente: tolerante ou racista, conforme os ensinamentos. Não é a cama, é a escola que constrói a democracia racial.
Casa grande e senzala, apesar de seu texto genial que ilumina muito do nosso passado, obscureceu o papel da educação na construção do Brasil que somos, porque não analisa a formação da mente escravocrata por falta de educação para os escravos e educação preconceituosa para os senhores. Ausência de educação para uns e promoção da ideia de supremacia branca para outros.
Gilberto Freyre não é o único que obscurece ao iluminar. Sérgio Buarque de Holanda escreveu um livro iluminador das raízes brasileiras, mas obscureceu nossa realidade, mesmo sem ter a intenção, por dar origem ao estereótipo do “homem cordial”. O homem brasileiro pode ser informal, simpático, divertido, mas se fosse cordial não aceitaria a brutalidade que jorra por todos os poros de nossa sociedade. Sérgio Buarque de Holanda formulou o conceito de “homem cordial” para indicar a aceitação das maldades sem revolta política; não queria, mas obscureceu nossa realidade, ao dar origem ao falso estereótipo de que somos plenos de cordialidade e não de aceitação e conivência com a maldade.
Por quase toda nossa história, o brasileiro branco praticou a maldade da escravidão. Depois da abolição, continuamos campeões de desigualdade, de analfabetismo, exclusão social, violência, destruição de florestas e genocídio contra povos indígenas; implantamos um sistema de apartação, mas acreditamos ter índole cordial. Isso faz com que nossos intelectuais, poetas, músicos e escritores de ficção raramente manifestem horror diante de nossa realidade. Muitas vezes glamourizam a pobreza e a desigualdade. Castro Alves é uma das exceções.
Poucos de nossos intelectuais foram tão iluminadores como o grande Celso Furtado, com diversos de seus livros, especialmente Formação econômica do Brasil. Além de iluminar o passado, inspirou o futuro com propostas para romper as amarras do atraso e promover o desenvolvimento econômico do Brasil. Furtado avançou no papel do progresso tecnológico, da criatividade e da cultura na indução ao desenvolvimento, mas ao concentrar sua interpretação na economia, teve reduzida a importância da educação de base universal como vetor do progresso ou causa do atraso.
Os intérpretes da nossa formação — uma das exceções é Darcy Ribeiro — ajudaram a alienar a consciência nacional da importância da educação como fator de progresso. Essa é uma característica dos intérpretes brasileiros e também dos latino-americanos. Eduardo Galeano formulou a formidável metáfora das “veias abertas” para explicar o atraso latino-americano, devido ao saque imperialista de nossas riquezas materiais, obscurecendo que nosso atraso decorre sobretudo dos “neurônios tapados”, por falta de cuidados educacionais por opção de nossos dirigentes, de direita ou esquerda, nestes 200 anos de independência.
Com a obra Dependência e desenvolvimento na América Latina, Fernando Henrique Cardoso deu contribuição iluminadora ao identificar a dependência econômica como uma das causas de nosso atraso, mas reduziu a culpa de nossa elite dirigente e não deu importância à falta de qualidade e de equidade na educação de base. Tampouco que a falha foi nossa, e não de nações estrangeiras. Stephen Zweig, no livro Brasil: país do futuro iluminou nosso potencial, mas passou a ideia de que bastava esperar. O progresso chegaria sem esforço.
Nossos textos básicos precisam ser conhecidos e respeitados pelo que iluminaram do nosso passado. Mas, para que iluminem o futuro, é preciso saber o que eles obscurecem: um país racista, violento, desigual e atrasado por não cuidar da educação de sua população.
*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)